Artigo

  • Frei Betto – O CARDEAL

    À porta do presídio o bispo é impedido de entrar. Só o arcebispo, que ali nunca esteve, tem passe-livre. Pouco depois, o arcebispo – que viu torturados, mas jamais acreditou em torturas – é removido para Roma. O papa nomeia para o seu lugar o bispo proibido de visitar os presos políticos. Do alto de seu novo múnus arquiepiscopal, o futuro cardeal, todo paramentado, apresenta-se à porta do presídio que, agora, se abre ao sopro da força do Espírito.

    O novo arcebispo sobe as escadas da galeria de celas, ouve atento as denúncias de maus-tratos, visita os frades dominicanos acusados de subversão, abençoa os que sofrem.

    Semanas depois, um dos frades é levado de volta às sevícias e, durante três dias, submerge no batismo de sangue, em comunhão com os mártires. O cardeal deixa a sua casa – pois vendera o palácio episcopal para construir centros comunitários na periferia – e vai ao presídio consolar o frade, cuja boca havia sido aberta para “receber a hóstia” de descargas elétricas, enquanto a pele ardia à brasa de cigarros.

    O cardeal ignora a advertência dos policiais e entra, sem pedir licença, numa delegacia de proteção da ordem política e social. Ninguém ousa barrá-lo, nem se atreve a acusá-lo de desacato à autoridade. O cardeal está de clergyman e caminha firme rumo ao subsolo, onde encontra um de seus padres sangrando em dores. Como quem teme mais a autoridade de Deus que a dos homens, o carcereiro mete a chave no cadeado e destranca os ferrolhos, permitindo que o cardeal toque as chagas do sacerdote descido há pouco do pau-de-arara.

    O jornalista judeu foi suicidado no mesmo local em que o frade havia sido espancado. O cardeal reage indignado e convoca os fiéis para a missa solene na catedral. Rabinos e empresários, empenhados em demover o cardeal, dirigem-se à casa dele e tentam convencê-lo da insensatez de um culto católico para um judeu assassinado. O cardeal retruca enfático: “Jesus também era judeu”. E abre a catedral à cerimônia fúnebre.

    O cardeal viaja quilômetros de carro para visitar prisioneiros afastados dos grandes centros urbanos, aceita mediar a greve de fome dos encarcerados, abre suas portas a familiares e advogados que vêm contar-lhe da mais recente vítima da ditadura. O cardeal telefona a generais e delegados, protesta junto ao presidente da República, informa ao papa o que se passa nos subterrâneos da história do Brasil.

    A ditadura agoniza e o cardeal, convencido de que não se deve repetir nunca mais esta página da história, escreve o mais contundente relato dos crimes do regime militar, Brasil, Nunca Mais. O livro alcança repercussão mundial e torna-se fator de interdição, em funções públicas, de muitos que acreditavam que a liberdade se esculpe a pauladas.

    O cardeal incomoda, com o seu profetismo, a própria Igreja. Sua arquidiocese é retalhada, restando-lhe o centro, enquanto seu coração permanece na periferia. Seu nome é suprimido das comissões vaticanas. O papa João Paulo II mostra-lhe o dossiê que a Cúria Romana preparara contra ele e atira-o no lixo. O cardeal dobra-se, apanha os papéis e pede ao papa que assine, para guardar de recordação.

    O cardeal se chamava Dom Paulo Evaristo Arns.

    * Forquilhinha, 14 de setembro de 1921 — +São Paulo, 14 de dezembro de 2016 (Imagem Fabio Braga/Folhapress).

     

  • CARTA PÚBLICA: Pela defesa dos Direitos da Mãe Terra e pela Vida da Amazônia com seus povos

    Amigas e Amigos, 
    No dia 22 de abril de 2020 – Dia Internacional da Mãe Terra, nós, Organizações e movimentos sociais do Brasil lançamos uma Carta Pública em que anunciamos a decisão de desencadear um processo de mobilização nacional pela vida da Amazônia com seus povos e pelo reconhecimento dos direitos da Natureza, nossa Mãe Terra.
    As adesões à Carta Pública e a comunicação com a iniciativa deve ser feita pelo e-mail fclimaticas@gmail.com

    CIMI – Encontro das Mulheres do Povo Apinajé “Nós somos a terra, e devemos cuidar dela”

    CARTA PÚBLICA: Pela defesa dos Direitos da Mãe Terra e pela Vida da Amazônia com seus povos

    Anos e anos de pressão, especialmente das insistentes mobilizações dos povos originários e da publicação da Carta da Terra no ano 2000, fruto de um processo  internacional  participativo com adesão de mais de 4.500 organizações da sociedade civil e organismos governamentais, levaram a ONU a declarar, em 2009, o dia 22 de abril como Dia Internacional da Mãe Terra.

    Agora, no ano 2020, a celebração do Dia da Mãe Terra está sendo realizada com a humanidade vivenciando  uma dura experiência  de globalização:  em meses, um denominado  “novo coronavírus” está afetando todos os povos do Planeta. Levado pelos diversos caminhos do mercado, desde o do turismo até o de mercadorias, sua rápida capacidade de contágio só encontrou a estratégia de isolamento de todas as pessoas como medida capaz de diminuir a sua velocidade e evitar o colapso dos serviços públicos e privados de saúde.

    O orgulhoso mercado globalizado experimentou seus limites e contradições, e hoje a economia capitalista, cultuada como um ídolo todo-poderoso, revira-se  no esforço de prever o tamanho da sua queda.

    As pessoas, contudo, estão refazendo o aprendizado de viver a partir de sua casa – ou da falta dela -, e com tempo para refletir sobre o sentido da correria, do desgaste e exploração a serviço do um crescimento econômico sem limite num planeta limitado, e num sistema que concentra riqueza em poucas mãos e multiplica inseguranças e miséria para a maioria da espécie humana.

    De 2009  até hoje as grandes  empresas,  conglomerados  monopolistas, operadores  das commodities, mineradores, agronegócio, sistema  financeiro e os governos subservientes aos seus interesses não mudaram suas práticas de se apropriar e de explorar à exaustão os bens naturais dos biomas, destruindo tudo o que podia ser transformado em lucro. Isso acelerou de modo especial o desmatamento  da floresta da Amazônia e do Cerrado, e a maioria da população foi empurrada a viver em grandes cidades estruturalmente discriminadoras e racistas, sobrevivendo em favelas, sem direito garantido a trabalho, moradia e meio ambiente saudável.

    Esses projetos desenvolvimentistas, que avançam sobre os bens públicos e comuns com a conivência e apoio do Estado, são responsáveis pelo agravamento das mudanças climáticas e pelo fracasso do controle das emissões de gases de efeito estufa. As consequências presentes são os desastres causados por secas, enchentes, ventanias, intrusão salina, rebaixamento dos lençóis freáticos, elevação do nível dos mares e outros eventos extremos, que no futuro tendem a se multiplicar e agravar na medida que o planeta aquece.

    Os povos originários e comunidades tradicionais, ao contrário, consolidaram seus modos de vida fundados na compreensão de que a Terra é um ser vivo e fonte de vida, Pacha Mama, Mãe Terra. Contribuíram de forma decisiva para os avanços políticos que levaram o Equador a incorporar na sua Constituição, elaborada por uma Assembleia Constituinte Popular e aprovada por um Plebiscito nacional, um capítulo sobre os Direitos da Natureza, assim definidos:

    A natureza ou Pacha Mama, onde se  reproduz e realiza a vida, tem direito a que se  respeite integralmente sua  existência e  a manutenção e  regeneração de  seus  ciclos  vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. (Capítulo VII, Art. 71)

    Da mesma forma, a Bolívia reconheceu estes direitos no Plebiscito de 2012 que aprovou a Lei da Mãe Terra. E, com certeza, há busca de novas práticas e novas relações com a natureza nas economias indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais, no crescimento dos plantios agroecológicos e agroflorestais, nas práticas de convivência com o Semiárido brasileiro e com os demais biomas, na economia popular solidária e em muitas outras iniciativas populares.

    Precisamos reafirmar: já há práticas que demonstram ser possível estabelecer relações de convivência com os biomas e desenvolver, ao mesmo tempo, iniciativas de produção dos bens necessários à vida. É falso o dilema: ou manter  o equilíbrio ecológico ou produzir o que a humanidade precisa. Primeiro porque a humanidade precisa, antes de qualquer outra coisa, de condições naturais favoráveis à sua existência: ar limpo, água pura, vegetações, flores, espaços agradáveis de encontro e de intercomunicação… Depois, já existem provas de que é possível produzir o que as pessoas e os demais seres vivos precisam – atenção: o que precisam  – cultivando, trabalhando amorosamente com as energias da Terra, superando práticas de agro e hidronegócio, de extração de minérios e fontes fósseis de energia, isto é, de exploração cada vez mais intensiva dos solos, água e ar, usando produtos químicos para que as mercadorias garantam lucros crescentes.

    Tendo por base as possibilidades construídas pelos povos e comunidades, e denunciando o caráter destrutivo das práticas empresariais e das políticas governamentais dominantes, as redes e entidades que subscrevem essa declaração pública assumem o compromisso de lutar, implementando mobilização nacional, em defesa dos direitos da Natureza, a nossa Mãe Terra. Ninguém, nem mesmo a totalidade dos seres humanos, somos donos, senhores da Terra. Ela, sim, é senhora da nossa vida. Como durante bilhões de anos se manteve viva e em evolução sem os seres humanos, certamente poderá continuar viva sem a presença da espécie humana. A humanidade, porém, só poderá continuar viva e ter direitos se reconhecer, defender e cuidar dos direitos da Mãe Terra.

    É por isso que assumimos a defesa do direito da Mãe Terra à floresta e à sociobiodiversidade da Amazônia, bem como dos demais biomas, para ter condições de garantir equilíbrio hídrico em todo o território brasileiro e da América do Sul. Defendemos igualmente a obrigação dos seres humanos e do Estado brasileiro de parar definitivamente o desmatamento e os incêndios criminosos, assumindo a obrigação de restaurar a biodiversidade destruída, na Amazônia e em todos os biomas, para que a Terra possa garantir a geração de umidade e chuvas, como ela desenvolveu em seu processo evolutivo.

    A crise humanitária gerada pelo Coronavírus prova que podemos viver de outra forma. Toda crise tem lições a nos ensinar. O isolamento social forçado nos obrigou a desacelerar o ritmo de vida. O desenvolvimentismo  desenfreado,  como se o planeta  não tivesse limites, está em cheque. Esse é o momento para mudar o rumo da caminhada humana, reconhecendo, defendendo e cuidando dos direitos da Mãe Terra, para que a espécie humana seja de fato expressão consciente e amorosa da Mãe de todos os seres vivos.

    Brasília, 22 de abril de 2020

    Assinado,

    Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade (AFES)
    Ação Social Diocesana de Patos/PB
    Ágora das/dos Habitantes da Terra Brasil (AHT-BR)
    Arquidiocese de Manaus
    Articulação Antinuclear Brasileira (AAB)
    Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC)
    Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo
    (APOINME)
    Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
    Articulação pela Convivência com a Amazônia (ARCA)
    Articulação pela Preservação da Integridade dos Seres e da Biodiversidade (APISBio)
    Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
    Associação Alternativa Terrazul
    Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
    Associação de Agricultores Familiares Pe. Claret-Grama
    Associação de Combate aos Poluentes (ACPO)
    Associação De Pesquisa Xaraeís
    Associação de Saúde Socioambiental (ASSA)
    Associação dos Agroextrativistas do Baixo Rio Ouro Preto (ASAEX)
    Associação dos Moradores,
    Produtores e Amigos do Distrito De Nazaré (AMPAN)
    Associação Escola Família Agrícola Jaguaribana (AEFAJA)
    Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN)
    Associação Guardiões do Cerrado/Goiás (AGC)
    Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania
    Associação para Recuperação e Conservação do Ambiente (ARCA)
    Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro (APSERJ)
    Associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami-Secoya
    Associação Solidariedade Libertadora (ASSOLIB/MA)
    Auditoria Cidadã da Dívida
    Campanha Nem um Poço a Mais
    Cáritas Brasileira (CB)
    Cáritas Diocesana de Crato
    Cáritas Diocesana de Macapá Cáritas Diocesana de Pesqueira
    Cáritas Diocesana de Roraima Ceará no Clima
    Central de Movimentos Populares de Rondônia (CMP/RO)
    Centro Burnier de MT
    Centro Dandara de Promotoras Legais Populares de São José dos Campos
    Centro de Ação Cultural (CENTRAC)
    Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra – ES (CDDH)
    Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CDDH)
    Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá
    Centro de Direitos Humanos de Formoso do Araguaia
    Centro de Educação Popular e Formação Social (CEPFS)
    Centro Diocesano de Apoio ao Pequeno Produtor – (CEDAPP)
    Centro Semear
    Coletivo Catarse
    Coletivo Dez Mulheres da Vila de Ponta Negra/RN
    Coletivo Mura de Porto Velho
    Coletivo Não Lugar
    Coletivo Pelo Direito A Cidade De Porto Velho/RO
    Coletivo Popular Direito a Cidade, Porto Velho-RO
    Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP)
    Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil
    Comissão Pastoral da Terra (CPT)
    Comitê de Energia Renovável do Semiárido (CERSA)
    Comitê Defensor da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira – Núcleo FMCJS/RO
    Comitê Goiano de DHs D. Tomás  Balduino
    Comunidades Eclesiais de Base Regional Norte 1
    Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
    Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC)
    Conselho Nacional de Ouvidorias Externas das Defensorias Públicas
    Conselho Nacional do Laicato do Brasil
    Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP)
    Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
    CRIOLA
    Diálogos em Humanidade – Brasil (DeH-BR)
    Diocese de Goiás
    Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE)
    Fórum da Amazônia Ocidental (FAOC)
    Fórum da Amazônia Oriental (FAOR)
    Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT)
    Fórum dos Atingidos pela Indústria do Petróleo e Petroquímica nas cercanias da Baía de Guanabara (FAPP-BG)
    Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS)
    Fraternidade da Anunciação – Goiás/GO
    Frente por Uma Nova Política Energética para o Brasil
    Fundação de Educação e Defesa do Meio Ambiente do Vale do Jaguaribe  (FEMAJE)
    Fundação Luterana de Diaconia – Conselho de Missão Entre Povos Indígenas – Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (FLD-COMIN-CAPA)
    Fundação Vida para Todos (ABAI)
    Greenpeace Brasil
    Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ)
    Grupo Carta de Belém (GCB)
    Grupo de Defesa da Amazônia (GDA)
    Instituto Aldeias
    Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE)
    Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM)
    Instituto Calliandra de Educação Integral e Ambiental
    Instituto Madeira Vivo (IMV)
    Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS)
    Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA)
    International Rivers (IR)
    Iser Assessoria
    Laboratório de Pesquisa em Educação, Natureza e Sociedade (LabPENSo), da UERJ-FEBF
    Marcha Mundial
    Por Justiça Climática/ Marcha Mundial Do Clima
    Métodos de Apoio à Práticas Ambientais e Sociais (MAPAS)
    Movimento Baía Viva (RJ)
    Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE)
    Movimento dos Atingidos por Barragens  (MAB)
    Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
    Movimento Educação de Base (MEB)
    Movimento Nacional Contra Corrupção e pela Democracia (MNCCD)
    Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH/ES
    Movimento Pró-Saneamento e Meio Ambiente da Região do Parque Araruama/São João de
    Meriti – RJ (MPS)
    Movimento Sócio-Ambiental Caminho das Águas – Itu/SP
    Movimento Tapajós Vivo (MTV)
    Movimentos dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Campos (MTC)
    Núcleo Cerrado FMCJS
    Núcleo de estudos Amazônicos da UNB (NEAz)
    Núcleo RJ do FMCJS
    O Grupo de Pesquisa Energia Renovável Sustentável  (GPERS/UNIR)
    Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA)
    Observatório Político da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP)
    ONG Mutirão
    Ong Pachamama
    Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas
    (OPIROMA)
    Organização Orowari dos Povos Indígenas de Guajará Mirim e Nova Mamoré-RO
    Organizacion Comunal de la Mujer Amazonica (OCMA)
    Ouvidoria Geral Externa da Defensoria Pública do Estado de Rondônia
    Pastoral da Mulher Marginalizada (PMM)
    Pastoral do Meio Ambiente da Arquidiocese do Rio de Janeiro
    Preferência Apostólica Amazônia (PAAM)
    Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)
    Rede das Associações das Escolas Família do Amapá (RAEFAP)
    Rede Eclesial Pan Amazônica – REPAM Brasil
    Rede Jubileu Sul Brasil (JSB)
    Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES)
    Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia (SINFRAJUPE)
    Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM)
    Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Único de Saúde de Goiás (SINDSAUDE/GO)
    Sinttel MG
    Sociedade Amigos por Itaúnas (SAPI)
    Sociedade de Apoio Sócio – Ambientalista e Cultural (SASAC)
    Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH)
    TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta (Parintins/AM)
    União Estadual por Moradia Popular (UEMP-RO)
    Via Campesina Brasil

    ADESÕES
    A adesão a esta Carta Pública continua aberta às entidades através do e-mail fclimaticas@gmail.com
    Para divulgar use estas palavras-chave
    #direitosdanatureza
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  • Os R$ 600 que podem mudar a face do Brasil – Antonio Martins

    Por Antônio Martins para Outras Palavras, 19 de junho de 2020.

