Artigo

  • Pastor Valdemar Figueiredo Filho defende punição por abuso de poder religioso nas eleições

    Imagem: Instituto Mosaico

    O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) começou a discutir a possibilidade de punir abusos de poder religioso de candidatos já nas eleições municipais deste ano.

    A questão causa polêmica porque não há uma tipificação deste abuso na legislação eleitoral. Atualmente, o TSE entende que apenas abusos de autoridade ou de poder econômico podem resultar na perda de mandato.

    A discussão foi iniciada pelo ministro Edson Fachin, durante o julgamento de um caso de uma vereadora de Luziânia (GO), que é acusada de usar sua posição de pastora em uma igreja evangélica para influenciar os votos dos fiéis e promover sua candidatura nas eleições de 2016.

    Relator do caso, Fachin usou o seu voto no julgamento para propor a inclusão da investigação do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes), que podem resultar na cassação dos mandatos e também na inelegibilidade dos candidatos. Para o ministro, trata-se de impedir que forças políticas possam coagir moral ou espiritualmente os eleitores e interferir na legitimidade do voto.

    “A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”, disse Fachin.

    A tese proposta por Fachin causou reação imediata de parlamentares conservadores e líderes religiosos, principalmente os de orientação pentecostal.

    No entanto, há vozes dissonantes. O pastor VALDEMAR FIGUEREDO FILHO, 51 anos, baiano, pastor da Igreja Batista do Leme apoia a iniciativa de Fachin. Tem mestrado em ciência política pela Universidade Cândido Mendes e doutorado em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio. Publicamos entrevista publicada pela revista Época, por Cleide Carvalho.

    Segue a entrevista

    O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julga tipificar o crime de abuso de poder religioso, para regular a influência das igrejas nas campanhas políticas. O senhor é favor dessa ideia?

    VALDEMAR FIGUEREDO FILHO: Sou a favor, porque de fato há abuso. Ele existe e não é algo recente. Não estou dizendo que qualquer representação é abusiva, mas que existem relações abusivas dentro de um quadro de representação que é normal e legal. Algumas já foram inclusive notificadas à Justiça Eleitoral, como o uso de templos como comitês. Há vários casos Brasil afora, que ocorrem sem punição e sem vigilância.

    O fato de líderes religiosos declararem abertamente seus votos e se colocarem ao lado de candidatos durante a campanha causa interferência no processo eleitoral?

    Não é disso que se trata. O ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin não está tentando conter algo que é natural. O líder religioso pode exercer plenamente sua cidadania. Apoiar candidato e manifestar voto é um direito e está dentro da normalidade. A questão é quando algo que é natural se transforma em abusivo. Isso acontece, por exemplo, quando alguém diz que determinado candidato foi indicado por Deus. Ou quando o templo ou os meios de comunicação da igreja são transformados em máquina política. Se há um candidato oficial da igreja, que está funcionando como partido, é uma relação abusiva. Quem quer participar da política deve ir para o espaço público, não permanecer escondido atrás de símbolos sagrados.

    Hoje é proibida a propaganda política dentro de templos religiosos. O senhor considera que essa regra é cumprida?

    Não. A regra não é cumprida. No caso de candidatos que dispõem da estrutura dos templos, há abuso inclusive econômico. O que ele dispõe é, na prática de recurso de campanha. Não tirou um tostão para campanha publicitária, e o recurso vem da estrutura religiosa.

    Em sua opinião, o que é abuso religioso?

    Existem pessoas no ambiente religioso que estão muito vulneráveis. Há quem chegue por exemplo, depois de um luto ou em busca de uma cura ou de libertação de um vício. Essa pessoa tem fragilidades. Há muita gente nessa situação. Daí a sofrer abuso, não é difícil. isso não ocorre em apenas uma religião, mas em todas. O ambiente pode se tornar abusivo.

    C:omo o senhor avalia a aproximação entre política e religião no Brasil, com a formação inclusive de bancadas como a evangélica?

    Essa cena sempre esteve posta, desde que os portugueses chegaram aqui e celebraram a primeira missa. É um reflexo da estrutura social brasileira, não é novo. O que temos é uma mudança de atores. O que estamos vendo é o avanço de um outro grupo. A Igreja Católica tratava as coisas e influenciava no andar de cima. Ela sempre teve papel importante nas decisões e sempre esteve nas mesas de negociação. Com constituição de 1988 se forma um grupo, protestante, evangélico, pentecostal, que vai crescendo no Parlamento e no país. É um fato social, não só político. Mas ocorre que, para além do segmento religioso, temos por trás dele grupos econômicos, rede de comunicação, que são grupos fortíssimos, que movimentam rádio, TV, jornais, indústria fonográfica e internet. São empresas enormes, de dimensão nacional. A fachada é um templo, mas, quando se ultrapassam os portais, têm uma série de outras atividades, inclusive a política. Podem não ser a maioria, mas são os mais poderosos.

    O senhor acredita que o TSE terá maioria para decidir favoravelmente à tipificação do crime de abuso de poder religioso?

    Acho que não passa, embora eu seja favorável. Os interesses são muito fortes. A proposta em si já teve uma reação contrária muito forte. O discurso dos abusadores é que eles são perseguidos, como uma luta do bem contra o mal. Falo dos evangélicos mais articulados, nesse cenário mais malicioso. O inimigo agora, dizem eles, são os esquerdistas, a ameaça comunista.

    (com a contribuição de  PEDRO AUGUSTO FIGUEIREDO,
    em matéria publicada em O Tempo, 12/07/20).

  • Bancada Evangélica Popular apoia projetos de esquerda

    Eliad Dias dos Santos, 54, é uma das caras da Bancada Evangélica Popular | Foto: Rodrigo de Britos/Igreja Metodista

    ‘Somos evangélicos e temos vergonha da bancada bolsonarista. Eles não nos representam’

    Por Arthur Stabile para o site Ponte – 27/07/2020

    Pastora Eliad Dias afirma que o objetivo da Bancada Evangélica Popular é ser um contraponto aos religiosos conservadores: “vamos apoiar projetos de esquerda”

    Uma bancada evangélica de esquerda, com ideais progressistas e sem a imposição da teologia na atuação política. É com essa promessa que a Bancada Evangélica Popular, formada por pastores e presbíteros em São Paulo, tem se apresentado e se colocado como contraponto ao atual grupo político ligado aos neopentecostais.

    Uma das fundadoras do movimento, a pastora Eliad Dias dos Santos, 54 anos, explica que o primordial é entender que a fé e a política devem operar separadamente. “O projeto político da atual bancada evangélica é de poder, de impor o que acreditam. A teocracia não faz parte do nosso projeto, de jeito nenhum. O estado é laico”, explica à Ponte.

    A teóloga atua desde 1990 no centro da cidade de São Paulo, na região da Luz, com assistência a mulheres em situação de rua, prostitutas, população LGBT+ e imigrantes.

    Para Eliad, os evangélicos conservadores que dão sustentação ao governo de Jair Bolsonaro são motivo de vergonha para os cristãos progressistas. “É um governo genocida, fascista e que está acabando com a população. [Jair] Não é nenhum Messias e Deus jamais enviaria uma criatura daquelas para a gente. É uma praga no Brasil”, declara.

    Em entrevista à Ponte, Eliad fala da influência dos Estados Unidos na expansão evangélica nas Américas e que a atual Bancada Evangélica alinhada ao bolsonarismo não a representa. “Queremos denunciar, trabalhar para que sejam eleitos verdadeiros representantes do povo, não da milícia evangélica e de qualquer outra”, afirma, citando o ministro da Educação, o pastor conservador Milton Ribeiro, como exemplo de força dos evangélicos no governo federal. A bancada ainda não anunciou candidatura própria e nem definiu apoios para as eleições deste ano.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Qual o objetivo da formação de uma nova bancada evangélica?

    Eliad Dias – Decidimos criar uma bancada para apoiarmos candidatos e candidatas de esquerda com demandas que acreditamos ser os valores do Reino de Deus. Trabalhamos para todos terem acesso aos direitos fundamentais e que os representantes pensem nessas questões. Se é para ter um trabalho fundamentado na Bíblia, vamos pegar o que é sério, o que é verdade, não o que essa bancada que está aí quer, de privilégios, do desmonte da sociedade, de impor uma teocracia. O Estado é laico, não tem essa história de ter um grupo específico lá. O ideal é que não tivesse uma bancada evangélica, mas, se existe, temos que fazer contraponto a essa gente.

    Como foi a reunião dessas pessoas para fundarem o grupo?

