Artigo

  • E depois da pandemia? o que faremos?
    Ivo Lesbaupin

    Ivo Lesbaupin[1]

    Quatro desafios

    Segundo Ladislau Dowbor, estamos vivendo quatro desafios sérios, em nível global:

    1. A destruição ambiental, colocando em risco a vida na Terra
    2. A desigualdade social se acelerando
    3. A desordem financeira mundial
    4. A pandemia do novo coronavírus [2]

    O que esta pandemia está nos revelando?

    1. Ou mudamos a forma de nos relacionarmos com a natureza, ou a humanidade se autodestruirá.

    A estimativa feita pelos especialistas é que a perda acelerada de espécies que presenciamos hoje está, no mínimo, 1.000 vezes acima da taxa de extinção natural. O desmatamento e, mais amplamente, a perda da biodiversidade, estão na origem dos inúmeros vírus que se desenvolveram nas últimas décadas, inclusive do novo coronavírus. Se continuarmos a agir como estamos, será inevitável o surgimento de novos vírus pandêmicos, mais letais que o atual.

    Precisamos de outra economia, harmoniosa com a natureza, que pare de “depredar os recursos naturais”, que tenha como objetivo servir à vida e não ao lucro. A concepção do “bem viver” dos povos andinos, também presente em outros povos indígenas, com nomes diferentes, se apoia nesta visão diferente, onde tudo está interconectado e o ser humano faz parte da natureza e não se opõe a ela.

    Desde há muitos anos, existem estudos e propostas sobre outras formas de organizar a sociedade e continuam a surgir novos. Já dispomos, em quase todos os setores da vida, de práticas que realizam estas novas concepções, desde a agroecologia até as energias renováveis.

    1. É possível “mudar” a economia. As advertências da comunidade científica, dos movimentos ambientalistas, foram praticamente ignoradas pelos países: os governos, sob pretexto de não ser possível mexer no modelo dominante, pouco ou nada fizeram para limitar a emissão de gases de efeito estufa. De repente, como que por um milagre, todas as economias pararam. E o processo de aquecimento global foi reduzido. Ficou provado que, se há vontade política, é possível mudar a economia. Mais um dogma neoliberal que cai.
    2. Surgiu uma nova postura por parte de alguns governos e economistas, inclusive neoliberais, de que, para enfrentar a pandemia, o Estado precisa gastar. Isto supera um dogma arraigado nos últimos 40 anos de neoliberalismo, de que o Estado não tem mais recursos, tem de conter os gastos. Na verdade, tem recursos. E pode, inclusive, gerar mais, imprimindo moeda [3].
    3. A política pública de saúde – universal, gratuita – é absolutamente fundamental para um país. Isto foi reconhecido pela França, pela Inglaterra – antes defensores da privatização – e por autoridades de muitos países. É a saúde pública que está salvando as populações nesta pandemia. Onde o sistema público não existe, as vítimas são os pobres – que, em muitos países, são a maioria. “Esse é outro ensinamento: a vida é mais importante que a economia” (Boaventura de Sousa Santos) [4].
    4. É preciso investir também nas demais políticas públicas: educação, transporte, habitação etc. A revalorização destas políticas é o oposto do dogma “público é ruim, privado é bom” – sustentado nestas últimas décadas. Na hora da crise, foi o sistema público o pilar para o enfrentamento do vírus.

    O Financial Times (principal jornal dos neoliberais) defendeu um redirecionamento da economia:
    “Reformas radicais — reverter a direção política predominante das últimas quatro décadas — terão de ser postas sobre a mesa. Os governos terão de aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem ver os serviços públicos como investimentos, e não despesas, e buscar maneiras de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição estará novamente na agenda; os privilégios dos idosos e dos ricos serão questionados. Políticas até recentemente consideradas excêntricas, como a renda básica e o imposto sobre a riqueza, deverão entrar na mistura” (Financial Times, 07/04/2020).

    As cadeias produtivas de longo alcance mostraram sua fragilidade: os países não podem ter o principal de suas atividades produtivas sediadas em outros países. Na hora da crise, a forte dependência do exterior causou muito prejuízo às sociedades[5].

    A pandemia tornou visível a extrema desigualdade social. Mais que isso: no Brasil, tornou visível a enorme precarização do trabalho produzida pelas reformas recentes na legislação trabalhista: a maioria dos trabalhadores opera sem garantias, sem direitos. A ideologia do “empreendedorismo” é uma falsidade criada para permitir a superexploração dos desempregados. O lucro está garantido, os grandes empresários se dão bem, os banqueiros e investidores financeiros aumentam seus ganhos, mesmo quando o país está em forte recessão. O contrário ocorre com os trabalhadores, que perderam a maior parte de seus direitos.

    Resistência

    A situação de pandemia revelou uma enorme capacidade de ação e reação da sociedade civil: inúmeras redes de solidariedade se formaram em todo o país para ajudar as populações mais vulneráveis (vide a pesquisa sobre a solidariedade nas periferias do Brasil[6]).

    A principal forma de comunicação, em razão da quarentena, passou a ser a virtual: aulas virtuais, debates, entrevistas, conferências. Multiplicaram-se os “ao vivos” (tradução de “lives”) e pessoas antes inacessíveis estão disponíveis, bastando ligar a internet: lideranças populares, indígenas, professores, intelectuais, epidemiologistas, infectologistas, médicos e muitos/as outros/as. Nunca se debateu tanto, nunca o conhecimento foi tão difundido.

    Apesar de o governo ter aprovado muitas medidas prejudiciais à grande maioria, os protestos, assim como a pressão de movimentos sociais, de organizações da sociedade civil (OSCs), de parlamentares democráticos, barrou várias medidas deletérias e conseguiu aprovar outras boas. Foi o caso da renda emergencial de 600 reais, aprovada no Congresso e, depois, renovada por mais dois meses.

    A difusão diária massiva de desinformação (fake news) pelas redes digitais foi fator determinante, tanto na campanha eleitoral quanto no governo, para manter o apoio junto a uma parcela do eleitorado. As redes, elemento fundamental da estratégia dos Bolsonaro, estão começando a ser objeto de controle (e há pressão internacional também neste sentido, contra o discurso de ódio).

    Pós-pandemia

    Para enfrentar a crise sanitária e construir o pós-pandemia, a primeira conclusão é de que não podemos voltar à normalidade anterior.

    Precisamos de outra economia: reorientar os recursos a serviço da humanidade e não a serviço de um pequeno grupo de privilegiados que estão destruindo o Planeta para satisfazer seus interesses.

    Precisamos de uma economia ecológica, em que o meio ambiente seja elemento central e não apenas um ministério.

    E esta mudança tem de começar desde já, no processo de transição para o pós-pandemia.

    Bens comuns. Precisamos começar por uma lógica dos comuns (ou bens comuns). Há bens que são “comuns”, alguns naturais, como a atmosfera, o ar, as florestas e outros como o conhecimento, a cultura. São bens que não poderiam ser privatizados, pertencem à humanidade, não podem ser propriedade de um particular (indivíduo ou grupo). A água é um destes bens comuns: não pode ser tratada como mercadoria, ser usada como fonte de renda.

    Como afirma o Papa Francisco, em sua encíclica Laudato Sí (2015):
    “O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (n. 30).

    O Brasil é um país privilegiado, temos 13,8% da água doce do mundo. Mas estamos atacando nossos rios implacavelmente: com o esgoto sendo lançado diretamente nos cursos d´água, assim como as substâncias tóxicas usadas na agricultura, na mineração. Além da construção de novas hidrelétricas. Estamos desmatando no Cerrado e na Amazônia, isto é, na fonte de nossas águas e de nossas chuvas. Todo ano, centenas de rios morrem ou deixam de chegar a seu destino.

    Temos exemplos magníficos de superação, como o do semiárido. A construção de um milhão de cisternas no semiárido nas duas últimas décadas garantiu água para milhares de famílias desta região, acabando com a dependência de políticos exploradores. A “convivência com o semiárido” – apoiada pela ASA (Articulação do Semiárido) – desenvolve inúmeras tecnologias de conservação e utilização da água para que as famílias possam viver bem.

    Mudar a matriz energética. Para interromper o processo de aquecimento global, a principal medida é mudar a matriz energética: substituir a energia baseada em combustíveis fósseis – causadoras dos gases de efeito estufa – e a nuclear por energias renováveis (solar, eólica, maremotriz, oceânica…).

    Revogação da EC 95 (Lei do Teto dos Gastos). Esta lei, aprovada no governo Temer em 2016, estabeleceu limites progressivos para os gastos com saúde e com educação para os próximos vinte anos. Em 2019, teve como efeito a redução de 13 bilhões para a saúde[7]. Diante da gravidade da pandemia, a maioria dos países aumentou os gastos com a saúde. No Brasil, apesar de o governo ter decretado “estado de calamidade pública” e ter feito aprovar a emenda constitucional do “orçamento de guerra” – que lhe permitem, em razão da situação extraordinária, efetuar gastos maiores que os previstos -, em nenhum momento cogitou de revogar esta lei que impede aumentar gastos com saúde.

    Auditoria da dívida pública. O Brasil gasta hoje quase metade do orçamento com a dívida pública (juros e rolagem da dívida). Os juros, que, nos últimos anos, variaram de 200 a 500 bilhões de reais, são pagos ao topo da nossa pirâmide social, o 1% mais rico do país. Nossa dívida é, em sua maior parte, irregular ou ilegal. A única auditoria que o Brasil fez, em 1931, constatou que 60% da dívida era irregular, legalmente inexistente. Embora seja uma das exigências da Constituição Federal de 1988, até hoje não foi realizada, privilegiando os interesses do capital financeiro. A auditoria permitiria ao país dispor de, no mínimo, 500 bilhões – muito mais do que o valor que o governo gasta anualmente com saúde, educação e assistência social.

    Agricultura. Abandonar a agricultura dependente de fertilizantes químicos e agrotóxicos, investir na agroecologia – sem venenos, sem transgênicos – para podermos ter alimentos saudáveis. Em muitos lugares do Brasil, já existe agricultura agroecológica e as pessoas se alimentam bem. Mas os governos insistem no agronegócio para exportação e nos transgênicos. É preciso decretar o “desmatamento zero” na Amazônia e no Cerrado.

    Renda Básica de Cidadania. A riqueza do Brasil em 2019 foi de 7,3 trilhões de reais. Se houvesse uma distribuição igualitária, isto daria para cada família de quatro pessoas receber o valor de 11 mil reais por mês, suficiente para a família ter uma vida digna. Nosso problema não é econômico (“falta de recursos”): é político[8].

    É preciso assegurar uma Renda Básica, que garanta a cada família o mínimo essencial para viver, que garanta que ninguém passe necessidade. Além de ajudar a família, ela gera mais consumo, mais atividade, mais receita, dinamiza a economia. Neste momento, nosso esforço deve ser por estender a Renda Emergencial até o fim do ano, sem reduzir o valor, e estendê-lo a todos os vulneráveis, sem complicações burocráticas[9]. Mas não basta: a Renda Básica é uma renda permanente, para todos/as e seu valor tem de ser, no mínimo, um salário mínimo.