    O Auxílio Emergencial pago a 64 milhões de pessoas está ameaçado pelo governo Bolsonaro-Guedes. Começou uma campanha da sociedade civil para defendê-lo. Parece ser por dinheiro, mas é por um mundo novo. Por isso, vale a pena.

    Vinte centavos sacudiram o Brasil, em 2013. Diante de manifestações gigantescas pela redução das tarifas de ônibus, o governo de esquerda amedrontou-se, temendo a autonomia das ruas. Os líderes do movimento erraram feio em suas análises da correlação de forças. Uma sucessão de equívocos grosseiros permitiu que a direita capturasse a onda de protestos e, um ano e meio depois, o poder.

    Mas fenômenos semelhantes vêm se repetindo com frequência e intensidade crescentes, em latitudes e circunstâncias políticas distintas. Um imposto “ecológico” sobre a gasolina (que na verdade ampliava a injustiça fiscal) fez nascer na França, em outubro de 2018, a rebelião dos gillets jaunesEm setembro de 2019, no Equador, um levante indígena e das periferias arrasou a popularidade do presidente Lênin Moreno, após um aumento de 30% nos preços da gasolina, imposto por acordo com o FMI. Um mês depois, no Chile, uma elevação de 3,75% nas passagens de metrô despertou os catracazos secundaristas, destapou trinta anos de revoltas contra as políticas neoliberais e obrigou o presidente Piñera e o Parlamento conservador a aceitarem uma Constituinte. Também em outubro, no Líbano, a introdução de um imposto sobre o whatsapp, de 2 dólares por mês, desencadeou protestos inéditos, queda do governo e uma crise política ainda irresolvida, que inclui moratória da dívida externa.

    Serão os R$ 600 do “auxílio emergencial” criado em março o estopim de uma nova revolta brasileira? Ou – talvez melhor – poderão abrir, enfim, um debate sobre os rumos do país, no pós-pandemia? Criarão, além disso, condições políticas para uma Renda Básica permanente, universal e capaz de assegurar vida material digna?

    É impossível saber, a esta altura. Mas na última quarta-feira (17/6) um novo ingrediente foi adicionado ao caldo de contradições, potencialmente explosivo, em que o governo trama a extinção do benefício. Um conjunto de 163 organizações e movimentos, articulados em torno da campanha “Renda Básica que queremos” apresentou ao Congresso a proposta de sua prorrogação até dezembro. O valor permanece o mesmo, mas há avanços importantes. Entre eles, reduz-se a intrincada burocracia que excluiu milhões, atrasou pagamentos e obrigou a formação de filas humilhantes. Estendem-se os R$ 600 aos trabalhadores da economia formal cuja renda familiar per capita seja inferior a meio salário mínimo. Elimina-se a exclusão dos que tiveram renda superior a R$ 28 mil em 2018 – o que pode contemplar parte dos uberizados, até agora barrados por Bolsonaro.

    Nas próximas quatro semanas, o debate em torno do Auxílio Emergencial pode migrar para o centro da agenda política. A última das três parcelas aprovadas pelo Congresso em 1º de abril começa a ser paga hoje (18/6). Mas a pandemia e o colapso econômico prosseguem, sem dar sinais de amainar. A partir de 18 de julho, cerca de 81 milhões de pessoas, para as quais os R$ 600 são indispensáveis, poderão despencar num abismo de exclusão ainda mais profundo. A demanda surpreendente pelo benefício – que em princípio deveria dirigir-se apenas aos “mais pobres” – revela como regrediu a Economia brasileira; como é insano pretender que ela “volte ao normal” após a covid-19; como é falso o discurso segundo o qual o país, após as contrarreformas de 2016-18, preparava-se “para decolar”.

    O governo está em saia justa e em desconforto crescente. Por um lado, o fim do Auxílio poderá abalar a já declinante popularidade do presidente – em especial nas camadas sociais onde ele ganhou um tímido alento. Por outro, a oligarquia financeira, base política essencial para sustentar Bolsonaro no poder, em meio a seus crimes e desatinos, dá sinais de impaciência: deseja impor, o mais breve possível, novos limites ao gasto social e a volta do que chama de “disciplina fiscal”.

    No Congresso, por onde a extensão do Auxílio Emergencial terá de passar, reina a ambiguidade. O alinhamento ideológico com as ideias neoliberais é vastíssimo e ficou demonstrado em todas as contrarreformas dos últimos anos. No entanto, a ideologia, apenas, não coloca votos em urna. Haverá eleições em breve, os parlamentares sabem que seu prestígio é baixo e a pandemia tem-nos levado a concessões que talvez em outros tempos fossem impossíveis. São exemplos disso, além da própria votação dos R$ 600 por três meses, em abril, a mais recente aprovação a Lei Aldir Blanc, que investe R$ 3 bilhões na Cultura.

    A novidade essencial introduzida em 17/6, pela proposta das 163 organizações, é criar um polo de mobilização. Agora, a luta para prolongar o auxílio emergencial, introduzir um embrião de Renda Básica no Brasil e questionar a “volta ao velho normal” não é apenas uma quimera – nem depende de um gesto de “boa vontade” do Palácio do Planalto ou do Congresso. Há instrumentos claros para agir: no momento, uma petição, indicações sobre como pressionar os parlamentares. Em breve, articulações com partidos, personalidades, antigos e novos “influenciadores” darão mais caldo à mobilização. Num país infelicitado pela pandemia e por um governo de devastação nacional, está surgindo um respiro, uma oportunidade nova para atuar, refletir e questionar. Porque a Renda Básica é, em muitos sentidos, a antítese do projeto de concentração brutal de riquezas, eliminação de direitos e esvaziamento da democracia, que o Brasil vive desde 2016. É o que veremos isso a seguir.

      1. O Destape

    Auxílio Emergencial já transfere, para as maiorias,
    quinze vezes mais renda que o Bolsa Família. Sua grandeza sinaliza
    quanto o Estado poderá fazer, quando deixar de ser colonizado pelo 0,1%

    Nos planos iniciais do governo, o Auxílio Emergencial era uma espécie de compensação, um “cala-boca”. Em 23/3, em sintonia com autoridades monetárias de outros países, o Banco Central (BC) ofereceu à banca privada um pacote de benefícios financeiros equivalente a R$ 1,2 trilhão. No mesmo período, tramitava no Congresso a chamada Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra, que autorizaria o mesmo BC a comprar, pelo valor de face, créditos irrecuperáveis (os chamados “títulos podres”) em poder de bancos e corporações. A justificativa, como sempre nestas ocasiões, era “resgatar” o sistema financeiro, por meio de injeções de “liquidez”.

    Mas e para salvar a população açoitada pela pandemia? Em março, no conjunto de medidas adotadas em meio à pandemia, o governo ofereceu algo como uma esmola. Um pagamento de R$ 200 mensais, apelidado pelo Palácio do Planalto de “coronavoucher”, equivalia a mínimos R$ 6,66 por dia – pouco mais que três notas de R$ 2. O projeto governamental foi atravessado por uma articulação rápida, liderada pela sociedade civil, apoiada pelos partidos de oposição (e descrita em mais detalhes no próximo tópico do texto). Quando se formou uma maioria nítida em favor de R$ 500, o Palácio do Planalto cedeu e elevou o valor em mais R$ 100, numa jogada (em grande parte bem-sucedida) para apresentar o benefício como sua criação.

    Mas as dimensões que o “voucher” assumiria surpreenderam a todos. No início de junho, o número estava, segundo a Caixa, em 64,1 milhões. Além disso, 16,7 milhões, que cumprem os requisitos mas a quem foram solicitados documentos adicionais, estavam na fila de espera. Embora indignem, as concessões indevidas (servidores militares, Luciano Hang, pessoas de renda alta) não são relevantes, do ponto de vista estatístico. Só as solicitações já aprovadas já tornam o Auxílio Emergencial cerca de quinze vezes superior, em montante, ao bolsa-família: são R$ 38,4 bilhões transferidos mensalmente, contra cerca de R$ 33 bilhões ao ano. Além de pagar cerca de cinco vezes mais (são de R$ 89 a R$ 178, no bolsa-família), o Auxílio Emergencial abrange uma população maior. A diferença aparece graficamente nos mapas abaixo, construídos por O Globo com base em dados do governo federal.

    As consequências humanas são ainda mais importantes. No mesmo jornal, os repórteres Pedro Capetti e Geralda Doca traçaram, em 12/6, um pequeno panorama dos resultados. Milhões de pessoas, atingidas pela quebra da economia, usam previsivelmente o benefício para se alimentar. Mas outro fenômeno emergiu, mostram eles: a redução parcial das dívidas bancárias das famílias mais pobres. Segundo os últimos dados da Confederação Nacional do Comércio, já chega a 66,5% do total a percentagem de domicílios endividados – submetidos ao pagamento dos juros mais altos do mundo. A dívida total das pessoas físicas ultrapassa 3,1 trilhões de reais: em média, quase R$ 15 mil por brasileiro…

    As sucessivas “reformas” econômicas adotadas desde 2016 (Trabalhista, da Terceirização, da Previdência, do Congelamento do Gasto Social, entre outras) prometiam um mercado de trabalho “dinâmico”. Livre das “amarras” regulatórias, os empresários se sentiriam livres para contratar, e a redução dos índices de desemprego pressionaria os salários para cima. O fato de 80,7 milhões de brasileiros credenciarem-se a um benefício que tem como um dos critérios possuir renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 511) revela como este discurso era falso e indica como é preciso alterar radicalmente os rumos.

    Mas como assegurar esta mudança de rumos, se o governo quer evitá-la a todo custo?

    III. A mobilização

    Esvaziada, a democracia brasileira não abre espaço
    para debater em profundidade a Renda Básica.
    Mas a tramitação do Auxílio Emergencial revela brechas que é preciso aproveitar

    Se o Brasil fosse uma democracia digna do termo, o destino do Auxílio Emergencial estaria pautado com destaque no Congresso e seria manchete todos os dias nos jornais e na TV. O governo trama abertamente o fim do benefício. A vida de 81 milhões de pessoas (sem contar seus dependentes menores de 18) será atingida gravemente. Em meio a uma pandemia que não arrefece, elas podem ver-se obrigadas, em quatro semanas, a se lançar em desespero às ruas, para sobreviver. Muitas perderão o teto e a comida, como já adverte a FAO, agência da ONU para alimentação.

    Mas tal prioridade não existe para os parlamentares, conta José Antonio Moroni, integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e um dos coordenadores da campanha pela prorrogação do auxílio emergencial. “Se os trâmites do Parlamento já são incertos em tempos normais, imagine em épocas de covid-19”, diz ele. As sessões presenciais da Câmara e Senado estão compreensivelmente suspensas. As votações são feitas à distância. Mas o que poderia ser uma oportunidade para publicizar a atividade dos representantes do povo (com apresentação online aos temas em debate e ao posicionamento dos congressistas, por exemplo) converteu-se em mais opacidade. A pauta é fixada exclusivamente pelos presidentes da Câmara e Senado. Sequer as reuniões de líderes dos partidos ocorrem com regularidade. Nesse cenário, não há a mínima ideia sobre quando, e de que forma, entrará em votação o destino do Auxílio Emergencial.

    Recorre-se a artifícios – e a campanha pelos R$ 600 tem sido particularmente hábil e criativa em manejá-los. Em março, no esforço que transformou o “coronavoucher” no Auxílio Emergencial, por exemplo, três instrumentos mostraram enorme capacidade de viralizar e repercutir. O escritor e ator Gregorio Duvivier talvez tenha dado a partida, ao produzir uma edição especial do GregNews dedicada ao tema. Um grupo de cerca 2 mil youtubers, articulado pela matemática Tatiana Roque repercutiu as ideias básicas. Esta densidade permitiu que uma petição online escapasse da previsibilidade deste instrumento, e reunisse, em poucos dias, 500 mil adesões. A história está contada numa extensa matéria que a economista Alessandra Orofino escreveu para a revista Piauí.

    Alessandra também narra como se passou a uma segunda etapa, já no Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, havia formado uma comissão de deputados encarregada de examinar medidas socioeconômicas relativas à pandemia. Cinco de seus integrantes –, Orlando Silva (PcdoB-SP), Tabata Amaral (PDT-SP), Mauro Benevides Filho (PDT-CE), Felipe Rigoni (PSB-ES) e Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) serviram de interlocutores entre a campanha e Maia. Ao fim, a proposta tomou a forma de um projeto de lei apresentado pelo deputado Eduardo Barbosa (PSDB-PA), aprovado em sessão virtual e votação simbólica.

    Na nova batalha, iniciada em 17/6, o cenário tende a ser muito distinto, Já não haverá o clima de surpresa com a pandemia, nem de busca, quase ingênua, do “bem comum”, entre parlamentares de um vasto leque de siglas. Será uma disputa política mais clássica e renhida. Há dois fatores novos, ambos com enorme peso. Por um lado, em favor da prorrogação do Auxílio Emergencial, pesam seu sucesso inegável, sua viabilidade comprovada e – em especial – o trauma material e político que sua retirada pode significar, para 80,7 milhões de brasileiros. Por outro, contra este embrião de Renda Básica, conspiram o governo Bolsonaro e a oligarquia financeira.

    1. Improvável Cilada

    Como todas as propostas transformadoras e populares, a Renda Cidadã está sujeita a captura.
    O ministro Paulo Guedes não pensa em outra coisa.
    Mas há muito espaço para evitar que seu plano seja bem-sucedido.

    Ao longo da pandemia, deu-se um movimento – limitado, porém, importante – na base de apoio social ao governo Bolsonaro. Todas as últimas pesquisas revelam que ele perdeu força no conjunto da população. Ficaram para trás os tempos em que um terço da sociedade o apoiava, um terço o rejeitava com todas as forças e um terço permanecia “isento”. Agora, a rejeição aproxima-se dos 50% e os defensores fiéis encolhem para menos de 30%. Vem daí o mote “somos 70%”. Mas além disso, houve uma migração social do apoio.

    Entre os mais ricos, mais brancos e mais escolarizados – o grupo em que o capitão foi, desde as eleições, majoritário – seu apoio despencou, certamente devido às insanidades “queima-filme” cometidas durante a pandemia. Em contrapartida, entre os economicamente mais pobres, a sustentação permaneceu minoritária – mas cresceu alguns pontos. A causa deste último movimento é, precisamente, o Auxílio Emergencial. Com pouco acesso à informação, uma parcela dos beneficiários dos R$ 600 reais taxa os pagamentos como “dinheiro do governo” – e agradece. Agora, mostra uma das últimas pesquisas, apenas 28% ainda consideram o governo “bom” ou “ótimo”. Mas entre os que recebem o Auxílio Emergencial, esta parcela sobe para 34%.

    Mas o que poderia ser um trunfo converte-se, nos limites estreitos do projeto bolsonarista, em dor de cabeça. Embora tenha crescido, o apoio do governo entre os mais pobres é minoritário e volátil, mostram as mesmas pesquisas. Desaparecerá junto com os R$ 600 – podendo transformar-se em ira. Além disso, não compra votos no Congresso, nem influência no Judiciário, nem espaço na mídia.

    Quem garante hoje a presença do ex-capitão no palácio – e em liberdade – não são seus seguidores evangélicos, ou a baixa oficialidade do exército e PMs. É o 0,1%, a aristocracia financeira. Esta classe, mínima mas poderosa e influente, tem pressa e foco. Está insegura: o cassino financeiro ruiu em todo o mundo, e sua salvação ainda não está assegurada. Em muitos setores economicamente relevantes, há empresas quebradas; e há bancos que podem desabar, caso estas corporações tornem-se insolventes. Todos precisarão ser salvos pelo Estado. Enquanto Paulo Guedes permanecer no governo, Bolsonaro será a garantia do resgate. Aí estão o 1,2 trilhão de benefícios aos bancos, ou a Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra.