    Eliad Dias – Cada um de nós que estamos na bancada temos experiência na militância política. A grande questão é que falamos que somos evangélicos e morremos de vergonha pela bancada que está aí. Não nos representa. Faço parte, com Valéria Vilhena, da EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), formado para combater a questão que igrejas criam contra as mulheres, o papel das mulheres. Por isso existimos: para dizer que tudo que ele disse é bobagem. Não pode usar a bíblia para sustentar isso. Somos do estudo da religião, advogadas, um trabalho para fazer a desconstrução dessa teologia que os homens fazem para falar que mulher tem local de maternidade, de submissão. Quando Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] estava no auge, nos lugares que me chamavam para ir eu falava que sou reverenda e não pastora. Um cara falou que ela era pastora pela personalidade. Eu estudei quatro anos, fiz vestibular para ser pastora. Tudo o que ela representa ou fala em público jamais sairia da minha boca ou de outras mulheres. Não quero ser confundida com aquela criatura.

     Vocês têm a intenção de fazer um contraponto?

    Eliad Dias – É para mostrar que existe um povo evangélico progressista, cristão de verdade, que criamos a bancada. Não temos preocupação com lucro, dinheiro e poder. Queremos um país justo, que as pessoas tenham os seus direitos respeitados, sua cidadania exercida de fato. Hoje vemos ônibus lotados e a prefeitura vai dizer que está tudo bem. Isso aumenta as pessoas contaminadas [por Covid-19]. O auxílio emergencial: o que foi feito com as pessoas da classe média alta que conseguiram de forma irregular os R$ 600? Não aconteceu nada. Além de devolver, tinha que ter punição. Não deveria ter pedido se tem salário de R$ 10 mil. Os militares que receberam, não acontece nada? Verificamos que acontece um genocídio. O vírus caiu como um milagre para esse povo, a melhor forma de exterminar indígenas para ter suas terra, o modo mais fácil de exterminar a população negra, que sabemos estar sendo exterminada.

    Como é ser evangélica enquanto existe a Bancada Evangélica, com o peso que este termo carregou pela atuação no Congresso Nacional, e em meio aos apoios ao governo de Jair Bolsonaro?

    Eliad Dias – Bolsonaro é o que existe de pior. Outra coisa que brinco com meus amigos: estive fora do Brasil e falei que ia dizer que sou angolana, porque morro de vergonha de dizer que sou brasileira por conta do Bolsonaro. É esculachado em todos os lugares. Só piada. O Jair Bolsonaro é o que ficou evidente que o Brasil sempre foi. Não existe mito do brasileiro bonzinho, que é acolhedor, vamos derrubar isso. É o racismo. Bolsonaro foi eleito por uma camada populacional que se identificou com ele, fora as promessas vazias, a construção da mídia e pela Globo, por todos os órgãos contra os partidos de esquerda, especialmente o PT. As pessoas elegeram um homem que dizia que não existia corrupção, que seria diferente. Está sendo o pior de todos os governos que já tivemos. É um governo genocida, fascista e que está acabando com a população. Não é nenhum Messias e Deus jamais enviaria uma criatura daquelas para a gente. É uma praga no Brasil.

    Por que existe o apoio dos evangélicos conservadores ao atual governo?

    Eliad Dias – Existe um projeto nos Estados Unidos, muito anos antes de Bolsonaro ser candidato, de que, nos próximos anos, as igrejas de lá, a direita norte-americana evangélica, colocaria nas Américas presidentes evangélicos tementes a Deus. Essas igrejas de massa recebem dinheiro de fora para abrirem templos. Bolsonaro é dinheiro e poder, podemos ver o aumento de casas desses pastores, a recuperação das igrejas. É o toma lá dá cá: te apoio, mas você me dá coisas. Essas igrejas têm pouco de igrejas, são empresas. Tem os milicianos e os evangélicos, que têm um projeto de poder por conta de dinheiro. Queremos denunciar, trabalhar para que sejam eleitos verdadeiros representantes do povo, não da milícia evangélica e de qualquer outra. Silas Malafaia, Edir Macedo… não é igreja, é empresa. Têm TV, avião, helicóptero. Uma questão de poder. O apoio dos evangélicos foi pensando nisso. Não à toa a bancada pôde indicar o ministro da Educação [Milton Ribeiro, evangélico conservador] por poder e dinheiro.

    Como avalia na prática a atuação desses religiosos na política?

    Eliad Dias – Hoje não temos democracia. Em 2016, quando Dilma sofreu impeachment, foi o total rompimento da democracia. A carta à Bancada Evangélica assinada por ela [que falava de aborto e liberdade religiosa] foi quando tudo começou a ruir, ao não discutir pautas como o aborto. Se fortaleceram ali. Não só PSL, PSDB, mas o PT teve sua culpa pelo projeto de poder. Sentou com Edir Macedo, foi à inauguração do Templo de Salomão. Significa “estou coligada com você”. A partir do momento que um grupo tem como objetivo a destruição de outro, não posso me aliar. Não faz sentido eu convidar membros da Ku Kux Klan para fazer parte do meu aniversário. Tenho que evitar que a KKK chegue ao poder, não conversar como se fosse um grupo normal. Esses grupos nunca esconderam o projeto deles de poder, de impor o que eles acreditam. Esse é o problema.

    E como fazer contraponto ao que está posto no imaginário nacional do país ao ver evangélicos na política?

    Eliad Dias – Não somos isso. Ninguém tem projeto de chegar e dominar o Brasil. Vamos apoiar projetos de esquerda, que no nosso entendimento são projetos condizentes com o que acreditamos enquanto reino de Deus. O que Jesus queria? Igualdade para todos. Por isso ele morreu, porque foi assassinado pelos religiosos da época. A bancada não tem projeto de poder que essa Bancada Evangélica do Congresso tem. Queremos que todas as pessoas e grupos tenham direitos e exerçam sua cidadania. Apoiar nomes de pessoas realmente comprometidas com o reino de Deus. Não queremos ser uma bancada que ganhou da outra. A teocracia não faz parte do nosso projeto, de jeito nenhum. O estado é laico. Estamos aqui, às vezes com medo de sermos a próxima Marielle, mas bora lá. Sabemos com quem estamos lidando.

    Como encara os casos recentes de violência policial?

    Eliad Dias – Tenho primos que são policiais e é uma eterna briga. Nem fazemos mais Natal juntos. O meu avô já era da Força Pública, essa questão vem de lá. Eles não entendem que na PM, a escola militar, a formação, é voltada para a questão da violência. Existe um grupo no Brasil a quem você precisa dominar e exterminar, que é a população negra, a maioria do país. Não é concebível que um policial vai aprender a fazer uma prisão em curso que se tenha bonecos negros para ele aprender. É inconcebível. Minha filha é negra e a avisei: se tiver em um grupo de jovens e alguém estiver usando drogas, você vai sair. Eles, se forem brancos, serão os usuários e você será entendida como a traficante. É questão de segurança. Teve o rapaz que ficou preso por estar com 10 gramas de maconha e morreu com Covid-19. Fosse branco ele seria usuário. Como é negro, é traficante.

    O recrudescimento da ação policial vai além do discurso nacional, aparece nas falas de governadores, como João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC).

    Eliad Dias – O Doria, logo que assumiu, disse que a polícia iria agir para matar, por isso ganhou [a eleição]. Um monte de gente entende que a violência vai acabar quando matarem os negros que não trabalham. Não conseguem entender esse racismo estrutural de a pessoa estar naquela situação, de termos meninos negros pedindo dinheiro no farol, de não terminarem a escola. A escola pública não os incentiva a ficar. Pelo contrário, os fazem sair. O professor não dispõe de tempo nem de olhar com carinho aos alunos. A autoestima é afetada, eles ficam no fundo, o professor não dá bola, acham que serão o futuro pagodeiro, ladrão ou jogador de futebol. E já sabe, é escadinha: não vai bem na escola, não consegue trabalho, não tem autoestima suficiente porque a sociedade diz que não serve para nada. A pessoa acredita nisso e acontece o que acontece. É estrutura, um ciclo. Teve reportagem recente do Frei Davi denunciando racismo nas igrejas. É estrutural. O Silvio [de Almeida, advogado] fez tanto sucesso no Roda Viva por conta disso. Mas o Brasil não discute, prefere matar, ir para o genocídio.

    Artigo publicado em https://ponte.org/somos-evangelicos-e-temos-vergonha-da-bancada-bolsonarista-eles-nao-nos-representam/

  • Como o cristianismo fundamenta e orienta a Direita global

    Entrevista com o jornalista Iacopo Scaramuzzi

    Por Lucas Ferraz para https://theintercept.com/ – 27 de Julho de 2020.

    De Roma a Washington, de Moscou a Paris, de Budapeste a Brasília, a geografia política e religiosa da extrema direita que ascendeu nos últimos anos contém um particular denominador comum: a instrumentalização do cristianismo como estratégia política.

    O sacro tornou-se um meio para marcar território, distinguir inimigos e – quem sabe – erradicar a diversidade, seja ela representada por gays, muçulmanos, imigrantes ou qualquer outra “modernidade” que ameace a tríade “Deus, pátria e família”.

