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Artigo

  • Roberto Malvezzi (Gogó) – A Santidade Política de Casaldáliga é um Incômodo

     

    Casaldáliga foi enterrado sob um pequizeiro, à margem do rio Araguaia, no cemitério dos Karajás e dos Peões.

    A santidade política de Casaldáliga, na sua dimensão ambiental-social-econômica, deita raízes na Igreja Primitiva. Não se trata de dar comida ou roupa pontualmente para um pobre, mas romper com as injustiças estruturais de uma sociedade e criar outro tipo de sociedade. Por isso, foi um teólogo, um místico, um pastoralista e um profeta da linha dos cristãos libertários. A vida de Casaldáliga se insere na moldura maior do anúncio de Jesus, isto é, a justiça e a misericórdia (Mateus 23,23).

    Em primeiro, Pedro era um místico, mas um místico político. Foi ele quem trouxe a categoria espiritual da “noite escura” do mundo subjetivo de Teresa D’Ávila e João da Cruz para a dimensão social: “a longa noite escura do neoliberalismo”. E ele buscava uma madrugada para essa longa noite.

    Segundo, Pedro era um revolucionário convicto e explícito. Apoiou a revolução Nicaraguense, Cubana e todas as insurreições na América Latina e Central, a exemplo de El Salvador. Como dizia ele, sou movido por “amor de revolução”. Portanto, era um homem do aqui e agora da história.

    Terceiro, quando amaldiçoava todas as cercas, Pedro era contra a propriedade privada, sobretudo da terra, da água e dos chamados bens comuns. Os Movimentos Populares Socioambientais acrescentam aí a educação, saúde, energia e alimentos. Por isso Pedro gostava tanto dos índios, também por sua dimensão de um socialismo primevo. Ele sabia que, um bem comum privatizado, não é mais um bem comum.

    Quarto, e por consequência, Pedro era socialista convicto. Uma vez, em conversa particular, dizendo que vivia com um salário mínimo, que nas suas viagens mal tinha dinheiro para comprar um bolo e um refrigerante, me disse: “não estamos preparados para viver socialisticamente”. Sim, reconheci, desse jeito eu também não estou, nunca estive.

    Por fim, Pedro era avesso a todo ritualismo romano da liturgia, com aquelas mitras, báculos, indumentárias, todas originadas da Idade Média e extemporâneas ao nosso mundo. Nunca vestiu esses adereços e preferiu seu chapéu de palha, sua roupa simples, suas sandálias, que caiam bem em um ambiente tão quente como o Araguaia. Assim também era Dom José Rodrigues, bispo aqui de Juazeiro da Bahia. Para completar, decidiu não ir mais às Visitas Ad Limina, onde os bispos se apresentam diante do Papa a cada cinco anos.

    Sim, sem perder a ternura jamais, a santidade política de Pedro é um incômodo, inclusive para mim. Pior, ou melhor, tudo em nome do Deus que ele acreditava, o Deus de Jesus de Nazaré, aquele crucificado e ressuscitado há uns dois mil anos.

    Esses dias a esperança inabalável de Pedro ancorou às margens do Araguaia.

    Texto recebido pelo facebook

  • O bom odor de Pedro do Araguaia

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    defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!”

    O bom odor de Pedro” – Por Solange do Carmo para http://fiquefirme.com.br/ – 09 de agosto de 2020 –

    Bem aventurados vós, os pobres” (Lc 6,20)

    “Na dúvida, fique do lado dos pobres”
    (Pedro Casaldáliga)

    O sábado, 08 de agosto, amanheceu mais cinzento pois Pedro partiu. Sim, Pedro. Era assim que ele gostava de ser chamado, pelo nome de batismo, sem nenhum título. Sem ele, o Brasil ficou mais sombrio, mais silencioso, mais inodoro e mais órfão. Por sua consciência política e sua coragem de denúncia, Pedro foi ameaçado, perseguido, jurado de morte, mas não recuou. Resistiu e prometeu que morreria de pé como as árvores da floresta. Tombado pelo cansaço da vida e não por uma bala de revólver, o bispo do Araguaia morreu martirizado pela doença de Parkinson, nos ensinando que é preciso alimentar a utopia de uma terra sem males, onde todos têm os direitos garantidos e não há explorador nem explorado.

    O jovem Pedro veio da Espanha para anonimamente servir os pobres do Brasil. Mas, como o amor exala bom odor (2Cor 2,14-16), logo Pedro ficou conhecido pelo perfume da fé que exalava. Seu cheiro bom encantou mulheres e homens sofredores, que viram nele uma espécie de pai dos pobres. Esse título, em outros tempos dado a são Vicente de Paulo, cabe bem ao bispo do Araguaia. Sua caridade, porém, percorreu caminhos bem diferentes da difundida por Vicente, cuja filantropia imediata saciava a fome dos famintos e socorria os desabrigados. Pedro encarnou a vida do pequeno, do menor de todos, do mais insignificante dos humanos. Despojou-se de todo conforto, de toda segurança, de toda regalia, ao modo franciscano. Viveu junto dos explorados do Araguaia e se fez um deles. Mas também a comparação com o Pobrezinho de Assis não faz jus à vida de Pedro. Talvez Pedro pudesse ser comparado ao santo Oscar Romero, mártir da América Latina, cruelmente assassinado no altar, cuja vida foi unida à de Cristo num só sacrifício. Mas, apesar da mesma bravura, os dois bispos se distinguem. A poesia de Pedro, sua vida às margens do Araguaia, e sua sensibilidade para questões urgentes do nosso tempo, fazem-no uma pessoa singular.

    Pedro inaugurou um novo modelo de santidade que não cabe nos moldes canônicos da Igreja. Sua via de santificação foi a resoluta decisão política de enfrentamento dos exploradores e de defesa dos subalternizados, a começar pelas populações originárias. Suas causas ultrapassavam os muros da eclesia e se faziam incômodas para os grandes da Terra. Seu modo de ser cristão era único, seu apostolado episcopal era inusitado e sua visão de igreja era inconveniente. Sua piedade era rebelde, sua religiosidade subversiva e sua fé, escandalosa.

    Quando ninguém nas igrejas falava de direitos dos indígenas ou de respeito aos deuses dos quilombos, Pedro, criava o CIMI e a pastoral da Terra. O bispo poeta fazia ecoar seus versos em favor dessa gente sem voz. A famosa missa dos quilombos, musicada por Milton Nascimento, fez história. Tornou-se peça de teatro e incomodou os poderosos por ocasião da ditadura.