    * * *

    Paulo Guedes tem uma proposta para o Auxílio Emergencial. Quer transformá-lo no oposto do que é a Renda Básica. Esta sugere redistribuir a riqueza, numa era em que as máquinas fazem boa parte do trabalho antes realizado por humanos. Sustenta que, dadas as próprias modificações na produção, esta redistribuição já não pode ser realizada por meio dos aumentos salariais: hoje, eles beneficiam apenas uma minoria. Propõe, como alternativa, que todos tenham acesso a meios financeiros para uma vida digna, independentemente de trabalharem. Defende que este benefício seja complementar a uma espécie de Revolução dos Comuns: a garantia de serviços públicos excelentes e desmercantilizados: Saúde, Educação, Moradia, Transportes oferecidos gratuitamente ou a preços módicos.

    Mas há uma versão deturpada da Renda Básica, concebida por economistas ultraliberais como Milton Friedman e defendida há décadas por instituições como o Banco Mundial. Implica privatizar e mercantilizar os serviços públicos – criando uma nova fronteira para a acumulação capitalista. Nessa lógica, tudo o que hoje é Comum (o SUS, por exemplo) pode ser transferido ao mercado e à lógica do lucro e da desigualdade. Cada pessoa pagará segundo suas posses monetárias. Aos empobrecidos, restará o pouco que puderem comprar… usando as migalhas que o Estado lhes oferecerá.

    Paulo Guedes defendeu abertamente esta proposta, numa reunião ministerial em 9/6. Segundo sua visão, haverá, após as três parcelas, uma redução drástica do benefício – para R$ 200 ou 300. Em seguida, ele se tornará permanente, mas assumirá a forma de uma “Renda Brasil”. Esta última estará vinculada à redução drástica dos direitos sociais. Virá acompanhada da “Carteira de Trabalho Verde e Amarela”, que desidrata tanto quanto possível a proteção trabalhista, e do fim da contribuição patronal à Previdência – o que inviabilizará por completo a Seguridade Social.

    O ministro está cheio de planos perversos. Valeria perguntar-lhe, à moda de Garrincha, em 1958: “Já combinou com os russos?”

    1. Para que não haja “volta ao normal”

    A campanha iniciada em 17/6 convida a compreender em profundidade
    os mecanismos monetários que se escondem por trás do capitalismo contemporâneo.
    Ela não é por R$ 600 – embora comece com eles. Por isso, vale fazê-la

    A apresentação de uma proposta clara de Auxílio Emergencial pela sociedade civil, em 17/6, teve um efeito político essencial. Ela corta o espaço com que Bolsonaro e Guedes poderiam contar, para fingir uma “concessão”. Quanto mais o novo projeto, suas bases e seus argumentos tornarem-se conhecidos, melhor se estabelecerá a disputa política, e menos condições terá o governo para afirmar que está oferecendo o “benefício possível”.

    Porém, o efeito será ainda maior se a ideia de perenizar o Auxílio Emergencial vier acompanhada de uma provocação mais profunda – que ajude a compreender a natureza do capitalismo contemporâneo; seus mecanismos de acumulação de riquezas; o papel dos Estados, em assegurá-los; e as possibilidades reais de inverter esta ação.

    Este esforço exige expor a capacidade de criação de moeda dos Estados. Uma Reforma Tributária é indispensável e urgente, no Brasil. Mas garantir a continuidade do Auxílio Emergencial; e estabelecer, mais além, uma autêntica Renda Básica – que seja universal e que assegure de fato condições para uma vida digna, independentemente de trabalho – são objetivos que não dependem desta Reforma Tributária.

    As sociedades precisam se apropriar também dos mecanismos monetários de redistribuição (ou concentração) de riquezas. Quando num país periférico, como o Brasil, o Banco Central permite que a banca privada crie 1,2 trilhão de reais; ou quando os bancos centrais dos países mais ricos anunciam que emitirão “todo o dinheiro que for necessário” para salvar os mercados financeiros, eles não remanejam um único centavo dos Orçamentos públicos. Eles alteram o balanço de riquezas emitindo moeda nova – “fictícia”, contudo com o mesmo poder de compra da moeda tradicional. Quando um investidor internacional adquire um imóvel numa zona valorizada de uma metrópole brasileira, e afasta uma família local; ou quando assume o controle de uma empresa brasileira, ninguém lhe pergunta a origem de seus dólares ou euros. Foram gerados a partir do acúmulo capitalista tradicional? Foram criados pelo Banco Central norte-americano ou europeu? Não importa: têm idêntico poder de compra, em qualquer situação.

    E é aqui que aflora, ao contrário da redução da Economia a um conjunto de técnicas de cálculo, sua possível dimensão ética e humanística. A que serve, afinal, o manejo das riquezas produzidas pelo ser humano? A “voltar ao normal” e continuar reproduzindo uma sociedade em que seis homens brancos acumulam tanto quando a metade mais empobrecida do planeta? A estimular lógicas de competição sem limites que autorizam a buscar, em qualquer parte do mundo, o trabalho humano mais barato e a natureza mais fácil de devastar? Ou a tirar proveito da pandemia, e do choque reflexivo que ela provoca, para dizer que “nada será como está”! E estabelecer novas relações sociais?

    Talvez a luta para manter o Auxílio Emergencial e para criar, além dela, uma Renda Básica real desencadeie explosões populares como as que sacudiram a França, o Equador, o Chile, o Líbano e o próprio Brasil, nos últimos anos. Talvez, não. Mas algo parece certo: ela tem a vocação de dizer: “não é por R$ 600” – embora comece com eles. Por isso, vale travá-la.

    https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/os-r-600-que-podem-mudar-a-face-do-brasil/

    Imagem de Marcelo Horn (GERJ) (apud:
    https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/26/projetos-pretendem-garantir-renda-minima-a-populacao-em-tempos-de-calamidades)

  • Leonardo Boff – A transição ecológica para uma sociedade biocentrada

    O ataque do coronavírus contra toda a humanidade nos obrigou a nos concentrar no vírus, no hospital, no paciente, no poder da ciência e da técnica e na corrida desenfreada por uma vacina eficaz e no confinamento e distanciamento social Tudo isso é indispensável.

    Mas para apreendermos o significado do coronavírus, precisamos enquadrá-lo em seu devido contexto e  não vê-lo isoladamente. Ele expressa a lógica do capitalismo global que, há séculos, conduz uma guerra sistemática contra a natureza e contra a Terra.

    O capitalismo neoliberal gravemente ferido

    O capitalismo se caracteriza pela exacerbada exploração da força de trabalho, pela utilização dos saberes produzidos pela tecnociência, pela pilhagem dos bens e serviços da natureza, pela colonização e ocupação de todos os territórios acessíveis. Por fim, pela mercantilização de todas as coisas. De uma economia de mercado passamos para uma sociedade de mercado.

    Nela, as coisas inalienáveis se transformaram em mercadoria. Karl Marx em sua Miséria da Filosofia de 1874 bem escreveu: “Tudo o que os homens considerável inalienável, coisas trocadas e dadas mas jamais vendidas….tudo se tornou venal como a virtude, o amor, a opinião, a ciência e a consciência… tudo se tornou venal e levado ao mercado”. A isso ele denominou o “tempo da corrupção geral e da venalidade universal”(ed.Vozes 2019,p.54-55).É o que estamos vivendo desde o fim da segunda guerra mundial.

    O capitalismo quebrou todos os laços com natureza, a transformou num baú de recursos, tidos ilusoriamente ilimitados, em função de uma crescimento também tido ilusoriamente ilimitado. Ocorre que um planeta já velho e limitado não suporta um crescimento ilimitado.

    Politicamente o neoliberalismo confere centralidade ao lucro, ao mercado, ao Estado mínimo, às privatizações de bens públicos e uma exacerbação da concorrência e do individualismo, a ponto de Reagan e Thatcher dizerem que a sociedade não existe, apenas indivíduos.

    A Terra viva, Gaia, um superorganismo que articula todos fatores para continuar viva e produzir e reproduzir sempre todo tipo de vida, começou a reagir e contra-atacar: pelo aquecimento global, pela erosão da biodiversidade, pela desertificação crescente, pelos eventos extremos e pelo envio de suas armas letais que são os vírus e bactérias (gripe suína, aviária, H1N1, zika, sikunguhnia, SARS, ebola e outros) e agora o covid-19, invisível e letal. Colocou a todos de joelhos, especialmente as potências militaristas cujas armas de destruição em massa (que poderiam destruir toda a vida, várias vezes) se mostraram totalmente supérfluas e ridículas. Agora passamos do capitalismo do desastre para o capitalismo do caos,como diz a crítica do sistema capitalista Naomi Klein.

    Uma coisa ficou clara a propósito do covid-19: caiu um meteoro rasante em cima do capitalismo neoliberal desmantelando seu ideário: o lucro, a acumulação privada, a concorrência, o individualismo, o consumismo, o estado mínimo e a privatização da coisa pública e dos commons. Ele foi gravemente ferido. O fato é que produziu demasiada iniquidade humana, social e ecológica, a ponto de pôr em risco o futuro do sistema-vida e do sistema-Terra.

    Ele, entretanto, colocou inequivocamente a disjuntiva: vale mais o lucro ou a vida? O que vem antes: salvar a economia ou salvar vidas humanas?

    Pelo ideário do capitalismo, a disjuntiva seria salvar a economia em primeiro lugar e em seguida vidas humanas. Mas releva reconhecer que é o que nos está salvando é aquilo que inexiste nele: a solidariedade, a cooperação, a interdependência entre todos, a generosidade e o cuidado mútuo pela vida de uns e de outros.

    Alternativas para o pós-coronavírus

    O grande desafio colocado a todos, a grande interrogação especialmente, aos donos dos grandes conglomerados multinacionais é: Como continuar? Voltar ao que era antes? Recuperar o tempo e o lucros perdidos?

    Muitos dizem: voltar simplesmente ao que era antes, seria um suicídio. Pois a Terra poderia novamente contra-atacar com vírus mais violentos e mortais. Cientistas já advertiram que poderemos, dentro de pouco, sofrer com um ataque ainda mais feroz, caso não tenhamos aprendido a lição de cuidar da natureza e de desenvolver uma relação amigável para com a Mãe Terra.

    Elenco aqui algumas alternativas, pois os senhores do capital e das finanças estão numa furiosa articulação entre eles para salvaguardar seus interesses, fortunas e poder de pressão política.

    A primeira seria a volta ao sistema capitalista neoliberal extremamente radical. Seria 0,1% da humanidade, bilhardários, que utilizariam a inteligência artificial com capacidade de controlar cada pessoa do planeta, desde sua vida íntima, privada e pública. Seria um despotismo de outra ordem, cibernético, sob a égide do total controle/dominação da vida das populações.

    Este não aprendeu nada do covid-19, nem incorporou o fator ecológico. Pela pressão geral, talvez assuma uma responsabilidade socio-ecológica para não perder lucros e frequezes. Mas seguramente haverá grande resistência e até rebeliões provocadas pela fome e pelo desespero.

    A segunda alternativa seria o capitalismo verde que tirou as lições do coronavírus e incorporou o fator ecológico: reflorestar o devastado e conservar ao máximo a natureza. Mas não mudaria o modo de produção e a busca do lucro. O capitalismo verde não discute a desigualdade social perversa e faria de tudo da natureza, ocasião de ganho. Exemplo: não apenas ganhar com o mel das abelhas, mas também sobre sua capacidade de polinizar outras flores. A relação para com a natureza e a Terra continuaria utilitarista e não lhe reconheceria direitos,como declarou a ONU e seu valor intrínseco, independente do ser humano.

    A terceira seria o comunismo de terceira geração que nada teria com as anteriores, colocando os bens e serviços do planeta sob a administração plural e global para redistribui-los equitativamene a todos. Poderia ser possível, mas supõe uma nova consciência ecológica, além de dar centralidade à vida em todas as suas formas. Seria ainda antropocêntrico. É pouco representado, pelos filósofox Zizek e Badiou além da carga negativa das experiências anteriores e mal sucedidas.

    A quarta, seria o eco-socialismo com maiores possibilidades. Supõe um contrato social mundial com um centro plural de governança para resolver os problemas globais da humanidade. Os bens e serviços naturais seriam equitativamente distribuídos a todos, num consumo decente e sóbrio que incluiria também toda a comunidade de vida. Ela também precisa de meios de vida e de reprodução como água, climas e nutrientes. Esta alternativa estaria dentro das possibilidades humanas, desde que superasse o sociocentrismo e incorporasse os dados da nova cosmologia e biologia, que consideram a Terra como momento do grande processo cosmogênico,biogênico e antropogênico.

    A quinta alternativa seria o bem viver e conviver ensaiada por séculos pelos andinos. Ela é profundamente ecológica, pois considera todos os seres como portadores de direitos. O eixo articulador é a harmonia que começa com a família, com a comunidade, com a natureza, com o inteiro universo, com os ancestrais e com a Divindade. Esta alternativa possui alto grau de utopia, Talvez, quando a humanidade se descobrir como espécie, habitando numa única Casa Comum, teria condições de realizar o bem-viver e o bem conviver.

    Conclusão desta parte: ficou evidente que o centro de tudo é a vida, a saúde e os meios de vida e não o lucro e o desenvolvimento (in)sustentável. Vai se exigir mais Estado com mais segurança sanitária para todos, um Estado que satisfaça as demandas coletivas e promova um desenvolvimento que obedeça os ritmos e os limites da natureza. Não será a austeridade que vai resolver os problemas sociais que têm beneficiados ao já ricos, e penalizado os mais pobres. A solução se deriva da justiça social e distributiva, onde todos participam do ônus e do bônus da ordem social.

    Como o problema do coronavírus foi global, torna-se necessário um contrato social global para implementar soluções globais. Tal transformação demandará uma descolonização de visões de muno e de conceitos, como a voracidade pelo lucro e o consumismo, que foram inculcados pela cultura do capital. O pós-coronavírus nos obrigará conferir centralidade à natureza e à Terra. Ou salvamos a natureza e a Terra ou engrossaremos o cortejo dos que rumam para o abismo.

    Como buscar uma transição ecológica, exigida pela ação mortífera do covid-19? Por onde começar?

    Não podemos subestimar o poder do “genio” do capitalismo neoliberal: ele é capaz de incorporar os dados novos, transformá-los em seu benefício privado e para isso usar todos os meios modernos da robotização, da inteligência artificial com seus bilhões de algoritmos e eventualmente as guerras híbridas. Sem piedade podem conviver, indiferentes, aos milhões e milhões de esfaimados e lançados na miséria.

    Por outra parte os que buscam uma transição paradigmática, dentro do qual eu mesmo me situo, devem propor outra forma de habitar a Casa Comum, com uma convivência respeitosa para com a natureza e um cuidado com todos os ecossistemas. Devem gerar na base social outro nível de consciência e novos sujeitos sociais, portadores desta alternativa. Para isso, cabe enfatizar, devemos passar por um processo de descolonização de visões de mundo e de ideias inculcadas pela cultura do capital. Devemos ser anti-sistema e alternativos.

    Pressupostos para uma transição bem sucedida

    Primeiro pressuposto: a vulnerabilidade da condição humana, exposta a ser atacada por enfermidades, bactérias e vírus. dos ecossistemas e a alimentação humana.

    Fundamentalmente dois outros fatores estão na origem da invasão de micro-organismos letais: a excessiva urbanização humana que avançou sobre os espaços da natureza, destruindo os habitats naturais dos vírus e bactérias: saltaram para outros animais ou para o corpo humano. 83% da humanidade vive em cidades.

    O segundo fator é a desflorestação sistemática devida à voracidade do capital que busca riqueza com a monocultura da soja, da cana, do girasol ou com a a mineração e produção de proteínas animais (gado), devastando florestas e desequilibrando o regime de umidade e de chuvas de vastas regiões como é o caso da Amazônia.

    Segundo pressuposto: a interdependência entre todos os seres, especialmente entre os seres humanos. Somos, por natureza, um nó de relação, voltado para todas as direções. A bioantropologia e a psicologia evolutiva deixaram claro que é da essência específica do ser humano a cooperação e a relação de todos com todos. Não existe o gene egoista, formulado por Dawkins no fins dos anos 60 do século passado sem nenhuma base empírica. Todos os genes se interligam entre si e dentro das células. Todos os seres estão inter-retro-relacionados e ninguém está fora da relação. Nesse sentido o individualismo, valor supremo da cultura do capital, é anti-natural e não possui nenhuma base biológica.