    Do ex-capitão do Exército defensor da tortura e de milicianos ao ex-araponga Vladimir Putin, o todo-poderoso da Rússia que também abraçou a Igreja Ortodoxa de seu país, da jovem Marion Marechal-Le Pen na França, integrante da terceira geração de uma família ultraconservadora que está numa cruzada contra os muçulmanos, aos espanhóis do Vox, a extrema direita global desfruta dos símbolos e supostos valores do cristianismo.

    Trata-se de um caso de marketing político (particularmente bem-sucedido em alguns ambientes) que encontrou ressonância também em pensadores, instituições, cardeais e bispos no interior da Igreja Católica insatisfeitos com o pontificado do papa Francisco. O argentino acabou se transformando num inimigo comum para todos eles, sejam políticos ou religiosos.

    A eleição de Donald Trump em 2016, com o entusiasmado apoio que o republicano recebeu – e ainda recebe – de católicos tradicionalistas e demais grupos conservadores, serviu como ponto de partida para a consolidação do que muitos estudiosos classificam de “nacional-catolicismo”.

    O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do governo da Itália  brandindo rosários e falando em nome de Maria, além de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu “Deus acima de todos”.

    “Eles dizem defender o cristianismo, mas o transformam, infelizmente, em uma ideologia petrificada, num esqueleto, num monumento aos caídos”, escreve o vaticanista Iacopo Scaramuzzi,  autor de um pequeno mas informativo livro recém-publicado na Itália em que destrincha como o cristianismo virou uma peça importante na radicalização política da extrema direita.

    Intitulada “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), a obra estampa na capa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin. Jornalista da agência italiana Askanews, Scaramuzzi acompanha o cotidiano do Vaticano em Roma desde 2006.

    No meio da tempestade que agita o mundo, o cristianismo é explorado como uma “estrutura sólida”, um “outro país protegido”, lugar de paz e prosperidade para a “família tradicional” – a dos que os brasileiros conhecem como “homens de bem”. Não importa se, na prática, a política implementada seja notadamente marcada pela ausência de valores cristãos.

    Como escreve Scaramuzzi, a exploração visa louvar um passado supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc. A estratégia é mais ou menos simples e fácil de ser compreendida pelo eleitorado. O objetivo também é pueril: criar um sentido comum e respeitabilidade, conta o autor.

    No capítulo dedicado ao Brasil, o título dado por Scaramuzzi é um sucinto resumo do país de Bolsonaro: “Aliança entre militares, neoliberais e pentecostais”. Ele ressalta que o presidente brasileiro (católico) tem vários referentes religiosos, além dos pastores evangélicos, entre eles católicos tradicionalistas como o youtuber Bernardo Küster, e que frequentemente faz uso político do cristianismo quando transmite ao eleitorado a necessidade de um sacrifício, “quase um martírio”, para se afastar do mal.

    Isso vale para defender reformas econômicas de cunho neoliberal, para falar da facada que quase o matou na campanha eleitoral ou ainda sobre a necessidade de promover uma guerra cultural contra os valores considerados de “esquerda” para proteger a família.

    A formação de um “povo puro” a partir da instrumentalização do cristianismo, mostra o autor, encontra ferrenha oposição no atual chefe do Vaticano, que já declarou que mensagens revestidas de ódio e certas políticas como as que preveem muros contra imigrantes nada têm de cristãs. O desencontro entre essas correntes tem sido uma das marcas do papado de Jorge Mario Bergoglio.  “Não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco”, me disse Scaramuzzi num bar do centro de Roma.

    Leia, a seguir, a entrevista com o pesquisador.

    The Intercept Brasil – O seu livro mostra métodos semelhantes da extrema direita em diversos países para explorar politicamente o cristianismo, muitas vezes para criar uma imagem de respeito ou mesmo para seduzir o eleitorado. É só uma estratégia eleitoral ou estamos diante de um retorno do fundamentalismo religioso à política? 

    Iacopo Scaramuzzi – Não estamos na fase do retorno do sacro, mas sim na fase da nostalgia. O que é muito diferente. É mais a recordação romantizada de um passado que não existe mais e que talvez nunca tenha existido. É um pequeno retrato de um mundo antigo. Esse ideal de mundo, com uma família tradicional formada por homem e mulher, é idealizado. Parece o mundo de uma peça publicitária, todo mundo loiro e feliz.

    Sempre houve um cruzamento entre religião e política, seja no cristianismo, no judaísmo, no islã, no hinduísmo. O que surpreende nesses últimos anos é a forma como a religião católica vem sendo instrumentalizada. Ela é usada como um objeto, de forma completamente superficial. Reduzida a um elemento identitário. Católicos conservadores ou progressistas sempre existiram, isso faz parte da história e não é novo. Mas, em poucos anos, essa estratégia virou algo comum para a direita populista em muitos países.

    Todas as religiões estão um pouco atravessadas pela questão da secularização [processo no qual a religião perde influência sobre as diversas esferas da vida social] e são reutilizadas de forma nostálgica e instrumentalizada, seja por parte do populista de direita europeu ou do jovem jihadista que não tem ideia nenhuma do que é o islã e depois se dá conta de que aquela é a sua identidade e se casa com ela. Não se trata de radicalização do islã, mas da islamização do radicalismo. Agora acontece algo semelhante com o catolicismo. Qualquer um pega um pedaço que lhe é mais cômodo e utiliza. Contradizem uma história etnográfica, teológica, doutrinária, mas isso não é importante para esses líderes.

    Você descreve estratégias de radicalização a partir do cristianismo que acabaram adaptadas às realidades de cada país. Não há um coordenador por trás disso?

    As semelhanças entre os países são muitas. Utilizam palavras de ordem e referências que demonstram uma certa coordenação. A ideia de fazer o livro surgiu após eu escrever sobre a coincidência de vários políticos se referirem à Nossa Senhora de Fátima. Salvini usa a santa para defender a eleição de seus aliados. Mais ou menos no mesmo dia [de maio de 2019], Bolsonaro participou de uma cerimônia em Brasília com um grupo de parlamentares católicos ao lado de Nossa Senhora de Fátima. Depois Viktor Orbán e seu chefe de gabinete falam de Fátima. Então logo você entende que isso não é casual. Há uma coordenação. Há toda uma história sobre Nossa Senhora de Fátima, que funcionou como um ímã de toda a mitologia política anticomunista do século passado. A imagem dela foi bastante utilizada politicamente, sobretudo por Salazar [António de Oliveira Salazar, ditador português], que citava frequentemente os três “Fs”, futebol, fado e Fátima.

    A conclusão que cheguei é que há uma coordenação entre um grupo de ideólogos, que se encontram em eventos, em Roma, onde ocorreu um em fevereiro, em Budapeste, onde houve um encontro dos cristãos perseguidos. Eles se conhecem, trocam informações. O filho de Bolsonaro [o deputado federal Eduardo Bolsonaro] encontra Salvini, Orbán se encontra com o chefe de gabinete de Trump. Há uma rede. Esses políticos têm estrategistas que elaboraram as ideias. Acho errado reduzir tudo a um grande arquiteto, uma pessoa que está por trás de tudo. É quase uma teoria da conspiração que agrada tanto a esses populistas de direita.

    Quando exatamente começa essa exploração do cristianismo?

    Simplificando, começa com a crise da globalização, a crise econômica de 2008. Esse coordenação será compreendida ao longo dos anos. Depois, em 2015, vem a crise da imigração na Europa. É um processo longo e complexo.  Se olharmos para políticos como Salvini, Putin e Bolsonaro, vamos ver que a conversão deles acontece de maneira muito rápida. Eles tomam esse caminho de forma muito superficial. Por exemplo, Salvini, na Itália, não tem nenhum background católico. Nunca foi interessado em religião, não vai à missa. Salvini usa com frequência um rosário, que ele nunca rezou. Não são políticos interessados nos ensinamentos da igreja, muito menos em temas como o acolhimento aos imigrantes, tão caro ao papa. Trata-se de uma evolução muito diferente da agenda teocon conservadora que esteve em moda durante o governo de George W. Bush nos EUA e de [Silvio] Berlusconi na Itália.

    Agora, são mensagens dirigidas a um eleitorado perdido, seja por causa da secularização, de uma sociedade multicultural, com uma mistura de pessoas de diferentes etnias e religiões, onde o percentual de católicos é cada vez menor. De frente a essa mudança de panorama sócio-etno-religiosa, há um pedaço da sociedade, na Itália e também em outros países, que reconhece nesses símbolos religiosos da extrema direita qualquer coisa de confortável. Os ideólogos entenderam que esse é um caminho a ser explorado. O cristianismo é uma linguagem que mais ou menos todos entendem, há uma referência cultural, traz um senso de identidade, mesmo se a maioria do eleitorado não frequenta a igreja. O referimento tem pouco a ver com a fé cristã, funciona mais como marcador identitário. Isso se tornou forte nos últimos anos e tenho a convicção de que vai aumentar com a pandemia.

    Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo, como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa.

    Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário. Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo, vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do terceiro milênio].

    Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir, será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em 2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

    O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-se um conflito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um alvo e também um ponto de observação privilegiado.

    Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do nazismo).

    Esse papa criou condições para um movimento que representa uma contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como João Paulo II e Bento XVI, pontífices que deixaram de lado os pontos do concílio e que fizeram alianças conservadoras.

    Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu pontificado. Essa mudança aconteceu significativamente após a eleição de Trump. A oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os opositores ficaram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um pedido de demissão de Bergoglio.

    O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita?

    A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco.

    Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes financiando-a, mas também mantendo contatos com cardeais contrários.

    Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre como enfrentar o papa.

    Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo, como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa.

    Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário. Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo, vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do terceiro milênio].

    Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir, será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em 2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

    O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-se um conflito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um alvo e também um ponto de observação privilegiado.

    Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do nazismo).

    Esse papa criou condições para um movimento que representa uma contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como João Paulo II e Bento XVI, pontífices que deixaram de lado os pontos do concílio e que fizeram alianças conservadoras.

    Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu pontificado. Essa mudança aconteceu significativamente após a eleição de Trump. A oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os opositores ficaram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um pedido de demissão de Bergoglio.

    O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita?

    A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco.

    Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes financiando-a, mas também mantendo contatos com cardeais contrários.

    Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre como enfrentar o papa.

    O papa Francisco se move bem nessa história? Ele já fez críticas aos populistas da direita, mas muitas vezes parece tomar distância e não é muito incisivo, sobretudo em relação a líderes como Bolsonaro e Trump.

    É verdade, mas acho que ele foi mais direto em relação a Bolsonaro. Ele escreveu uma carta para Lula [quando o ex-presidente estava preso], depois o recebeu em Roma. Enviou recentemente respiradores para o Brasil, dizendo ao núncio apostólico que no país havia um grande problema com o coronavírus. Ele falou certa vez numa homilia sobre como se faz um golpe, com acosso judicial, que depois é explorado pela mídia. Faltava só dizer nome e sobrenome, mas era claro para todo mundo que ele se referia à situação vivida por Dilma Rousseff.

    Acho que há pelo menos duas razões para explicar isso. Primeiro, o seu papel. Ele fala de maneira bastante direta, mas enquanto papa, não pode promover uma guerra do Vaticano contra Estados Unidos ou Brasil. Depois, ele é uma autoridade espiritual, não política. O papa dá indicação de fundo moral, mas o Vaticano já aceitou a diferença entre Igreja e estado faz tempo. A Igreja não vai entrar em questões político-partidárias, esse é um ponto saudável da separação entre estado e Igreja.

    E acho que existe também uma decisão de salvar a unidade da Igreja. Ele inclusive diminuiu um pouco a velocidade das reformas que estava promovendo para preservar essa unidade. Francisco entendeu que dentro e fora há o risco de uma ruptura, um cisma, pequeno ou grande, mas existe o risco. E um dos papéis do papa é preservar a unidade da Igreja. Bolsonaro, Trump ou Putin são referências para uma parte de cardeais, monsenhores e bispos, e também para uma parcela dos fiéis, que vê a modernidade como um incômodo e critica os imigrantes. O papa vai para outro lado, mas não pode ignorar um pedaço do mundo católico.

    Uma eventual derrota de Trump neste anos é esperada como portadora de novos ares, principalmente no Brasil. Se isso ocorrer, mudará também a dinâmica no Vaticano?

    Sim, mudaria o mundo e também o Vaticano. Há quatro anos, esse papa parecia realmente sozinho. Ele iniciou o pontificado com grande apoio popular, depois começam as eleições que praticamente deixaram Bergoglio sozinho ao falar sobre China, islã, imigrantes etc. Mas alguma coisa aconteceu nos últimos anos. O jornal Financial Times, ainda antes do coronavírus, falava da crise do capitalismo, da desigualdade. Quando o papa escreveu a Laudato Sì [encíclica ecológica divulgada em 2015], ele era uma pessoa bastante isolada nessa questão ambiental. Agora tem a Greta Thunberg, goste-se ou não dela. O coronavírus criou, em quem quer entender, uma consciência sobre a relação com o meio ambiente, o tempo, o consumo. Nos últimos anos, Francisco passou a estar menos isolado. Esse papa sabe muito de política, de política externa, e ele levou seu papado para fora da Europa. Mas houve uma coincidência com a chegada de todas essas questões da extrema direita a Roma.

    Este artigo se encontra em https://theintercept.com/2020/07/27/entrevista-direita-populista-usa-cristianismo-para-criar-sentido-comum-e-respeitabilidade/

  • VIVAT BRASIL – Nota de repúdio à política do governo brasileiro no atendimento aos povos indígenas e às comunidades tradicionais durante a pandemia covid-19

    Nós, VIVAT BRASIL, com mais de 1.200 integrantes das 13 Congregações Religiosas associadas (Sociedade do Verbo Divino, Missionárias Servas do Espírito Santo, Congregação do Espírito Santo, Irmãs Missionárias do Espírito Santo – Espiritanas, Congregação das Irmãs da Santa Cruz, Missionários Combonianos do Coração de Jesus, Irmãs Missionárias Combonianas, Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu – Scalabrinianas, Missionários Oblatos de Maria Imaculada, Congregação das Irmãzinhas da Assunção, Irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo, Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos) e Irmãs Missionárias do Santo Rosário),   manifestamos nossa solidariedade aos Povos Indígenas e às comunidades tradicionais, especialmente da Amazônia brasileira, pela perseverante luta e constante resistência em defesa da vida e da ecologia integral, diante da situação atual de desgoverno do País, seja em nível social, político, econômico e ambiental.

    Nos juntamos com a voz da CNBB, que no dia 13 de julho lançou uma carta aberta, pedindo a “aprovação pelo Congresso Nacional do Plano emergencial (PL 1142/2020), derrubando os 16 vetos do Presidente no que refere ao enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais”.

    Com profunda indignação, repudiamos a atual política do governo nos seguintes aspectos:

    Desrespeito aos Povos Indígenas da Amazônia diante da atual situação de calamidade pública. No Brasil, a Covid 19 já atingiu 143 etnias, contaminando 16.656 indígenas, dos quais 542 já morreram, segundo dados publicados na Folha de São Paulo (“Os militares e o genocídio indígena” – 21 de julho) e confirmados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Devido à conhecida vulnerabilidade dos povos indígenas, o Estado deveria ter evitado que o vírus chegasse às aldeias, mas, ao contrário, não tomou nenhuma providência para evitar que garimpeiros, madeireiros e grileiros invadissem as terras indígenas, levando a contaminação. Neste contexto, é ainda mais grave a atitude genocida do Presidente Bolsonaro que vetou o fornecimento de água potável, alimentos e leitos hospitalares às populações tradicionais. O próprio Papa Francisco recorda que a água “é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (Laudato Si, n. 30).

    A situação é tão grave que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no dia 20 de julho, notificou o governo Brasileiro com medidas cautelares, a dar proteção aos Povos indígenas Yanomami e Ye’kwana em Roraima.

    Omissão do Governo Brasileiro que, mesmo diante da pandemia, mantém há mais de 60 dias o Ministério da Saúde sem um Ministro para liderar o enfrentamento do coronavírus no país.

    Falta de respeito com as culturas indígenas quanto ao ritual de velório e funeral das vítimas da Covid-19. Muitos indígenas estão sendo enterrados sem notificação a seus parentes e, em muitos casos, não é registrado no atestado de óbito que são indígenas. Além do mais, é negado o direito de levar o corpo para suas aldeias mesmo com o compromisso de obedecerem às orientações sanitárias.

    Omissão dos órgãos federais na fiscalização da grilagem de terras públicas, invasão de garimpeiros, desmatamento provocado por madeireiros, pecuaristas e agronegócio da soja. Segundo o INPE, de agosto de 2019 a 10 de julho de 2020, a degradação na Amazônia legal aumentou em 64%, somando um total de 7.540 km² de área desmatada.

    Diante da urgência de defesa da vida dos povos indígenas e das comunidades tradicionais na Amazônia, inclusive com doações de qualquer espécie estamos dispostos a encaminhar para as localidades mais afetadas. Assim, alçamos nossas vozes como grito de protesto à omissão do governo Bolsonaro e manifestamos nossa solidariedade a todos os defensores e defensoras do povo, que lutam e contribuem para amenizar tanto sofrimento. Por isso, fazemos memória aos mártires como Pe. Ezequiel Ramin (35 anos) e Ir. Dorothy Stang (15 anos) em nome de todos que deram suas Vidas pela Vida, Vidas pelo Reino e Vidas pela Amazônia. Assim, a VIVAT BRASIL se une com todas as pessoas e suas organizações sociais e pastorais em defesa da vida e da ecologia integral para o BEM VIVER em nossa CASA COMUM.