    Quando nas igrejas ainda não se falava de defesa do meio ambiente, nem havia o Francisco de Roma escrevendo a Laudato Si, Pedro protegia as matas, os bichos e toda espécie de vida. Amaldiçoava as queimadas, as cercas e o direito de possuir a terra, entendida como dom de Deus para a vida de todos.

    Quando nas igrejas ainda não se falava da maldição do garimpo e da indústria madeireira, Pedro levantava sua voz nos advertindo acerca dos perigos de exaurir a terra, de derrubar as matas e de poluir os rios. Enfrentou, junto aos pequenos agricultores e posseiros, os poderosos que querem exaurir o solo e ser donos das águas.

    Quando nas igrejas não se falava de agricultura orgânica, nem dos males causados pelos defensivos agrícolas, Pedro abominava os agrotóxicos e preservava as sementes autóctones.

    Quando nas igrejas não se falava ainda da falência do modelo econômico capitalista, Pedro sonhava com um mundo fraterno no qual o dinheiro não era senhor, nem o mercado seu reino. Colocou em versos sua paz inquieta; tornou conhecida sua indignação e inconformidade com os esquemas de privilégio de alguns em detrimento da escravidão de uma multidão.

    Por tudo isso e muito mais, Pedro é um tipo de santo que não pode ser canonizado. Sua vida não pode ser enjaulada na política de privilégios que a Igreja estabelece para declarar uma vida como santa aos olhos dos crentes. Canonizar Pedro seria privatizar sua vida pública, estabelecer direitos autorais sobre seus escritos, conformar sua poesia rebelde aos devocionismos católicos, calar sua voz profética. O bispo de punhos cerrados não combinaria com os santos de mãos postas.

    Duvido que Pedro aceitaria fazer dois milagres para garantir sua santidade. O bispo rebelde do Araguaia, que não assinou a penalidade do silêncio obsequioso imposto pelo papa João Paulo II, boicotaria toda tentativa de usar seu nome para promoção da Igreja institucional. Aquele que viveu pobre e morreu pobre reviraria no seio da terra se visse um só tostão ser gasto no processo de sua canonização. E, ainda, Pedro detestaria que sua vida ganhasse cercas – todas elas malditas no dizer do pobre do Araguaia – e ele não pudesse mais ser sinal para todos, católicos e não católicos, crentes e não crentes. Por fim, canonizar Pedro seria ferir sua honra colocando à frente de seu nome um título. Na sua kênose, Pedro desprezou toda titulação e somente como Pedro queria ser chamado.

    Além do mais, parece no mínimo estranho cultuar inquisidores canonizados pelos papas Pios e Pedro ao mesmo tempo. Seria constrangedor Pedro e são João Paulo II no mesmo altar; o primeiro rompendo com todo laço com os grandes do mundo e o segundo aliado a presidentes de impérios e monarcas conservadoras. Não dá para imaginar Pedro e santos monarcas, como Luiz da França ou santa Helena, empenhados nas mesmas causas terrenas. A não ser que o céu esteja dividido em departamentos e que cada santo – como um deus do Panteon – cuide de uma causa específica, não há lugar para Pedro no mundo dos santificados. Haveria dissenso no céu, porque o rebelde do Araguaia não se calaria nem mesmo no estágio das beatitutes divinas.

    Por tudo isso, defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!

  • A Missa dos Quilombos de Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento


    Por Osvaldo Bertolino – Publicado 08/08/2020 em vermelho.org.br

    Arte e ato religioso se combinaram para denunciar as consequências da escravidão e do preconceito no Brasil. A Missa dos Quilombos, atitude revolucionária de membros da Igreja Católica, foi uma combinação de fé, comunhão, música e ritmo.

    Criação de dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, com música de Milton Nascimento, a Missa dos Quilombos expôs o que representa a escravidão e sua herança no Brasil. Um documentário da TV Senado relata a importância histórica da obra. A equipe da emissora viajou para São Félix do Araguaia, Rio de Janeiro e Belo Horizonte para colher depoimentos exclusivos dos três autores e outros personagens.

    A Missa foi inicialmente celebrada na cidade de Recife, em 20 de novembro de 1981, para um público de 8 mil pessoas e se transformou em peça de teatro, dirigida por Luiz Fernando Lobo. O documentário mostra depoimentos do bispo dom José Maria Pires, que conduziu a cerimônia em Recife; do diretor teatral Luiz Fernando Lobo, que dirigiu o espetáculo homônimo encenado pela Cia. Ensaio Aberto; do compositor Fernando Brant; do percussionista Robertinho Silva e de todos os músicos, artistas e produtores envolvidos na história.

    Além do depoimento emocionado de Milton Nascimento, dom Pedro Casaldáliga fala sobre o sentido revolucionária da Missa. Com direção de Liloye Boubli e produção de Cláudia Rangel, o documentário estreou em novembro de 2006, mês em que a Missa completou 25 anos desde a sua celebração em Recife.

    Segundo dom Pedro Casaldáliga, o objetivo da Missa foi uma retratação aos povos negros, herdeiros dos escravos. “Para escândalo de muitos fariseus e para alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da história, esta máxima culpa cristã”, disse ele. “Mas um dia, uma noite, surgiram os quilombos, e entre todos eles, o Sinaí Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi”, afirmou.

    Assim pensou o bispo do povo. E por isso foi perseguido e ameaçado, várias vezes acusado de comunista, inclusive por alguns dos seus pares da Igreja Católica. Mas também foi reconhecido por sua contribuição às causas do povo. Com sua sensatez e serenidade, estava sempre presente nos debates sobre as demandas populares. Inclusive fora do Brasil, como no encerramento do diálogo juvenil e estudantil da América Latina e do Caribe sobre a dívida externa, realizada em Cuba no ano de 1985. Com sua pausada voz característica, ele ocupou a tribuna e conclamou os jovens ao sagrado exercício da rebeldia.

    Em 2004, foi um dos organizadores da Agenda Latino-americana, lançada no Parlamento Latino Americano – composto por 22 países – com dados, análises e propostas para o combate a “uma nova fase do império”.