    Terceiro pressuposto: a solidariedade como opção consciente. A solidariedade está na base de nossa humanidade. Os bioantropólogos nos revelaram que este dado é essencial ao ser humano. Quando nossos ancestrais buscavam seus alimentos, não os comiam sozinhos. Levavam-nos ao grupo e serviam a todos começando com os mais novos, depois com os mais idosos e por fim a todos. Daí surgiu a comensalidade e o sentido de cooperação e solidariedade. Foi a solidariedade que nos permitiu o salto da animalidade para a humanidade. O que valeu ontem, vale também para hoje.

    A sociedade vive e subsiste porque seus cidadãos comparecem como seres cooperativos e solidários, superando conflito de interesses para ter uma convivência minimamente humana e pacífica e juntos construir o bem comum. Esta solidariedade não vigora apenas entre os humanos. É uma constante cosmológica: todos os seres convivem, estão envolvidos em redes de de relações de reciprocidade e de solidariedade de forma que todos se antre-ajudam para viver e co-evoluir. Também o mais fraco, com a colaboração dos outros, subsiste e tem o seu lugar no conjunto dos seres e co-evolui.

    O sistema do capital não conhece a solidariedade, apenas a competição que produz tensões, rivalidades e verdadeiras destruições de outros concorrentes em função de uma maior acumulação e, se possível, estabelecer o monopólio de um produto ou de uma fórmula científica.

    Hoje o maior problema da humanidade não é nem o econômico, nem o político nem o cultural, nem o religioso, mas é a falta de solidariedade para com outros seres humanos que estão ao nosso lado. No capitalismo ele é visto como um eventual consumidor, não como uma pessoa humana com suas preocupações, suas alegrias e padecimentos.

    Foi a solidariedade que nos está salvando face ao ataque do coronavírus, a começar pelos operadores da saúde que generosamente arriscam suas vidas para salvar vidas. Assistimos atitudes de solidariedade em toda a sociedade mas especialmente nas periferias onde as pessoas não têm condições de fazerem o isolamento social e não possuem reservas de alimentação. Muitas famílias que recebiam as cestas básicas, as repartiam entre outros mais necessitados.

    Referência especial merece o MST (Movimento dos Sem Terra) que forneceu toneladas alimentação orgânica para os mais vulneráveis.Não dão o que sobra, mas o que têm. Outras ONGs organizaram ações de solidariedade para atenderem aos mais carentes. Mesmo as grande empresas mostraram solidariedade, doando alguns milhões que lhes sobraram para enfrentar o covid-19.

    Não basta que a solidariedade seja um gesto pontual. Ele deve ser uma atitude básica, porque é um dado de nossa natureza. Temos que fazer uma opção consciente para sermos solidários a partir dos últimos e invisíveis, para aqueles que não contam para o sistema imperante e são considerados prescindíveis e zeros econômicos. Só assim ela deixa de ser eletiva e engloba a todos, pois todos somos co-iguais e nos unem laços objetivos de fraternidade.

    Quarto pressuposto: o cuidado essencial para com tudo o que vive e existe, especialmente entre os seres humanos. Pertence à essência do humano, o cuidado sem o qual nenhum ser vivo subsistiria. Nós estamos vivos porque tivemos o infinito cuidado de nossas mães. Deixados no berço, não saberíamos como buscar nosso alimento e dentro de pouco tempo morreríamos.

    Ademais cuidado é além disso uma constante cosmológica como o mostraram Stephan Hawking e Brian Swimme entre outros: as quatro forças que sustentam o universo (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear franca e forte) agem sinergeticamente com extremo cuidado sem o qual não estaríamos aqui refletindo sobre estas coisas.

    O cuidado representa uma relação amiga da vida, protetora de todos os seres pois os vê como um valor em si mesmo, independente do uso humano. Foi a falta de cuidado para com a natureza, devastando-a, que os vírus perderam seu habitat, conservado em milhares de anos e passaram a outro animal ou ao ser humano para poder sobreviver devorando nossas células. O ecofeminismo trouxe uma expressiva contribuição à preservação da vida e da natureza com a ética do cuidado, desenvolvida por elas, pois o cuidado é de todos os humanos, mas ganha especial densidade nas mulheres

    A transição para a uma civilização biocentrada

    Toda crise faz pensar e projetar novas janelas de possibilidades. O coronavírus nos deu esta lição: a Terra, a natureza, a vida, em toda sua diversidade, a interdependência, a cooperação e a solidariedade devem possuir a centralidade na nova civilização, se não quisermos ser mais atacados por vírus letais.

    Parto da seguinte interpretação: não só nós agredimos por séculos a natureza e a Mãe Terra. Agora é a Terra ferida e a natureza devastada que estão nos contra-atacando e fazendo sua represália. São entes vivos e como vivos sentem e reagem às agressões.

    A multiplicação de sinais que a Terra nos enviou, a começar pelo aquecimento global, a erosão da biodiversidade na ordem de 70-100 mil espécies por ano (estamos dentro da sexta extinção em massa na era do antropoceno e do necroceno) e outros eventos extremos, devem ser tomados absolutamente a sério e interpretados. Ou nós mudamos nossa relação para com a Terra e a natureza, num sentido de sinergia, de cuidado e de respeito ou a Terra pode não nos mais querer sobre sua superfície. Desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou engrossaremos o cortejo daqueles que rumam para a sua própria sepultura.

    Quase todas as análises do covid-19 focaram a técnica, a medicina, a vacina salvadora, o isolamento social, o distanciamento e o uso de máscaras para nos proteger e não contaminar os outros. Raramente se falou de natureza, pois, o vírus veio da natureza. Por que ele passou da natureza a nós? Já o tentamos explicar anteriormente.

    A transição de uma sociedade capitalista de superprodução bens materiais para uma sociedade de sustentação de toda a vida com valores humano-espirituais como a solidariedade, a compaixão, a interdependência, a justa medida, o respeito e o cuidado e, não em último lugar, o o amor não se fará de um dia para o outro.

    Será um processo difícil que exige, nas palavras do Papa Francisco na encíclica “sobre o Cuidado da Casa Comum” uma “radical conversão ecológica”. Vale dizer, devemos introduzir relações de cuidado, de proteção e de cooperação. Um desenvolvimento feito com a naturezas e não contra a natureza.

    O sistema imperante pode conhecer uma longa agonia. Mas não terá futuro. Há uma grande acumulação de crítica e de práticas humanas que sempre resistiram à exploração capitalista. Segundo minha opinião, quem o vencerá definitivamente nem seremos só nós, mas a própria Terra, negando-lhe as condições de sua reprodução pelos limites dos bens e serviços da Terra superpovoada.

    O novo paradigma cosmológico e biológico

    Para uma sociedade pós-Covid-19 impõe-se a assunção das contribuições do novo paradigma cosmológico que já possui um século de existência. Lamentavelmente até agora não conseguiu conquistar a consciência coletiva nem a inteligência acadêmica, muito menos a cabeça dos “decisons makers” políticos parte de que tudo se originou a partir do big bang, ocorrido há 13,7 bihões de anos. De sua explosão surgiram as grandes estrelas vermelhas e com a explosão destas, as galáxias, as estrelas, os planetas, a Terra e e nós mesmos. Somos todos feitos do pó cósmico.

    A Terra que já tem 4,3 bilhões de anos e a vida cerca de 3,8 bilhões de anos são vivos. A Terra, isso é um dado de ciência já aceito pela comunidade científica, não só possui viva sobre ela mas é viva e produz toda sorte de vidas.

    O ser humano que surgiu já há uns 10 milhões de anos há 100 mil ano como sapiens sapiens é a porção da Terra que num momento de alta complexidade começou a sentir, a pensar, a amar e a cuidar. Por isso homem vem de húmus, terra boa.

    Inicialmente possuía uma relação de convivência com a natureza, depois passou de intervenção mediante a agricultura de irrigação e nos últimos séculos de agressão sistemática mediante a tecnociência. Essa agressão foi levada a todas as frentes a ponto de colocar em risco o equilíbrio da Terra e até uma ameaça de auto-destruição da espécie humana com armas nucleares, químicas e biológicas.

    Essa relação de agressão subjaz à atual crise sanitária. Levada avante, a agressão poderá nos trazer crises mais agudas até aquilo que os biólogos temem The Next Big One: aquele próximo e grande vírus, inatacável e fatal que poderá levar a espécie humana a desaparecer da face da Terra.

    Para obviar este possível armagedom ecológico, urge renovar o contrato natural violado com a Terra viva: ela nos dá tudo o que precisamos e garante a sustentabilidade dos ecossistemas. Nos, contratualmente, teríamos que lhe devolver cuidado, respeito a seus ciclos e lhe damos tempo para regenerar o que lhe tiramos. Este contrato natural foi rompido por aquele estrato da humanidade (e sabemos quem é) que explora os bens e serviços, desfloresta, contamina as águas e os mares.

    É decisivo renovar o contrato natural e articulá-lo com o contrato social: uma sociedade que se sente parte da Terra e da natureza, que assume coletivamente a preservação de toda vida, mantém em pé suas florestas que garante a água necessária para todo tipo de vida e regenera o que foi degradado e fortalece o que já é preservado.

    A importância da região: o bioregionalismo

    A ONU reconheceu a Terra como Mãe Terra e a natureza como titulares de direitos. Isso implica que a democracia deverá incorporar como novos cidadãos, as florestas, as montanhas, os rios, as paisagens. A democracia seria spcio-ecológica.

    A vida será o farol orientador e a política e a economia estarão a serviço, não da acumulação e do mercado mas da vida. O consumo, para que seja universalizado, será sóbrio, frugal e solidário. Destarte, a sociedade seria suficiente e decentemente abastecida.

    O acento não se dará à planetização econômico-financeira que seguirá o seu curso, mas à região. A ponta mais avançada da reflexão ecológica atualmente se realiza em torno do bio-regionalismo.

    Tomar a região, não como vem definida arbitrariamente pela administração geográfica mas com a configuração que a natureza fez, com seus rios, montanhas, floresta, planícies, fauna e flora e especialmente com os habitantes que aí moram.Na bioregião poder-se-á verdadeiramente criar um desevolvimento sustentável que não seja meramente retórico mas real. As empresas serão preferentemente médias e pequenas, dar-se-á preferência à agroecologia, evitar-se-ão os transportes para regiões distantes, a cultura será o cimento de coesão: as festas, as tradições, a memória das pessoas notáveis, a presença das igrejas ou dasreligiões, os vários tipos de escolas e outros meios modernos de difusão de conhecimento e de encontros entre as pessoas.

    A Terra será como um mosaico feito de distintas peças cm cores diferentes: são as distintas regiões e os ecossistemas, diversos e singulares, mas todos compondo um só mosaico, a Terra.

    A transição se fará por processos que vão crescendo e se articulando a nível nacional, regional e mundial, fazendo crescer a consciência de nossa responsabilidade coletiva de salvarmos a Casa Comum e tudo o que a ela pertence.

    A acumulação de nova consciência permitirá um salto para um outro nível em que seremos amigos da vida, abraçaremos cada ser pois todos possuímos o mesmo código genético de base, desde a bactéria originária, passando pelas grandes florestas, os dinossauros, os cavalos, os beija-flores e nós mesmo. Somos construídos por 20 aminoácidos e por 4 bases nitrogenadas ou fosfatadas. Quer dizer, somos todos parentes uns dos outros numa real fraternidade terrenal.

    Será a civilização “da felicidade possível” e da “alegre celebração da vida”.

    Brasil, nosso sonho bom: a sua refundação

    O Brasil, por suas riquezas ecológicas, geográficas e populacionais, tem todas as condições de começar a colocar os fundamentos de uma civilização biocentrada.

    Até hoje vivemos na dependências de outros centros hegemônicos. Está madurando, especialmente nas bases, a ideia da refundação de um outro Brasil.

    Três pilastras podem dar corpo a esse sonho, por mim exposto com mais detalhe no livro: Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência”(Vozes 2019). Sem entrar em detalhes direi:

    A natureza, das mais ricas do planeta em biodiversidade, em florestas úmidas e em água. Podemos ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro.

    A cultura que configura a relação do ser humano com a natureza e com outros seres humanos, diversa, rica em criatividade nas artes, na música, na arquitetura,nas danças e em certos ramos da ciência, não obstante o racismo visceral e as ameaças às culturas originárias e outras exclusões sociais, reforçadas pela atual política de ultra-direita e de viés fascitóide.

    O povo brasileiro ainda em fazimento, plasmado por gentes que vieram de 60 países diferentes. A cultura multiétnica e multireligiosa, a cultura relacional, o senso lúdico, a hospitalidade, a alegria de viver e sua criatividade são características entre outras de nosso povo.

    O Brasil é a maior nação neolatina do mundo e temos tudo para ser a maior civilização dos trópicos. Para essa utopia viável, temos que retrabalhar no consciente e no inconsciente coletivo, as sombras que nos pesam fortemente: do etnocídio indígena, da colonização, da escravidão e da dominação das oligargias, herdeiras da Casa Grande e de um governo atual anti-Brasil, anti-vida e anti-povo com traços claros de despotismo que pretende conduzir o país a fases superadas pela humanidade, ao ante iluminismo, ao mundo do atraso, avesso ao saber e aos valores civilizatórios que são já bens comuns das sociedades mundiais.

    Para terminar, tomo como referência a proposta do Papa Francisco, quiçá o maior líder ético-político da humanidade. Na reunião com dezenas de movimentos sociais populares em 2015 ao visitar a Bolívia. Na cidade de Santa Cruz de la Sierra disse:

    Vocês têm que garantir os três Ts :Terra para morar nela e trabalhar. Teto para morar porque não são animais que vivem ao relento. Trabalho com o qual vocês se autorealizam e conquistam tudo o que precisam.

    Em seguida continuou: “Não esperem nada de cima. Pois vem sempre mais do mesmo e geralmente ainda pior. Sejam vocês mesmos os protagonistas de um novo tipo de mundo, de uma nova democracia participativa e popular, com uma economia solidária, com uma agroecologia com produtos sãos e livres de transgênicos. Sejam os poetas da nova sociedade.

    Lutem para que a ciência sirva à vida e não ao mercado. Empenhem-se pela justiça social sem a qual não há paz. Por fim, cuidem da Mãe Terra sem a qual nenhum projeto será possível.

    Aqui estamos diante de um programa mínimo para um novo tipo de sociedade e de humanidade.

    O futuro nos assinala que não iremos ao encontro do capitalismo neoliberal, embora teime em se impôr. Ele não deu certo: acumulou demasiada riqueza em poucas mãos à custa do sacrifício de milhões e milhões vivendo em condições sub-humanas e junto a isso devastou a maioria dos ecossistemas e colocou a Terra numa emergência ecológica.

    A travessia para uma sociedade ecologicamente sustentada com uma cultura, uma política e economia compatíveis é a grande utopia viável da humanidade e dos grupos progressistas do Brasil.

    Cremos e esperamos que esse sonho não seja uma fantasmagoria, mas uma realidade possível que se adequa à lógica do universo, feito não pela soma de seus corpos celestes, mas pelo conjunto das redes de suas relações dentro das quais nós também estamos envolvidos. Para citar Paulo Freire, diria: precisamos construir uma eco-sociedade na qual não seja tão difícil o amor.

    O Brasil, libertado de suas sombras históricas, pode ser um embrião da nova sociedade, una, diversa dentro da única Casa Comum, a Mãe Terra.

    Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e escreveu:Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 1995/2015; esm espanhol por Trotta, Madrid 1996, Dabar, México 1996.

     

     

  • Uma “renda universal”. A proposta do Papa Francisco

    trabalho-renda-basica-900×450 Imagem publicada Por Carlos Odas

    Gaël Giraud, jesuíta, economista, em artigo publicado por Civiltà Cattolica, 06-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini para IHU 18.06.2020.

    Segue o artigo.

    Em sua Carta aos movimentos populares, publicada no dia da Páscoa, 12 de abril de 2020, o Papa Francisco pediu a instituição de uma “renda universal” básica: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos.”[1].

    A proposta não deixou de provocar reações, tanto entusiasmadas quanto críticas. Essas suas afirmações significam que o Santo Padre talvez abrace a causa de uma renda universal, paga a todos, sem condições? Ou ele pretende defender o princípio do salário justo para todos os trabalhadores? E então, se estamos realmente falando de uma renda universal incondicional, como pode uma atenção autenticamente evangélica nos orientar para avaliar bem as condições práticas de sua implementação? Ou se trata simplesmente de uma utopia irrealizável?