    VIVAT BRASIL, 24 DE JULHO DE 2020.

  • Realmar a economia pela comunhão dos povos – Eduardo Brasileiro e Gabriela Consolaro

    Foto de Ismael dos Anjos, publicada em Diário do Aço, 23/10/2018, quando a tragédia de Mariana completou três anos.
    Hoje, o Papa Francisco nos convida a realmar a Economia. Da mesma forma, como os apóstolos que olharam ao redor e questionaram com dúvidas como seria possível alimentar uma infinidade de pessoas no meio de um deserto, nós também nos deparamos com as incertezas. 

    Realmar a economia pela comunhão dos povos

    Por: Eduardo Brasileiro e Gabriela Consolaro, publicado em CNLB, 23/07/2020

    “Ser humano é buscar a espiritualização
    de todas as dimensões da existência.” (Frei Betto)

    1. A PARTILHA

    Ao fomentar a partilha e, assim, alimentar uma multidão cansada e incrédula, Jesus, por meio da multiplicação dos pães, mais que perpetuar um milagre, apresenta uma proposta. Quando caminha junto de milhares de pessoas que o seguem e acreditam nas palavras de paz e justiça que propõe, o Mestre indica o seguimento da humildade, solidariedade e fraternidade. Na vivência fiel aos ensinamentos que prega, olha o povo com compaixão, temendo que desfaleçam pelo caminho (Mt 15, 32).

    A mesma realidade encontramos hoje. Uma multidão cansada de lutar para sobreviver em um sistema falido, que até aqui matou, excluiu e degradou, se encontra incrédula e com medo de deixar esvair pelas mãos a vida num futuro próximo. Mais uma vez, o Pastor olha com compaixão aos discípulos fatigados e chama a um momento novo: de partilha, comunhão e esperança. Convida a trilhar o caminho para a saciedade, a suficiência, a convivência entre irmãs e irmãos na busca da construção do Bem Comum.

    Hoje, o Papa Francisco nos convida a realmar a Economia. Da mesma forma, como os apóstolos que olharam ao redor e questionaram com dúvidas como seria possível alimentar uma infinidade de pessoas no meio de um deserto, nós também nos deparamos com as incertezas. Deus nos mostra, de novo, que o milagre reside na partilha, na construção coletiva, na comunhão entre povos que escolhem acreditar na construção de novos paradigmas – por vezes tomados como radicais, mas que só assim são capazes de responder à radicalidade da normalização da morte, da exclusão e da desigualdade.

    A partir da realidade posta, Jesus e seus discípulos organizam a multidão, reúnem as ofertas do povo, suscitam a partilha para todos comerem e saírem saciados. O chamado para a construção da Economia de Francisco e Clara busca dar uma nova perspectiva aos que hoje sofrem com a marginalização de um sistema voltado ao lucro. Com a certeza de uma origem comum, uma pertença recíproca e um futuro partilhado (LS 202), os pães são postos na mesa em uma comunhão entre os povos, para que, outra vez, todos comam e se sintam saciados.

    2. O ENCONTRO

    No caminhar conjunto, Deus não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-lo no chão da realidade. O Papa Francisco, em 2015, no encontro com os movimentos populares em Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), aclamou aos povos se unirem em três grandes tarefas.

    A primeira, uma economia a serviço dos povos, retoma o lugar da economia como cuidado da casa no desafiante contexto de encontrar na própria humanidade a possibilidade de recompor um sistema que gere vida e não exclua. Uma economia biocentrada, retoma o chamado da relação ampla com os seres e não fixada no lucro. A segunda, que é a união dos povos no caminho da paz e da justiça, provoca o lugar de poder na sociedade capturado pelos mercados, corporações e elites e o devolve ao povo, como “artífice do seu próprio destino”. A última tarefa apresentada pelo Papa Francisco nos convida a defender a nossa irmã, Mãe Terra. Substituindo a compreensão de dominação humana, nos coloca como elementos da Criação, subvertendo a lógica de apropriação e degradação das vidas.

    O encontro é um lugar da genuína alegria. Nele, a espiritualidade humana se descobre misturada aos diversos tons que compõem a fraternidade universal. Na pluralidade que, com sede de justiça e fome de paz, se descobre artesã do novo tempo em encontros coletivos, em formulações políticas, em incidência territorial, em potencialização de vozes silenciadas, para assim construir uma aldeia de justiça que é totalmente contra a sociedade marcada pelo medo, ódio e indiferença.

    3. O PACTO

    A sociedade globalizada pela indiferença viu o projeto de poder estabelecido pelo neoliberalismo ruir o tecido que sustenta a humanidade. Fraturando o bem comum que estabelece a relação comunitária e de partilha privatizou todas as dimensões do nosso convívio. Estabelecendo a competição e o lucro como essência de governos, empresas e famílias, foram forjados homens e mulheres tomados pela mentalidade empresarial e afastados de suas relações com todas as outras formas de vida.

    Portanto, mais que crises separadas, o que ocorre diante das crises atuais – com o trabalho, com a democracia, com a fome – faz parte do conjunto de iniciativas que destituíram do poder e exaurem diariamente a humanidade e a Terra. A Economia de Francisco e Clara nos convida a fiar o tecido de uma nova cultura e um/a novo/a homem e mulher. Esse contraponto exige a superação daquilo que o sociólogo coreano Byung Chul Han apontou ser uma sociedade produtora de uma vida feliz que nega toda complexidade da vida humana e massacra a humanidade com um padrão: a ideologia de felicidade baseada exclusivamente no enriquecimento individual não contribuindo na afirmação de uma cultura e de instituições democráticas.

    A afirmação de uma economia na complementaridade das relações toma fôlego por inúmeras iniciativas já existentes no mundo, presentes na Economia Solidária, por exemplo, que restitui o lugar da solidariedade como mote das relações de troca e compra. O reconhecimento da economia pelo suficiente que considere as relações com a vida do Planeta, tirando a lógica do lucro e emergindo a lógica do ser. Uma economia pela proximidade que ambienta a necessidade de superação do modelo de finanças globais que produzem dinheiro para enriquecimento individual e passemos para modelos diversos que não unifiquem, mas que planificam a diversidade cultural e econômica do planeta.

    Um novo humanismo é a emergência de uma sociedade em redes, que partilha e coopera no autocentramento comunitário. Assim, as comunidades se empoderam de uma espiritualidade capaz daquilo que diz a exortação do Papa Francisco, ‘Evangelii Gaudium’: “encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (24), para construir o pacto global por novas economias.

    Gabriela Consolaro, selecionada para o evento em Assis, é Secretária Nacional de Formação da JUFRA – Juventude Franciscana do Brasil.

    Eduardo Brasileiro, selecionado para o evento em Assis, é membro do coletivo de Paróquias da Zona Leste de São Paulo: IPDM – Igreja Povo de Deus em Movimento.

     

     

  • Documentário mostra como torcidas organizadas lideraram protestos contra Bolsonaro

    Desde o fim do mês de maio, membros de torcidas articularam manifestações que se espalharam pelo país. Ocuparam as ruas em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília, e em outros diversos estados brasileiros. Na pauta, questionavam a política do governo para a pandemia do coronavírus e levantaram a bandeira antirracista e a favor da democracia.

    O documentário “Protesto Futebol Clube” acompanhou esses manifestantes ao longo de quatro semanas para entender o fenômeno político, a relação histórica das organizadas com a luta pela democracia e as tensões entre torcedores de times diferentes dentro do movimento.

  • Leonardo Boff – O princípio da auto-destruição e o combate ao Covid-19

     

    Depois que se lançaram duas bombas atômicas primárias sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, a humanidade criou para si um pesadelo do qual não consegue mais se libertar. Ao contrário, ele se transformou numa realidade ameaçadora de nossa vida sobre este planeta e a destruição de grande parte do sistema-vida.

    Criaram-se armas nucleares muito mais destrutivas, químicas e biológicas que podem destruir nossa civilização e afetar profundamente a Terra viva. Pior ainda, projetamos a inteligência artificial autônoma. Com seu algoritmo que combina bilhões de informações, recolhidas de todos os países, pode tomar decisões sem que nós saibamos. Pode eventualmente, numa combinação enlouquecida, como já assinalamos anteriormente, penetrar nos arsenais das armas nucleares ou de igual ou maior potência letal e deslanchar uma guerra total de destruição de tudo o que existe, inclusive de si mesma. É o princípio da auto-destruição. Vale dizer, está nas mãos do ser humano pôr fim à vida visível que conhecemos (ela é só 5% as 95% são vidas microscópicas invisíveis). Assenhoreamo-nos da morte. E ela pode ocorrer a qualquer momento.

