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O TESTEMUNHO NO MUNDO PLURAL

Faustino Teixeira - publicação: 2004

 

O TESTEMUNHO NO MUNDO PLURAL

Faustino Teixeira – PPCIR-UFJF e Iser Assessoria

Introdução

Não é fácil abordar o tema do testemunho no mundo plural, sobretudo em razão dos desdobramentos da atual conjuntura eclesiástica,  marcada substancialmente pela afirmação da identidade e pelo temor da relativização. O acento recai na dinâmica do anúncio evangelizador explícito: é o que se percebe como recorrente nos documentos do magistério eclesial  mais recente. Um exemplo significativo podemos encontrar no documento da assembléia especial para a Europa do sínodo dos bispos, ocorrida em 1991.[1] A intenção desta assembléia era discernir o significado da nova evangelização da Europa, após a crise do sistema comunista. O projeto da nova evangelização vinha animado pelo estímulo da retomada das próprias raízes cristãs do velho continente. Na abordagem do significado da nova evangelização ficou bem evidenciado para os bispos a centralidade do anúncio:

Para a nova evangelização, portanto, não é suficiente prodigalizar-se para difundir os ´valores evangélicos´ como a justiça e a paz. Só se a pessoa de Jesus Cristo é anunciada é que a evangelização se pode dizer autenticamente cristã. Os valores evangélicos, com efeito, não podem ser separados de Cristo mesmo, que é a sua fonte e o fundamento e constitui o centro de todo o anúncio evangélico. A evangelização tende por sua natureza a ´plantatio Ecclesiae` que inicia a surgir através  da pregação da Palavra e dos sacramentos da iniciação.[2]

O documento do sínodo expressa sintonia com a posição defendida por João Paulo II na carta encíclica Redemptoris missio, sobre a validade permanente do mandato missionário (1990).[3] O anúncio explícito revela-se como a “prioridade permanente” da missão, exigindo a proclamação clara da salvação oferecida por Jesus Cristo (RM 44). Na visão da encíclica, este anúncio não pode ser substituído pelo empenho em favor da promoção humana, ou pelo diálogo inter-religioso, mas deve ser permanentemente proposto. Os dois documentos assinalados traduzem uma particular concepção da missão evangelizadora da igreja. O anúncio é o primeiro e decisivo movimento evangelizador, enquanto elemento central e insubstituível. O anúncio visa a conversão cristã, a receptividade do batismo e a formação de igrejas locais.

Há que reconhecer que uma tal compreensão da natureza da missão tensiona ou mesmo colide com a perspectiva de evangelização que veio se afirmando no pós-concílio e que ganhou expressão nos documentos do sínodo dos bispos de 1971 (sobre a justiça no mundo)[4] e 1974 (sobre a evangelização no mundo contemporâneo).[5] Naquele momento, não havia tanta hesitação como no presente sobre a íntima vinculação entre a evangelização e a ação social. Paulo VI concebia a evangelização como o exercício essencial de “tornar nova a própria humanidade” (EN 18).  Não havia dúvidas sobre a estreita ligação entre o anúncio do Evangelho e a promoção humana. Exigia-se como complemento essencial da evangelização, a interpelação da vida concreta, pessoal e social dos seres humanos  (EN 29). Este fundamental desafio foi levado adiante na ação pastoral das igrejas  da América Latina, Ásia e África.

Para o magistério eclesial, a compreensão da estreita vinculação entre evangelização e promoção humana antecedeu à percepção do vínculo entre evangelização e diálogo inter-religioso. Foram sempre muito vivas as resistências à elaboração de um conceito de evangelização que incluisse como parte integrante o diálogo com as outras tradições religiosas. Para tal abertura foi decisiva a ação da federação das conferências dos bispos da Ásia (FABC) que, em preparação ao sínodo de 1974, já havia lançado a proposta de uma ampliação do conceito de evangelização, de forma a incluir não só a promoção da justiça como também o diálogo inter-religioso. A acolhida desta perspectiva só veio a acontecer mais adiante, em 1984, no documento Diálogo e Missão, do Secretariado para os não-cristãos, quando então se reconhece a inserção do diálogo no dinamismo da missão eclesial .[6]