    Quando começaram as denúncias golpistas contra o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dom Pedro Casaldáliga também se apresentou ao debate. Em artigo publicado no Jornal do Brasil, fez críticas ao governo e ao Partido dos Trabalhadores (PT), mas enfatizou que “os grandes meios de comunicação e os grandes do dinheiro se refocilam com essa situação”. “A corrupção vem de longe e antes era maior e era a corrupção deles”, resumiu.
    Confira:
    1) um documentário sobre a primeira Missa dos Quilombos

    2) A Missa dos Quilombos pela Companhia Ensaio Aberto

  • Jornal do Vaticano: Pedro Casaldáliga da terra e do povo  

    “Vão me chamar de subversivo. E vou dizer a eles: sou mesmo. Para o meu povo em luta, eu vivo. Com o meu povo em marcha, eu vou”. É o início de um poema de D. Pedro Casaldáliga Plá, bispo emérito de São Félix, no estado de Mato Grosso, que morreu aos 92 anos no sábado, 8 de agosto, em Batatais (São Paulo), em decorrência de problemas respiratórios agravados pelo mal de Parkinson de que sofria há anos. E foi realmente poeta e sobretudo “subversivo”, D. Casaldáliga, quando em 1968, missionário claretiano, deixou a sua Espanha natal para chegar ao Brasil onde morou por toda a vida, uma opção radical de vida e de fé; e quando, poucos dias depois de ser nomeado bispo (por Paulo VI que sempre o defendeu), escreveu sua primeira carta pastoral, Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, que se tornou um texto profético, manifesto de denúncia para a proteção das populações indígenas, do meio ambiente, das mulheres, contra a pobreza, a escravidão, a marginalização, os latifundiários, a ditadura.

    A reportagem é de Giovanni Zavatta, publicada por L’Osservatore Romano, 10-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini para o IHU, 11 Agosto 2020.

    Era 10 de outubro de 1971 e o Brasil, com o General Emílio Garrastazu Médici como Presidente da República, vivia um dos períodos mais difíceis de sua história, caracterizado pela violência e repressão. Dom Pedro ergueu-se a baluarte dos direitos dos mais fracos e indefesos, em particular indígenas e agricultores sem mais terra: “Estas páginas – escreve na carta – são simplesmente o grito de uma Igreja amazônica, a prelazia de São Félix, no Mato Grosso, contra o latifúndio e a marginalização social de fato institucionalizada. Por dever como pastor e por solidariedade humana”, o silêncio não pode mais ser tolerado. Dizer a verdade é “um serviço”, tem por finalidade “tornar-nos livres”.

    Há quase cinquenta anos Casaldáliga Plá criou a divisão, entre um antes e um depois, chamou a Igreja local para denunciar “erros e omissões”, porque o ponto de referência é “o Evangelho” e, também, “o Vaticano II, Medellín, o último sínodo”, o de 1971, dedicado ao tema O sacerdócio ministerial e a justiça no mundo. Salienta, citando um dos textos sinodais, que “o testemunho (função profética) da Igreja no mundo terá pouca ou nenhuma validade se não demonstrar ao mesmo tempo a sua eficácia no empenho pela libertação dos homens também neste mundo”. Por outro lado, “a Igreja deve envidar todos os esforços para defender a verdade da sua mensagem, mas, se não a identificar com um amor dedicado à ação, essa mensagem cristã corre o risco de não oferecer mais nenhum sinal de credibilidade ao homem de hoje”. A divulgação da carta pastoral – segundo o sociólogo José de Souza Martins “um dos documentos mais importantes da história social do Brasil” – foi proibida pela Polícia Federal e monsenhor Casaldáliga foi ameaçado de morte (em 11 de outubro de 1976, em um presídio, uma bala provavelmente destinada a ele atingiu e matou o padre jesuíta João Bosco Burnier que estava com ele) e de expulsão do país. Mas ele nunca saiu.

    Nasceu em Balsareny, na Catalunha, em 16 de fevereiro de 1928, de uma família de agricultores, em 1943 ingressou na Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos). Foi ordenado sacerdote em 31 de maio de 1952 em Montjuïc (Barcelona) e em 1968 mudou-se como missionário para o Brasil. Paulo VI nomeou-o prelado de São Félix do Araguaia em 27 de agosto de 1971, consagrando-o bispo no 23 de outubro seguinte. Desde então, em um Mato Grosso marcado pelo analfabetismo e pela marginalização social, onde quem mandava eram os proprietários das terras, Dom Pedro se tornou o “teólogo da libertação”, “profeta dos pobres”, “bispo do povo”. “Aqui – dizia ele – mata-se e morre-se mais do que se vive. Aqui, matar ou morrer é mais fácil, ao alcance de todos, do que viver”. Seu objetivo era um modelo de Igreja engajada em campo, por meio de pequenas comunidades de base, espalhadas pelas ruas, com estrutura participativa, corresponsável e democrática. Nesse sentido, observa o teólogo Juan José Tamayo, Casaldáliga “é um exemplo da globalização de baixo, das vítimas, ou seja, da alter-globalização da esperança diante do pessimismo instalado na sociedade”. Uma existência vivida pelas causas da libertação dos povos oprimidos que, dizia D. Pedro, “são mais importantes do que a minha própria vida”.

    O Papa Francisco, na exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, cita um de seus belos poemas: “Flutuam sombras de mim, madeiras mortas. Mas a estrela nasce sem censura sobre as mãos deste menino, especialistas que conquistam as águas e a noite. Bastar-me-á saber que Tu me conheces inteiramente, ainda antes dos meus dias”. Navegando pelo Tocantins amazônico, ler as águas como um sonho, tendo o Senhor como guia: a Terra e Deus Para  D. Pedro Casaldáliga, um todo verdadeiramente indissolúvel.

  • Fritjof Capra: Pandemia é resposta biológica do planeta

    Foto por Folhapress

    Por: FOLHAPRESS – FERNANDA MENA – 10/08/2020

    Autor de “O Tao da Física” relaciona desigualdade social, economia predatória e devastação ambiental ao surgimento do novo coronavírus.

    Ícone do pensamento sistêmico, o físico e ambientalista austríaco Fritjof Capra, 81, interpreta a pandemia da Covid-19 como uma resposta biológica da Terra diante de emergências sociais e ecológicas amplamente negligenciadas.

    Segundo Capra, as mudanças de paradigma necessárias a essas emergências já são possíveis, tanto do ponto de vista do conhecimento quanto do desenvolvimento tecnológico. “Teremos a vontade política que falta?”, provoca ele, em entrevista à Folha por e-mail.

    Autor de best-sellers internacionais como “O Tao da Física” e “Ponto de Mutação” (Cultrix), entre outros, o Capra articulou a física moderna a uma visão holística da vida no planeta e dos fenômenos naturais, inserindo a humanidade e suas ações nos ciclos de transformação da vida no planeta.

    Capra é uma das estrelas deste ano do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, cujo tema — Reinvenção do humano — implica num debate de múltiplas variáveis que, na visão do físico austríaco, são sempre indissociáveis e interdependentes.

    Diretor do Centro de Alfabetização Ecológica, com sede em Berkeley, na Califórnia (EUA), Capra desenvolveu uma pedagogia da ecologia a ser aplicada no ensino formal, primário e secundário.