    Já se criou uma expressão para nomear esta fase nova da história humana, uma verdadeira era geológica: o antropoceno, vale dizer, o ser humano como a grande ameaça ao sistema-vida e ao sistema-Terra.

    O ser humano é o grande satã da Terra, aquele que pode dizimar, como um anti-cristo a si mesmo e os outros, seus semelhantes, além de liquidar com as bases que sustentam a vida.

    A intensidade do processo letal é de tal ordem que já se fala da era do necroceno. Quer dizer, a era da produção em massa da morte. Já estamos dentro da sexta extinção em massa. Agora é acelerada de forma irrefreável, dada a vontade de dominação da natureza e de seus mecanismos, da agressão direta à vida e à Gaia, a Terra viva, em função de um crescimento ilimitado, de uma acumulação absurda bens materiais a ponto de criar a Sobrecarga da Terra.

    Em outras palavras, chegamos a um ponto em que a Terra não consegue repor os bens e serviços naturais que lhe foram roubados e começa a mostrar um avançado processo de degeneração através dos tsunamis, tufões, degelo das calotas polares e do parmafrost, as secas prolongadas e as nevascas aterradoras e o surgimento de bactérias e vírus de difícil controle. Alguns deles como o Covid-19 pode levar à morte milhões de pessoas.

    Tais eventos são reações e até represálias da Terra face à guerra que conduzimos contra ela em todas as suas frentes. Essa morte em massa ocorre na natureza, com milhares de espécies vivas que desaparecem definitivamente por ano e também nas sociedades humanas com milhões que padecem fome, sede e toda sorte de doenças mortais.

    Cresce mais e mais a percepção geral de que a situação da humanidade não é sustentável. A continuar nessa lógica perversa, vai construindo um caminho na direção de nossa própria sepultura.

    Demos um exemplo: no Brasil vivemos sob a ditadura da economia ultra neoliberal com uma política de extrema direita, violenta e cruel para as grandes maiorias pobres Perplexos, assistimos as maldades que foram feitas, anulando direitos dos trabalhadores e internacionalizando riquezas nacionais que sustentam nossa soberania como povo.

    Os que deram o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff em 2016 aceitam a recolonização do país, feito vassalo da potência dominante, os USA, condenado a ser apenas um exportador de commodities e um aliado menor e subalterno do projeto imperial.

    O que se está fazendo na Europa contra os refugiados, rejeitando sua presença na Itália e na Inglaterra e pior ainda na Hungria e na catolicíssima Polônia, alcança níveis de desumanidade de grande crueldade. As medidas do Presidente norte-americano Trump arrancando os filhos de seus pais imigrantes e colocando-os em jaulas, denota barbárie e ausência de qualquer senso humanitário.

    Já se disse, “nenhum ser humano é uma ilha… por isso não perguntem por quem os sinos dobram. Eles dobram por cada um, por cada uma, por toda a humanidade”.

    Se grandes são as trevas que se abatem sobre nossos espíritos, maiores ainda são as nossas ânsias por luz. Não deixemos que essa demência acima referida detenha a última palavra.

    A palavra maior e última que clama em nós e nos une a toda a humanidade é por solidariedade e por com-paixão pelas vítimas, é por paz e sensatez nas relações entre os povos.

    As tragédias dão-nos a dimensão da inumanidade de que somos capazes. Mas também deixam vir à tona o verdadeiramente humano que habita em nós, para além das diferenças de etnia, de ideologia e de religião. Esse humano em nós faz com que juntos nos cuidemos, juntos nos pomos em cooperação, juntos choremos, juntos nos enxuguemos as lágrimas, juntos oremos, juntos busquemos a justiça social mundial, juntos construamos a paz e juntos renunciemos à vingança e todo tipo de violência e guerra.

    A sabedoria dos povos e a voz de nosso coração nos testemunham: Não é um Estado que se fez terrorista como os Estados Unidos sob o Presidente norte-americano Bush que irá vencer terrorismo. Nem é ódio aos imigrantes latinos difundido por Trump que trará a paz. É o diálogo incansável, a negociação aberta e o acordo justo que tiram as bases de qualquer terrorismo e fundam a paz.

    As tragédias que nos atingiram no mais fundo de nossos corações, particularmente a pandemia viral que afetou todo o planeta, nos convidam a repensarmos os fundamentos da convivência humana na nova fase, planetária, e como cuidar da Casa Comum, a Terra como o pede o Papa Francisco em sua encíclica sobre a ecologia integral, “sobre o cuidado da Casa Comum” (2015).

    O tempo é urgente. Desta vez não haverá um plano B, capaz de salvar-nos. Temos que nos salvar todos, pois formamos uma comunidade de destino Terra-Humanidade.

    Para isso precisamos abolir a palavra inimigo. É o medo que cria o inimigo. Exorcizamos o medo quando fazemos do distante um próximo e do próximo, um irmão e uma irmã. Afastamos o medo e o inimigo quando começamos a dialogar, a nos conhecer, a nos aceitar, a nos respeitar, a nos amar, enfim, numa palavra, a nos cuidar; cuidar de nossas formas de convívio na paz, na solidariedade e na justiça; cuidar de nosso meio ambiente para que seja um ambiente inteiro, sem destruir os habitats dos vírus que nos vêm dos animais ou dos arborovírus que se situam nas florestas, ambiente este no qual seja possível o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser; cuidar de nossa querida e generosa Mãe Terra.

    Se nos cuidamos como a irmãos e a irmãs, desaparecem as causas do medo. Ninguém precisa ameaçar ninguém. Podemos caminhar à noite por nossas ruas sem medo de sermos assaltados e roubados.

    Esse cuidado será somente efetivo se vier acolitado pela justiça necessária, pelo atendimento às necessidades básicas dos mais vulneráveis, se o Estado se fizer presente com saúde (a importância que o SUS mostrou face ao Covid-19, com escolas, com segurança e com espaços de convivência, de cultura e lazer).

    Só assim gozaremos de uma paz possível de ser alcançada quando houver um mínimo de boa vontade geral e um sentido de solidariedade e de benquerença nas relações humanas. Esse é o desejo inarredável da maioria dos humanos. É essa lição que a intrusão do Covid-19 nos está dando e que temos que incorporá-la nos nossos hábitos nos tempos pós-coronavírus.

     

  • Pedro Ribeiro de Oliveira – Análise de Conjuntura

    Imagem: besthqwallpapers

    Neste momento de pandemia, em que os fatos parecem se atropelar, é quase impossível fazer uma análise abrangente da realidade. Mas não podemos perder de vista a realidade global, porque somos apenas uma parte dela. Por isso, arrisco-me a publicar este texto pensado para os tempos de comunicação por internet, quando a maioria das pessoas (inclusive eu) não leem com atenção mais do que três páginas.

    Há que se distinguir três âmbitos estruturais no tempo e no espaço: (1) a Terra e sua comunidade de vida, com seu tempo longo, medido por séculos; (2) o sistema-mundo capitalista, com seu tempo histórico, medido por décadas e (3) o Brasil social, político, cultural e econômico, com seu tempo conjuntural, medido por semanas.

    • A realidade do Brasil é determinada pela conjuntura do sistema-mundo (a médio prazo) e pelo estado da Terra (a longo prazo). Só para fins de análise separam-se as diferentes conjunturas.
    1. A Terra e sua comunidade de vida

    A comunidade científica prevê que a catástrofe climático-ambiental deverá ocorrer até 2050, se não forem tomadas as medidas urgentes, mas poucos são os Estados que cumprem os compromissos do Acordo de Paris, assinado em 2015, por 195 países. Essa catástrofe vai dizimar a espécie humana e provocará mudança radical no modo de produção e de consumo e o esfacelamento dos Estados nacionais.

    Cabe a nós, hoje, pensar e preparar um modo de produção pós-catástrofe e pós-capitalista, para evitar a guerra de todos contra todos e – na melhor das hipóteses – criar uma civilização planetária onde comunidades territoriais vivam em harmonia entre si e com a Terra. Para isso, é preciso ter presente que:

    • a Terra com sua comunidade de vida é sujeito da história, não é coisa,
    • questão ambiental é questão política,
    • tempo da Terra é longo (2 séculos são quase nada),
    • não é mais possível crescimento econômico de longo prazo.
    1. Sistema-mundo capitalista em crise.

    A atual crise econômica é um repique da crise da bolha financeira de 2008, fortemente agravada pela pandemia do covid-19. É o fim do ciclo de acumulação capitalista puxado pelos EUA no século 20. Abre-se o período de transição para um novo ciclo. Sinais dessa crise são o fim do desenvolvimentismo no Sul global e o fechamento das economias do Norte global. Resultado: Megacorporações ganham mais poder (inclusive sobre os Estados nacionais), a riqueza concentra-se em 1% da população humana – as classes opulentas – enquanto a pobreza e a miséria só aumentam.