O momento atual, marcado pela dupla realidade da pobreza e do pluralismo, exige da igreja a retomada de uma compreensão mais ampla da evangelização, onde o testemunho efetivo em favor dos valores do reino de Deus ganhe um lugar efetivo e decisivo. Torna-se insuficiente e inadequada uma visão e prática eclesiológica que reforcem o isolamento e o solilóquio; o desconhecimento, desprezo ou surdez ao apelo de outros valores e linguagens.  O reforço abusivo da identidade pode conduzir ao abafamento das relações e da dinâmica criativa inter-cultural e inter-religiosa.  O tempo atual exige, ao contrário, sistemas abertos de conhecimento, padrões mais pluralistas de relações entre os povos, modos de pensar mais receptivos às particularidades e às diferenças. A comunidade eclesial, provocada pelo mundo plural, não perde sua razão de ser, mas vem convocada a um novo exercício de sua identidade e singularidade. Deixa de ser um imperativo categórico para os outros e sinaliza  o seu lugar mediante o testemunho e o agir solidários  em favor da preservação do humano.

  1. Pluralismo religioso e missão evangelizadora

Há hoje na reflexão teológica, apesar de resistências localizadas, uma positiva  acolhida  do pluralismo religioso.  Este deixa de ser simplesmente reconhecido como um dado de fato e passa a ser visto como uma realidade de valor, em sua riqueza e fecundidade. A abertura ao pluralismo de princípio envolve o reconhecimento da  dignidade da diversidade, do enígma e mistério que habitam a alteridade. A diversidade não constitui uma realidade estranha à experiência humana, mas traduz a riqueza de um mistério nela presente, mas que muitas vezes passa desapercebido. Como mostrou Raimon Panikkar, o pluralismo constitui uma das mais enriquecedoras experiências da consciência humana e que possibilita  ao sujeito reconhecer o valor e a dimensão da “acolhida da contingência” e o impulso fundamental em direção ao outro.[7] O reconhecimento de um pluralismo de princípio provoca necessariamente uma ampliação do olhar com respeito ao valor das outras tradições religiosas, que ganham agora uma nova densidade e sentido. Os asiáticos preferem falar em pluralismo receptivo e/ou orgânico, capaz de melhor corresponder ao desafio das religiões, sem, porém, comprometer sua diversidade e irredutibilidade. Trata-se de uma condição essencial para o diálogo inter-religioso:  ser capaz de viver uma profunda empatia e simpatia com o outro, acolhendo-o de forma desarmada e sem restrição. O outro emerge como sujeito na sua diferença, como mistério irredutível e irrevogável. O enriquecimento recíproco advém justamente do encontro das diferenças.

A acolhida do pluralismo religioso ocorre primeiramente na experiência concreta de peregrinos que viveram o grande desafio de avançar para além das fronteiras de sua própria tradição, surpreendendo-se com a riqueza religiosa presente no mundo da alteridade. São as experiências pontuais que deram início à mudança de coração e a disposição dialogal. Em seguida é que apareceu a comunidade eclesial e o magistério, reconhecendo e acolhendo os impulsos de abertura vividos na dinâmica experiencial. Como indica James Heisig, “umas poucas pessoas de visão perceberam uma mudança em andamento na consciência secular, relativa à promessa de diversidade religiosa. Reconheceram-na como algo de importância espiritual, envolveram-se nela contra a oposição e perseveraram até a hora de o próprio stablishment religioso assumir o espírito do diálogo, em nome de sua própria herança perene”.[8] No âmbito mais central do magistério eclesial, a acolhida do pluralismo religioso aconteceu com o documento Diálogo e Anúncio[9], de 1991, que refletia a vasta experiência dialogal em curso sobretudo na Ásia. Uma expressão de tal acolhida está presente no número 29: “É através da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência, que os membros das outras religiões respondem afirmativamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, mesmo se não O reconhecem como o seu salvador”. Transparece aqui um olhar bem positivo sobre as outras religiões, bem como o reconhecimento de seu papel positivo no plano salvífico de Deus. As religiões são portadoras de um considerável “patrimônio espiritual” e revelam facetas muitas vezes desconhecidas da “sabedoria infinita e multiforme de Deus” (DM 41). Este caminho de abertura veio problematizado em 2000 com a publicação da Declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé.[10] A Declaração expressou desconfiança nas teorias favoráveis ao pluralismo religioso de princípio, que estariam – segundo ela – comprometendo  verdades fundamentais do patrimônio de fé da igreja católico-romana e suscitando um clima de relativismo (DI 4).  A Dominus Iesus causou embaraço e dificuldades  no caminho da reflexão e prática dialogais, mas não comprometeu a caminhada neste campo, que retomou fôlego em seguida.