    Convertido em ambientalista por sua própria pesquisa, o austríaco há décadas denuncia o caráter predatório da economia global capitalista extrativista e a captura corporativa da política, que sucumbe a interesses econômicos em detrimento dos recursos naturais do que chama de Gaia —a Mãe-terra da mitologia grega que batizou uma visão do planeta como um imenso organismo vivo.

    Para ele, estão equivocadas as atuais métricas do desenvolvimento baseadas no crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) a partir de uma cultura de excessos, que implica em perdas sociais e econômicas.

    Veja a entrevista concedida a  Folha:

    Em quais aspectos o momento presente pode redefinir a condição humana?
    Na minha visão, o coronavírus deve ser visto como uma resposta biológica de Gaia, nosso planeta vivo, à emergência social e ecológica que a humanidade criou para si própria. A pandemia emergiu de um desequilíbrio ecológico e tem consequências dramáticas por conta de desigualdades sociais e econômicas.

    Cientistas e ativistas ambientais há décadas vêm alertado para as terríveis consequências de sistemas sociais, econômicos e políticos insustentáveis. Mas até agora as lideranças corporativas e políticas teimaram em resistir a esses alarmes. Agora eles foram forçados a prestar atenção, já que a Covid-19 trouxe os avisos de antes para a realidade de hoje.

    Quais paradigmas a humanidade precisa mudar e por quê?
    Com a pandemia, Gaia nos trouxe lições valiosas capazes de salvar vidas. A questão é: teremos a sabedoria e a vontade política necessárias para ouvir essas lições? Mudaremos do modelo de crescimento econômico indiferenciado baseado no extrativismo para outro de crescimento qualitativo e regenerativo? Vamos substituir combustíveis fósseis por formas renováveis de energia que dêem conta de todas as nossas necessidades? Vamos substituir nosso sistema centralizado de agricultura industrial com uso intensivo de energia por um sistema orgânico de agricultura regenerativa, familiar e comunitária? Vamos plantar bilhões de árvores capazes de retirar o CO2 da atmosfera e de restaurar diferentes ecossistemas do mundo?

    Nós já temos o conhecimento e a tecnologia para embarcar em todas essas iniciativas. Teremos a vontade política que falta? Num momento em que o valor do conhecimento científico biológico e tecnológico se mostram tão importantes, qual é o papel das humanidades?
    Isso está diretamente relacionado a sua pergunta anterior. Se temos todo o conhecimento científico e tecnológico para construirmos um futuro sustentável, porque não o fazemos simplesmente?

    Quando refletimos sobre essa questão crucial, rapidamente percebemos que o nível conceitual não conta toda essa história. Nós também precisamos lidar com valores e éticas, e é por isso que as ciências humanas são mais importantes do que nunca. Literatura, filosofia, história, antropologia podem todas nos imbuir do compasso moral que tanto falta à política e à economia atuais.

    Índices de desmatamento têm aumentado na Amazônia brasileira. Quais são os incentivos para isso?
    Esses crimes são uma consequência direta da obsessão com o crescimento econômico e corporativo. A devastação de grandes áreas de florestas tropicais é impulsionada pela ganância de corporações multinacionais do setor de alimentação, que buscam incansavelmente lucro e crescimento.

    Se o que chamamos de progresso foi atingido à custa de danos ao meio ambiente, nossa ideia de progresso está errada?
    A crença em um progresso contínuo e, em particular, a obsessão de nossos economistas e políticos com a ilusão de um crescimento ilimitado em um planeta finito constituem o dilema fundamental que permeia nossos problemas globais.

    Isso equivale ao choque entre o pensamento linear e os padrões não lineares da nossa biosfera — a interdependência dos sistemas ecológicos e os ciclos que constituem a teia da vida. Essa rede global altamente não linear contém inúmeras alças de retroalimentação por meio das quais o planeta se regula e se equilibra.

    Nosso sistema econômico atual, ao contrário, parece não reconhecer a existência de limites. Nele, um crescimento perpétuo é perseguido incessantemente através da promoção do consumo excessivo e de uma economia do descarte que usa de maneira extravagante tanto recursos como energia, aumentando a desigualdade econômica.

    Esses problemas são exacerbados pela emergência climática global, causada pelas tecnologias de uso intensivo de energia e baseada em combustíveis fósseis.

    Com a pandemia, projeções apontam para o aprofundamento das já marcantes desigualdades sociais de nosso tempo. O que as produziu e como reverter esse processo?
    O aprofundamento das desigualdades é uma característica inerente ao sistema econômico capitalista de hoje. O chamado “mercado global” é, em verdade, uma rede de máquinas programadas de acordo com o princípio fundamental segundo o qual ganhar dinheiro tem primazia sobre direitos humanos, democracia, proteção ambiental.

    Valores humanos, no entanto, podem mudar porque eles não são leis naturais. A mesma rede eletrônica de fluxos financeiros pode ter nela embutidos outros valores. O ponto crítico não é a tecnologia, mas a política.

    Há sinais de mudanças neste sentido na política de hoje?
    Uma nova liderança começou a emergir recentemente em uma série de movimentos jovens muito potentes, como Sunrise Movement, Extinction Rebellion, Fridays for Future, entre outros.

    Há também a ascensão de uma nova geração de políticos, curiosamente formada por mulheres, como a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinta Arden, a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, ou a congressista [democrata] norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez.

    A crise atual prescreve nossa percepção de soberania e de globalização? Como?
    Com certeza absoluta! Para prevenir o alastramento da pandemia, agora e no futuro, teremos de reduzir densidades populacionais excessivas, como ocorre no turismo de massa e em condições de vida marcadas pela superlotação. Ao mesmo tempo, necessitamos de cooperação global.

    A justiça social se torna uma questão de vida ou morte durante uma pandemia como a da Covid-19. E ela só pode ser superada por meio de ações coletivas e cooperativas.

    Seu trabalho explorou a interconectividade entre as ciências e os conceitos e filosofias considerados não-científicos. Como esse diálogo complexifica nosso entendimento do planeta e da humanidade?

    Eu me formei como físico e fiquei fascinado pelas implicações da física quântica, que nos mostra que o mundo material não é uma máquina gigante, mas uma rede inseparável de padrões de relações. Durante os anos 1980, minha pesquisa virou para a área das ciências da vida, da qual tem emergido um novo conceito sistêmico que confirma a fundamental interconectividade e interdependência de todos os fenômenos naturais.

    Quando nós entendemos que compartilhamos não apenas as moléculas básicas da vida, mas também princípios elementares de organização com o restante do mundo vivo, percebemos o quão firme estamos costurados em todo o tecido da vida.