    Essas são perguntas que precisam ser feitas, muito mais hoje, já que a gestão “medieval” da pandemia de coronavírus praticada em muitos países[2] ameaça afundar grande parte do nosso planeta em uma depressão econômica pelo menos tão severa quanto aquela vivida no Ocidente nos anos 1930. Diante da explosão do desemprego e da pobreza, que provavelmente nos acompanhará a partir de agora por toda a década de 2020, mesmo em grande parte da Europa e dos Estados Unidos, essa “remuneração universal” pode ser considerada uma das soluções para nos ajudar a sair da armadilha deflacionária? Também pode ajudar a resolver o enorme desafio da pobreza global?

    Uma questão teologal

    O principal problema colocado pela Carta do Bispo de Roma é o reconhecimento desses irmãos e irmãs dos movimentos populares e daqueles para quem eles trabalham: “Eu sei que muitas vezes vocês não são reconhecidos adequadamente porque, para este sistema, são verdadeiramente invisíveis. As soluções do mercado não chegam às periferias e a presença protetora do Estado é escassa.”[3]. Francisco convida a combater a invisibilidade desses “poetas sociais”, com o mesmo olhar atento de Cristo em relação àquela viúva que discretamente colocava seu óbolo no tesouro do templo (cf. Mc 12, 38-44).

    Esse desafio é espiritual e político. Certamente requer uma conversão do olhar individual de cada um de nós, mas também uma reforma das estruturas sociais que produzem e mantêm a invisibilidade daqueles que vivem na periferia de nossas sociedades[4]. A possibilidade de ser visível no espaço público não se baseia exclusivamente em performances individuais, mas depende das regras sociais que legitimam e melhoram nossa vida cotidiana ou, pelo contrário, a tornam precária e a desqualificam. Visibilidade e invisibilidade não são qualidades naturais, mas formas sociais de confirmar ou negar nossos estilos de existência[5]. Rebaixamento de classe, marginalização e falta de trabalho marginalizam as pessoas a ponto de cancelá-las, excluindo-as de todas as formas de participação; o empregado, o precário, o excluído, o desempregado, a viúva, o órfão, o refugiado, o sem-teto, o paciente, tornam-se cada vez menos audíveis, cada vez menos visíveis.

    Que reformas de nossas instituições podemos implementar para romper a invisibilidade em que a periferia de nossas sociedades é mantida, às vezes até dentro da Igreja? Como Francisco aponta na entrevista publicada recentemente por La Civiltà Cattolica, o que a tradição cristã chama de Espírito Santo “desinstitucionaliza” o que a Igreja não precisa mais ser e “institucionaliza” o futuro[6]. Deve-se logo dizer que essa desintegração criativa do Espírito não pode ser limitada às instituições eclesiais, no mínimo porque elas não foram desenvolvidas in abstracto, mas ainda estão situadas dentro de uma sociedade específica e de uma história. A tensão espiritual entre “desordem” e “harmonia”, evocada por Francisco, atravessa todas as nossas instituições[7]. Reformá-las é uma questão teologal, mesmo quando se trata de instituições seculares, como as que determinam a renda dos cidadãos.

    Salário mínimo ou renda universal?

    É dentro do horizonte dessa questão política e espiritual que se insere a proposta de uma “retribuição universal“. Trata-se de um salário mínimo reservado para quem tem emprego, ou de uma renda universal destinada a todos, sem condições?

    Para economistas especialistas nessas distinções, a formulação do papa é ambígua. Por exemplo, aos olhos de um sindicalista francês como Joseph Thouvenel, secretário da Confederação Francesa dos trabalhadores cristãos, as observações de Francisco não podem ser interpretadas como um álibi para aqueles que “ficam no ócio”[8], mas podem ser apenas uma alusão à teoria do “justo salário”, formalizada por Tomás de Aquino e posteriormente retomada por Leão XIII na encíclica Rerum novarum (1891). Nesse caso, a proposta do Papa equivaleria a estabelecer um salário mínimo garantido. De fato, a atual globalização do “mercado” de trabalho implica logicamente que também as regras que permitem evitar todas as distorções possíveis sejam globais; caso contrário, a imposição de um salário mínimo em um país ou em outro apenas fornecerá um incentivo para as empresas deslocalizarem suas atividades para outro lugar.

    Vários economistas, entre os quais Thomas Palley[9], propõem impor um salário mínimo, igual a 50% do salário médio de todos os países do planeta. Na Itália, isso seria equivalente a estabelecer um salário mensal mínimo de cerca de 1.860 euros (em vez dos atuais 500): um quarto da força de trabalho italiana recebe atualmente um salário inferior a esse valor, e essa cota corre o risco de aumentar nos próximos anos. Ao contrário do que se costuma afirmar, isso não causaria uma explosão do desemprego[10], levaria a aumentos bastante pequenos nos custos de produção[11] e, por outro lado, mudaria a vida de muitos “trabalhadores pobres”, mesmo na Alemanha.

    No entanto, a lista de beneficiários da “remuneração universal” a que o Papa Francisco alude vai além da categoria de assalariados stricto sensu: “Os vendedores ambulantes, os recicladores, os feirantes, os pequenos agricultores, os pedreiros, as costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado. Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular, não têm um salário estável para resistir a esse momento …”12]. As várias traduções da Carta Pontifícia sugerem que o termo “salários” não pode ser interpretado de forma estrita: salaire, salarios, salário e wage, mas também Grundeinkommen e remuneração. Aqueles que devem sair da invisibilidade também são os “doentes e [os] idosos. Eles nunca aparecem nos meios de comunicação de massa, da mesma forma que os camponeses e pequenos agricultores que continuam a cultivar a terra para produzir alimentos sem destruir a natureza, sem pegar para si os frutos ou especular sobre as necessidades vitais das pessoas”[13].

    Para quem, portanto, a proposta do Papa é endereçada? Para todos os “trabalhadores”. Uma dona de casa, por exemplo, cujos serviços, por não estarem no mercado, nunca são levados em consideração no cálculo do PIB, fornece uma prestação “de trabalho”? Quem são esses “trabalhadores” se não são reconhecidos por um status que os qualifica como tal? É precisamente nessa sua invisibilidade que reside o problema que Francisco quer resolver. Acreditamos que a resposta esteja nos próprios “invisíveis”. Francisco escreve: “Nossa civilização […] precisa mudar, se repensar, se regenerar. Vocês são os construtores indispensáveis dessa mudança urgente”[14]. E não seria tarefa desses obscuros trabalhadores definir as características de tal “remuneração universal” que Francisco pede? Para que “o acesso universal a esses três T: […] tierra, techo e trabajo (terra – incluindo seus frutos, isto é, o alimento -, casa e trabalho)”[15] lhes sejam garantidos nas condições que eles mesmos consideram mais adequadas?

    Afinal, os debates que giram em torno da definição de salário mínimo ou de uma renda universal são conduzidos principalmente por aqueles que pertencem ao centro da sociedade. É sem dúvida a hora de dar voz aos que não têm voz, para que eles mesmos possam ajudar a decidir qual significado deve ser atribuído à “remuneração universal“, em vez de sofrer novamente a violência das definições e dos padrões impostos pelo centro.

    É essa inversão de perspectiva – do centro para a periferia – que orienta, por exemplo, o movimento mundial ATD-Quarto e o pensamento do padre Joseph Wresinski[16]. Essa mudança de perspectiva não é estranha à abordagem de alguns economistas. Está na base, por exemplo, da construção de indicadores estatísticos com base participativa, como o Barômetro das Desigualdades e Pobreza (BIP 40), criado na França em 2002 por e com cidadãos comuns[17].

    Utopia ou reforma profética?

    Portanto, justifica-se que o Movimento francês por uma Renda Básica conclua cautelosamente que o Papa “está se aproximando da causa da renda universal“[18]. Desde que se entenda que, quando ele “se aproxima” a isso e ponto, não é por timidez, mas porque depende principalmente das próprias pessoas sem voz decidirem o que querem para elas. O respeito pela dignidade das pessoas deve ir tão longe.

    Contudo, a interpretação que propomos aqui implica que é possível que a “remuneração universal” a que Francisco alude seja entendida como “renda universal” no senso comum, caso os invisíveis de nossas periferias assim o decidissem.

    Existem cinco critérios normalmente usados para definir a renda universal. São:

    1. um pagamento periódico, diferente do cheque uma tantum de US $ 900 que o governo australiano enviou a seus cidadãos em 2009 para superar as consequências da crise financeira; ou aquele de US $ 1.000 que o governo Trump acabou de enviar às famílias estadunidenses[19];
    2. uma transferência monetária, ou seja, em dinheiro, que oferece a todos a liberdade de fazer o que quiserem com o próprio dinheiro, mas pressupõe, por exemplo, a abertura de uma conta bancária, uma operação incomum para muitos entre os mais pobres;
    3. uma contribuição personalizada: o pagamento é efetuado individualmente e não, por exemplo, em base familiar do ponto de vista fiscal;
    4. universal: não está sujeito a nenhum requisito específico;
    5. incondicional: o pagamento não está coberto por nenhuma obrigação do beneficiário, em especial a de procurar emprego.

    Vamos lembrar algumas ordens de grandeza. O Banco Mundial identificou o limiar da linha de pobreza extrema em US $ 1,9 de remuneração diária, com paridade de poder de compra. Porém, é opinião amplamente compartilhada entre os pesquisadores econômicos que essa convenção subestime amplamente as necessidades reais de um ser humano saudável, capaz de levar uma vida digna. Uma renda mínima de US $ 7,4 por dia parece muito mais razoável[20].

    Em 2018, mais de 4,2 bilhões de pessoas (60% da população mundial) ainda viviam abaixo desse limite, e esse número aumentará significativamente nos próximos meses devido às consequências catastróficas do lockdown. Que fluxo anual de renda seria necessário para permitir que essas pessoas vivessem acima desse limite? Sem entrar nos detalhes dos cálculos da paridade do poder de compra, podemos responder que custaria menos de US $ 13 trilhões. Isso pode parecer um número considerável: está próximo do PIB nominal da China em 2018. No entanto, um estudo da ONG Oxfam[21] mostra que, no mesmo ano, 1% das pessoas mais ricas do planeta recebeu uma renda anual de 56 trilhões de dólares (igual a 80% do PIB mundial). Se apenas “retirássemos” um quarto dessa renda (US$ 14 trilhões), seria suficiente financiar uma renda básica de US $ 7,4 por dia (e inclusive mais ainda) para a parte da humanidade que é privada dela. Após a “retirada”, ao maior percentil desses super-ricos ainda restariam em média US $ 47.500 de renda mensal por pessoa, o que deveria ser suficiente para permitir que continuassem levando uma vida “digna“.

    Não pretendemos defender que tal “retirada” seja politicamente fácil de colocar em prática. No entanto, esses simples valores nos lembram que, ao contrário do que se pensa, o problema do financiamento da renda básica não consiste na “falta de recursos“. Da mesma forma, se, segundo estimativas das Nações Unidas, 820 milhões de pessoas ainda sofrem de fome no mundo – e esse número infelizmente aumentará nos próximos meses devido à atual situação de emergência – não é porque a biomassa produzida pelo planeta seja incapaz de alimentar a humanidade: trata-se de um problema político e ético de distribuição da riqueza.

    O imaginário neoliberal da escassez, que facilmente nos conduz a pensar que uma proposta generosa seja impossível, é enganoso: vivemos em um planeta superabundante – embora ameaçado por uma crise ecológica – e em uma economia mundial muito rica, embora corra o risco de se tornar consideravelmente mais pobre devido ao lockdown e ao confinamento.

    As duas formas de renda universal

    Para aprofundar o exame de sua viabilidade concreta, precisamos distinguir pelo menos duas formas de “renda universal”: a primeira, diríamos “de direita“, inspirada em critérios de eficiência econômica; a outra, “de esquerda“, orientada pelo desejo de justiça social. Essa distinção elementar, no entanto, imediatamente nos obriga a sair de fáceis dicotomias: a renda universal não é nem de direita nem de esquerda, mas é transversal às nossas categorias políticas tradicionais.

    O primeiro tipo de renda básica tem origem no trabalho do economista de Chicago Milton Friedman[22] e foi pensado para substituir todos os outros tipos de transferências sociais, tornando assim supérflua a introdução de um salário mínimo. Seus promotores têm a esperança de uma maior flexibilização do “mercado de trabalho” e de uma redução dos gastos públicos em solidariedade, ou mesmo de um completo abandono por parte do Estado de seu papel decisório sobre as rendas de trabalho dos cidadãos. A caridade, “mais adaptável e flexível” em relação ao Estado de bem-estar social, afirma Friedman, recuperaria assim um lugar de destaque na luta contra a pobreza.

    Quem contesta essa proposta argumenta que equivaleria a garantir uma renda mínima de subsistência que torna escravo o “exército de reserva” dos cidadãos, obrigados a se empregar sob qualquer condição para melhorar suas condições de vida ordinária. Sem dúvida, é esse tipo de preocupação que alimenta a rejeição, por uma certa parte do mundo sindical, da renda universal.

    Independentemente da manipulação política que possa ser feita sobre a renda básica, é inegável que sua força reside na simplicidade: a ausência de qualquer condição permite colocar em curto-circuito a eventual ineficácia dos procedimentos administrativos necessários para identificar os beneficiários das transferências sociais tradicionais, que, como sabemos, com demasiada frequência, por esse motivo, renunciam a desfrutar daquilo a que teriam direito. Consequentemente, quanto mais fraca for a administração pública de um determinado país ou o sistema de transferência social imperrado ou mesmo inexistente, mais relevante se torna a opção de uma renda universal. Essa é a razão pela qual, independentemente de sua sensibilidade política, vários economistas recomendam a implementação de tal renda na maioria dos países do Sul globalizado[23].

    O segundo tipo de renda universal foi defendido, pelo menos desde 1986, por Guy Standing, um dos fundadores da Basic Income Earth Network (Bien)[24]. Diferentemente do primeiro tipo, essa seria uma renda suplementar e, portanto, não alternativa às transferências sociais já ativas, nos casos onde existem. Seria, portanto, um ótimo meio de resolver os crescentes problemas de insegurança financeira da classe média e das camadas populares e, acima de tudo, possibilitaria outro tipo de relação de trabalho. A desumanidade das condições de trabalho em algumas situações – das quais a tragédia do Rana Plaza, em Bangladesh em 2013, se tornou o símbolo – deve-se obviamente à necessidade, por aqueles que não têm alternativa, de serem contratados sob qualquer condição para sobreviver. Mas mesmo em países ricos, uma renda universal desse tipo certamente implicaria o fim dos chamados bullshit jobs[25] (“trabalhos inúteis”), como o são aqueles de uma parcela crescente de funcionários de nossas administrações públicas e empresas privadas: se posso me permitir viver sem trabalhar, por que deveria aceitar um emprego socialmente inútil e que me deixa insatisfeito?

    Tal ferramenta reverteria radicalmente os termos de negociação implícitos em qualquer relação de trabalho, seja ele formalizado por um contrato ou não. Evidentemente, ao fortalecer o poder de barganha dos trabalhadores, isso certamente levaria a uma redução da cota da renda de capital em valor agregado de uma economia e a um aumento na cota de renda do trabalho. Porém, isso corrigiria a tendência inversa que se registra há quarenta anos às custas da grande maioria de nós: desde o final do boom econômico do pós-guerra, e na maioria dos países anteriormente industrializados, a cota da renda do trabalho caiu de 70%. 80% do PIB para 60%.

    As virtudes atribuídas por seus defensores “progressistas” à renda universal são frequentemente questionadas por seus opositores: um tipo de renda assim não forneceria um álibi para não trabalhar mais? Longe de fortalecer os laços sociais, não causaria a dissolução das relações humanas? Por trás dessas questões, podemos ver duas filosofias políticas radicalmente opostas: por um lado, a de Thomas Hobbes ou John Locke, para os quais o homem é um átomo, até mesmo um lobo, um ser solitário que se envolve em relações com os outros apenas por interesse; pelo outro, a de uma antropologia relacional que pertence à grande tradição cristã[26]. Nessa segunda perspectiva, é apenas no contexto das relações sociais constitutivas da humanidade como tal que pode acontecer o reducionismo que consiste na busca de meu interesse particular.

    É possível resolver esse debate com a ajuda do que observamos empiricamente? Desde 2010, em vários países começaram os experimentos com a renda básica. Eles testemunham o crescente interesse por tal medida antes mesmo da pandemia[27], mas revelaram, às vezes, uma certa falta de ambição por parte dos governos e a dureza do debate político que acompanha tais experiências: embora tenham sido instrumentos de escopo limitado, muitos foram interrompidos antes do tempo.