  1. A missão como testemunho em favor do reino

O desafio da acolhida da diferença redimensiona o sentido da missão eclesial, de forma a melhor sintonizar-se com a realidade plural. A igreja passa a ser compreendida como um mistério com e para os outros. A ênfase recai na dinâmica do serviço e da relação. O teólogo italiano, Miguel Quatra, sinalizou a importância da igreja assumir em sua própria inteligibilidade  a realidade do pluralismo. Mas para que isto ocorra faz-se necessária uma mudança de paradigma eclesiológico, ou seja, a transição para um modelo de igreja extroverso e dialógico, que enfatize sua dimensão relacional. Em linha de continuidade e de atualização da perspectiva conciliar, vem reforçada a dimensão reino-cêntrica da igreja: igreja como sinal e instrumento do reino de Deus na história. Em tal perspectiva não é a missão que se coloca a serviço da implantação da igreja, mas é a igreja que encontra sua razão de ser na tradução operativa dos valores do reino na história.[11]

A opção em favor do paradigma reinocêntrico como aquele capaz de envolver positivamente a pluralidade religiosa  tem levantado algumas questões. Em que medida a escolha da metáfora do reino facilita ou não o traço de universalidade exigido para um efetivo diálogo inter-religioso.  Há que reconhecer que a expressão reino de Deus insere-se dentro de um campo semântico bem definido, sendo sua dinâmica de universalidade captada sem maiores dificuldades  pelos cristãos. Esta linguagem pode, porém, resultar estranha, incompreensível e com menor poder de comunicação em outros contextos religiosos, como no caso do asiático.  Foi em razão desta dificuldade que os bispos  asiáticos sempre insistiram na  necessidade de apresentação da visão de Jesus sobre o reino recorrendo a uma nova linguagem, mais evocativa da alma asiática.[12] Acreditamos que, apesar de tal dificuldade, a metáfora do reino de Deus permanece válida e significativa para sinalizar a dinâmica de universalidade requerida na reflexão sobre a missão e o pluralismo religioso.

O novo paradigma missiológico  reino-centrado não só reconhece mas igualmente aprecia as outras tradições religiosas como elementos positivos  e significativos  no plano salvífico de Deus. O reino de Deus é uma realidade universal, envolvente, positivamente inclusiva e não discriminatória.  Ele já se realiza “onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer (…).”[13] Encontra-se, portanto, operativo também entre aqueles que não se definem como cristãos, mas que captam a chamada de Deus em suas tradições específicas e nelas buscam a Ele corresponder de forma sincera e autêntica. O envolvimento na dinâmica do reino de Deus não é uma exclusividade dos cristãos, mas de todos aqueles que aderem à causa dos direitos humanos, da afirmação da vida e da luta em favor da libertação integral. O processo de antecipação dos valores do reino na história, de busca de sua realização no tempo, não pode, portanto, prescindir da preciosa colaboração das outras tradições religiosas. Elas exercem também, a seu modo, uma função de “mediação sacramental” do reino.[14]

A assunção de uma missiologia reino-centrada  tem sido um traço comum nas experiências eclesiais asiática e latino-americana.  A nova perspectiva vem exercendo um grande impacto na teologia das missões e exigindo um novo dinamismo. Mas tem igualmente provocado inúmeras resistências  e controvérsias, sobretudo nos círculos mais próximos das instâncias eclesiásticas. Manifesta-se o temor de que uma tal impostação missionária  acabe silenciando  aspectos fundamentais do mistério de Jesus Cristo e marginalizando ou desvalorizando a sacramentalidade da igreja.[15] Verifica-se ainda em determinados setores uma forte resistência a reconhecer a operação universal do mistério de Deus para além dos limites da igreja, o que significaria acolher o pluralismo religioso como um valor. Afirma-se que o fato do pluralismo não pode calar ou retardar nos cristãos a proclamação da salvação em Jesus Cristo e a proposta efetiva de conversão à igreja.[16]  Em verdade, tais posicionamentos acabam revelando a presença de uma convicção ainda bem eclesiocentrada, firmada na idéia da extensão universal da igreja católico-romana, de modo a nela incluir a totalidade da família humana.[17]