    O que você aprendeu com a pandemia?
    Tem sido incrível para mim ver como o coronavírus expôs tantas injustiças ecológicas, sociais e raciais omitidas por décadas pelas mídias de massa.

    Também fiquei espantado de ver como, em um curto espaço de tempo, a poluição quase desapareceu da baía de São Francisco, na Califórnia (EUA), onde eu vivo, assim como ocorreu em várias das grandes cidades do mundo. Isso me encheu de esperança quanto à capacidade da Terra de se regenerar.

     

  • Pastor Valdemar Figueiredo Filho defende punição por abuso de poder religioso nas eleições

    Imagem: Instituto Mosaico

    O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) começou a discutir a possibilidade de punir abusos de poder religioso de candidatos já nas eleições municipais deste ano.

    A questão causa polêmica porque não há uma tipificação deste abuso na legislação eleitoral. Atualmente, o TSE entende que apenas abusos de autoridade ou de poder econômico podem resultar na perda de mandato.

    A discussão foi iniciada pelo ministro Edson Fachin, durante o julgamento de um caso de uma vereadora de Luziânia (GO), que é acusada de usar sua posição de pastora em uma igreja evangélica para influenciar os votos dos fiéis e promover sua candidatura nas eleições de 2016.

    Relator do caso, Fachin usou o seu voto no julgamento para propor a inclusão da investigação do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes), que podem resultar na cassação dos mandatos e também na inelegibilidade dos candidatos. Para o ministro, trata-se de impedir que forças políticas possam coagir moral ou espiritualmente os eleitores e interferir na legitimidade do voto.

    “A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”, disse Fachin.

    A tese proposta por Fachin causou reação imediata de parlamentares conservadores e líderes religiosos, principalmente os de orientação pentecostal.

    No entanto, há vozes dissonantes. O pastor VALDEMAR FIGUEREDO FILHO, 51 anos, baiano, pastor da Igreja Batista do Leme apoia a iniciativa de Fachin. Tem mestrado em ciência política pela Universidade Cândido Mendes e doutorado em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio. Publicamos entrevista publicada pela revista Época, por Cleide Carvalho.

    Segue a entrevista

    O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julga tipificar o crime de abuso de poder religioso, para regular a influência das igrejas nas campanhas políticas. O senhor é favor dessa ideia?

    VALDEMAR FIGUEREDO FILHO: Sou a favor, porque de fato há abuso. Ele existe e não é algo recente. Não estou dizendo que qualquer representação é abusiva, mas que existem relações abusivas dentro de um quadro de representação que é normal e legal. Algumas já foram inclusive notificadas à Justiça Eleitoral, como o uso de templos como comitês. Há vários casos Brasil afora, que ocorrem sem punição e sem vigilância.

    O fato de líderes religiosos declararem abertamente seus votos e se colocarem ao lado de candidatos durante a campanha causa interferência no processo eleitoral?

    Não é disso que se trata. O ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin não está tentando conter algo que é natural. O líder religioso pode exercer plenamente sua cidadania. Apoiar candidato e manifestar voto é um direito e está dentro da normalidade. A questão é quando algo que é natural se transforma em abusivo. Isso acontece, por exemplo, quando alguém diz que determinado candidato foi indicado por Deus. Ou quando o templo ou os meios de comunicação da igreja são transformados em máquina política. Se há um candidato oficial da igreja, que está funcionando como partido, é uma relação abusiva. Quem quer participar da política deve ir para o espaço público, não permanecer escondido atrás de símbolos sagrados.

    Hoje é proibida a propaganda política dentro de templos religiosos. O senhor considera que essa regra é cumprida?

    Não. A regra não é cumprida. No caso de candidatos que dispõem da estrutura dos templos, há abuso inclusive econômico. O que ele dispõe é, na prática de recurso de campanha. Não tirou um tostão para campanha publicitária, e o recurso vem da estrutura religiosa.

    Em sua opinião, o que é abuso religioso?

    Existem pessoas no ambiente religioso que estão muito vulneráveis. Há quem chegue por exemplo, depois de um luto ou em busca de uma cura ou de libertação de um vício. Essa pessoa tem fragilidades. Há muita gente nessa situação. Daí a sofrer abuso, não é difícil. isso não ocorre em apenas uma religião, mas em todas. O ambiente pode se tornar abusivo.

    C:omo o senhor avalia a aproximação entre política e religião no Brasil, com a formação inclusive de bancadas como a evangélica?

    Essa cena sempre esteve posta, desde que os portugueses chegaram aqui e celebraram a primeira missa. É um reflexo da estrutura social brasileira, não é novo. O que temos é uma mudança de atores. O que estamos vendo é o avanço de um outro grupo. A Igreja Católica tratava as coisas e influenciava no andar de cima. Ela sempre teve papel importante nas decisões e sempre esteve nas mesas de negociação. Com constituição de 1988 se forma um grupo, protestante, evangélico, pentecostal, que vai crescendo no Parlamento e no país. É um fato social, não só político. Mas ocorre que, para além do segmento religioso, temos por trás dele grupos econômicos, rede de comunicação, que são grupos fortíssimos, que movimentam rádio, TV, jornais, indústria fonográfica e internet. São empresas enormes, de dimensão nacional. A fachada é um templo, mas, quando se ultrapassam os portais, têm uma série de outras atividades, inclusive a política. Podem não ser a maioria, mas são os mais poderosos.

    O senhor acredita que o TSE terá maioria para decidir favoravelmente à tipificação do crime de abuso de poder religioso?

    Acho que não passa, embora eu seja favorável. Os interesses são muito fortes. A proposta em si já teve uma reação contrária muito forte. O discurso dos abusadores é que eles são perseguidos, como uma luta do bem contra o mal. Falo dos evangélicos mais articulados, nesse cenário mais malicioso. O inimigo agora, dizem eles, são os esquerdistas, a ameaça comunista.

    (com a contribuição de  PEDRO AUGUSTO FIGUEIREDO,
    em matéria publicada em O Tempo, 12/07/20).

  • Bancada Evangélica Popular apoia projetos de esquerda

    Eliad Dias dos Santos, 54, é uma das caras da Bancada Evangélica Popular | Foto: Rodrigo de Britos/Igreja Metodista

    ‘Somos evangélicos e temos vergonha da bancada bolsonarista. Eles não nos representam’

    Por Arthur Stabile para o site Ponte – 27/07/2020

    Pastora Eliad Dias afirma que o objetivo da Bancada Evangélica Popular é ser um contraponto aos religiosos conservadores: “vamos apoiar projetos de esquerda”

    Uma bancada evangélica de esquerda, com ideais progressistas e sem a imposição da teologia na atuação política. É com essa promessa que a Bancada Evangélica Popular, formada por pastores e presbíteros em São Paulo, tem se apresentado e se colocado como contraponto ao atual grupo político ligado aos neopentecostais.