    • desde o século 15 as transições no sistema-mundo seguem o mesmo padrão: financeirização do capital > “destruição criativa” = guerra > mudança de centro.

    Aplicando-se esse padrão, estamos no momento das guerras. Conforme o tipo de armamento utilizado, distinguem-se 3 formas: (1) guerras localizadas, étnicas, contra drogas; (2) guerras de 4ª geração ou híbridas e (3) nuclear, com a provável extinção da espécie humana.

    • Na dimensão geopolítica, o mundo tende a ser repartido entre 3 potências polo:
      EUA + União Europeia, Rússia e China.
    • Na dimensão econômica o sistema-mundo capitalista passará a ter centro a China, que hoje promove a nova rota da seda. Será um capitalismo verde = precificação dos danos ambientais, e de 5ª geração = 4ª revolução industrial (informática) + controle social por tecnologia 5G e Inteligência Artificial.
    • Na dimensão cultural, é o fim da hegemonia de civilização ocidental moderna. Ao mesmo tempo que o mundo se desvencilha de seu colonialismo, seu supremacismo, seu especismo e outros vícios históricos, arrisca perder seu humanismo de inspiração cristã, sua ética universalista, a democracia como valor universal, e o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade.
    • Na dimensão política, é o neoliberalismo em ruinas (Wendy Brown): após combater o Estado social, ele cede o lugar a regimes autoritários com ideologia tosca e tradicionalista (família, religião e propriedade) > totalitarismo do mercado enquanto os Estados nacionais em declínio se enrijecem.

    Na contramão dessas tendências destrutivas, pode-se perceber uma novidade:

    • Novos movimentos – de jovens e adolescentes; de povos originários; contra o racismo; pelos direitos LGBTs; de trabalhadores/as precarizado/as, e outros – se difundem pelo mundo. Importante: o protagonismo feminino nesses movimentos e seu jeito de fazer política com arte.
    1. A conjuntura brasileira

    Em 2002 o PT fez um pacto com as classes opulentas, constituídas por cerca de 71,5 mil declarantes de Imposto de Renda com rendimentos mensais superiores a 160 salários-mínimos (dados de 2013). Elas permitiram a Lula um governo social-desenvolvimentista, mas sem realizar reformas estruturais (agrária, fiscal, política, etc) nem auditar a dívida pública. A crise econômica de 2008 e suas consequências geopolíticas levou as classes opulentas em 2014 a romper esse pacto e buscar uma coalizão com corporações e o aparato de segurança dos EUA para dar outro rumo político ao Brasil. Com a imprescindível colaboração do Poder Judiciário, o PT foi trocado por Temer, com a missão de privatizar a exploração do petróleo e alinhar-se politicamente aos EUA, conforme o Programa Uma ponte para o futuro.

    O governo Temer cumpriu a missão que lhe foi atribuída, mas não conseguiu fazer sucessor. As classes opulentas renderam-se então a Bolsonaro, com suas milícias (digitais e armadas), os militares corporativistas e sua tosca ideologia ultradireitista, para garantir Paulo Guedes e sua política de privatizações e de demolição do Estado de proteção social. O problema é que hoje Bolsonaro, incompetente diante da pandemia, com um ministério de baixíssima qualidade, incentivando o arraso ambiental e mais ocupado em defender seus filhos do que governar, tornou-se um estropício para quem tem a pretensão de constituir a elite do BrasilAqui situa-se a atual correlação de forças:

    • A mídia corporativa (Globo, Folha, Estadão e outros), que expressa os anseios do capital financeiro e do capital produtivo (agronegócio, indústria e serviços) quer livrar-se de Bolsonaro sem mudar a política econômica representada por Paulo Guedes. Tal propósito fica evidente na ausência de críticas à política econômica e aos militares que cercam o presidente para evitar estragos no comércio com a China e em outros pontos de interesse econômico.
    • Bolsonaro, porém, conta com total apoio do capital de rapina, que quer apossar-se de terras públicas, territórios indígenas e recursos naturais (Amazônia, água, garimpo). Protegido por grupos fascistas, religiosos de direita e grupos de ódio, ele tem uma base de apoio fiel, aparentemente disposta a matar ou morrer.
    • As grandes instituições políticas – Governos estaduais, Judiciário e Congresso – estão fragilizados pela cooptação de boa parte de seus membros (caso do Centrão).
    • As grandes Entidades da sociedade civil continuam quase imobilizadas por medo de retorno da esquerda ou de divisões internas (caso da CNBB).

    No polo oposto às classes opulentas, onde situam-se os grupos e setores
    oprimidos, empobrecidos ou socialmente discriminados, pode-se ver:

    • Resiliência de antigos Movimentos Sociais (Povos Indígenas, Partidos de esquerda, Sindicatos, MST, Mulheres, Negros etc) e emergência de novos movimentos em forma de coletivos (adolescentes, precarizados, LGBTs, antifas etc);
    • Oposição de intelectuais, artistas, estudantes e religiosos à necropolítica;
    • Manifestações de rua: movimentos antifas, antirracista, contra a violência (policial, à mulher e outras formas), com respaldo nas redes sociais e panelaços;
    • Ação de bancadas no Congresso, setores do Judiciário e alguns Governos estaduais;
    • Disseminação da economia solidária como alternativa à economia capitalista;
    • Sociedade civil se mobiliza: ações de solidariedade na pandemia em muitos setores;
    • Setores de Igrejas cristãs (inclusive bispos, padres e pastores) contra a necropolítica.

    Conclusão

    Neste tempo de incertezas decorrentes da pandemia, muita gente pergunta o que virá depois, esta análise não é alentadora. O “novo normal” que se desenha hoje repousa sobre a concentração ainda maior de poder e riquezas na minoria opulenta, que beneficiada pelo desmonte político e ideológico operado pelo neoliberalismo, não tem oponentes suficientemente fortes para dar outro rumo ao capitalismo concentrador de riqueza e predador do Planeta. Os governos ultradireitistas estão a serviço de sua ofensiva contra a Terra e os Pobres e só serão descartados quando for hegemônico o capitalismo de 5ª geração, com sua política de controle social por Inteligência Artificial e sua produção regida pela informática. Será a vitória definitiva do Capital sobre o Trabalho.

    O prognóstico, porém, pode ser inteiramente diferente se as classes e grupos oprimidos recuperarem seu protagonismo político, revertendo assim a vitória neoliberal do final do século 20. Vejo 3 grandes forças nesse sentido:

    • Consciência de serem os oprimidos e oprimidas sujeitos da própria libertação (Paulo Freire, Teologia da Libertação, Leitura popular da Bíblia, etc);
    • Retomada da democracia como valor universal, que ultrapassa os processos eleitorais e deve reger também a vida econômica e a produção do saber;
    • Desenvolvimento da economia solidária – talvez na forma da Economia de Francisco e Clara – como modo de produção e consumo pós-capitalista também em âmbito macroeconômico e planetário.
    • Enfim, o “novo normal” virá das periferias, com a sabedoria do Bem-Viver. Mas até chegar teremos pela frente muitas lutas, perdas e mortes. Mas a Esperança vence todo desalento, porque o bispo-poeta Pedro Casaldáliga já proclamou: “somos combatentes derrotados de uma causa invencível”.

    Vitória – ES, 9 de julho de 2020

    • Publicado originalmente no site do Movimento Nacional Fé e Política.
  • Leonardo Boff – a mãe que virou beija-flor para libertar a filhinha

    Leonardo Boff – Em homenagem aos indígenas: a mãe que virou beija-flor para libertar a filhinha

    Amigos/as,
    Estou enviando este belo mito indígena
    em homenagem aos muitos deles
    que estão morrendo de covid-19.
    Abraço desesperançado deste governo.
    lboff

    São muitos irmãos e irmãs nossos indígenas que estão morrendo por causa do Covid-19 e o descaso das políticas genocidas e etnocida do atual Governo.

    Dedico-lhes este belo mito-estória dos povos amazônicos sobre o sentido da morte e da entrada na suprema Felicidade. Ela vale também para os familiares dos milhares de falecidos por causa do Coronavírus. Eles merecem a nossa solidariedade e também nossas palavras de consolo.

    Sempre nos perguntamos: como as pessoas falecidas chegam ao céu? Há uma convicção entre os povos de que todos devem fazer uma viagem. Nessa viagem há provas a passar. Segundo este relato dos povos amazônicos, cada um deve se purificar, tornar-se leve para poder mergulhar para dentro daquele mundo de alegria e de festa onde estão todos os antepassados e os parentes falecidos.