  1. Testemunho e singularidade cristã

Na dinâmica evangelizadora , que é “rica, complexa e dinâmica” (EN 17), o testemunho explícito e o anúncio do evangelho inserem-se  no horizonte mais amplo de uma atividade missionária que começa com o exercício de empatia, compaixão, solidariedade, colaboração e o diálogo com os outros. Não se pode nunca perder de vista o sentido lato de evangelização. O processo envolve também o momento da proclamação clara de Jesus Cristo e de seu Reino. Trata-se de uma prioridade permanente, mas que “não deve ser entendida no sentido temporal, como se o anúncio tivesse de vir sempre e de qualquer jeito antes das outras formas de evangelização”.[18] Há casos concretos, em que o diálogo emerge como “a única maneira de prestar um sincero testemunho de Cristo e um generoso serviço ao homem”.[19] A prioridade do anúncio explícito é “de uma ordem de importância lógica e ideal”, não necessariamente temporal.[20]

A mensagem cristã deve ser compreendida não como um imperativo categórico para todos, mas sobretudo como a oferta de uma singularidade. Se recorrermos ao ministério de Jesus, podemos visualizar com clareza que em nenhum momento manifesta ansiedade conversionista, entendida como proposta de mudança de religião, mas sempre a provocação em favor da mudança de vida: de uma vida auto-centrada para uma vida centrada em Deus.[21] Os bispos asiáticos mostraram com pertinência que o anúncio de Jesus Cristo deve ser um “evento global”, não necessariamente circunscrito a uma “proclamação verbal de um complexo doutrinal”. Deve ser antes de tudo “comunicação de uma pessoa, Jesus Cristo”, de seu estilo de vida, de seu ideal, de seu projeto, dos valores do Reino ao qual dedicou a vida.[22] Por ocasião do Sínodo da Ásia (1998), os bispos daquela região expressaram em documento o que para eles manifesta uma prática asiática da missão:

Para cristãos da Ásia, proclamar a Cristo significa antes de tudo viver como ele, no meio dos próximos e vizinhos que não têm a mesma fé e não são da mesma confissão nem convicção, e, pela força de sua graça, fazer o que ele fez. Uma proclamação pelo diálogo e pelos atos.[23]

Guardando as pecualiaridades da experiência asiática, esta mesma perspectiva manifesta-se válida e fundamental para a igreja latino-americana. O desafio de viver a missão sobretudo no exercício do testemunho solidário com os outros. Isto não significa desembaraçar-se do anúncio explícito, nem diminuir a centralidade de Jesus Cristo, mas de inserir todas as etapas ou dimensões da missão na dinâmica do Reino de Deus. Proclamar significa, assim, “viver como ele” e buscar realizar o seu sonho na história. Só mediante este testemunho, com o ser e o agir, é que a igreja poderá manter sua credibilidade e o sentido plausível de seu anúncio.

A missão evangelizadora é essencialmente uma “missão de amor” (DM 9). Encontra sua razão de ser e sua raiz na experiência do Deus de amor (1Jo 4,8.16), que é uma experiência de “amor fontal” (AG 2). No encontro com Jesus, os cristãos vivem a radicalidade de uma dinâmica de amor. É a partir deste “centro do mistério do amor” que nasce a decisão e o desafio do impulso missionário. Em sua raiz encontra-se a experiência de um amor profundo por Jesus Cristo, que se traduz pelo desejo de compartilhá-lo com os outros. Antes de ser o resultado de um mandato, a missão é expressão de um mistério do amor que transformou o sujeito. A motivação mais importante da missão é, portanto, a motivação do amor.

  1. Missão e Diálogo Inter-Religioso

A Ação salvífica de Deus cobre toda a história. A igreja católica não pode pretender monopolizar esta esta ação que é abrangente e gratuita, mas deve estar atenta e disponível  para perceber seus sinais no mundo e nas religiões.  O anúncio e o diálogo constituem os dois pólos complementares  da ação evangelizadora da igreja.[24]  O processo dialogal não é algo que vem acrescentado, ou que se instala como uma realidade estranha, mas algo que se insere “no grande dinamismo da missão eclesial” (DM 30). O diálogo  exige abertura e atenção para o mistério da presença e ação de Deus no outro fiel e em sua tradição religiosa.  Ele não pode visar a conversão do outro interlocutor à própria tradição religiosa, mas à conversão comum e mais profunda de todos para Deus (DA 41).