    Uma das fundadoras do movimento, a pastora Eliad Dias dos Santos, 54 anos, explica que o primordial é entender que a fé e a política devem operar separadamente. “O projeto político da atual bancada evangélica é de poder, de impor o que acreditam. A teocracia não faz parte do nosso projeto, de jeito nenhum. O estado é laico”, explica à Ponte.

    A teóloga atua desde 1990 no centro da cidade de São Paulo, na região da Luz, com assistência a mulheres em situação de rua, prostitutas, população LGBT+ e imigrantes.

    Para Eliad, os evangélicos conservadores que dão sustentação ao governo de Jair Bolsonaro são motivo de vergonha para os cristãos progressistas. “É um governo genocida, fascista e que está acabando com a população. [Jair] Não é nenhum Messias e Deus jamais enviaria uma criatura daquelas para a gente. É uma praga no Brasil”, declara.

    Em entrevista à Ponte, Eliad fala da influência dos Estados Unidos na expansão evangélica nas Américas e que a atual Bancada Evangélica alinhada ao bolsonarismo não a representa. “Queremos denunciar, trabalhar para que sejam eleitos verdadeiros representantes do povo, não da milícia evangélica e de qualquer outra”, afirma, citando o ministro da Educação, o pastor conservador Milton Ribeiro, como exemplo de força dos evangélicos no governo federal. A bancada ainda não anunciou candidatura própria e nem definiu apoios para as eleições deste ano.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Qual o objetivo da formação de uma nova bancada evangélica?

    Eliad Dias – Decidimos criar uma bancada para apoiarmos candidatos e candidatas de esquerda com demandas que acreditamos ser os valores do Reino de Deus. Trabalhamos para todos terem acesso aos direitos fundamentais e que os representantes pensem nessas questões. Se é para ter um trabalho fundamentado na Bíblia, vamos pegar o que é sério, o que é verdade, não o que essa bancada que está aí quer, de privilégios, do desmonte da sociedade, de impor uma teocracia. O Estado é laico, não tem essa história de ter um grupo específico lá. O ideal é que não tivesse uma bancada evangélica, mas, se existe, temos que fazer contraponto a essa gente.

    Como foi a reunião dessas pessoas para fundarem o grupo?

    Eliad Dias – Cada um de nós que estamos na bancada temos experiência na militância política. A grande questão é que falamos que somos evangélicos e morremos de vergonha pela bancada que está aí. Não nos representa. Faço parte, com Valéria Vilhena, da EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), formado para combater a questão que igrejas criam contra as mulheres, o papel das mulheres. Por isso existimos: para dizer que tudo que ele disse é bobagem. Não pode usar a bíblia para sustentar isso. Somos do estudo da religião, advogadas, um trabalho para fazer a desconstrução dessa teologia que os homens fazem para falar que mulher tem local de maternidade, de submissão. Quando Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] estava no auge, nos lugares que me chamavam para ir eu falava que sou reverenda e não pastora. Um cara falou que ela era pastora pela personalidade. Eu estudei quatro anos, fiz vestibular para ser pastora. Tudo o que ela representa ou fala em público jamais sairia da minha boca ou de outras mulheres. Não quero ser confundida com aquela criatura.

     Vocês têm a intenção de fazer um contraponto?

    Eliad Dias – É para mostrar que existe um povo evangélico progressista, cristão de verdade, que criamos a bancada. Não temos preocupação com lucro, dinheiro e poder. Queremos um país justo, que as pessoas tenham os seus direitos respeitados, sua cidadania exercida de fato. Hoje vemos ônibus lotados e a prefeitura vai dizer que está tudo bem. Isso aumenta as pessoas contaminadas [por Covid-19]. O auxílio emergencial: o que foi feito com as pessoas da classe média alta que conseguiram de forma irregular os R$ 600? Não aconteceu nada. Além de devolver, tinha que ter punição. Não deveria ter pedido se tem salário de R$ 10 mil. Os militares que receberam, não acontece nada? Verificamos que acontece um genocídio. O vírus caiu como um milagre para esse povo, a melhor forma de exterminar indígenas para ter suas terra, o modo mais fácil de exterminar a população negra, que sabemos estar sendo exterminada.

    Como é ser evangélica enquanto existe a Bancada Evangélica, com o peso que este termo carregou pela atuação no Congresso Nacional, e em meio aos apoios ao governo de Jair Bolsonaro?

    Eliad Dias – Bolsonaro é o que existe de pior. Outra coisa que brinco com meus amigos: estive fora do Brasil e falei que ia dizer que sou angolana, porque morro de vergonha de dizer que sou brasileira por conta do Bolsonaro. É esculachado em todos os lugares. Só piada. O Jair Bolsonaro é o que ficou evidente que o Brasil sempre foi. Não existe mito do brasileiro bonzinho, que é acolhedor, vamos derrubar isso. É o racismo. Bolsonaro foi eleito por uma camada populacional que se identificou com ele, fora as promessas vazias, a construção da mídia e pela Globo, por todos os órgãos contra os partidos de esquerda, especialmente o PT. As pessoas elegeram um homem que dizia que não existia corrupção, que seria diferente. Está sendo o pior de todos os governos que já tivemos. É um governo genocida, fascista e que está acabando com a população. Não é nenhum Messias e Deus jamais enviaria uma criatura daquelas para a gente. É uma praga no Brasil.

    Por que existe o apoio dos evangélicos conservadores ao atual governo?

    Eliad Dias – Existe um projeto nos Estados Unidos, muito anos antes de Bolsonaro ser candidato, de que, nos próximos anos, as igrejas de lá, a direita norte-americana evangélica, colocaria nas Américas presidentes evangélicos tementes a Deus. Essas igrejas de massa recebem dinheiro de fora para abrirem templos. Bolsonaro é dinheiro e poder, podemos ver o aumento de casas desses pastores, a recuperação das igrejas. É o toma lá dá cá: te apoio, mas você me dá coisas. Essas igrejas têm pouco de igrejas, são empresas. Tem os milicianos e os evangélicos, que têm um projeto de poder por conta de dinheiro. Queremos denunciar, trabalhar para que sejam eleitos verdadeiros representantes do povo, não da milícia evangélica e de qualquer outra. Silas Malafaia, Edir Macedo… não é igreja, é empresa. Têm TV, avião, helicóptero. Uma questão de poder. O apoio dos evangélicos foi pensando nisso. Não à toa a bancada pôde indicar o ministro da Educação [Milton Ribeiro, evangélico conservador] por poder e dinheiro.