    No Canadá, o Projeto Piloto de Renda Básica de Ontário, lançado em 2018 para testar o impacto de uma renda básica em 4.000 canadenses, foi cancelado após alguns meses pelo recém-eleito partido conservador. O objetivo era experimentar o efeito da renda básica em segurança alimentar, estresse e ansiedade, saúde – incluindo a saúde mental -, casa, educação e participação no mundo do trabalho[28]. Podemo-nos perguntar: se é tão óbvio que uma renda universal resultaria prejudicial a todos, por que não deixar que o experimento prove isso? Na realidade, experimentos com um salário mínimo (ou seu aumento) muitas vezes demonstraram o oposto do que seus oponentes previam, ou seja, um aumento generalizado dos salários e do número de horas trabalhadas, bem como uma redução no desemprego[29]. Talvez haja alguém que tema que isso possa ser demonstrado que uma renda básica beneficiaria a maioria?

    Em 2014, um experimento na Índia estabeleceu o objetivo de testar a renda universal como um meio para injetar liquidez em ambientes onde a troca monetária é limitada. As conclusões de tal experimento, que poderia ter sido conduzido até o fim, se dissolveram, mas foram extremamente positivas. Elas sugerem que, devido às suas consequências sociais, o “valor” econômico da renda universal excede em muito o valor nominal atribuído a cada destinatário[30]. Finalmente, numerosas experimentos de transferência de dinheiro provaram ser proveitosas na Namíbia, na Índia e em uma dúzia de países no hemisfério sul, a tal ponto que, após décadas de sarcasmo, vários analistas agora a consideram “a chave do desenvolvimento”[31].

    Bens comuns versus privatização do mundo

    O experimento realizado no Alasca desde 1982 merece menção especial. De fato, todos os anos, uma fração dos dividendos do petróleo é distribuída aos residentes, incondicionalmente e individualmente. Os montantes – entre US $ 1.000 e US $ 2.000 por ano, dependendo do período[32] – estão na ordem de grandeza da linha de pobreza de US $ 7,4 por dia mencionados acima. Trata-se de quantias pequenas, é claro, considerando o padrão de vida médio naquele estado dos EUA. Mas o mais interessante é o princípio usado pelo Estado do Alasca para justificá-los: trata-se de uma compensação pelo direito de exploração de um bem comum, o petróleo, que realmente pertence a cada um dos residentes.

    Para entender o significado dessa maneira original de financiar uma renda universal, é necessário dar um passo atrás. Em 1217, a Carta Floresta havia concedido aos agricultores britânicos o direito de desfrutar dos commons – “bens comuns” – florestas, pastos, pastagens, rios – para estocar madeira, água e alimentar seus rebanhos etc. A Inglaterra formalizou um direito que era percebido pela maioria da população como natural e que já havia sido reconhecido pela lei romana com a categoria res communis, colocada pelo Código Justiniano no topo da hierarquia dos bens, enquanto a propriedade privada ocupava o último lugar.

    Já no século XV, como sabemos, a nobreza britânica promoveu o movimento dos enclosures (“cercas”), para delimitar os commons e, assim, decretar que a partir daquele momento eles eram propriedade exclusiva do senhor local. Ao privar os camponeses pobres de toda forma de subsistência, esse movimento contribuiu a empurrá-los para as cidades, na busca desesperada de meios para sobreviver. Sem esse êxodo rural, a revolução industrial nunca teria surgido. Assim, desde o início, foi a privatização dos bens comuns que produziu e incentivou aquelas formas desumanas de trabalho assalariado que conhecemos há três séculos[33].

    Uma renda básica, mesmo que apenas parcialmente universal, quebraria essa lógica perversa. É possível que um instrumento desse tipo se articule de alguma forma com a onipotência da privatização, que hoje se traduz em um segundo movimento de enclosures, que atinge novos commons, como os bens e serviços do ecossistema, o genoma humano, a propriedade intelectual, produções artísticas e potencialmente todas as atividades humanas?

    O exemplo do Alasca fornece o esboço de uma resposta positiva. Por que não imaginar que uma fração da receita proveniente da exploração de nossos bens comuns globais seja redistribuída para financiar uma renda básica? Não seria este um meio concreto e eficaz de honrar o destino universal dos bens, cara aos Padres da Igreja e à doutrina social da Igreja? Por exemplo, a atmosfera é certamente um bem comum para o mundo inteiro: um imposto global sobre o carbono – como aquele enfaticamente defendido pela Comissão Stern-Stiglitz[34] – de 120 euros por tonelada de CO2 produzida[35], aplicada às 100 empresas multinacionais responsáveis por 70% das emissões, geraria 3,1 mil bilhões de euros por ano. Estendida a todos os outros tipos de emissão, essa taxação forneceria 4.430 bilhões de euros. Geridas por um Fundo Internacional[36], essas receitas poderiam ser distribuídas às populações que vivem abaixo da linha de pobreza[37]. Pode-se argumentar que não são suficientes para tirar a humanidade da pobreza extrema. Não importa: um imposto de 27% sobre os US $ 32 mil bilhões atualmente escondidos nos paraísos fiscais seria suficiente para complementar o que está faltando, para que todos possam viver com mais de US $ 7,4 por dia. Também as rendas provenientes da propriedade de terras, florestas ou até resíduos – um “mal comum” – poderiam estar sujeitas a tributação global.

    Qualquer que seja a opção escolhida, deve ser feita após consultar todas as partes interessadas. De fato, muitas outras questões surgem sobre os destinatários de uma renda básica, caso ela viesse a ser apenas parcialmente universal: deveríamos, por exemplo, reservá-la para menores de 25 anos, visto que se pode pensar que a maioria deles terá uma dificuldade considerável em encontrar trabalho na Europa nos próximos anos?

    Nenhum discernimento coletivo verdadeiramente frutífero pode ser feito sobre tais questões fundamentais até que aqueles que são relegados nas periferias da nossa sociedade não possam tomar parte ativa delas. Como Francisco escreveu em sua Carta aos trabalhadores dos movimentos populares: “Essa atitude de vocês me ajuda, questiona e ensina muito”[38].

    Notas:

    [1]. Francisco, Carta aos movimentos populares, 12 de abril de 2020.

    [2]. Cf. G. Giraud, «Per ripartire dopo l’emergenza Covid-19», em Civ. Catt. 2020 II 7-19.

    [3].Francisco, Carta aos movimentos populares, cit.

    [4].Esse desafio, por exemplo, está no centro das reflexões de Axel Honneth, Paul Ricœur e Judith Butler. Veja A. Honneth, La lutte pour la reconhecimento, Paris, Cerf, 2000; P. Ricœur, “Parcours de la reconnaissance”, em Mondes en développement, Paris, Stock, 2004; J.P. Butler, Giving an Account of Oneself, New York City, Fordham University Press, 2005.

    [5]. G. Le Blanc, L’ invisibilité sociale, Paris, PUF, 2009. Esse também é o tema do belo filme Les invisibles, dirigido pelo diretor francês Louis-Julien Petit em 2019.

    [6]. Cf. A. Ivereigh, «Il Papa confinato. Intervista a papa Francesco», no site La Civiltà Cattolica.

    [7]. Essa afirmação é central à teologia de Ch. Theobald, Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité,, vol. 1, Paris, Cerf, 2007.

    [8]. Cf. J. Thouvenel, “Le revenu universel, meilleur ennemi des travailleurs“, em Valeurs, 18 de abril de 2020.

    [9]. Cf. Th. Palley, A Global Minimum Wage System, no FT Economists’ Forum, 18 de julho de 2011.

    [10]. Cf. J. Schmitt, Why Does the Minimum Wage Have No Discernible Effect on Employment?, Washington, Center for Economics and Policy Reasearch, fevereiro de 2013

    [11]. Principalmente porque os riscos das espirais inflacionárias no contexto da deflação no Ocidente são iguais a zero, a menos que o custo das matérias-primas exploda devido à interrupção de algumas cadeias de suprimentos devido à pandemia. Portanto, a inflação não seria a consequência do custo do trabalho.

    [12]. Francisco, Carta aos movimentos populares, cit.

    [13]. Ivi.

    [14]. Ivi. Os itálicos são nossos.

    [15]. Ivi.

    [16]. Cf. G. Mucci, Joseph Wresinski. Un costruttore sociale em Civ. Catt. 1996 I 436-445.

    [17]. Cf. disponível aqui.

    [18]. G. Normand, Le Pape François s’approche de la cause du revenu universel, em revenudebase.info, 16 de abril de 2020.

    [19]. São iniciativas que hoje seriam bem-vindas na Europa.

    [20].Cf. D. Woodward, “Incrementum ad Absurdum: Global Growth, Inequality and Poverty Eradication in a Carbon-Constrained World”, in World Social and Economic Review, 9 de fevereiro de 2015.

    [21]. Cf. Oxfam, Partager la richesse avec celles et ceux qui la créent, janeiro de 2018.

    [22]. Cf. M. Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago, University of Chicago Press, 1963; Id., “The Case for the Negative Income Tax: A View from the Right”, in Proceedings of the National Symposium on Guaranteed Income, Washington, DC, Câmara de Comércio dos EUA, 9 de dezembro de 1966. A proposta foi imediatamente aceita pelos economistas keynesianos, o que indica sua ambivalência desde o início: cf. J. Tobin – J.A. Pechman – P.M. Mieszkowski, “Is a negative income tax practical?”, in The Yale Law Journal , vol. 77/1, novembro de 1967.

    [23]. Cf. M. Ghatak – F. Maniquet, “Universal Basic Income: Some Theoretical Aspects”, in Annual Review of Economics 11 (2019) 895–928.

    [24]. Cf. disponível aqui; ver também o discurso de Standing no Fórum de Davos em 2017.

    [25]. Cf. D. Graeber, Bullshit Jobs: A Theory, New York, Simon & Schuster, 2018

    [26]. Cf. Ch. Theobald, Selon l’Esprit de sainteté. Genèse d’une théologie systématique, Paris, Cerf, 2015.

    [27]. Cf., por exemplo o relatório solicitado pela Escócia: A. Painter – J. Cooke – I. Burbidge – A. Ahmed, A Basic Income for Scotland, maggio 2019.

    [28]. A proposta do Ontario Basic Income Pilot Project.

    [29]. Cf. P. Constant, «New UW Report Finds Seattle’s Minimum Wage Is Great for Workers and Businesses”, in Civic Skunk Works, 22 de julho de 2016.

    [30]. Cf. G. Standing, “Why Basic Income’s Emancipatory Value Exceeds Its Monetary Value”, in Basic Income Studies 10 (2015/2).

    [31]. Cf. Oxfam, “Just Give Money to the Poor: the Development Revolution from the Global South”, an excellent overview of cash transfers”, 24 de maio de 2010.

    [32]. Cf. TJ Isenberg, “What a New Survey from Alaska Can Teach Us about Public Support for Basic Income”, in Economic Security Project, 28 de junho de 2017.

    [33]. Cf. G. Giraud, Composer un Monde en commun, une “théologie politique” de l’ Anthropocène, Paris, Seuil, no prelo.

    [34]. Cf. Carbon Pricing Leadership Coalition, Report Of The High-Level Commission On Carbon Prices, 29 de maio de 2017.

    [35]. Trata-se do atual nível de imposto no carbono aplicado na Suécia.

    [36]. Pode-se imaginar uma supervisão das Nações Unidas, desde que esta, agora completamente paralisada pela pandemia, se reforme para dar pleno espaço aos países emergentes do hemisfério sul.

    [37]. A proposta de financiar uma renda básica parcial com um imposto sobre o carbono foi feita por dois ex-Secretários de Estado Republicanos e pelo Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson. Cf. M. Howard, “Conservative Carbon Dividend Proposal is a Welcome Development for Introduction of Partial Basic Income”, in Basic Income News, 11 de fevereiro de 2017.

    [38]. Francisco, Carta aos movimentos populares, cit.

     

     

     

     

     

  • Jovens da periferia no centro da cena política
    – Por Helena Abramo

     

    Imagem: socialismo criativo

    Jovens da periferia no centro da cena política

    Por Helena Abramo – Teoria e Debate – EDIÇÃO 197 – 12/06/2020

    Possivelmente esses jovens reagem aos ataques à democracia, aos desatinos no enfrentamento da pandemia, às políticas de morte do governo, porque estão no centro das contradições mais agudas do momento

    Uma parte significativa do debate político nas últimas semanas tem girado em torno das manifestações de rua contra o avanço do fascismo: a manifestação do dia 30 de maio convocada pelas torcidas de futebol, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a grande mobilização que ocorreu em várias cidades do país no domingo seguinte, 7 de junho, puxada novamente pelas torcidas organizadas e por movimentos de perfil popular como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

    A polêmica se deu principalmente sobre a necessidade e oportunidade de fazer manifestações de rua nesse momento tão crítico, pela tensão política extremada (pelo risco de dar pretexto para a convocação de uma intervenção militar) e pelo perigo de propagação do coronavírus pela aglomeração nas ruas; e, agora, pela surpresa quanto ao perfil dos protagonistas, diferente daqueles que normalmente lideram e integram as manifestações de oposição (partidos de esquerda, centrais sindicais, movimentos sociais com redes e lideranças socialmente reconhecidas).

    Neste artigo eu gostaria de contribuir com o segundo ponto do debate, que está em curso nesses dias, sobre quem são os protagonistas desses atos e como isso afeta ou pode afetar outros atores do campo da oposição.

    As notícias sobre as manifestações do dia 7 de junho chamam a atenção para o fato de que foram compostas majoritariamente por jovens das periferias, negros, trabalhadores de aplicativos, ativistas de coletivos de resistência e luta democrática, ampliando, mas na mesma configuração social, o espectro dos que participaram dos atos do domingo anterior, integrantes de torcidas organizadas. Os comentários feitos saúdam, com certo tom de surpresa e admiração, a “entrada em cena” da juventude dos setores populares na luta pela democracia, louvando também sua coragem e disposição, contrapondo-a à “imobilidade” dos atores institucionalizados da oposição1.

    É bem-vinda essa surpresa positiva com o perfil dos que saíram às ruas. É muito bom que as pessoas estejam descobrindo que os jovens da periferia são atores importantes da sociedade brasileira; que eles têm consciência política, que se organizam e se manifestam. É muito importante que se reconheça que muitos desses jovens têm uma visão crítica da sociedade, uma posição contrária ao governo atual, contra a violência policial e outras violências que se abatem cotidianamente sobre seus corpos, como o racismo e o sexismo, assumindo agora uma posição claramente antifascista.

    Mas isso não é de hoje; faz muito tempo que os jovens das periferias das grandes cidades do país se organizam, se manifestam e lutam contra essas violências. Isso não deveria ser surpresa, a não ser para quem incorporou certas análises apressadas que concluíram que a periferia se tornou, em bloco, conservadora, presa da propaganda bolsonarista e da ação das igrejas evangélicas. Ou que a juventude, beneficiada por políticas de inclusão, desenvolveu apenas aspirações de classe média e passou a defender valores neoliberais, como o mérito e o espírito empreendedor. Então, quero acrescentar uma pergunta a essa reflexão: Estamos reconhecendo sua presença, enxergando a singularidade dos seus corpos nas manifestações, mas estamos ouvindo sua voz? Estamos enxergando também as bandeiras que eles carregam?

    A tentativa de compreender as bases do avanço da direita, desde 2013, ensejou a realização de importantes pesquisas e reflexões que mostraram a disseminação de valores e pensamentos desse espectro na população brasileira, inclusive nos setores populares. Muitas dessas pesquisas ressaltaram o papel de organizações religiosas (como algumas igrejas evangélicas neopentecostais) e redes de opinião articuladas a partir de influenciadores digitais que disseminam tais valores e posicionamentos, descortinando um mundo até então desconhecido para partidos e organizações de esquerda. Contudo, muito da reflexão que se fez a partir desses desvelamentos se transformaram apressadamente em assertivas generalizadoras de que “as periferias” tinham se tornado conservadoras, seu imaginário irremediavelmente preso aos símbolos e valores da direita, base irrefletida do bolsonarismo.

    A compreensão desses elementos é muito importante para o entendimento da atual conjuntura, mas não pode ofuscar a existência de outras realidades, ideias, valores e visões de mundo, tão fortes e pujantes quanto aquelas, e que sinalizam na direção contrária, a da afirmação da diversidade, da solidariedade, da necessidade de lutar e resistir contra as desigualdades e violências que pontuam desde sempre o cotidiano dessas populações, e que se articulam contra o racismo e contra a repressão policial.