Uma das condições essenciais para o diálogo inter-religioso  é o respeito às convicções da cada interlocutor. O diálogo exige como um de seus requisitos “que se entre nele com a integralidade da própria fé” (DA 48). Esta garantia não é privilégio exclusivo de um dos parceiros do díalogo, mas deve estender-se ao outro interlocutor, que igualmente é portador de convicções e valores que não podem ser desconsiderados. O desafio que se abre no diálogo é o de captar a presença de “semelhanças nas diferenças”, e ainda mais, de conseguir vislumbrar dimensões do mesmo mistério que dificilmente poderiam ser acolhidas senão na interlocução com o diferente. O encontro com o outro, de forma gratuita e desarmada, é revelador de facetas inusitadas. Provoca no interlocutor o movimento em favor de uma nova forma de compreensão e exercício de sua fé e um novo olhar sobre o pluralismo religioso.  O diálogo é uma grande aventura: leva a uma transformação recíproca dos interlocutores, uma relativização de suas pretensões absolutas e uma maior abertura ao mistério que sempre advém.

O projeto missionário, quando realmente imbuído pelo espírito do diálogo, ganha um novo sentido e uma nova perspectiva.[25] O missionário deixa de ser o exclusivo portador de uma palavra e depositário de uma verdade que lhe é particular, tornando-se mais humilde e receptivo à dinâmica da alteridade. A percepção e construção de sua identidade passam agora pela irrigação da intelocução dos outros e de suas verdades. O diálogo aparece, assim, não apenas como uma exigência de promover e respeitar a liberdade do interlocutor (DM 18), mas sobretudo como uma “exigência do respeito aos caminhos misteriosos de Deus no coração do homem”.[26]

O pluralismo e a diversidade religiosa devem ser percebidos não como uma expressão da limitação humana ou um mal a ser eliminado, mas como um traço de riqueza e valor. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade peculiar. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer algo de irredutível e irrevogável nas outras tradições religiosas. O diálogo inter-religioso emerge neste incício de milênio como um dos desafios mais fundamentais para as religiões e um decisivo convite para a remodelação do compromisso missionário. A missão evangelizadora ganha um novo sentido neste tempo de abertura dialogal:

Este diálogo nos permitirá tocar com as próprias mãos as expressões e a realidade do ser mais íntimo de nossa gente, e nos colocar em condição de encontrar modos autênticos para viver e expressar a nossa fé cristã. O diálogo nos fará igualmente descobrir muitas riquezas de nossa própria fé, que talvez  jamais tivéssemos percebido . E assim pode-se tornar uma amigável participação na busca de Deus e na irmandade entre os seus filhos.[27]

No Brasil temos o belo exemplo da ação missionária das irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, que desde 1952 encontram-se entre os índios Tapirapés no Mato Grosso. Ao chegarem na região, há mais de cinquenta anos, encontraram um pequeno grupo indígena de 47 pessoas, ameaçados de extinção por uma série de fatores. A intenção missionária que moveu a ida das irmãzinhas era simples e enriquecedora: dedicar-se a reerguer um povo ameaçado pelo desencanto e pela pobreza. Neste projeto singular, o mais importante era o exercíco da convivência, da compaixão, da solidariedade e do aprendizado permanente. E conseguiram com sua presença o “milagre” da recuperação de um povo, o “reencantamento” de um grupo humano ameçado de extinção. Como sublinhou o antropólogo e historiador, André Toral, na apresentação do recente diário das irmãzinhas,

elas,  verdade seja dita, não ´salvaram` ninguém, não converteram  moribundos, nem obrigaram ninguém a tomar remédio. Aliás, do ponto de vista tradicional, sua missão foi um fracasso, pois não existe nenhum Tapirapé  convertido e muito menos uma Igreja tapirapé.  Tudo isso para dizer que foram os próprios Tapirapé que se salvaram. As Irmãzinhas deram o apoio, estavam lá, sempre. Elas ajudaram decisivamente  a construir o milagre que foi a recuperação populacional dos Tapirapé.[28]

O revelador trabalho das Irmãzinhas de Jesus constituem hoje no Brasil um exemplo singular de uma dinâmica evangelizadora  que “torna nova a humanidade”, para retormar a bela expressão de Paulo VI na Evangelii nuntiandi. Um testemunho que mesmo sendo “proclamação silenciosas”, traduz de forma  valorosa e eficaz a Boa Nova (EN 21). O que Jesus trouxe para a humanidade não foi uma nova religião, mas um novo modo de vida: o sim de Deus à vida. O grande desafio missionário é levar adiante esta afirmação da vida e a esperança num futuro que possa fazer acontecer a diaconia do amor. A “missão de Deus”, como indicou o teólogo Jurgen Moltmann, “significa convidar cada pessoa, religiosa ou não religiosa, a aceitar a vida, a afirmá-la, a defendê-la, a vivê-la em comunhão com os outros, na mesma dimensão de eternidade”.[29]

Questões:
Partindo da consideração positivo sobre o pluralismo religioso, como situar o lugar e o sentido do testemunho evangelizador no tempo atual?