    Jornada de Trabalho. É preciso reduzir a jornada de trabalho sem reduzir o salário: a produtividade hoje é tal que nos permite produzir na metade do tempo aquilo que antes exigia tempo integral. A lógica é “trabalhar menos para trabalharem todos”. Do mesmo modo que o desenvolvimento tecnológico nos permitiu reduzir, em 150 anos (entre 1830 e 1980), a jornada de 16 horas a 8 horas semanais, é possível continuar este processo de redução.

    Políticas sociais. É preciso possibilitar o acesso a bens de consumo coletivo (o “salário indireto”) – as políticas sociais: saúde, educação, transporte, habitação, ciência e tecnologia, pesquisa.

    Reforma Tributária. O nosso sistema de impostos reproduz a desigualdade: os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, os ricos pagam pouco e os muito ricos não pagam nada. O peso dos impostos no Brasil está mais no consumo e menos na renda: deste modo, mesmo os que não têm renda para pagar imposto de renda, pagam muito. Uma pessoa que recebe o bolsa-família gasta metade do que recebe em impostos. Na verdade, quem sustenta boa parte deste programa assistencial são os próprios beneficiários.

    Precisamos de um sistema tributário progressivo, em que os que ganham mais paguem mais e cada qual contribua segundo sua riqueza e renda. O peso dos impostos tem de estar mais na riqueza e na renda e menos no consumo[10].

    Está mais que na hora de estabelecermos a taxação das grandes fortunas. No início de 2017, os 6 maiores bilionários do País possuíam juntos riqueza equivalente à da metade mais pobre da população (105 milhões de pessoas)[11].

    Repensar a cidade, de modo que a cidade exista para o bem-estar dos habitantes (e não para os carros ou para a especulação imobiliária). Pensar a construção das habitações de modo que os materiais utilizados sejam poupadores e geradores de energia. É preciso repensar os transportes urbanos, investindo num sistema de transporte público, misto, diversificado, – apoiado principalmente nos trilhos. Incentivar o uso da bicicleta – criando facilidades e oferecendo condições de segurança.

    Durabilidade/ consertabilidade/ recuperabilidade. Os imóveis devem ser construídos de tal modo e com tais materiais que permitam que, no futuro, quando vierem a ser desfeitos, seus componentes possam ser reutilizados, reaproveitados. Os aparelhos devem ser produzidos de tal forma que possam ser desmontados, e todas as suas partes reaproveitadas. Quando apresentarem defeito, devem poder ser consertados em vez de descartados. Eles devem ser feitos para durar, não para serem trocados.

    Redirecionar os subsídios públicos. Um dos argumentos usados contra o uso de energia solar ou eólica é que seu custo é caro. Ora, para o uso do petróleo, os subsídios anuais era de 1 trilhão e 700 bilhões de dólares (em 2012). O futuro do planeta depende do redirecionamento dos subsídios hoje destinados a combustíveis fósseis e energia nuclear para fontes renováveis [12].

    Fim da propaganda de produtos. O principal fator que leva as pessoas a consumirem cada vez mais é a propaganda. Não precisamos de propaganda para nos convencer a comprar um novo produto, muitas vezes supérfluo. Para buscar aquilo de que precisamos, basta a informação sobre sua finalidade e as substâncias que contém. Os cidadãos, com essa informação, saberão decidir por si próprios qual dos produtos lhes convém.

    É preciso superar o desenvolvimento predador, destruidor das condições de vida dos seres vivos. Precisamos construir uma outra economia, outra forma de nos sustentarmos e nos relacionarmos, que permita às pessoas viver bem, em harmonia com a natureza e em colaboração com os demais seres humanos. Isto nos permitirá reduzir o aquecimento global, as mudanças climáticas, o surgimento de novos vírus desastrosos para a humanidade.

    [1] Ivo Lesbaupin é sociólogo, professor aposentado da UFRJ e coordenador da ONG Iser Assessoria.
    [2] Dowbor, no webinário “Outra economia é possível?”, (https://www.youtube.com/watch?v=Y5UO4GjGWFA), 11/06/2020, promovido pelo Projeto Novos Paradigmas para um outro mundo possível, uma iniciativa da Abong junto com o Iser Assessoria (https://www.novosparadigmas.org.br/).
    [3] Antonio Martins, “Enfim, o direito humano a imprimir dinheiro”, 03/08/2020 (https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/enfim-o-direito-humano-a-imprimir-dinheiro/).
    [4] Boaventura de Sousa Santos, A cruel pedagogia do vírus, Almedina, Coimbra, 2020 (http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/article/view/csu.2020.56.1.10.).
    [5] Id.
    [6] Repositório de Iniciativas da Sociedade Civil contra a Pandemia – A Sociedade Civil das Periferias Urbanas Frente à Pandemia (março-julho 2020) – Rebecca Abers e Marisa von Bülow (https://resocie.org/relatorios-de-pesquisa-do-repositorio/).
    [7] Juliane Furno, no webinário “Economias para o bem viver e outras economias possíveis”, dia 3 de julho, promovido pelo GT Economia e Democracia da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político (https://www.youtube.com/watch?v=SuQa0irxpA0&t=36s ).
    [8] Dowbor, no webinário “Economias para o bem viver e outras economias possíveis”, dia 3 de julho, promovido pelo GT Economia e Democracia da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político (https://www.youtube.com/watch?v=SuQa0irxpA0&t=36s).
    [9] Antonio Martins, Os 600 reais que podem mudar a face do Brasil (https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/os-r-600-que-podem-mudar-a-face-do-brasil/).
    [10] Juliane Furno, no webinário Economias para o bem viver e outras economias possíveis”, 03/07/2020.
    [11] OXFAM, “A distância que nos une – Um retrato das desigualdades brasileiras”, 2017, 94 págs. (https://oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pais-estagnado/), p. 18.
    [12] Jeremy Rifkin, A Terceira Revolução Industrial. Como o poder lateral está transformando a energia, a economia e o mundo. São Paulo, M. Books, 2012.

    Imagem: Brasil de Fato (https://www.brasildefatomg.com.br/2017/05/30/para-constitucionalista-eleicoes-diretas-requer-um-movimento-que-ocupe-as-ruas)

  • É de outra Igreja que precisamos

    O caso envolvendo irregularidades com o padre Robson do Santuário do Pai Eterno em Goiânia, está em investigação, tomara que não passe de um engano, mas a validade do artigo do Pe. Manoel Joaquim não depende da culpa ou inocência do Pe, Robson. Este artigo poderia já ter sido escrito há muito tempo e não mudaria o sentido de sua preocupação (Olimpio de Souza, no facebook).
    Veja a seguir artigo de Pe Manuel Joaquim R. dos Santos,de Londrina PR

    Jornal Opção: Goiás terá uma das maiores basílicas do Brasil

    “É de outra Igreja que precisamos”
    Pe Manuel Joaquim R. dos Santos (presbítero de Londrina PR)

    O caso envolvendo irregularidades com o padre Robson do Santuário do Pai Eterno em Goiânia, nos leva a necessárias e sérias reflexões. Há anos atrás eu escrevi um artigo mordaz, discorrendo sobre o que chamava genericamente de “padres cantores”. Outros preferem o termo influencer, mas dá no mesmo.

    Nos anos noventa, uma estratégia clara da Igreja católica, foi o enfrentamento das Igrejas pentecostais visando concretamente a evasão dos católicos com esse destino. Foi o momento da explosão das mídias católicas – Canção Nova, Século XXI, Rede Vida etc. Todas obedecendo à mesma linha influente da RCC, em tese, a que melhor proporcionaria uma comunicação perfeita a esse objetivo primeiro. Numa linguagem do chamado catolicismo explícito, ou comunicação explicitamente religiosa, esses Meios entravam na casa dos brasileiros, cumprindo um papel, que segundo se dizia, não era mais atingido pelas paróquias e antigas estruturas. Com isso, os lares católicos brasileiros passaram a ter um canal “católico” em suas casas, dando catequese, ditando a moral, formando opinião e em alguns casos, em rota de colisão com a Igreja ou com vários párocos. Mas o pior! Geralmente esses programas criaram locais específicos de grandes peregrinações, que se transformaram numa espécie de super paróquia. Católicos geralmente quase nada envolvidos em atividades eclesiais e descompromissados com a Comunidade de origem, faziam peregrinações sistemáticas e mobilizavam outros, até esses points da fé! Por sua vez, padres midiáticos cada vez mais aperfeiçoados no metier, recorrendo a modelos nada convencionais (cowboy – country, show man etc.), abusando de batinas e clergyman, iam se impondo no imaginário popular como super heróis do catolicismo moderno a atual. Paradoxalmente, mal sabiam os idosos e espectadores, que de moderno e atual essa gente não tem quase nada. O conteúdo desses shows da fé, abusando de devocionismos e sacramentários (no pior sentido do termo), arrasavam com a caminhada histórica da Igreja brasileira e resgatavam modos populares, em nada condizentes com uma boa e necessária evangelização. Que a devoção seja positiva e uma boa plataforma para voos mais altos em termos de compromisso com o Reino de Deus, é pacífico e defendido em inúmeros documentos do Magistério. Porém, o devocionismo provocado e alimentado por esses Meios de Comunicação Católicos empoderando padres recém ordenados, não é adequado ao objetivo que a Igreja Católica tem se proposto em seus Planos de Evangelização dos últimos anos.

    Concomitantemente, este modelo envolve altos recursos financeiros. Uma família católica média pode receber em sua casa de dois a três boletos mensais, com solicitação de ajuda. Como aparentemente o objetivo é sacro, a generosidade do povo nunca falha. Além do dízimo, se é que em muitos casos não é substituído! São milhões. Bilhões, na verdade. Construção de Santuários faraônicos, redes de Tvs, Rádios etc. etc. Dinheiro exige administração e transparência. Um caso de escândalo envolvendo essas doações derrubam imediatamente todo o plano. O caso do padre Robson está sob investigação. Mas ao que parece, houve alto desvio para bens particulares. Em Goiânia um caso destes, já não é inédito!

    Será o começo do fim de um modelo que até hoje não podemos avaliar em termos de vantagens para a evangelização? Sabemos que a tipicidade destes evangelizadores da Mídia, associados a Santuários, é tipicamente do continente americano. A peregrinação enquanto tal é inerente ao ser humano. Ele caminha como o grande paradigma da sua própria existência. Caminha por caminhar. É caminhando que se faz o caminho. Na idade média se caminhava também por penitência. No entanto, os Santuários de hoje envolvem mais do que isso. Para pior. São “centros de bênçãos” e locais de gastança de dinheiro. São erigidos a santos, anjos e arcanjos. Desenvolveu-se uma teologia medíocre e barata desses personagens do mundo da fé. Alguns são apenas programas de turismo religioso barato. Afinal, os pobres também têm o direito de ir em algum lugar, já que não o podem fazer a Roma ou Jerusalém! Isso é descer vários degraus no que a Igreja pós conciliar e o mundo atual preconizam e precisam. Multidões em algum lugar, escutando sermões, teológica e eclesialmente suspeitos, é tudo de que nós não precisamos no momento.