    Então, é importante que esses jovens se façam visíveis no centro da cena política. E também que se reconheça que eles têm formas de se organizar, de expressar sua visão de mundo e se manifestar, um modo de fazer política, de convocar para a luta, diferente daqueles reconhecidos pelos partidos de esquerda ou pelos movimentos sociais mais consolidados. Isso também não é de hoje. Há tempos esses mesmos partidos e movimentos identificam o distanciamento e se perguntam como podem estabelecer conexões, fazer pontes, “voltar às bases”, para incorporar esses atores em suas estruturas ou frentes de mobilização.

    Sem nenhuma condição de realizar uma análise dessas relações, gostaria apenas de fazer um alerta: evitar colocar esses atores em um campo oposto ao da esquerda e da tradição dos movimentos sociais, porque isso não é verdadeiro. Seus integrantes partilham experiências e repertórios com os movimentos sociais, com os partidos de esquerda e ao mesmo tempo com associações e organizações comunitárias de variados tipos, entre elas organizações religiosas dos mais diferentes matizes, inclusive as evangélicas neopentecostais, tanto quanto as de matriz africana.

    Esses jovens se formam e formam seus pensamentos e valores, na escola pública, que frequentam, agora, pelo menos até o ensino médio e, em parcela significativa, até a faculdade, passando pelos cursinhos populares. Formam seus valores, pensamentos e vínculos, evidentemente, na família, nas igrejas e na “comunidade”, o que envolve tanto as relações de vizinhança quanto a “cultura de rua” e associações comunitárias, de autoajuda e prática solidária. Também se relacionam com as entidades assistenciais e ONGs que desenvolvem trabalhos de suporte para sua formação e inclusão social; com as pastorais juvenis de diferentes igrejas; e ainda com os movimentos por moradia, saúde, educação, pelo uso do espaço público, presentes nas periferias (não, eles nunca deixaram de existir). Aprendem a se organizar e se manifestar coletivamente nos grupos por afinidades, como as torcidas de futebol, as rodas de capoeira e outras práticas de autodefesa, os grupos culturais, o hip-hop, os inúmeros coletivos culturais, os saraus, os slams, os cineclubes; e também nos movimentos estudantis, secundarista principalmente, que também demonstram um novo perfil social e formas de manifestação, com as revoltas das catracas e as ocupações das escolas…

    Os temas, os valores, as formas de organização e as bandeiras da esquerda não são estranhos a esses atores juvenis das periferias. O contrário é que, infelizmente, parece ser verdade. Apesar de ver, porque há mais de uma década eles nos mostram, muitos de nós não enxergam que eles formam coletivos com pautas e modos de organização e expressão muito potentes, embora diferentes daquelas consolidadas no campo dos partidos e movimentos de esquerda2. Não é à toa que eles se mantêm críticos e com distanciamento com relação a essas instituições, não por discordarem de suas pautas, mas porque as suas pautas e modos de ser e fazer continuam não sendo incorporados pelos partidos e movimentos; muitas vezes são até, mesmo, desqualificados, minimizados ou no máximo ironicamente tolerados. Isso também não é de hoje. Há muito tempo existe essa tensão.

    Então por que a sensação, real, de novidade, de que essa presença nesses últimos acontecimentos coloca um fator novo na cena política do país? A novidade não é o posicionamento político, radicalmente crítico, a expressão pública de denúncias e de demandas politicamente posicionadas, nem mesmo a disposição de luta desses jovens das periferias; mas sim o fato de eles serem os principais protagonistas de manifestações nas avenidas centrais da cidade e com toda a mídia noticiando, de um modo relativamente positivo. Tanto a mídia conservadora como a alternativa reconheceram o protagonismo desses jovens na luta por democracia, reconhecendo-os como atores políticos, com uma luta organizada e com bandeiras explícitas, e não como indivíduos desorganizados, sem bandeiras e sem lideranças, massa de manobra de interesses escusos, ou pior, vândalos que fazem as manifestações políticas transformarem-se em desordem.

    E esse é um fato político importante, que exige mesmo muita reflexão.

    Por que foram eles os principais protagonistas? Em grande medida porque partidos de esquerda e centrais sindicais não estavam presentes, pelo menos não como convocadores e organizadores, por receio da pandemia e das possíveis repercussões aventadas de endurecimento da repressão; não quero entrar na polêmica sobre a oportunidade ou não das manifestações nesse momento e não creio que avançaremos muito se ficarmos fazendo um debate sobre coragem ou covardia.

    Acho mais importante pensar que talvez, além da coragem, esses jovens predominantemente negros da periferia, dos diferentes lugares que ocupam na nossa sociedade, assumiram esse papel central nas manifestações, na reação ao avanço do fascismo, aos ataques à democracia, aos desatinos no enfrentamento da pandemia, a todas as políticas de morte desse governo, porque talvez eles estejam no centro das contradições mais agudas do momento que estamos vivendo.

    São eles que, desde sempre, sofrem a violência da desigualdade, que oblitera as possibilidades de inclusão; que desde o golpe têm sentido ameaçados os sonhos recentemente fortalecidos de inclusão educacional e que, na pandemia, estão reconhecendo a face mais perversa da desigualdade quando ela se atualiza pela dificuldade de acompanhar aulas e atividades educacionais pela internet porque, apesar da maioria estar conectada, o acesso e a qualidade dessa conexão ainda é profundamente mal distribuída.

    São eles que, desde sempre, suportam as jornadas e cargas mais pesadas dos trabalhos desqualificados e precários, e que, agora na pandemia, se expõem às mais desumanas exploração e desproteção, como, por exemplo, os trabalhadores de aplicativos, revelando as falácias da ilusão de se engajarem como “empreendedores em uma economia moderna que preserva a liberdade e autonomia”.

    São eles que sofrem cotidianamente o preconceito e a violência nos espaços públicos, tanto nas atividades de trabalho como de lazer, onde são tratados como vândalos e desviantes antes de qualquer prova, nas ruas, nos transportes públicos, nos estabelecimentos comerciais, nos shoppings e nos estádios.

    São eles que sofrem desde o berço a violência avassaladora do racismo, traduzido em toda a sorte de interdições, preconceitos e aniquilamentos, simbólicos e físicos, e que transforma os jovens negros das periferias nas vítimas de um verdadeiro genocídio em nosso país, recebendo o impacto mais cruel da desumanização, como lembra Felipe Freitas, nos explicando a tese de Fanon3. Desumanização que também se agrava com a pandemia, e com a irresponsabilidade do governo de enfrentá-la, de muitas maneiras: pelo número de vítimas da covid-19 nas periferias, em função das condições de vida e moradia, que impõem dificuldades de isolamento não previstas nas orientações de prevenção oficiais, e principalmente, porque, como trabalhadores precários e sem proteção, e sem um programa de renda efetivo, não podem deixar de trabalhar e circular nos transportes públicos lotados das grandes cidades; pelo recrudescimento da violência policial que, sempre presente, cresce na mesma medida que a instalação do “autoritarismo furtivo” (apud André Singer4) em nosso país.

    A crueldade que reside no descaso com a vida das crianças, dos jovens e das mulheres negras, é desvelada pela pandemia quando expõe o contraste entre, de um lado, as medidas protetivas e a importância da solidariedade e, de outro, a postura das elites e da classe média branca que não se importam minimamente em propiciá-las aos trabalhadores e prestadores de serviços com quem se relacionam.

    Nesse sentido, embalados talvez pelos acontecimentos nos Estados Unidos, o estopim desse sentimento de indignação veio também pelos dramáticos casos recentes resultantes dessa violência cotidiana, que vitimaram Miguel, 5 anos, João Pedro, 14 anos, João Vitor, 18 anos,  e Rodrigo Cerqueira, 19 anos, entre tantos outros, numa lista tão extensa que é impossível enumerar. Mas como tantas outras pessoas já escreveram, esses são casos simbólicos da necropolítica atual e, apesar de serem mais alguns entre milhares de acontecimentos que se acumulam há tempo demais no país, eles detonaram uma percepção coletiva do absurdo  do racismo, um sentimento de “basta!”, do que não é mais possível tolerar, e que foi um dos principais motes para a saída dessas pessoas às ruas no último domingo, apesar de todos os riscos.

    Além de saudar a postura dos jovens presentes, combativa, radical e acolher a crítica que eles fazem aos partidos, de agradecer pelo adensamento das fileiras que se dispõem a lutar pela democracia, precisamos ouvir o que eles estão dizendo e reivindicando. Temos de incorporar as suas pautas e demandas, temos de incorporar nas nossas agendas as questões que emergem do modo como eles são tratados cotidianamente no trabalho, nas instituições e no espaço público, submetidos à violência da desigualdade, do racismo e da polícia. Temos de dizer junto com eles que não é mais possível suportar a política de morte que o governo Bolsonaro leva ao paroxismo.

    Vidas negras importam e têm sido dizimadas pelas instituições oficiais e extraoficiais, têm sido desconsideradas, desprotegidas, desamparadas, desumanizadas. E essa bandeira, essa luta cotidiana, também não é de agora, é de muito tempo. Há muito tempo tem sido empunhada, por diversas organizações, coletivos e movimentos, amalgamada na denúncia do genocídio da juventude negra. Mas essa bandeira continua não entrando com centralidade nos documentos e programas das frentes democráticas, e nem mesmo dos partidos de esquerda5. Se queremos mudar nossa relação e nos conectar de outro modo com esses jovens, com os atores da periferia, temos de ajudar a carregar suas bandeiras, incorporar à luta em defesa da democracia  e contra o fascismo, a pauta  antirracista, pelo fim da violência policial contra os jovens negros, pelo fim da exploração dos seus corpos jovens na exaustão de trabalhos sem direitos.

    Helena Wendel Abramo é socióloga, com dedicação a pesquisas e políticas de juventude, desde 1990. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

    __________________________________

    notas

    1. Muito do impulso de escrever esse artigo se deu em função da leitura de texto escrito por Rudá Ricci no dia 08/05/2020, intitulado “A renovação da esquerda brasileira pode ter se iniciado nesse domingo” e que pode ser encontrado no site Unidade na Diversidade: https://unidadenadiversidade.com.br
    2. Para quem tiver interesse, recomendo visitar o site do Instituto Polis, instituição que tem impulsionado pesquisas e reflexões sobre os coletivos juvenis de periferia em São Paulo, das quais tenho participado em diálogo permanente e profícuo com Anna Luiza Salles Souto, desde o projeto Juventudes Sul Americanas, entre 2007 e 2009: www.polis.org.br. Recomendo também a leitura de artigos escritos por Renato Sousa Almeida publicados no Le Monde Diplomatique. E uma visita ao projeto Reconexão Periferias, no site da Fundação Perseu Abramo: https://fpabramo.org.br/editorias/periferias/
    3. Ver a entrevista de Felipe Freitas em “Papo de janela” de 6/6/2020: https://www.youtube.com/watch?v=mFNyueW7Uf0
    4. Ver a entrevista de André Singer a Fernando Haddad https://www.youtube.com/watch?v=5jhTDzL5R-s
    5. Não posso deixar de fazer referência a uma das exceções, consubstanciada no “Plano Nacional de Enfrentamento à violência contra a Juventude Negra”- Juventude Viva” do governo Dilma Rousseff, coordenado pelas secretarias nacionais de Juventude (SNJ) e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

     

  • SOBRE RACISMO E VANDALISMO NO BRASIL – Por Jorge Alexandre Alves

     

    Mais uma vez assistimos a tentativa de pautar a questão do racismo a partir daquilo que assistimos nos Estados Unidos. A imprensa “deu nome aos bois” em relação ao trágico assassinato ocorrido na América do Norte e em qualquer caso internacional de racismo, dizendo o que foi de fato, um homicídio. Toda a agressividade contida nos protestos é colocada em perspectiva, apresentada ao público como uma reação a uma violência primeira.

    Por outro lado, aqui no Brasil o jornalismo das grandes corporações de mídia omite a percepção dessas coisas. A cor da pele da pessoa morta, quem a matou, em quais circunstâncias… Tudo isso desaparece. A mensagem passada pela cobertura jornalística pega esses elementos e os jogam no plano das suposições.

    E quando alguém vem à público dizer que o assassinato de gente preta no Brasil está estruturalmente instituído, surgem colunistas de opinião, políticos e figuras públicas – quase todos eles brancos, diga-se – afirmar que isso é vitimismo. Parece que só se discute mais seriamente o racismo no Brasil quando ele acontece no estrangeiro. Será essa mais uma trágica faceta daquilo que o dramaturgo Nélson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”?

    Aquilo que na terra do Tio Sam é transmitido como expressão de dor e revolta de um povo que não quer ver mais a sua carne sangrar diariamente, no Brasil é chamado de “mimimi” ou convertido pelo discurso midiático em “vandalismo”… Que direito têm os que não são negros (que as vezes preferem esquecer suas origens africanas) ou a imprensa – majoritariamente branca – de querer adestrar protestos e manifestações de indignação?

    É preciso também que nos indaguemos todos sobre o que é vandalismo numa sociedade de racistas e profundamente desigual como a nossa. Por acaso, quem é mais vândalo? Aqueles que assassinaram a adolescente Maria Eduarda que estava dentro de sua escola, os que mataram a menina Ágatha no colo de sua mãe, os que alvejaram com mais de 200 tiros o carro do músico Evaldo, os que invadiram e destruíram a casa de João Pedro com 72 buracos feitos por fuzil; ou os torcedores pela democracia que foram às ruas no domingo ou os que participaram do ato antirracistas de Curitiba ontem?

    Quem tem autoridade moral para falar de vandalismo em atos populares quando o Estado brasileiro pratica atos barbaramente vândalos contra a maioria de sua população desde sempre? É muito fácil para quem nunca sofreu com o racismo ou com quaisquer outras formas de discriminação exigir regras pequeno-burguesas de etiqueta e civilidade – inclusive em passeatas –para quem nunca foi tratado efetivamente como cidadão de fato nesse país.

    Honestamente, onde começa o vandalismo na sociedade brasileira? Certamente não naqueles que hoje protestam contra o racismo ou em quem, cansado de tanto descalabro, prefere o risco de contaminação nas ruas para defender um mínimo de democracia e civilidade neste país. Por que as polícias tratam com tanta cortesia quem está há várias semanas realmente vandalizando as ruas do Brasil, desrespeitando a quarentena, ignorando o bem comum e propondo absurdos como a reedição de um novo AI-5?

    Querem maior vandalismo quanto o de nossas autoridades que negam a gravidade da pandemia? O que dizer sobre deixar o Ministério da saúde acéfalo ou forçar a aglomeração da população na porta dos bancos porque não se consegue pagar agilmente um benefício que deveria ser emergencial? Não seria um ato de vandalismo contra a população abrir a economia quando aumentam o número de casos da doença ou ao adulterar a forma como se notificam as mortes por Covid-19 para transmitir uma sensação de controle sobre a pandemia?

    Diante de tantas perguntas, é perverso querer imprimir o rótulo de vandalismo a quem historicamente foi impedido de ser cidadão em um país onde ser negro quase sempre foi ter uma sentença de morte assinada no próprio corpo. Se desejamos realmente reescrever a história do Brasil em termos de justiça social, é preciso adotarmos posturas antirracistas. Brancos e mestiços conscientes dessa chaga podem não ter lugar de fala para assumir o protagonismo dessa luta, mas devem ter o dever moral e o compromisso político de apoiá-la com todas as suas forças.

    Nesse momento em que nossas possibilidades democráticas são cada vez mais rarefeitas, precisamos todos admitir de fato que historicamente a “carne mais barata do mercado é a carne negra”. Ou somos capazes de reconhecer que esta democracia pela qual tantos temem fracassou em relação à nossa gente negra (e também com indígenas, LGBT’s, moradores das periferias/morros/favelas, mulheres, ribeirinhos…) para redefini-la em base mais inclusivas; ou as forças da intolerância já são vitoriosas desde já.

    Finalmente, não nos basta defender genericamente a democracia nesse momento. A população afro-brasileira não pode mais viver em sua própria terra como se estivesse em solo inimigo. Ou somos capazes de construir uma alternava politica que faça o Brasil deixar de ser uma máquina de matar pessoas negras e de conferir cidadania plena a todos, ou será vã nossa luta contra as vozes do fascismo que hoje ladram cada vez mais alto em nossos ouvidos.

    *Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor e atua no Movimento Fé e Política.

     

  • “É preciso indignar-se”[1] com algumas Redes de Televisão de inspiração católica!

    TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio em troca de dinheiro público

    Dia 06 de junho o Estadão publicou matéria afirmando que “TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio ao governo”. A notícia repercutiu em muitos outros meios de comunicação. Dom José  Ionilton, bispo de Itacoatiara, AM, publicou esta reação.

    Vale destacar que das nove TVs católicas, as Redes de Televisão Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte não participaram da negociata.