    Como avalia na prática a atuação desses religiosos na política?

    Eliad Dias – Hoje não temos democracia. Em 2016, quando Dilma sofreu impeachment, foi o total rompimento da democracia. A carta à Bancada Evangélica assinada por ela [que falava de aborto e liberdade religiosa] foi quando tudo começou a ruir, ao não discutir pautas como o aborto. Se fortaleceram ali. Não só PSL, PSDB, mas o PT teve sua culpa pelo projeto de poder. Sentou com Edir Macedo, foi à inauguração do Templo de Salomão. Significa “estou coligada com você”. A partir do momento que um grupo tem como objetivo a destruição de outro, não posso me aliar. Não faz sentido eu convidar membros da Ku Kux Klan para fazer parte do meu aniversário. Tenho que evitar que a KKK chegue ao poder, não conversar como se fosse um grupo normal. Esses grupos nunca esconderam o projeto deles de poder, de impor o que eles acreditam. Esse é o problema.

    E como fazer contraponto ao que está posto no imaginário nacional do país ao ver evangélicos na política?

    Eliad Dias – Não somos isso. Ninguém tem projeto de chegar e dominar o Brasil. Vamos apoiar projetos de esquerda, que no nosso entendimento são projetos condizentes com o que acreditamos enquanto reino de Deus. O que Jesus queria? Igualdade para todos. Por isso ele morreu, porque foi assassinado pelos religiosos da época. A bancada não tem projeto de poder que essa Bancada Evangélica do Congresso tem. Queremos que todas as pessoas e grupos tenham direitos e exerçam sua cidadania. Apoiar nomes de pessoas realmente comprometidas com o reino de Deus. Não queremos ser uma bancada que ganhou da outra. A teocracia não faz parte do nosso projeto, de jeito nenhum. O estado é laico. Estamos aqui, às vezes com medo de sermos a próxima Marielle, mas bora lá. Sabemos com quem estamos lidando.

    Como encara os casos recentes de violência policial?

    Eliad Dias – Tenho primos que são policiais e é uma eterna briga. Nem fazemos mais Natal juntos. O meu avô já era da Força Pública, essa questão vem de lá. Eles não entendem que na PM, a escola militar, a formação, é voltada para a questão da violência. Existe um grupo no Brasil a quem você precisa dominar e exterminar, que é a população negra, a maioria do país. Não é concebível que um policial vai aprender a fazer uma prisão em curso que se tenha bonecos negros para ele aprender. É inconcebível. Minha filha é negra e a avisei: se tiver em um grupo de jovens e alguém estiver usando drogas, você vai sair. Eles, se forem brancos, serão os usuários e você será entendida como a traficante. É questão de segurança. Teve o rapaz que ficou preso por estar com 10 gramas de maconha e morreu com Covid-19. Fosse branco ele seria usuário. Como é negro, é traficante.

    O recrudescimento da ação policial vai além do discurso nacional, aparece nas falas de governadores, como João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC).

    Eliad Dias – O Doria, logo que assumiu, disse que a polícia iria agir para matar, por isso ganhou [a eleição]. Um monte de gente entende que a violência vai acabar quando matarem os negros que não trabalham. Não conseguem entender esse racismo estrutural de a pessoa estar naquela situação, de termos meninos negros pedindo dinheiro no farol, de não terminarem a escola. A escola pública não os incentiva a ficar. Pelo contrário, os fazem sair. O professor não dispõe de tempo nem de olhar com carinho aos alunos. A autoestima é afetada, eles ficam no fundo, o professor não dá bola, acham que serão o futuro pagodeiro, ladrão ou jogador de futebol. E já sabe, é escadinha: não vai bem na escola, não consegue trabalho, não tem autoestima suficiente porque a sociedade diz que não serve para nada. A pessoa acredita nisso e acontece o que acontece. É estrutura, um ciclo. Teve reportagem recente do Frei Davi denunciando racismo nas igrejas. É estrutural. O Silvio [de Almeida, advogado] fez tanto sucesso no Roda Viva por conta disso. Mas o Brasil não discute, prefere matar, ir para o genocídio.

    Artigo publicado em https://ponte.org/somos-evangelicos-e-temos-vergonha-da-bancada-bolsonarista-eles-nao-nos-representam/

  • Como o cristianismo fundamenta e orienta a Direita global

    Entrevista com o jornalista Iacopo Scaramuzzi

    Por Lucas Ferraz para https://theintercept.com/ – 27 de Julho de 2020.

    De Roma a Washington, de Moscou a Paris, de Budapeste a Brasília, a geografia política e religiosa da extrema direita que ascendeu nos últimos anos contém um particular denominador comum: a instrumentalização do cristianismo como estratégia política.

    O sacro tornou-se um meio para marcar território, distinguir inimigos e – quem sabe – erradicar a diversidade, seja ela representada por gays, muçulmanos, imigrantes ou qualquer outra “modernidade” que ameace a tríade “Deus, pátria e família”.

    Do ex-capitão do Exército defensor da tortura e de milicianos ao ex-araponga Vladimir Putin, o todo-poderoso da Rússia que também abraçou a Igreja Ortodoxa de seu país, da jovem Marion Marechal-Le Pen na França, integrante da terceira geração de uma família ultraconservadora que está numa cruzada contra os muçulmanos, aos espanhóis do Vox, a extrema direita global desfruta dos símbolos e supostos valores do cristianismo.

    Trata-se de um caso de marketing político (particularmente bem-sucedido em alguns ambientes) que encontrou ressonância também em pensadores, instituições, cardeais e bispos no interior da Igreja Católica insatisfeitos com o pontificado do papa Francisco. O argentino acabou se transformando num inimigo comum para todos eles, sejam políticos ou religiosos.

    A eleição de Donald Trump em 2016, com o entusiasmado apoio que o republicano recebeu – e ainda recebe – de católicos tradicionalistas e demais grupos conservadores, serviu como ponto de partida para a consolidação do que muitos estudiosos classificam de “nacional-catolicismo”.

    O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do governo da Itália  brandindo rosários e falando em nome de Maria, além de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu “Deus acima de todos”.

    “Eles dizem defender o cristianismo, mas o transformam, infelizmente, em uma ideologia petrificada, num esqueleto, num monumento aos caídos”, escreve o vaticanista Iacopo Scaramuzzi,  autor de um pequeno mas informativo livro recém-publicado na Itália em que destrincha como o cristianismo virou uma peça importante na radicalização política da extrema direita.