    Eu estava na maternidade onde nasceu a Rede Vida. Em Brasília, com os cardeais da época, discutindo a possibilidade de a CNBB assumir para si “uma Tv Católica”. Pela história, sabemos da recusa dos bispos a esta possibilidade. Mas Monteiro a ofereceu. Posto isso, ela se transformou numa “TV Católica” sem a CNBB! Creio que foi uma atitude sensata dos bispos e cardeais. Ter uma televisão porta voz da Igreja fica muito caro e é perigoso. Outros países já discutiram esta opção e não a endossaram.

    Está passando da hora de nos alinharmos com as ideias refrigeradas de Francisco ensopadas no Vaticano II e nas Conferências Latino Americanas. Não vejo sinceramente nenhuma contribuição deste “modelo de evangelização” usando padres-show e santuários, para uma Igreja que precisa se reinventar nos tempos de mudança de época em que nos encontramos. Muita tinta ainda correrá sobre este “fenômeno” dos anos 90 que chega até aos dias de hoje. A crise que enfrentamos hoje e que provoca na Igreja um ressurgimento da dimensão profética e de proximidade total com os sofredores, empobrecidos, descartados, discriminados e ateus, não encontra no padre Robson e tantos outros similares nenhuma empatia. Água e azeite não se misturam.

    [publicado em 24 de agosto no blog jotaparente.com]
  • PEDRO RIBEIRO – Indignação de um leigo católico

    Pedro A. Ribeiro de Oliveira, Juiz de Fora MG – Membro histórico do Iser Assessoria e da Coordenação Nacional Fé e Política

    Sei que desde o Batismo sou membro da Igreja. Só depois de crismado, porém, ao fazer o compromisso de militância na Juventude Estudantil Católica (Ação Católica) assumi conscientemente minha condição de leigo, isto é, membro do laos – povo – que tem a missão de evangelizar a sociedade. Já há mais de 60 anos procuro ser fiel a essa missão não só individualmente, mas como parte plena da Igreja Católica Romana, em comunhão com tantas pessoas que animam essa Igreja desde as Comunidades Eclesiais de Base até as Conferências Episcopais e a Diocese de Roma. Comovido pelo sofrimento de uma menina de dez anos vítima de cruéis estupros – que precisou recorrer ao Judiciário para interromper a gravidez resultante daquela violência e foi atendida num hospital de Recife – e solidário com os e as profissionais da saúde que a atenderam, me sinto na obrigação de expressar o profundo desconforto causado pelas manifestações de Bispos do Brasil.

    Duas falas publicadas no site da CNBB no dia 18/08 bastam como exemplos. O site reporta a fala de seu Presidente, D. Walmor A. Oliveira, referindo-se a “dois crimes hediondos”, sendo um a violência sexual e o outro a violência do aborto. Destaque maior é dado à manifestação de D. Ricardo Hoepers, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família, que fala do aborto como “um ato horrendo, de um ato abominável, nós demos a pena capital a um bebê.”

    A minha indignação tem duas causas. A primeira é com o simplismo intelectual dessas falas, que, seguindo a linguagem vulgar, não distingue embrião, feto e bebê, e ainda qualifica como pena capital um procedimento cirúrgico destinado a salvar a vida de uma menina. É possível que, no calor das emoções, esses bispos tenham exagerado nas figuras de linguagem, mas isso não justifica essa abordagem, que ao ser reproduzida pelas redes digitais causa confusão em pessoas de pouca escolaridade. Ninguém que eu conheço considera o aborto um método de contracepção equivalente a qualquer outro, e nenhuma mulher recorre a esse procedimento com a mesma serenidade com que vai ao dentista. Aborto é sempre uma decisão muito grave e deve ser tratada com respeito. Estima-se que, no Brasil, a cada ano cinco milhões de mulheres recorrem ao aborto. As que podem pagar o procedimento numa clínica, o fazem com segurança; mas as mulheres pobres arriscam a sua vida e muitas, inclusive jovens e adolescentes, morrem. Por isso, o debate deve ser feito com seriedade, levando em conta os conhecimentos científicos, a Ética e – para os cristãos – os preceitos bíblicos de defesa da Vida.

    A outra causa de minha indignação é pelo destaque eclesiástico dado a essas manifestações enquanto a Carta ao Povo de Deus, endossada por mais de 150 bispos foi oficialmente ignorada pela CNBB. Até parece que Francisco já previa isso ao referir-se às “ideologias que mutilam o coração do Evangelho: A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte”. (Gaudete Exsultate 101).

    Diante dessa realidade atual de minha Igreja, consola-me o que disse a mesma CNBB, nos sofridos anos da ditadura militar aberta, no Comunicado Pastoral ao Povo de Deus, de 25 de outubro de 1976. Cito apenas a Introdução, onde se lê “Nossa intenção é iluminar com a luz da Palavra de Deus os acontecimentos atuais para que os cristãos tomem, diante deles, uma atitude de fé e coragem, uma animação parecida com aquela que dá o livro do Apocalipse. Ao cristão é proibido ter medo. É proibido ficar triste”. E segue-se uma preciosa apresentação da realidade da época, com perseguição aos pobres e à Igreja, sempre relacionada ao Novo Testamento, que é a única fonte citada – ao todo, 14 vezes.

    Tendo vivido bastante para ver o apequenamento da CNBB, espero viver ainda o suficiente para ver também o seu ressurgimento, com esses novos bispos que, em sintonia com a proposta de Igreja em saída e com a valiosa colaboração das Pastorais Sociais, denunciam os sistemas e os governantes que destroem a Vida, ao mesmo tempo que anunciam a certeza de um novo céu e uma nova terra, movida pela mesma Esperança que deu vida à vida do santo Pedro do Araguaia.

    Juiz de Fora, 18 de agosto de 2020

    [O artigo foi publicado originalmente em fepolitica.org.br]

     

  • CARTA AO POVO DE DEUS

    Montagem da imagem Por Jornal GGN -27/07/2020

    CARTA AO POVO DE DEUS

    22 de julho de 2020.
    Festa de Santa Maria Madalena, “Apóstola dos Apóstolos”.

    Povo de Deus,
    a vós, graça e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Ef 1,2).
    Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância (Jo 10, 10).

    1. Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
    2. Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
    3. É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.
    4. O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.
    5. Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.
    6. É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
    7. Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
    8. Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.
    9. O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população; e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
    10. O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.
    11. No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
    12. Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
    13. Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?
    14. O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.
    15. Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).
    16. Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

     

    O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós.
    O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz!
    (Nm 6,24-26).

     