    A nossa tristeza é que, por causa do descaso das atuais autoridades que desprezam e até odeiam os povos originários, muitos pajés estão morrendo, vítimas do Covid-19. Com eles desaparece uma inteira biblioteca de conhecimentos que eles herdaram, enriqueceram e sempre passam às novas gerações. Com sua morte há uma ruptura dolorosa dessa tradição. Eles e nós sofremos e ficamos mais pobres. A todos eles nossa profunda solidariedade e com-paixão, sofrendo também a dor que eles sofrem: LBoff

    Indígena usa mascara durante funeral do chefe Messias Kokama 53 do parque das tribos falecido devido a covid-19 em Manaus. 1589508291656_v2Em muitas tribos da Amazônia acredita-se que os mortos se transformam em borboletas. Durante o tempo necessário para a purificação, cada qual ganha uma forma adequada. As que se purificam logo, são alvíssimas, com poucas horas de vida e com cores brancas. Penetram diretamente no mundo da felicidade.

    As que precisam de mais tempo, são menores, leves e multicores. E as que precisam de muito tempo são maiores, pesadas e com cores escuras.

    Todas elas voam de flor em flor, sugando néctar e fortalecendo-se para carregar o próprio peso ao se alçarem ao céu, onde viverão felizes com todos os antepassados e parentes que estão apenas no outro lado da vida. Conta-se naquela floresta a seguinte estória:

    Coaciaba, era uma jovem índia, esbelta e de rara beleza. Ficara viúva muito cedo, pois seu marido, valente guerreiro, tombara sob uma flecha inimiga. Cuidava com extremo carinho da única filhinha, Guanambi.

    Para aliviar a saudade interminável do marido, passeava, quando podia, pelas margens do rio, vendo as borboletas ou na campina, perto do roçado, onde também esvoaçavam os colibris e outros insetos.

    De tanta tristeza, Coaciaba acabou morrendo. Não se morre só de doença, por velhice ou por causa de um vírus maligno da natureza. Morre-se também por saudade da pessoa amada.

    Guanambi, a filha, ficou totalmente sozinha. Inconsolável, chorava muito, especialmente, nas horas em que sua mãe costumava levá-la a passear. Mesmo pequena, só queria visitar o túmulo da mãe. Não queria mais viver. Pedia a ela e aos espíritos que viessem buscá-la e a levassem lá onde estivesse a sua mãe.

    De tanta tristeza, Guanambi foi definhando dia após dia até que também ela morreu. Os parentes ficaram muito penalizados, com tanta desgraça sobrevindo sobre a mesma família.

    Mas, curiosamente, seu espírito não virou borboleta como a dos demais índios da tribo. Ficou aprisionado dentro de uma linda flor lilás, pertinho da sepultura da mãe. Assim podia ficar junto da mãe, como havia pedido aos espíritos.

    A mãe Coaciaba, cujo espírito fora, sim, transformado em borboleta, esvoaçava de flor em flor sugando néctar para se fortalecer e encetar sua viagem ao céu.

    Certo dia, ao entardecer, ziguezagueando de flor em flor, pousou sobre uma linda flor lilás. Ao sugar o néctar, ouviu um chorinho triste e doce. Seu coração estremeceu e quase desfaleceu de emoção. Reconheceu dentro dela a vozinha da filha querida Guanambi. Como poderia estar aprisionada ai? Refez-se da emoção e disse:

    • Filha querida, mamãe está aqui com você. Fique tranquila que vou libertá-la para juntos voarmos para o céu.

    Mas deu-se logo conta de que ela era uma levíssima borboleta e que não teria forças para abrir as pétalas, romper a flor e libertar a filhinha querida. Recolheu-se, então, a um canto e, em lágrimas, suplicou ao Espírito criador e a todos os ancestrais da tribo:

    • Por amor ao meu marido, valente guerreiro, morto em defesa de todos os parentes, por compaixão de minha filha órfã, Guanambi, presa no coração da flor lilás, eu vos imploro, Espírito benfazejo e a vós todos, anciãos de nossa tribo: transformem-me num passarinho veloz e ágil, dotado de um bico pontiagudo para romper a flor lilás e libertar a minha querida filhinha.

    Tanta foi a compaixão despertada por Coaciaba que o Espírito criador e os anciãos da tribo atenderam, sem delongas, a sua súplica. Transformaram-na num belíssimo beija-flor, leve, ágil, que pousou imediatamente sobre a flor lilás. Sussurrou com voz carregada de enternecimento:

    • Filhinha, sou eu, sua mãe. Não se assuste. Fui transformada num beija-flor para vir libertá-la.

    Com o bico ponteagudo, foi tirando com cuidado pétala por pétala até abrir o coração da flor. Lá estava Guanambi sorridente, estendendo os bracinhos em direção da mãe.

    Purificadas e abraçadas voaram alto, cada vez mais alto até chegarem juntas ao céu.

    Desde então se introduziu entre indígenas amazônicos, o seguinte costume: sempre que morre uma criança órfã, seu corpinho é coberto de flores lilás, como se estivesse dentro de uma grande flor, na certeza de que a mãe, na forma de um beija-flor, venha buscá-a para, abraçadas, voarem para o céu, onde estarão eternamente juntas e felizes com todos os antepassados e com todos os demais parentes.

    Leonardo Boff reescreveu mitos-estórias de nossos povos indígenas:”O casamento entre o céu e a Terra”, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2014.

     

  • Frei Betto – O CARDEAL

    À porta do presídio o bispo é impedido de entrar. Só o arcebispo, que ali nunca esteve, tem passe-livre. Pouco depois, o arcebispo – que viu torturados, mas jamais acreditou em torturas – é removido para Roma. O papa nomeia para o seu lugar o bispo proibido de visitar os presos políticos. Do alto de seu novo múnus arquiepiscopal, o futuro cardeal, todo paramentado, apresenta-se à porta do presídio que, agora, se abre ao sopro da força do Espírito.

    O novo arcebispo sobe as escadas da galeria de celas, ouve atento as denúncias de maus-tratos, visita os frades dominicanos acusados de subversão, abençoa os que sofrem.

    Semanas depois, um dos frades é levado de volta às sevícias e, durante três dias, submerge no batismo de sangue, em comunhão com os mártires. O cardeal deixa a sua casa – pois vendera o palácio episcopal para construir centros comunitários na periferia – e vai ao presídio consolar o frade, cuja boca havia sido aberta para “receber a hóstia” de descargas elétricas, enquanto a pele ardia à brasa de cigarros.

    O cardeal ignora a advertência dos policiais e entra, sem pedir licença, numa delegacia de proteção da ordem política e social. Ninguém ousa barrá-lo, nem se atreve a acusá-lo de desacato à autoridade. O cardeal está de clergyman e caminha firme rumo ao subsolo, onde encontra um de seus padres sangrando em dores. Como quem teme mais a autoridade de Deus que a dos homens, o carcereiro mete a chave no cadeado e destranca os ferrolhos, permitindo que o cardeal toque as chagas do sacerdote descido há pouco do pau-de-arara.

    O jornalista judeu foi suicidado no mesmo local em que o frade havia sido espancado. O cardeal reage indignado e convoca os fiéis para a missa solene na catedral. Rabinos e empresários, empenhados em demover o cardeal, dirigem-se à casa dele e tentam convencê-lo da insensatez de um culto católico para um judeu assassinado. O cardeal retruca enfático: “Jesus também era judeu”. E abre a catedral à cerimônia fúnebre.

    O cardeal viaja quilômetros de carro para visitar prisioneiros afastados dos grandes centros urbanos, aceita mediar a greve de fome dos encarcerados, abre suas portas a familiares e advogados que vêm contar-lhe da mais recente vítima da ditadura. O cardeal telefona a generais e delegados, protesta junto ao presidente da República, informa ao papa o que se passa nos subterrâneos da história do Brasil.

    A ditadura agoniza e o cardeal, convencido de que não se deve repetir nunca mais esta página da história, escreve o mais contundente relato dos crimes do regime militar, Brasil, Nunca Mais. O livro alcança repercussão mundial e torna-se fator de interdição, em funções públicas, de muitos que acreditavam que a liberdade se esculpe a pauladas.

    O cardeal incomoda, com o seu profetismo, a própria Igreja. Sua arquidiocese é retalhada, restando-lhe o centro, enquanto seu coração permanece na periferia. Seu nome é suprimido das comissões vaticanas. O papa João Paulo II mostra-lhe o dossiê que a Cúria Romana preparara contra ele e atira-o no lixo. O cardeal dobra-se, apanha os papéis e pede ao papa que assine, para guardar de recordação.

    O cardeal se chamava Dom Paulo Evaristo Arns.

    * Forquilhinha, 14 de setembro de 1921 — +São Paulo, 14 de dezembro de 2016 (Imagem Fabio Braga/Folhapress).

     

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