  1. Em que medida a abertura dialogal convoca a um novo estilo de testemunho evangelizador?
  2. Quais os desdobramentos efetivos de uma ação evangelizadora reino-cêntrica?

NOTAS:
[1] SÍNODO dos Bispos. Testemunhas do Cristo. Petrópolis: Vozes, 1992 (Assembléia Especial para a Europa).

[2] Ibidem, p. 14.

[3] JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Petrópolis: Vozes, 1991 (Carta encíclica Redemptoris Missio).

[4] SÍNODO dos Bispos. A justiça no mundo. Sedoc, v. 4, n. 44, 1972.

[5] PAULO VI. A evangelização no mundo contemporâneo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1976 (Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi).

[6] SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas, 2000, n. 30 (Diálogo e Missão – que será siglado no texto como DM). Posteriormente, João Paulo II reconhecerá igualmente o diálogo inter-religioso como parte da missão evangelizadora  da igreja: Redemptoris Missio, n. 55.

[7] Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Entretiens avec Gwendoline Jarczyk. Paris: Albin Michel, 1998, p. 166.

[8] James HEISIG. Seis sutras no diálogo entre as religiões. Magis, n. 41, novembro 2002, p. 36.

[9] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991 (no texto siglado como DA). Há, porém, que assinalar  que o documento Diálogo e Missão, de 1984, já havia preparado o caminho para um tal reconhecimento.

[10] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo: Paulinas, 2000.

[11] Miguel Marcello QUATRA. Regno di Dio e missione della  chiesa nel contesto asiatico. Dissertatio ad doctoratum in facultate missiologiae. Pontificia Universitas Gregoriana. Roma, 1998, p. 520-521.

[12] Miguel Marcello QUATRA. Regno di Dio… Op.cit., p. 497. Ainda sobre a questão da reticência sobre o poder de universalidade da metáfora do reino de Deus cf. Christian DUQUOC. L´unique Christ. La  symphonie différée. Paris: Cerf, 2002, p. 123.

[13] III CONFERÊNCIA Geral do Episcopado Latino-Americano.  Puebla. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 105, n. 226.

[14] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni.  Brescia: Queriniana, 2001, p. 402.

[15] Cf. Redemptoris Missio n. 17 e Miguel Marcello QUATRA. Regno di Dio… Op.cit., p. 449-450

[16] Jozef TOMKO. La missione verso il terzo millennio. Urbaniana University Press/EDB: Roma/Bologna, 1998, p. 260-261.

[17] Mariasusai DHAVAMONY. Teologia delle religioni. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1997, p. 244-245. E também p. 234 e 247.

[18] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia  cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 503.

[19] JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 57 (Redemptoris Missio).

[20] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia… Op.cit., p. 503.

[21] Wesley ARIARAJAH. La Biblia y las gentes de otras religiones. Santander: Sal Terrae, 1998, p. 91.

[22] Miguel Marcello QUATRA. Regno di Dio… Op.cit., p. 466.

[23] FABC. O que o Espírito diz às Igrejas. Sedoc, v. 33, n. 281,  2000, p. 42.

[24] COMISSÃO Consultiva Teológica da FABC. “Teses sobre o diálogo inter-religioso”, In: Sedoc, v. 33, n. 281, 2000, p. 66-67.

[25] Todas as atividades  que caracterizam a missão evangelizadora deveriam estar  radicalmente penetradas por este “espírito do diálogo”, como indica de forma singular o documento Diálogo e Anúncio em seu número 9.

[26] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter.  Paris: Cerf, 2001, p. 127.

[27] FABC. Evangelizzazione dell´Asia oggi. In: DOCUMENTI della Chiesa in Asia. Bologna: EMI, 1997, p. 63.

[28] O RENASCER do povo Tapirapé. Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld. São Paulo: Salesiana, 2002.

[29] Jurgen MOLTMANN. Dio nel progetto del mondo moderno. Brescia: Queriniana, 1999, p. 230.

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