    1. Dom Adolfo Zon Pereira, SX, bispo de Alto Solimões, AM.
    2. Dom Adriano Ciocca Vasino, bispo prelado de São Félix do Araguaia, MT.
    3. Dom Ailton Menegussi, bispo de Crateús, CE.
    4. Dom Alberto Taveira Corrêa, arcebispo de Belém, PA.
    5. Dom Aldemiro Sena dos Santos, bispo de Guarabira, PB.
    6. Dom Aloísio Alberto Dilli, OFM, bispo de Santa Cruz do Sul, RS.
    7. Dom André Marie Gerard Camillade Witte, bispo emérito de Ruy Barbosa, BA.
    8. Dom Angélico Sandalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau, SC.
    9. Dom Antônio Carlos Cruz Santos, MSC, bispo de Caicó, RN.
    10. Dom Antônio Carlos Félix, bispo de Governador Valadares, MG.
    11. Dom Antônio Celso de Queirós, bispo emérito de Catanduva, SP.
    12. Dom Antônio de Assis Ribeiro, SDB, bispo auxiliar de Belém, PA.
    13. Dom Antônio Fernando Saburido. arcebispo de Olinda e Recife, PE.
    14. Dom Fr. Antônio Roberto Cavuto, OFMCap, bispo de Itapipoca, CE.
    15. Dom Armando Bucciol, bispo de Livramento de Nossa Senhora, BA.
    16. Dom Armando Martin Gutiérrez, bispo de Bacabal, MA.
    17. Dom Arnaldo Cavalheiro Neto, bispo de Itapeva, SP.
    18. Dom Benedito Araújo, bispo de Guajará-Mirim, RO.
    19. Dom Bernardo Johannes Bahlmann, OFM, bispo de Óbidos, PA.
    20. Dom Canísio Klaus, bispo de Sinop, MT.
    21. Dom Carlo Ellena, bispo emérito de Zé Doca, MA.
    22. Dom Carlos Alberto Breis Pereira, OFM, bispo de Juazeiro, BA.
    23. Dom Carlos Alberto dos Santos, bispo de Itabuna, BA.
    24. Dom Carlos Verzeletti, bispo de Castanhal, PA.
    25. Dom Claudio Cardeal Humnes, OFM, arcebispo emérito de São Paulo, SP.
    26. Dom Dario Campos, arcebispo de Vitória, ES.
    27. Dom Derek John Christopher Byrne, SPS, bispo de Primavera do Leste, Paranatinga, MT
    28. Dom Egidio Bisol, bispo de Afogados da Ingazeira, PE.
    29. Dom Edilson Soares Nobre, bispo de Oeiras, PI.
    30. Dom Edivalter Andrade, bispo de Floriano, PI.
    31. Dom Edmilson Tadeu Canavarros dos Santos, SDB, bispo auxiliar de Manaus, AM.
    32. Dom Edson Taschetto Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira, AM.
    33. Dom Eduardo Vieira dos Santos, bispo auxiliar de São Paulo, SP.
    34. Dom Élio Rama, bispo de Pinheiro, MA.
    35. Dom Erwin Kräutler, bispo prelado emérito do Xingu, Altamira, PA.
    36. Dom Estevam dos Santos Silva Filho, bispo de Ruy Barbosa, BA
    37. Dom Eugênio Rixen, bispo de Goiás, GO.
    38. Dom Evaldo Carvalho dos Santos, CM, bispo de Viana, MA.
    39. Dom Evaristo Pascoal Spengler, OFM, bispo prelado de Marajó, PA.
    40. Dom Fernando Barbosa dos Santos, CM, bispo prelado de Tefé, AM.
    41. Dom Fernando José Penteado, bispo emérito de Jacarezinho, PR.
    42. Dom Flávio Giovenale, bispo de Cruzeiro do Sul, AC.
    43. Dom Francisco Biasin, bispo emérito de Volta Redonda/Barra do Piraí, RJ.
    44. Dom Francisco Cota de Oliveira, bispo eleito de Sete Lagoas, MG.
    45. Dom Francisco de Assis Gabriel, CSsR, bispo de Campo Maior, PI.
    46. Dom Francisco Lima Soares, bispo de Carolina, MA.
    47. Dom Gabriel Marchesi, bispo de Floresta, PE.
    48. Dom Gentil Delazari, bispo emérito de Sinop, MT.
    49. Dom Geovane Luís da Silva, bispo auxiliar de Belo Horizonte, MG.
    50. Dom Getúlio Teixeira Guimarães, bispo emérito de Cornélio Procópio, PR.
    51. Dom Geremias Steinmetz, arcebispo de Londrina, PR.
    52. Dom Gilberto Pastana, bispo de Crato, CE.
    53. Dom Giovane Pereira de Melo, bispo de Tocantinópolis, TO.
    54. Dom Guido Zendron, bispo de Paulo Afonso, BA.
    55. Dom Guilherme Antônio Werlang, MSF, bispo de Lages, SC.
    56. Dom Gutemberg Freire Régis, CSsR, bispo emérito de Coari, AM.
    57. Dom Hernaldo Pinto Farias, SSS, Bispo de Bonfim, BA.
    58. Dom Irineu Andreassa, bispo de Ituiutaba, MG.
    59. Dom Irineu Roman, CSJ, arcebispo de Santarém, PA.
    60. Dom Itamar Vian, arcebispo emérito de Feira de Santana, BA.
    61. Dom Jailton de Oliveira Lino PSDP, bispo de Teixeira de Freitas-Caravelas, BA.
    62. Dom Jaime Vieira Rocha, Arcebispo de Natal, RN.
    63. Dom Jayme Henrique Chemello, bispo emérito de Pelotas, RS.
    64. Dom Jan Kot, OMI, bispo de Zé Doca, MA.
    65. Dom Jesús María Cizaurre Berdonces, OAR, bispo de Bragança, PA.
    66. Dom Jesús María López Mauleón, OAR, bispo prelado do Alto Xingu, Tucumã, PA.
    67. Dom Jesus Moraza Ruiz de Azúa. bispo prelado emérito de Lábrea, AM.
    68. Dom João Aparecido Bervamasco, SAC, bispo de Corumbá, MS.
    69. Dom João José Costa, OCarm, arcebispo de Aracaju, SE.
    70. Dom João Muniz Alves, OFM, bispo do Xingu-Altamira, PA.
    71. Dom JoãoSantos Cardoso, bispo de Bom Jesus da Lapa, BA.
    72. Dom João Justino de Medeiros Silva, arcebispo de Montes Claros, MG.
    73. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, bispo auxiliar de Belo Horizonte, MG.
    74. Dom Joaquim Pertiñez Fernandez, bispo de Rio Branco, AC.
    75. Dom Josafá Menezes, arcebispo de Vitória da Conquista, BA.
    76. Dom José Alberto Moura, arcebispo emérito de Montes Claros, MG.
    77. Dom José Albuquerque de Araújo, bispo auxiliar de Manaus, AM.
    78. Dom José Altevir da Silva, CSSp, bispo de Cametá, PA.
    79. Dom José Belisário da Silva, OFM, arcebispo de São Luís, MA.
    80. Dom José Benedito Cardoso, bispo auxiliar de São Paulo, SP.
    81. Padre José Celestino dos Santos, administrador diocesano de Ji-Paraná, RO.
    82. Dom José Haring, bispo emérito de Limoeiro do Norte, CE.
    83. Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV, bispo prelado de Itacoatiara, AM.
    84. Dom José Luís Azcona Hermoso, OAR, bispo prelado emérito de Marajó, PA.
    85. Dom José Luiz Bertanha, SDV, bispo emérito de Registro, SP.
    86. Dom José Luiz Ferreira Salles, CSsR, bispo de Pesqueira, PE.
    87. Dom José Maria Chaves dos Reis, bispo de Abaetetuba, PA.
    88. Dom José Mario Stroeher, bispo emérito de Rio Grande, RS.
    89. Dom José Moreira da Silva, bispo de Januária, MG.
    90. Dom José Moreira de Melo, bispo emérito de Itapeva, SP.
    91. Dom José Reginaldo Andrietta, bispo de Jales, SP.
    92. Dom José Roberto Silva Carvalho, bispo de Caetité, BA.
    93. Dom José Valdeci Santos Mendes, bispo de Brejo, MA.
    94. Dom JuarezSousa da Silva, bispo de Parnaíba, PI.
    95. Dom Juventino Kestering, bispo de Rondonópolis, MT
    96. Dom Leonardo Ulrich Steiner, OFM, arcebispo de Manaus, AM.
    97. Dom Limacêdo Antonio da Silva, bispo auxiliar de Olinda-Recife, PE.
    98. Dom Luciano Bergamin, CRL, bispo emérito de Nova Iguaçu, RJ
    99. Dom Luís Ferrando Lisboa, bispo emérito de Bragança, PA.
    100. Dom Luís Flávio Cappio, OFM, bispo de Barra, BA.
    101. Dom Luiz Demétrio Valentini, bispo emérito de Jales, SP.
    102. Dom Luiz Gonzaga Fechio, bispo de Amparo, SP.
    103. Dom Luiz Mancilha Vilela, arcebispo emérito de Vitória, ES.
    104. Padre Manoel Aparecido da Silva, administrador diocesano de Barreiras, BA.
    105. Dom Manoel João Francisco, bispo de Cornélio Procópio, PR.
    106. Dom Manoel de Oliveira Soares Filho, bispo de Palmeiras dos Índios, AL.
    107. Dom Manuel Ferreira dos Santos Júnior, MSC, bispo de Registro, SP.
    108. Dom Marcos Marian Piatek, CSsR, Bispo de Coari, AM.
    109. Dom Mariano Manzana, bispo de Mossoró, RN.
    110. Dom Mário Pasqualotto, PIME, bispo auxiliar emérito de Manaus, AM.
    111. Dom Martinho Lammers, bispo emérito de Óbidos, PA.
    112. Dom Mauro Montagnoli, bispo de Ilhéus, BA.
    113. Dom Mauro Morelli, bispo emérito de Duque de Caxias, RJ.
    114. Dom Meinrad Francisco Merkel, bispo de Humaitá, AM.
    115. Dom Milton Kenan Júnior, bispo de Barretos, SP.
    116. Padre Nadir Luiz Zanchet, Admistrador diocesano de Balsas, MA.
    117. Dom Neri José Tondello, bispo de Juína, MT.
    118. Dom Orlando Octacílio Dotti, OFM Cap, bispo emérito de Vacaria, RS.
    119. Dom Paulo Jackson Nóbrega de Sousa, bispo de Guaranhus, PE.
    120. Dom Pedro Casaldáliga, bispo prelado emérito de São Félix do Araguaia, MT.
    121. Dom Pedro José Conti, bispo de Macapá, AP.
    122. Dom Pedro Luiz Stringhini, bispo de Mogi das Cruzes, SP.
    123. Dom Paulo de Mascarenhas Roxo, bispo emérito de Mogi das Cruzes, SP.
    124. Dom Philip Eduard Roger Dickmans, bispo de Miracema do Tocantins, TO.
    125. Dom Plínio José Luz da Silva, bispo de Picos, PI.
    126. Dom Protógenes Luft, bispo de Barra do Garças, MT.
    127. Dom Roberto José da Silva, bispo de Janaúba, MG.
    128. Padre Roberto Oliveira Silva, administrador diocesano de Jequié, BA.
    129. Dom Romualdo Matias Kujawski, bispo de Porto Nacional, TO.
    130. Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, RO.
    131. Dom Rubival Cabral Britto, bispo de Grajaú, MA.
    132. Dom Santiago Sánchez Sebastián, bispo prelado de Lábrea, AM.
    133. Dom Sebastião Bandeira Coelho, bispo de Coroatá, MA.
    134. Dom Sebastião Lima Duarte, bispo de Caxias, MA.
    135. Dom Sergio Aparecido Colombo, bispo de Bragança Paulista, SP.
    136. Dom Sérgio Eduardo Castriani, CSSp, arcebispo emérito de Manaus, AM.
    137. Dom Severino Clasen, OFM, bispo de Caçador, SC.
    138. Dom Sílvio Guterres Dutra, bispo de Vacaria, RS.
    139. Dom Tarcisio Scaramussa, SDB, bispo de Santos, SP.
    140. Dom Teodoro Mendes Tavares, bispo de Ponta de Pedras, PA.
    141. Dom Tommaso Cascianelli, CP, bispo de Irecê, BA.
    142. Dom Valdemir Ferreira dos Santos, bispo de Amargosa, BA.
    143. Dom Valentim Fagundes de Meneses, MSC, bispo eleito de Balsas, MA.
    144. Dom Vicente de Paula Ferreira, C.Ss.R, bispo auxiliar de Belo Horizonte, MG.
    145. Dom Vilsom Basso, SCJ, bispo de Imperatriz- MA.
    146. Dom Vital Corbellini, bispo de Marabá, PA.
    147. Dom Vítor Agnaldo de Menezes, bispo de Propriá, SE.
    148. Dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, bispo emérito de Viana, MA.
    149. Dom Welington de Queiroz Vieira, bispo diocesano de Cristalândia, TO.
    150. Dom Wilmar Santin, OCarm, bispo prelado de Itaituba, PA.
    151. Dom Zanoni Demettino Castro, Arcebispo de Feira de Santana, BA.
    152. Dom Zenildo Luiz Pereira da Silva, CSsR, bispo prelado de Borba, AM.

     

  • Arthur Soffiati: A humanidade e as florestas em vista do Covid-19

    Publicado por  leonardoboff.org/  – em  03/08/2020

     Arthur Soffiati é um eminente ecologista, de Campos-RJ, já conhecido por suas contribuições neste blog. Vamos publicar uma série de três (3) artigos acerca das formas como os seres humanos se relacionaram com as florestas. Esta série é oportuna pois nos ajudará a entender o porquê da intrusão do coronavírus  no planeta inteiro. O foco predominante das análise se concentra na ciência, na técnica, nos insumos e da desenfreada busca  de uma vacina, o que é necessário e urgente. No entanto, vê-se  o Covid-19 isoladamente sem o seu contexto que é o capitalismo e o neoliberalismo que no afã de acumularem mais e mais riqueza e aumentarem o consumo está depredando a natureza  e pondo em risco a sustentabilidade do planeta Terra, limitado e com bens e serviços também limitados e, por isso, não suporta um projeto ilimitado. Esse ponto da natureza está praticamente ausente nas análises dos epidemiologistas.