    Segue o artigo:

    Desde que foi revelado o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, vinha sempre confrontando os pronunciamentos feitos naquela reunião com a Constituição Federal, fazendo-nos refletir como tais pronunciamentos feriam nossa Lei Maior.

    Hoje, sinto-me na obrigação de comentar os pronunciamentos de outra reunião com o “presidente” do Brasil, acontecida de 21 de maio. Desta vez, não com ministros do governo, mas com padres diretores das chamadas redes de televisão de inspiração católica, com a participação de deputados federais que se dizem católicos, que foram os idealizadores desta reunião virtual.

    Um dos pedidos mais explícitos foi feito pelo padre Welington Silva, da TV Pai Eterno, ligada ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, em Trindade (GO). Disse ele: “estamos precisando mesmo de um apoio maior por parte do governo para que possamos continuar comunicando a boa notícia, levando ao conhecimento da população católica, ampla maioria desse país, aquilo de bom que o governo pode estar realizando e fazendo pelo nosso povo”.

    Perguntemo-nos: o que este padre chama de “aquilo de bom que o governo” realiza e faz?

    O padre e cantor Reginaldo Manzotti, da Associação Evangelizar é Preciso, com rádios e TV próprias, cobrou agilidade e ampliação das outorgas e destacou o contraponto que os católicos podem fazer para frear o atual desgaste na imagem de Bolsonaro e do governo.

    Perguntemo-nos: uma TV de inspiração católica deve se submeter, por dinheiro, a fazer este papel ridículo de “frear o atual desgaste da imagem” do governo?

    O empresário João Monteiro de Barros Neto, da Rede Vida, afirmou que “Bolsonaro é uma grande esperança”.

    Perguntemo-nos: esperança de que João Monteiro?

    No Brasil, há nove emissoras de inspiração católica de TV, geradoras de conteúdo: Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte, Pai Eterno, Rede Vida, Canção Nova, Século 21 e Evangelizar – as três últimas ligadas ao movimento da Renovação Carismática Católica.

    As Redes de Televisão Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte não participaram da videoconferência. Parabéns a estas TVs de inspiração católica que não aceitaram ser subornadas.

    As TVs Pai Eterno, Rede Vida, Canção Nova, Século 21 e Evangelizar participaram da negociata, do toma lá, da cá.

    Vou escrever aqui em letras maiúsculas a minha primeira reação ao receber a informação do que estava sendo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo “Por verbas, TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio ao governo”: VERGONHOSO! MERCENÁRIOS!

    Lembrei-me das palavras de Jesus no discurso sobre o Bom Pastor. Disse Jesus que o Bom Pastor vem para que todos tenham vida (cf. Jo 10, 10b) e o Mal Pastor, o Mercenário vem para roubar, matar e destruir (cf. Jo 10, 10, 10a).

    Outra cena do evangelho que me veio imediatamente à mente foi a passagem de Jesus no Templo de Jerusalém. João relata que no templo Jesus encontrou os que vendiam bois, ovelhas e pombas e os cambistas em suas bancas. João diz ainda que Jesus fez um chicote com cordas e expulsou todos do templo e disse: “Não façais da Casa de meu Pai um mercado” (cf. Jo 2, 13-22). Imaginemos Jesus entrando naquela reunião e ouvindo estes “padres” se vendendo ao governo, fazendo de nossa fé católica um mercado, pedindo dinheiro e prometendo apoiar o governo.

    Em Nota de Esclarecimento, emitida na noite do sábado, 06 de junho, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por meio de sua Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação, juntamente com a SIGNIS Brasil e a Rede Católica de Rádio (RCR), associações de caráter nacional que reúnem as TVs e rádios de inspiração católica do Brasil, informam que “não organizaram e não tiveram qualquer envolvimento com a reunião entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, representantes de algumas emissoras de TV de inspiração católica e alguns parlamentares”.

    Diz, também a Nota da CNBB: “Recebemos com estranheza e indignação a notícia sobre a oferta de apoio ao governo por parte de emissoras de TV em troca de verbas e solução de problemas afeitos à comunicação. A Igreja Católica não faz barganhas. Ela estabelece relações institucionais com agentes públicos e os poderes constituídos pautada pelos valores do Evangelho e nos valores democráticos, republicanos, éticos e morais”.

    Como bispo da Prelazia de Itacoatiara – Amazonas, venho solidarizar-me com a Comissão Episcopal para a Comunicação e com a Presidência da CNBB.

    Os Redentoristas e os Jesuítas, também, emitiram notas, dizendo que os seus Religiosos presentes naquela reunião, não foram enviados pelas Congregações. Os Redentoristas são ligados à TV do Pai Eterno e os Jesuítas são ligados à TV Século XXI.

    Espero que os Padres “desobedientes”, sejam religiosamente corrigidos, se retratem ou se tomem outras providências. O Cânon 823 diz que “para garantir a integridade das verdades da fé e dos costumes é dever e direito dos pastores da Igreja vigiar para que os escritos ou uso dos meios de comunicação social não tragam prejuízo à fé e à moral dos fiéis”.

    [1] Querida Amazônia, nº 15

     

  • Leonardo Boff –  Meditação da luz: o caminho da simplicidade

    Amigos/as
    Escrevi este texto pensando naqueles que estão no isolamento social. Talvez ajuda a alguém a sair do enfado.
    LBoff

    Meditação da luz: o caminho da simplicidade

    A grande maioria está atendendo às recomendações oficiais de recolhimento social, impedindo desta forma a disseminação do covid-19.

    Podem-se fazer muitas coisas nesse recolhimento forçado: uma revisão de vida; que lições tirar para o futuro; como mudar para melhor; ver um filme, etc.

    Mas oferece-se também a oportunidade de fazer algum exercício de meditação. Não somente para as pessoas religiosas mas também para aquelas que, sem ligação à alguma religião, cultivam valores como o amor, a cooperação, a empatia e a compaixão.

    Ofereço aqui um método que eu chamo “Meditação da Luz: o caminho da simplicidade”. Ele tem uma alta ancestralidade no Oriente e no Ocidente. Tem a ver com o espírito e todo o corpo humano mas em particular com o cérebro, a sede de nossa consciência e inteligência.

    Não é o lugar aqui para discutirmos as três sobreposições do cérebro: o reptiliano que diz respeito ao nossos movimento instintivos; o límbico, aos sentimentos, e o neo-cortical, ao raciocínio, à lógica e à linguagem.

               O cérebro humano e seus dois hemisférios

    Tratemos, sucintamente, do cérebro que possui uma forma de concha com dois hemisférios:

    O esquerdo que responde pela análise, pelo discurso lógico, pelos conceitos, pelos números e pelas conexões causais.

    O direito responde pela síntese, pela criatividade, pela intuição, pelo lado simbólico das coisas e dos fatos e pela percepção de uma totalidade.

    No meio está o corpo caloso que separa e ao mesmo tempo une os dois hemisférios.

    Outro ponto importante do cérebro é o lobo frontal, sede da mente humana. Há muitas teorias sobre a relação entre cérebro e mente. Vários neurocientistas sustentam que a mente é o nome que damos à realidades intangíveis, elaboradas no cérebro, tais como a vida afetiva, o amor, a honestidade, a arte, a fé, a religião, a reverência e a experiência do numinoso e do sagrado.

         A mente espiritual e o Ponto Deus no cérebro

    Outro ponto a ser referido é a mente espiritual. A antropologia cultural se deu conta de que em todas as culturas surgem sempre duas constantes: a lei moral na consciência e a percepção de uma Realidade que transcende o mundo espaçotemporal e que concerne ao universo e ao sentido da vida. Repousam em alguma estrutura neuronal, mas não são neurônios. São de outra natureza até agora inexplicável. Vários neurocientistas a chamaram de mente mística (mystical mind). Prefiro uma expressão mais modesta: mente espiritual.

    Aprofundando a mente espiritual outros neurocientistas e neurolinguistas chegaram a identificar o que chamaram o ponto Deus no cérebro. Constataram que sempre que o ser humano se interroga existencialmente sobre o sentido do Todo, do universo, de sua vida e pensa seriamente sobre uma Ultima Realidade, produz-se uma descomunal aceleração dos neurônios do lobo frontal. Aponta para um órgão interior de qualidade especial. Disseram que assim como temos órgãos externos, os olhos, os ouvidos, o tato temos também um órgão interno, uma vantagem de nossa evolução humana. Deram-lhe o nome de o ponto Deus no cérebro. Mediante esse órgão-ponto captamos Aquela Realidade que tudo unifica e sustenta, desde o universo estrelado, a nossa Terra e a nós mesmos: a Fonte que faz ser tudo o que é. Cada cultura dá-lhe um nome: o Grande Espírito dos indígenas, Alá, Shiva, Tao, Javé, Olorum dos nagô e nós simplesmente de Deus (que em sânscrito significa o Gerador da luz, donde vem também a palavra dia).

                 A natureza misteriosa da luz

    Antes de nos focarmos na Meditação da Luz, cabe uma palavra sobre a natureza da luz. Ela é tida até hoje como um fenômeno tão singular para a ciência, como a física quântica e a astrofísica que preferiu-se dizer: a entendemos melhor se a consideramos uma partícula material (que pode ser barrada por uma placa de chumbo) e simultaneamente uma onda energética que percorre o universo à velocidade de 300 mil km por segundo. Biólogos chegaram a discernir que todos os organismos vivos emitem luz, os  biofótons, invisíveis a nós mas captáveis por aparelhos sofisticados. A sede desta bioluz estaria nas células de nosso DNA. Portanto, somos seres de luz Ademais a luz é um dos maiores símbolos humanos e o nome que se dá à Divindade ou a Deus como Luz infinita e eterna.

       Meditação da luz: caminho oriental e ocidental

    Vamos finalmente ao tema: Como é essa meditação da luz? Fundamentalmente tanto o Oriente quanto o Ocidente comungam da mesma intuição: do Infinito nos vem um raio sagrado de Luz que incide em nossa cabeça (corpo caloso), penetra todo o nosso ser (os chacras), ativa os biofótons, sana nossas feridas, nos enleva e nos transforma também em seres de luz.

    Conhecido é o método budista em três passos: diante de uma vela acesa, se concentra e diz: eu estou na luz; a luz está em mim; eu sou luz. Essa luz se expande do corpo para tudo o que está ao redor, para Terra, para as galáxias mais distantes. Permite uma experiência de não dualidade: tudo é um e eu estou no Todo.

    O caminho ocidental se parece com o oriental. Era praticado pelos primeiros cristãos em Alexandria no Egito que professavam ser Deus luz, Jesus, luz do mundo e o Espírito Santo,  a “Lux Beatissima”

    Sigam comigo os seguintes passos: colocar-se num lugar cômodo, como ao pé da cama, ao levantar ou ao deitar ou num canto mas recolhido. Concentrar-se para abrir o corpo caloso e invocar o raio da Luz Beatíssima que provém do infinito do céu.

    Esse raio de Luz sagrada, incidindo, já permite a união dos dois hemisférios do cérebro, produzindo grande equilíbrio entre razão e sentimento. Em seguida, deixe que essa Luz divina comece lentamente a penetrar todo o seu corpo: o cérebro, as vias respiratórias, os pulmões, o coração, o aparelho digestivo, os órgãos genitais, as pernas e os pés. Pare-a especialmente nas partes que estão doentes e produzem dor. Já que a Luz desceu, faça-a voltar, penetrando novamente todo o seu ser e seus órgãos.

             Benefícios da meditação da luz

    Antes de mais nada, começa a sentir que essa Luz divina potencia suas energias, lhe traz leveza a todo o seu ser corporal e espiritual. Dê-se um pouco de tempo, para curtir essa Energia divina que o energiza totalmente. Por fim, agradeça ao Espírito de Luz que é o Espírito Santo. Lentamente seu corpo caloso se fecha e vc sai mais espiritualizado, mais humanizado e com mais coragem para enfrentar o peso da vida.

    Você pode fazer esse exercício mentalmente no ônibus, ao parar no semáforo, na fábrica, no escritório ou em qualquer tempinho que tenha no dia.

    Todos os que se acostumaram a fazer esse tipo de meditação – via da simplicidade – testemunham como ficam mais resistentes na saúde, ganham mais clareza nas questões complicadas e as ideias fixas e os preconceitos os tornam mais superáveis, enfim você se torna um ser melhor e sua luz irradia sobre outros. Tente fazer essa meditação simples e verá seu valor corporal e espiritual.

    Leonardo Boff é teólogo e escreveu Meditação da Luz: o caminho da simplicidade, Vozes, 2009; Tempo de Transcendência (Vozes 2009). Para adquirir: vendas@vozes.com.br

  • Leonardo Boff – Uma leitura de cego da encíclica ecológica Laudato Si

    Um cego capta com as mãos ou com seu bastão as coisas mais relevantes que encontra pela frente. Pois assim tentaremos fazer uma leitura de cego acerca da encíclica ecológica do Papa Francisco, Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum, cujos 5 anos (24/05/2015) acabamos de celebrar. Quais são seus pontos relevantes?

             Antes de tudo, não se trata de uma encíclica verde que se restringe ao ambiente, predominante nos debates atuais. Propõe uma ecologia integral que abarca o ambiental, o social, o político, o cultural, o cotidiano e o espiritual.

             Quer ser uma resposta à generalizada crise ecológica mundial porque “nuncamaltratamos e ferimos a nossa Casa Comum, como nos últimos dois séculos”(n.53); fizemos da Casa Comum “um imenso depósito de lixo (n.21). Mais ainda:”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia… nosso estilo de vida insustentável só pode desembocar em catástrofes”(n.161). A exigência é de “uma conversão ecológica global”(n.5;216)) que implica “novos estilos de vida”(repete 35 vezes) e “converter o modelo de desenvolvimento global”(n.194).

             Chegamos a esta emergência crítica por causa de nosso exacerbado antropocentrismo, pelo qual o ser humano”se constitui um dominador absoluto”(n.117) sobre a natureza, desgarrado dela, esquecendo que “tudo está interligado e por isso ele “não pode se declarar autônomo da realidade”(n.117;120). Utilizou a tecnociência como instrumento para forjar “um crescimento infinito…o que supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta que leva a espremê-lo até ao limite para além dele”(n.106).

             Na parte teórica, a encíclica incorpora um dado da nova cosmologia e da físicaquântica: que tudo no universo é relação. Como num ritornello insiste que “todos somos interdependentes, tudo está interligado e tudo está relacionado com tudo “(cf. nn.16, 86,117,120) o que confere grande coerência ao texto.

             Outra categoria que constitui um verdadeiro paradigma é o do cuidado. Este, na verdade, é o verdadeiro título da encíclica. O cuidado, por ser da essência da vida e do ser humano, segundo a fábula romana de Higino, tão bem explorada por Martin Heidegger em Ser e Tempo é recorrente em todo o texto da encíclica. Vê em São Francisco “o exemplo por excelência do cuidado”(n.10).“Coração universal…para ele qualquer criatura era uma irmã unida a ele por laços de carinho, sentindo-se chamado a cuidar de tudo o que existe”(n.11).

             É interessante observar que o Papa Francisco une a inteligência intelectual, apoiado nos dados da ciência, à inteligência sensível ou cordial. Devemos ler com emoção os números e relacionarmo-nos com a natureza “com admiração e encanto (n.11)…prestar atenção à beleza e amá-la pois nos ajuda a sair do pragmatismo utilitarista”(n.215). Importa “ouvir tanto o grito da Terra quanto o grito dos pobres”(n.49).

    Consideremos este texto, carregado de inteligência. emocional:”Tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos, como irmãos e irmãs, numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também com terna afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio, e à Mãe Terra”(n.92). Importa “incentivar uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade”(n.231), pois assim “podemos falar de uma fraternidade universal”(228).

             Por fim, é essencial à ecologia integral a espiritualidade. Não se trata de derivá-la de ideias, mas “das motivações que dão origem “a uma espiritualidade para alimentar a paixão pelo cuidado do mundo…Não é possível empenhar-se em coisas grandes, apenas com doutrinas sem uma mística que nos anima, sem umamoção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária”(n.216). Novamente evoca aqui a espiritualidade cósmica de São Francisco (n.218).

             Concluindo, releva enfatizar que com esta encíclica, ampla e detalhada, o Papa Francisco se coloca, como notáveis ecologistas o reconheceram, na vanguarda da discussão ecológica mundial. Em muitas entrevistas, referiu-se aos riscos que corre nossa Casa Comum. Mas sua mensagem é de esperança:”caminhemos cantando, que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta, não nos tirem aalegria da esperança”(n.244).

    Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu:Francisco de Assis e Francisco de Roma, Mar de Ideias, Rio 2014.

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