    O vírus é consequência do antropoceno, vale dizer, dos seculares ataques dos seres humanos à natureza que reage como todo ser vivo quando atacado. O Covid-19 como o aquecimento global e toda uma série de vírus já enviados, representa uma represália da natureza contra as agressões da humanidade. A continuar esta dinâmica de super-exploração de todos os ecossistemas poderemos contar com mais vírus e, eventualmente, como alguns afirmam, com “o Big One“, com aquele grande e inexpugnável que afetará grande parte da biosfera e levará também milhões e milhões de seres humanos ao desaparecimento, não excluída a hipótese, de toda a espécie humana. Como nunca antes na história o ser humano é responsável por seu destino junto com a vida caso quiser viver ou aceitar absurdamente seu desaparecimento. Ou mudamos ou contemos com o pior.

    O estudo de Arthur Soffiati nos introduz nas várias  etapas da relação da humanidade para com as florestas até chegarmos ao ponto culminante atual com o contra-ataque da natureza à violência que lhe infligimos. Se quisermos ter futuro como espécie junto com a comunidade de vida, devemos fazer uma radical conversão ecológica, de respeito à natureza, aos seus ritmos e também aos limites que não podem ser ultrapassados. L.Boff

    Arthur Soffiati: A humanidade e as florestas

    Sempre e nunca são palavras que não devem ser usadas pelo historiador. O senso comum acredita que o ser humano sempre foi desmatador, caçador e poluidor. Que faz parte da natureza humana destruir a natureza não-humana. Por outro lado, não é raro ouvir que nunca houve um período em que a humanidade tenha se relacionado de forma equilibrada com a natureza. Associo arbitrariamente a origem da cultura ao Homo habilis, ancestral do Homo sapiens, há 1.400.000 anos passados. Supõe-se que os primeiros hominídeos, grupo zoológico do qual fazemos parte, desceram das árvores e se adaptaram às savanas. Sua economia baseava-se na coleta, caça e pesca. É de se perguntar por que o Homo habilis, o H. erectus, o H. neaderthalensis e H. sapiens desmatariam. Uma que outra árvore podia ser cortada ou queimada, mas não toda uma floresta. Não havia necessidade de desmatamento nem tecnologia capaz de tal proeza. No máximo, um incêndio provocado por raios ou por combustão espontânea. Também um incêndio ocasional depois da invenção das técnicas de produzir fogo.

    Até 10.000 anos passados, não houve necessidade de desmatar, porque a humanidade se organizava em pequenos grupos nômades que não incluíam em sua economia o uso de caules em larga escala. Com o aquecimento climático no início do Holoceno, algumas sociedades nômades inventaram a agricultura e o pastoreio. Comumente, as áreas para plantar e pastorear eram aquelas sem floresta, para facilitar o trabalho. Caso necessário, parte das florestas era derrubada para o plantio e o pastoreio. Elas também serviam para o fornecimento de lenha e de madeira. Contudo, o desmatamento era mínimo, já que a economia então vigente visava apenas a subsistência das sociedades.

    Com a formação das civilizações, o desmatamento aumentou. Ampliou-se a necessidade de campos de cultivo e de pastagem, bem como a necessidade de lenha e de madeira para construção. Há uma conhecida passagem na “Epopeia de Gilgámesh” em que o herói mitológico, com ajuda de seu amigo Enkídu, mata Humbaba, o protetor da floresta. Eram os primórdios da civilização mesopotâmica. A natureza ainda era protegida por entidades divinas e tinha um caráter sagrado. Gilgámesh é meio deus, meio humano. Depois de matar o protetor, ele destrói a floresta. Progressivamente, o sagrado cede lugar ao profano.

    Também na civilização chinesa, houve desmatamentos e caçadas colossais logo em sua fase inicial. Alguns historiadores sustentam que o confucionismo e o taoísmo são respostas culturais aos ataques contra a natureza e contra os humanos. Algo como uma tentativa de ressacralização do mundo. Na civilização Índica, que se desenvolveu no vale do rio Indo, atual Paquistão, a historiografia vem demonstrando que grandes desmatamentos contribuíram para seu fim. Como não havia pedra, os prédios e monumentos eram construídos com tijolos. Para seu cozimento, as matas foram transformadas em lenha. Entre os maias, a explicação mais consistente para explicar seu fim foi um grande desmatamento para ampliar campos de cultivo. Esses desmatamentos foram praticados em encostas de morros, contribuindo para a erosão e o assoreamento das partes baixas, onde havia brejos e lagoas.

    No diálogo “Timeu”, Platão narra que o desmatamento da península Ática transformou um corpo carnudo num esqueleto. Sua narrativa sobre os processos de erosão, empobrecimento dos solos e assoreamento do mar nas partes rasas é bastante atual. Na ilha de Páscoa, hoje conhecida com o nome original de Rapa-Nui, a construção de grandes ídolos de pedra exigiu uma base rolante para transportá-los do centro da ilha para a costa. Como não se conhecia a roda, usava-se o tronco da palmeira mais alta do mundo, existente na ilha, como rolamento. Assim, o desmatamento foi deixando a ilha desprotegida de cobertura florestal. Além do mais, cada grupo incendiava a mata de outro(s) como arma de guerra. Quando os europeus chegaram à ilha no século XVIII, Rapa-Nui estava devastada, erodida e assoreada.

    O desmatamento foi praticado em várias sociedades, com modos de produção distintos. Cada cultura construiu sua visão sobre as florestas. De sagradas a profanas, passando por concepções intermediárias. Nenhuma concepção, porém, transformou as matas em fonte de lucro como a ocidental em sua fase capitalista. Na sua fase de formação, entre o século V ao século XIV, vigorou o sistema feudalista de produção. Nele, as atividades rurais representavam o sustentáculo da economia. Partindo da Itália, os missionários cristãos não eram muito simpáticos às florestas porque elas eram sagradas para os povos ainda não convertidos e motivo de adoração. Depois de convertidos, eles eram instados a derrubar as matas. Mesmo assim, restaram muitas florestas, agora com caráter utilitário. Elas complementavam a economia feudal. Havia florestas comunais, ou seja, florestas que podiam ser usadas por todos, sobretudo pobres, para obtenção de lenha, madeira, água fresca e caça. Essa visão começa a ser mudada a partir do século XI, quando o capitalismo começa a progredir.

    Covid-19: A humanidade e as florestas (II)

    ARTHUR SOFFIATI  – leonardoboff.org – ATUALIZADO EM 10/08/2020

    Quando portugueses e espanhóis chegaram à África e à América respectivamente, no século XV, as florestas temperadas da Europa já estavam muito reduzidas. Elas foram progressivamente abatidas. Na África, a floresta tropical do Congo foi o que restou da grande floresta que cobria o Saara no início do Holoceno. Não houve um desmatamento descomunal que transformou uma grande mata num imenso deserto. Foram as mudanças climáticas naturais. Os povos que viviam na floresta congolesa extraíam recursos dela, mas sem comprometer sua integridade. O mesmo acontecia com a floresta equatorial da Indonésia. Além da floresta e do deserto, havia no continente africano extensas savanas e estepes habitadas por uma megafauna, que já era cobiçada pelos navegantes, sobretudo o elefante.

    No grande continente americano, os europeus encontraram as florestas temperadas do norte, a grande floresta amazônica e a Mata Atlântica. Além desses biomas, havia no interior o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal, os campos do Sul e as zonas geladas do Antártico. Os povos que habitavam a América (considerando-a um só continente, pois não havia países) usavam as florestas, mas as consideravam sagradas e merecedoras de respeito. Eles obtinham nelas recursos para sua subsistência, mas sem ultrapassar limites. Essa visão contemplativa está demonstrada nos depoimentos de índios da América do Norte reunidos no livro “Pés nus sobre a terra sagrada”. Na América do Sul, é ilustrativo o depoimento do xamã yanomami Davi Kopenawa.

    Pesquisas arqueológicas estão demonstrando que culturas avançadas se desenvolveram na Amazônia antes da chegada dos europeus. Como se sabe, os solos amazônicos são pobres. As florestas se retroalimentam naquela vastidão de planície. Solo preto em grande quantidade vem sendo encontrado pelos arqueólogos. A conclusão é que a floresta chegou a comportar cerca de dez milhões de habitantes reunidos em culturas distintas que exploravam a grande floresta mantendo-a em pé. A terra preta era fabricada para o cultivo de diversas espécies, inclusive arbóreas. As prospecções sugerem uma ou mais civilizações na Amazônia. As ricas cerâmicas de Marajó, de Maracá, de Santarém e outras confirmariam que houve ali culturas que alcançaram grau civilizacional. Cauteloso, prefiro considerá-las neolíticas avançadas.

    Além do mais, os europeus encontraram as adiantadas culturas dos Andes, da América Central e do Ártico, sem contar a cultura já declinante dos maias. Esta, ao que tudo indica, não soube lidar com a floresta e a devastou. Em parte, seu declínio se deve a essa remoção, segundo os estudiosos. No círculo polar ártico, não existiam florestas. Os denominados esquimós conseguiram desenvolver uma refinada cultura para viver no gelo. No México, o grande império asteca impressionou os europeus, o mesmo ocorrendo com o império inca nos Andes.

    Como mostra o historiador ambiental José Augusto Pádua no seu livro “Um sopro de destruição”, as luxuriantes florestas encontradas pelos portugueses na América alimentaram neles a concepção de que elas poderiam ser exploradas indefinidamente. Mais que concepção, pode-se falar numa síndrome de inesgotabilidade. Para quem deixou um continente com parcas manchas florestais, encontrar a Mata Atlântica pela frente alimentou a crença na sua infinitude. Logo nos primeiros tempos, a busca pelo pau-brasil estimulou um desmatamento ainda em pequenas proporções, ao mesmo tempo que alterava a concepção dos povos nativos. O famoso diálogo travado entre um velho tupinambá e o calvinista Jean de Léry ilustra duas visões de mundo não só distintas como antagônicas. O francês via dinheiro no pau-brasil. O tupinambá entendia que se tratava apenas de madeira, o que o levou a concluir que os europeus eram loucos. De fato, o sistema capitalista era algo inimaginável e inútil para o índio.

    Com a escolha da cana-de-açúcar para colonizar as terras reservadas a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, o primeiro grande tratado da globalização, exigiu-se desmatamento mais intensivo. Até o século XVII, as terras baixas foram depenadas. As florestas deram lugar aos canaviais e aos pastos. É de se perguntar por que os portugueses e seus descendentes no Brasil se contentaram com a Mata Atlântica até o século XIX. Os colonos tinham 1,3 milhão de quilômetros quadrados de floresta para explorarem. As árvores eram simplesmente queimadas para abrir espaço para as lavouras e pastagens. Além de não precisarem da Amazônia, os colonos não contavam com tecnologia para derrubar uma floresta que parecia infinita.

    Já existem artigos acadêmicos e livros demonstrando com documentos a visão que se tinha das florestas. Derrubá-las significava progresso e civilização. Havia algumas vozes no século XIX que já se opunham a uma tão grande devastação. Mas eram vozes isoladas. Havia quem condenasse o africano ou seu descendente escravizado como o culpado pelo desmatamento, quando, na verdade, eles cumpriam ordens do patrão, que por sua vez atendia às exigências de um capitalismo rasteiro. Por mais protestos isolados, o Brasil era uma grande fazenda dominada por rudes proprietários. Alguns cientistas também condenavam o desmatamento excessivo, como foi o caso de Auguste de Saint-Hilaire ao empreender excursões pelo Brasil. Nem a falta d’água na cidade do Rio de Janeiro causada pelo desmatamento do maciço da Tijuca, exigindo seu reflorestamento, foi suficiente para convencer a economia rural sobre a importância das matas.

     

    Arthur Soffiati: A Humanidade e as Florestas (final)

    Por LEONARDOBOFF.org – 17/08/2020

    Desde os anos de 1970, está havendo um descompasso entre a importância da floresta amazônica em pé e os interesses econômicos e políticos. Um documentário intitulado “No país da Amazônia”, dirigido por Joaquim Gonçalves de Araujo e datado de 1922, mostra uma floresta rica a ser conquistada, desbravada, explorada, derrubada. Converter a floresta derrubada em dinheiro significava progresso. Muitas árvores cortadas, muitos animais mortos e uma postura triunfalista são mostrados no documentário. Os índios são mostrados como animais ou quase. Tudo indica que o documentário foi produzido por interesses econômicos, dados os recursos caros empregados na filmagem.

    Outras aventuras dissonantes com a floresta foram praticadas na Amazônia, como a ferrovia Madeira-Mamoré e a Fordlândia. Elas foram recebidas com aplauso por representarem o desenvolvimento do Brasil. A partir da Conferência de Estocolmo, em 1972, a atitude em relação à grande floresta nos meios científicos e entre os ambientalistas mudou. Estudos progressivos foram mostrando a importância do grande bioma não só para o Brasil, mas para o cone sul e o mundo. Ela não é o pulmão da Terra, mas desempenha fundamental papel na troca de gases. Libera oxigênio, que não abastece o planeta, mas absorve gás carbônico que, junto com outros gases, agravam os efeito-estufa e aceleram as mudanças climáticas. A Terra sem a Amazônia lançaria na atmosfera várias giga toneladas de CO2.

    Mais ainda, a floresta em pé recebe as chuvas que provêm do oceano Atlântico e produz nuvens por evapotranspiração. Essas nuvens são empurradas para oeste, esbarram nos Andes e se dirigem para o sul, transformando-se em chuva na Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e nas regiões sudeste e sul do Brasil. Quem segue com o dedo o paralelo 24° S, encontrará os desertos de Atacama, de Kalahari e da Austrália. No Brasil, encontrará uma área outrora coberta pela exuberante Mata Atlântica. Mata Atlântica depende fundamentalmente da Amazônia. Sem a Amazônia, Sudeste e Sul do Brasil seriam um deserto como o de Atacama.

    Se Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia zelassem por sua oferta de água, reclamariam formalmente ao governo brasileiro por amaçar a umidade de seus países. Estudos de cientistas vêm demonstrando que a floresta também abriga animais hospedeiros de vírus, bactérias e protozoários sem serem afetados por eles. Com a captura desses animais e com o desmatamento, microrganismos patogênicos podem entrar na sociedade e deflagrar epidemias com potencial pandêmico. A hipótese mais consistente para a difusão do novo corona vírus pelo mundo é o habito oriental de consumir animais silvestres, como morcegos e pangolins, obtidos nas florestas. As oito espécies de pangolim são as mais ameaçadas de extinção do mundo. Sabe-se já, com segurança, que vírus africanos foram trazidos das florestas para a sociedade.

    Proteger a Amazônia, até recentemente, era uma preocupação de cientistas e ambientalistas. Com todas as advertências de que a grande floresta em pé representava uma garantia para a economia, o agronegócio, a mineração e a exploração de madeira continuaram aceleradas. Cientistas demonstraram que o desmatamento na Amazônia acima de 20% afetaria os outros 80% e a transformaria numa savana. As previsões já começaram a se confirmar. A Amazônia não está mais produzindo o antigo volume de água que abastece o mundo peri-amazônico. Nem mesmo está produzindo mais a água necessária à sua existência. Cerrado e Pantanal estão carentes de umidade. Nos períodos de estiagem, a secura está se acentuando e agravando os incêndios, como está acontecendo em 2020 no Pantanal, o maior incêndio registrado. Sudeste e Sul do Brasil estão com o abastecimento de água comprometido.

    Depois de se beneficiar excessivamente com o desmatamento da Amazônia, sobretudo com a abertura da Transamazônica pela ditadura militar, o agronegócio anuncia oficialmente que defende a grande floresta desde sua origem. A fala do atual ministro do ambiente, na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, mostra que ele atendia a um pedido da ministra da agricultura para legitimar as áreas desmatadas do que restou da Mata Atlântica. A bancada do boi no Congresso Nacional continua com seu tom agressivo em relação à proteção florestal. Os fundos de pensão e finanças internacionais pressionam o governo brasileiro – o pior de todos os tempos em termos de proteção ambiental e social – a assumir uma atitude de proteção da Amazônia. Tais fundos parecem estar atendendo a seus clientes. E o governo esperneia. De forma retrógada, agita um conceito de soberania nacional anacrônico. Hoje, a soberania do Brasil deve ser usada para proteger a Amazônia para os brasileiros e para o mundo, não para interesses particularistas mesquinhos. Propala que os países que condenam o Brasil derrubaram suas florestas. De fato, derrubaram quando esta prática ainda era aceita em nome do progresso. Agora, eles reflorestam. Sustenta que o fogo na Amazônia é uma mentira e que existe uma campanha internacional de difamação para internacionalizar a Amazônia. Por incrível que pareça é a mesma economia que predou a Amazônia que agora prega oficialmente sua defesa.

    O atual governo não saiu da década de 1930. Não quer se atualizar. Não conseguiu e nem conseguirá, com sua postura anacrônica, militarista e assustada com fantasmas inexistentes.

  • Roberto Malvezzi (Gogó) – A Santidade Política de Casaldáliga é um Incômodo

     

    Casaldáliga foi enterrado sob um pequizeiro, à margem do rio Araguaia, no cemitério dos Karajás e dos Peões.

    A santidade política de Casaldáliga, na sua dimensão ambiental-social-econômica, deita raízes na Igreja Primitiva. Não se trata de dar comida ou roupa pontualmente para um pobre, mas romper com as injustiças estruturais de uma sociedade e criar outro tipo de sociedade. Por isso, foi um teólogo, um místico, um pastoralista e um profeta da linha dos cristãos libertários. A vida de Casaldáliga se insere na moldura maior do anúncio de Jesus, isto é, a justiça e a misericórdia (Mateus 23,23).

    Em primeiro, Pedro era um místico, mas um místico político. Foi ele quem trouxe a categoria espiritual da “noite escura” do mundo subjetivo de Teresa D’Ávila e João da Cruz para a dimensão social: “a longa noite escura do neoliberalismo”. E ele buscava uma madrugada para essa longa noite.

    Segundo, Pedro era um revolucionário convicto e explícito. Apoiou a revolução Nicaraguense, Cubana e todas as insurreições na América Latina e Central, a exemplo de El Salvador. Como dizia ele, sou movido por “amor de revolução”. Portanto, era um homem do aqui e agora da história.

    Terceiro, quando amaldiçoava todas as cercas, Pedro era contra a propriedade privada, sobretudo da terra, da água e dos chamados bens comuns. Os Movimentos Populares Socioambientais acrescentam aí a educação, saúde, energia e alimentos. Por isso Pedro gostava tanto dos índios, também por sua dimensão de um socialismo primevo. Ele sabia que, um bem comum privatizado, não é mais um bem comum.

    Quarto, e por consequência, Pedro era socialista convicto. Uma vez, em conversa particular, dizendo que vivia com um salário mínimo, que nas suas viagens mal tinha dinheiro para comprar um bolo e um refrigerante, me disse: “não estamos preparados para viver socialisticamente”. Sim, reconheci, desse jeito eu também não estou, nunca estive.

    Por fim, Pedro era avesso a todo ritualismo romano da liturgia, com aquelas mitras, báculos, indumentárias, todas originadas da Idade Média e extemporâneas ao nosso mundo. Nunca vestiu esses adereços e preferiu seu chapéu de palha, sua roupa simples, suas sandálias, que caiam bem em um ambiente tão quente como o Araguaia. Assim também era Dom José Rodrigues, bispo aqui de Juazeiro da Bahia. Para completar, decidiu não ir mais às Visitas Ad Limina, onde os bispos se apresentam diante do Papa a cada cinco anos.

    Sim, sem perder a ternura jamais, a santidade política de Pedro é um incômodo, inclusive para mim. Pior, ou melhor, tudo em nome do Deus que ele acreditava, o Deus de Jesus de Nazaré, aquele crucificado e ressuscitado há uns dois mil anos.

    Esses dias a esperança inabalável de Pedro ancorou às margens do Araguaia.

    Texto recebido pelo facebook

  • O bom odor de Pedro do Araguaia

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    defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!”

    O bom odor de Pedro” – Por Solange do Carmo para http://fiquefirme.com.br/ – 09 de agosto de 2020 –

    Bem aventurados vós, os pobres” (Lc 6,20)

    “Na dúvida, fique do lado dos pobres”
    (Pedro Casaldáliga)

    O sábado, 08 de agosto, amanheceu mais cinzento pois Pedro partiu. Sim, Pedro. Era assim que ele gostava de ser chamado, pelo nome de batismo, sem nenhum título. Sem ele, o Brasil ficou mais sombrio, mais silencioso, mais inodoro e mais órfão. Por sua consciência política e sua coragem de denúncia, Pedro foi ameaçado, perseguido, jurado de morte, mas não recuou. Resistiu e prometeu que morreria de pé como as árvores da floresta. Tombado pelo cansaço da vida e não por uma bala de revólver, o bispo do Araguaia morreu martirizado pela doença de Parkinson, nos ensinando que é preciso alimentar a utopia de uma terra sem males, onde todos têm os direitos garantidos e não há explorador nem explorado.

    O jovem Pedro veio da Espanha para anonimamente servir os pobres do Brasil. Mas, como o amor exala bom odor (2Cor 2,14-16), logo Pedro ficou conhecido pelo perfume da fé que exalava. Seu cheiro bom encantou mulheres e homens sofredores, que viram nele uma espécie de pai dos pobres. Esse título, em outros tempos dado a são Vicente de Paulo, cabe bem ao bispo do Araguaia. Sua caridade, porém, percorreu caminhos bem diferentes da difundida por Vicente, cuja filantropia imediata saciava a fome dos famintos e socorria os desabrigados. Pedro encarnou a vida do pequeno, do menor de todos, do mais insignificante dos humanos. Despojou-se de todo conforto, de toda segurança, de toda regalia, ao modo franciscano. Viveu junto dos explorados do Araguaia e se fez um deles. Mas também a comparação com o Pobrezinho de Assis não faz jus à vida de Pedro. Talvez Pedro pudesse ser comparado ao santo Oscar Romero, mártir da América Latina, cruelmente assassinado no altar, cuja vida foi unida à de Cristo num só sacrifício. Mas, apesar da mesma bravura, os dois bispos se distinguem. A poesia de Pedro, sua vida às margens do Araguaia, e sua sensibilidade para questões urgentes do nosso tempo, fazem-no uma pessoa singular.

    Pedro inaugurou um novo modelo de santidade que não cabe nos moldes canônicos da Igreja. Sua via de santificação foi a resoluta decisão política de enfrentamento dos exploradores e de defesa dos subalternizados, a começar pelas populações originárias. Suas causas ultrapassavam os muros da eclesia e se faziam incômodas para os grandes da Terra. Seu modo de ser cristão era único, seu apostolado episcopal era inusitado e sua visão de igreja era inconveniente. Sua piedade era rebelde, sua religiosidade subversiva e sua fé, escandalosa.

    Quando ninguém nas igrejas falava de direitos dos indígenas ou de respeito aos deuses dos quilombos, Pedro, criava o CIMI e a pastoral da Terra. O bispo poeta fazia ecoar seus versos em favor dessa gente sem voz. A famosa missa dos quilombos, musicada por Milton Nascimento, fez história. Tornou-se peça de teatro e incomodou os poderosos por ocasião da ditadura.

    Quando nas igrejas ainda não se falava de defesa do meio ambiente, nem havia o Francisco de Roma escrevendo a Laudato Si, Pedro protegia as matas, os bichos e toda espécie de vida. Amaldiçoava as queimadas, as cercas e o direito de possuir a terra, entendida como dom de Deus para a vida de todos.

    Quando nas igrejas ainda não se falava da maldição do garimpo e da indústria madeireira, Pedro levantava sua voz nos advertindo acerca dos perigos de exaurir a terra, de derrubar as matas e de poluir os rios. Enfrentou, junto aos pequenos agricultores e posseiros, os poderosos que querem exaurir o solo e ser donos das águas.

    Quando nas igrejas não se falava de agricultura orgânica, nem dos males causados pelos defensivos agrícolas, Pedro abominava os agrotóxicos e preservava as sementes autóctones.

    Quando nas igrejas não se falava ainda da falência do modelo econômico capitalista, Pedro sonhava com um mundo fraterno no qual o dinheiro não era senhor, nem o mercado seu reino. Colocou em versos sua paz inquieta; tornou conhecida sua indignação e inconformidade com os esquemas de privilégio de alguns em detrimento da escravidão de uma multidão.

    Por tudo isso e muito mais, Pedro é um tipo de santo que não pode ser canonizado. Sua vida não pode ser enjaulada na política de privilégios que a Igreja estabelece para declarar uma vida como santa aos olhos dos crentes. Canonizar Pedro seria privatizar sua vida pública, estabelecer direitos autorais sobre seus escritos, conformar sua poesia rebelde aos devocionismos católicos, calar sua voz profética. O bispo de punhos cerrados não combinaria com os santos de mãos postas.

    Duvido que Pedro aceitaria fazer dois milagres para garantir sua santidade. O bispo rebelde do Araguaia, que não assinou a penalidade do silêncio obsequioso imposto pelo papa João Paulo II, boicotaria toda tentativa de usar seu nome para promoção da Igreja institucional. Aquele que viveu pobre e morreu pobre reviraria no seio da terra se visse um só tostão ser gasto no processo de sua canonização. E, ainda, Pedro detestaria que sua vida ganhasse cercas – todas elas malditas no dizer do pobre do Araguaia – e ele não pudesse mais ser sinal para todos, católicos e não católicos, crentes e não crentes. Por fim, canonizar Pedro seria ferir sua honra colocando à frente de seu nome um título. Na sua kênose, Pedro desprezou toda titulação e somente como Pedro queria ser chamado.

    Além do mais, parece no mínimo estranho cultuar inquisidores canonizados pelos papas Pios e Pedro ao mesmo tempo. Seria constrangedor Pedro e são João Paulo II no mesmo altar; o primeiro rompendo com todo laço com os grandes do mundo e o segundo aliado a presidentes de impérios e monarcas conservadoras. Não dá para imaginar Pedro e santos monarcas, como Luiz da França ou santa Helena, empenhados nas mesmas causas terrenas. A não ser que o céu esteja dividido em departamentos e que cada santo – como um deus do Panteon – cuide de uma causa específica, não há lugar para Pedro no mundo dos santificados. Haveria dissenso no céu, porque o rebelde do Araguaia não se calaria nem mesmo no estágio das beatitutes divinas.

    Por tudo isso, defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!

  • A Missa dos Quilombos de Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento


    Por Osvaldo Bertolino – Publicado 08/08/2020 em vermelho.org.br

    Arte e ato religioso se combinaram para denunciar as consequências da escravidão e do preconceito no Brasil. A Missa dos Quilombos, atitude revolucionária de membros da Igreja Católica, foi uma combinação de fé, comunhão, música e ritmo.

    Criação de dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, com música de Milton Nascimento, a Missa dos Quilombos expôs o que representa a escravidão e sua herança no Brasil. Um documentário da TV Senado relata a importância histórica da obra. A equipe da emissora viajou para São Félix do Araguaia, Rio de Janeiro e Belo Horizonte para colher depoimentos exclusivos dos três autores e outros personagens.

    A Missa foi inicialmente celebrada na cidade de Recife, em 20 de novembro de 1981, para um público de 8 mil pessoas e se transformou em peça de teatro, dirigida por Luiz Fernando Lobo. O documentário mostra depoimentos do bispo dom José Maria Pires, que conduziu a cerimônia em Recife; do diretor teatral Luiz Fernando Lobo, que dirigiu o espetáculo homônimo encenado pela Cia. Ensaio Aberto; do compositor Fernando Brant; do percussionista Robertinho Silva e de todos os músicos, artistas e produtores envolvidos na história.

    Além do depoimento emocionado de Milton Nascimento, dom Pedro Casaldáliga fala sobre o sentido revolucionária da Missa. Com direção de Liloye Boubli e produção de Cláudia Rangel, o documentário estreou em novembro de 2006, mês em que a Missa completou 25 anos desde a sua celebração em Recife.

    Segundo dom Pedro Casaldáliga, o objetivo da Missa foi uma retratação aos povos negros, herdeiros dos escravos. “Para escândalo de muitos fariseus e para alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da história, esta máxima culpa cristã”, disse ele. “Mas um dia, uma noite, surgiram os quilombos, e entre todos eles, o Sinaí Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi”, afirmou.

    Assim pensou o bispo do povo. E por isso foi perseguido e ameaçado, várias vezes acusado de comunista, inclusive por alguns dos seus pares da Igreja Católica. Mas também foi reconhecido por sua contribuição às causas do povo. Com sua sensatez e serenidade, estava sempre presente nos debates sobre as demandas populares. Inclusive fora do Brasil, como no encerramento do diálogo juvenil e estudantil da América Latina e do Caribe sobre a dívida externa, realizada em Cuba no ano de 1985. Com sua pausada voz característica, ele ocupou a tribuna e conclamou os jovens ao sagrado exercício da rebeldia.

    Em 2004, foi um dos organizadores da Agenda Latino-americana, lançada no Parlamento Latino Americano – composto por 22 países – com dados, análises e propostas para o combate a “uma nova fase do império”.

    Quando começaram as denúncias golpistas contra o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dom Pedro Casaldáliga também se apresentou ao debate. Em artigo publicado no Jornal do Brasil, fez críticas ao governo e ao Partido dos Trabalhadores (PT), mas enfatizou que “os grandes meios de comunicação e os grandes do dinheiro se refocilam com essa situação”. “A corrupção vem de longe e antes era maior e era a corrupção deles”, resumiu.
    Confira:
    1) um documentário sobre a primeira Missa dos Quilombos

    2) A Missa dos Quilombos pela Companhia Ensaio Aberto

  • Jornal do Vaticano: Pedro Casaldáliga da terra e do povo  

    “Vão me chamar de subversivo. E vou dizer a eles: sou mesmo. Para o meu povo em luta, eu vivo. Com o meu povo em marcha, eu vou”. É o início de um poema de D. Pedro Casaldáliga Plá, bispo emérito de São Félix, no estado de Mato Grosso, que morreu aos 92 anos no sábado, 8 de agosto, em Batatais (São Paulo), em decorrência de problemas respiratórios agravados pelo mal de Parkinson de que sofria há anos. E foi realmente poeta e sobretudo “subversivo”, D. Casaldáliga, quando em 1968, missionário claretiano, deixou a sua Espanha natal para chegar ao Brasil onde morou por toda a vida, uma opção radical de vida e de fé; e quando, poucos dias depois de ser nomeado bispo (por Paulo VI que sempre o defendeu), escreveu sua primeira carta pastoral, Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, que se tornou um texto profético, manifesto de denúncia para a proteção das populações indígenas, do meio ambiente, das mulheres, contra a pobreza, a escravidão, a marginalização, os latifundiários, a ditadura.

    A reportagem é de Giovanni Zavatta, publicada por L’Osservatore Romano, 10-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini para o IHU, 11 Agosto 2020.

    Era 10 de outubro de 1971 e o Brasil, com o General Emílio Garrastazu Médici como Presidente da República, vivia um dos períodos mais difíceis de sua história, caracterizado pela violência e repressão. Dom Pedro ergueu-se a baluarte dos direitos dos mais fracos e indefesos, em particular indígenas e agricultores sem mais terra: “Estas páginas – escreve na carta – são simplesmente o grito de uma Igreja amazônica, a prelazia de São Félix, no Mato Grosso, contra o latifúndio e a marginalização social de fato institucionalizada. Por dever como pastor e por solidariedade humana”, o silêncio não pode mais ser tolerado. Dizer a verdade é “um serviço”, tem por finalidade “tornar-nos livres”.

    Há quase cinquenta anos Casaldáliga Plá criou a divisão, entre um antes e um depois, chamou a Igreja local para denunciar “erros e omissões”, porque o ponto de referência é “o Evangelho” e, também, “o Vaticano II, Medellín, o último sínodo”, o de 1971, dedicado ao tema O sacerdócio ministerial e a justiça no mundo. Salienta, citando um dos textos sinodais, que “o testemunho (função profética) da Igreja no mundo terá pouca ou nenhuma validade se não demonstrar ao mesmo tempo a sua eficácia no empenho pela libertação dos homens também neste mundo”. Por outro lado, “a Igreja deve envidar todos os esforços para defender a verdade da sua mensagem, mas, se não a identificar com um amor dedicado à ação, essa mensagem cristã corre o risco de não oferecer mais nenhum sinal de credibilidade ao homem de hoje”. A divulgação da carta pastoral – segundo o sociólogo José de Souza Martins “um dos documentos mais importantes da história social do Brasil” – foi proibida pela Polícia Federal e monsenhor Casaldáliga foi ameaçado de morte (em 11 de outubro de 1976, em um presídio, uma bala provavelmente destinada a ele atingiu e matou o padre jesuíta João Bosco Burnier que estava com ele) e de expulsão do país. Mas ele nunca saiu.

    Nasceu em Balsareny, na Catalunha, em 16 de fevereiro de 1928, de uma família de agricultores, em 1943 ingressou na Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos). Foi ordenado sacerdote em 31 de maio de 1952 em Montjuïc (Barcelona) e em 1968 mudou-se como missionário para o Brasil. Paulo VI nomeou-o prelado de São Félix do Araguaia em 27 de agosto de 1971, consagrando-o bispo no 23 de outubro seguinte. Desde então, em um Mato Grosso marcado pelo analfabetismo e pela marginalização social, onde quem mandava eram os proprietários das terras, Dom Pedro se tornou o “teólogo da libertação”, “profeta dos pobres”, “bispo do povo”. “Aqui – dizia ele – mata-se e morre-se mais do que se vive. Aqui, matar ou morrer é mais fácil, ao alcance de todos, do que viver”. Seu objetivo era um modelo de Igreja engajada em campo, por meio de pequenas comunidades de base, espalhadas pelas ruas, com estrutura participativa, corresponsável e democrática. Nesse sentido, observa o teólogo Juan José Tamayo, Casaldáliga “é um exemplo da globalização de baixo, das vítimas, ou seja, da alter-globalização da esperança diante do pessimismo instalado na sociedade”. Uma existência vivida pelas causas da libertação dos povos oprimidos que, dizia D. Pedro, “são mais importantes do que a minha própria vida”.

    O Papa Francisco, na exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, cita um de seus belos poemas: “Flutuam sombras de mim, madeiras mortas. Mas a estrela nasce sem censura sobre as mãos deste menino, especialistas que conquistam as águas e a noite. Bastar-me-á saber que Tu me conheces inteiramente, ainda antes dos meus dias”. Navegando pelo Tocantins amazônico, ler as águas como um sonho, tendo o Senhor como guia: a Terra e Deus Para  D. Pedro Casaldáliga, um todo verdadeiramente indissolúvel.

  • Fritjof Capra: Pandemia é resposta biológica do planeta

    Foto por Folhapress

    Por: FOLHAPRESS – FERNANDA MENA – 10/08/2020

    Autor de “O Tao da Física” relaciona desigualdade social, economia predatória e devastação ambiental ao surgimento do novo coronavírus.

    Ícone do pensamento sistêmico, o físico e ambientalista austríaco Fritjof Capra, 81, interpreta a pandemia da Covid-19 como uma resposta biológica da Terra diante de emergências sociais e ecológicas amplamente negligenciadas.

    Segundo Capra, as mudanças de paradigma necessárias a essas emergências já são possíveis, tanto do ponto de vista do conhecimento quanto do desenvolvimento tecnológico. “Teremos a vontade política que falta?”, provoca ele, em entrevista à Folha por e-mail.

    Autor de best-sellers internacionais como “O Tao da Física” e “Ponto de Mutação” (Cultrix), entre outros, o Capra articulou a física moderna a uma visão holística da vida no planeta e dos fenômenos naturais, inserindo a humanidade e suas ações nos ciclos de transformação da vida no planeta.

    Capra é uma das estrelas deste ano do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, cujo tema — Reinvenção do humano — implica num debate de múltiplas variáveis que, na visão do físico austríaco, são sempre indissociáveis e interdependentes.

    Diretor do Centro de Alfabetização Ecológica, com sede em Berkeley, na Califórnia (EUA), Capra desenvolveu uma pedagogia da ecologia a ser aplicada no ensino formal, primário e secundário.

    Convertido em ambientalista por sua própria pesquisa, o austríaco há décadas denuncia o caráter predatório da economia global capitalista extrativista e a captura corporativa da política, que sucumbe a interesses econômicos em detrimento dos recursos naturais do que chama de Gaia —a Mãe-terra da mitologia grega que batizou uma visão do planeta como um imenso organismo vivo.

    Para ele, estão equivocadas as atuais métricas do desenvolvimento baseadas no crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) a partir de uma cultura de excessos, que implica em perdas sociais e econômicas.

    Veja a entrevista concedida a  Folha:

    Em quais aspectos o momento presente pode redefinir a condição humana?
    Na minha visão, o coronavírus deve ser visto como uma resposta biológica de Gaia, nosso planeta vivo, à emergência social e ecológica que a humanidade criou para si própria. A pandemia emergiu de um desequilíbrio ecológico e tem consequências dramáticas por conta de desigualdades sociais e econômicas.

    Cientistas e ativistas ambientais há décadas vêm alertado para as terríveis consequências de sistemas sociais, econômicos e políticos insustentáveis. Mas até agora as lideranças corporativas e políticas teimaram em resistir a esses alarmes. Agora eles foram forçados a prestar atenção, já que a Covid-19 trouxe os avisos de antes para a realidade de hoje.

    Quais paradigmas a humanidade precisa mudar e por quê?
    Com a pandemia, Gaia nos trouxe lições valiosas capazes de salvar vidas. A questão é: teremos a sabedoria e a vontade política necessárias para ouvir essas lições? Mudaremos do modelo de crescimento econômico indiferenciado baseado no extrativismo para outro de crescimento qualitativo e regenerativo? Vamos substituir combustíveis fósseis por formas renováveis de energia que dêem conta de todas as nossas necessidades? Vamos substituir nosso sistema centralizado de agricultura industrial com uso intensivo de energia por um sistema orgânico de agricultura regenerativa, familiar e comunitária? Vamos plantar bilhões de árvores capazes de retirar o CO2 da atmosfera e de restaurar diferentes ecossistemas do mundo?

    Nós já temos o conhecimento e a tecnologia para embarcar em todas essas iniciativas. Teremos a vontade política que falta? Num momento em que o valor do conhecimento científico biológico e tecnológico se mostram tão importantes, qual é o papel das humanidades?
    Isso está diretamente relacionado a sua pergunta anterior. Se temos todo o conhecimento científico e tecnológico para construirmos um futuro sustentável, porque não o fazemos simplesmente?

    Quando refletimos sobre essa questão crucial, rapidamente percebemos que o nível conceitual não conta toda essa história. Nós também precisamos lidar com valores e éticas, e é por isso que as ciências humanas são mais importantes do que nunca. Literatura, filosofia, história, antropologia podem todas nos imbuir do compasso moral que tanto falta à política e à economia atuais.

    Índices de desmatamento têm aumentado na Amazônia brasileira. Quais são os incentivos para isso?
    Esses crimes são uma consequência direta da obsessão com o crescimento econômico e corporativo. A devastação de grandes áreas de florestas tropicais é impulsionada pela ganância de corporações multinacionais do setor de alimentação, que buscam incansavelmente lucro e crescimento.

    Se o que chamamos de progresso foi atingido à custa de danos ao meio ambiente, nossa ideia de progresso está errada?
    A crença em um progresso contínuo e, em particular, a obsessão de nossos economistas e políticos com a ilusão de um crescimento ilimitado em um planeta finito constituem o dilema fundamental que permeia nossos problemas globais.

    Isso equivale ao choque entre o pensamento linear e os padrões não lineares da nossa biosfera — a interdependência dos sistemas ecológicos e os ciclos que constituem a teia da vida. Essa rede global altamente não linear contém inúmeras alças de retroalimentação por meio das quais o planeta se regula e se equilibra.

    Nosso sistema econômico atual, ao contrário, parece não reconhecer a existência de limites. Nele, um crescimento perpétuo é perseguido incessantemente através da promoção do consumo excessivo e de uma economia do descarte que usa de maneira extravagante tanto recursos como energia, aumentando a desigualdade econômica.

    Esses problemas são exacerbados pela emergência climática global, causada pelas tecnologias de uso intensivo de energia e baseada em combustíveis fósseis.

    Com a pandemia, projeções apontam para o aprofundamento das já marcantes desigualdades sociais de nosso tempo. O que as produziu e como reverter esse processo?
    O aprofundamento das desigualdades é uma característica inerente ao sistema econômico capitalista de hoje. O chamado “mercado global” é, em verdade, uma rede de máquinas programadas de acordo com o princípio fundamental segundo o qual ganhar dinheiro tem primazia sobre direitos humanos, democracia, proteção ambiental.

    Valores humanos, no entanto, podem mudar porque eles não são leis naturais. A mesma rede eletrônica de fluxos financeiros pode ter nela embutidos outros valores. O ponto crítico não é a tecnologia, mas a política.

    Há sinais de mudanças neste sentido na política de hoje?
    Uma nova liderança começou a emergir recentemente em uma série de movimentos jovens muito potentes, como Sunrise Movement, Extinction Rebellion, Fridays for Future, entre outros.

    Há também a ascensão de uma nova geração de políticos, curiosamente formada por mulheres, como a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinta Arden, a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, ou a congressista [democrata] norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez.

    A crise atual prescreve nossa percepção de soberania e de globalização? Como?
    Com certeza absoluta! Para prevenir o alastramento da pandemia, agora e no futuro, teremos de reduzir densidades populacionais excessivas, como ocorre no turismo de massa e em condições de vida marcadas pela superlotação. Ao mesmo tempo, necessitamos de cooperação global.

    A justiça social se torna uma questão de vida ou morte durante uma pandemia como a da Covid-19. E ela só pode ser superada por meio de ações coletivas e cooperativas.

    Seu trabalho explorou a interconectividade entre as ciências e os conceitos e filosofias considerados não-científicos. Como esse diálogo complexifica nosso entendimento do planeta e da humanidade?

    Eu me formei como físico e fiquei fascinado pelas implicações da física quântica, que nos mostra que o mundo material não é uma máquina gigante, mas uma rede inseparável de padrões de relações. Durante os anos 1980, minha pesquisa virou para a área das ciências da vida, da qual tem emergido um novo conceito sistêmico que confirma a fundamental interconectividade e interdependência de todos os fenômenos naturais.

    Quando nós entendemos que compartilhamos não apenas as moléculas básicas da vida, mas também princípios elementares de organização com o restante do mundo vivo, percebemos o quão firme estamos costurados em todo o tecido da vida.

    O que você aprendeu com a pandemia?
    Tem sido incrível para mim ver como o coronavírus expôs tantas injustiças ecológicas, sociais e raciais omitidas por décadas pelas mídias de massa.

    Também fiquei espantado de ver como, em um curto espaço de tempo, a poluição quase desapareceu da baía de São Francisco, na Califórnia (EUA), onde eu vivo, assim como ocorreu em várias das grandes cidades do mundo. Isso me encheu de esperança quanto à capacidade da Terra de se regenerar.

     

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