    Intitulada “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), a obra estampa na capa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin. Jornalista da agência italiana Askanews, Scaramuzzi acompanha o cotidiano do Vaticano em Roma desde 2006.

    No meio da tempestade que agita o mundo, o cristianismo é explorado como uma “estrutura sólida”, um “outro país protegido”, lugar de paz e prosperidade para a “família tradicional” – a dos que os brasileiros conhecem como “homens de bem”. Não importa se, na prática, a política implementada seja notadamente marcada pela ausência de valores cristãos.

    Como escreve Scaramuzzi, a exploração visa louvar um passado supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc. A estratégia é mais ou menos simples e fácil de ser compreendida pelo eleitorado. O objetivo também é pueril: criar um sentido comum e respeitabilidade, conta o autor.

    No capítulo dedicado ao Brasil, o título dado por Scaramuzzi é um sucinto resumo do país de Bolsonaro: “Aliança entre militares, neoliberais e pentecostais”. Ele ressalta que o presidente brasileiro (católico) tem vários referentes religiosos, além dos pastores evangélicos, entre eles católicos tradicionalistas como o youtuber Bernardo Küster, e que frequentemente faz uso político do cristianismo quando transmite ao eleitorado a necessidade de um sacrifício, “quase um martírio”, para se afastar do mal.

    Isso vale para defender reformas econômicas de cunho neoliberal, para falar da facada que quase o matou na campanha eleitoral ou ainda sobre a necessidade de promover uma guerra cultural contra os valores considerados de “esquerda” para proteger a família.

    A formação de um “povo puro” a partir da instrumentalização do cristianismo, mostra o autor, encontra ferrenha oposição no atual chefe do Vaticano, que já declarou que mensagens revestidas de ódio e certas políticas como as que preveem muros contra imigrantes nada têm de cristãs. O desencontro entre essas correntes tem sido uma das marcas do papado de Jorge Mario Bergoglio.  “Não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco”, me disse Scaramuzzi num bar do centro de Roma.

    Leia, a seguir, a entrevista com o pesquisador.

    The Intercept Brasil – O seu livro mostra métodos semelhantes da extrema direita em diversos países para explorar politicamente o cristianismo, muitas vezes para criar uma imagem de respeito ou mesmo para seduzir o eleitorado. É só uma estratégia eleitoral ou estamos diante de um retorno do fundamentalismo religioso à política? 

    Iacopo Scaramuzzi – Não estamos na fase do retorno do sacro, mas sim na fase da nostalgia. O que é muito diferente. É mais a recordação romantizada de um passado que não existe mais e que talvez nunca tenha existido. É um pequeno retrato de um mundo antigo. Esse ideal de mundo, com uma família tradicional formada por homem e mulher, é idealizado. Parece o mundo de uma peça publicitária, todo mundo loiro e feliz.

    Sempre houve um cruzamento entre religião e política, seja no cristianismo, no judaísmo, no islã, no hinduísmo. O que surpreende nesses últimos anos é a forma como a religião católica vem sendo instrumentalizada. Ela é usada como um objeto, de forma completamente superficial. Reduzida a um elemento identitário. Católicos conservadores ou progressistas sempre existiram, isso faz parte da história e não é novo. Mas, em poucos anos, essa estratégia virou algo comum para a direita populista em muitos países.

    Todas as religiões estão um pouco atravessadas pela questão da secularização [processo no qual a religião perde influência sobre as diversas esferas da vida social] e são reutilizadas de forma nostálgica e instrumentalizada, seja por parte do populista de direita europeu ou do jovem jihadista que não tem ideia nenhuma do que é o islã e depois se dá conta de que aquela é a sua identidade e se casa com ela. Não se trata de radicalização do islã, mas da islamização do radicalismo. Agora acontece algo semelhante com o catolicismo. Qualquer um pega um pedaço que lhe é mais cômodo e utiliza. Contradizem uma história etnográfica, teológica, doutrinária, mas isso não é importante para esses líderes.

    Você descreve estratégias de radicalização a partir do cristianismo que acabaram adaptadas às realidades de cada país. Não há um coordenador por trás disso?

    As semelhanças entre os países são muitas. Utilizam palavras de ordem e referências que demonstram uma certa coordenação. A ideia de fazer o livro surgiu após eu escrever sobre a coincidência de vários políticos se referirem à Nossa Senhora de Fátima. Salvini usa a santa para defender a eleição de seus aliados. Mais ou menos no mesmo dia [de maio de 2019], Bolsonaro participou de uma cerimônia em Brasília com um grupo de parlamentares católicos ao lado de Nossa Senhora de Fátima. Depois Viktor Orbán e seu chefe de gabinete falam de Fátima. Então logo você entende que isso não é casual. Há uma coordenação. Há toda uma história sobre Nossa Senhora de Fátima, que funcionou como um ímã de toda a mitologia política anticomunista do século passado. A imagem dela foi bastante utilizada politicamente, sobretudo por Salazar [António de Oliveira Salazar, ditador português], que citava frequentemente os três “Fs”, futebol, fado e Fátima.

    A conclusão que cheguei é que há uma coordenação entre um grupo de ideólogos, que se encontram em eventos, em Roma, onde ocorreu um em fevereiro, em Budapeste, onde houve um encontro dos cristãos perseguidos. Eles se conhecem, trocam informações. O filho de Bolsonaro [o deputado federal Eduardo Bolsonaro] encontra Salvini, Orbán se encontra com o chefe de gabinete de Trump. Há uma rede. Esses políticos têm estrategistas que elaboraram as ideias. Acho errado reduzir tudo a um grande arquiteto, uma pessoa que está por trás de tudo. É quase uma teoria da conspiração que agrada tanto a esses populistas de direita.

    Quando exatamente começa essa exploração do cristianismo?

    Simplificando, começa com a crise da globalização, a crise econômica de 2008. Esse coordenação será compreendida ao longo dos anos. Depois, em 2015, vem a crise da imigração na Europa. É um processo longo e complexo.  Se olharmos para políticos como Salvini, Putin e Bolsonaro, vamos ver que a conversão deles acontece de maneira muito rápida. Eles tomam esse caminho de forma muito superficial. Por exemplo, Salvini, na Itália, não tem nenhum background católico. Nunca foi interessado em religião, não vai à missa. Salvini usa com frequência um rosário, que ele nunca rezou. Não são políticos interessados nos ensinamentos da igreja, muito menos em temas como o acolhimento aos imigrantes, tão caro ao papa. Trata-se de uma evolução muito diferente da agenda teocon conservadora que esteve em moda durante o governo de George W. Bush nos EUA e de [Silvio] Berlusconi na Itália.

    Agora, são mensagens dirigidas a um eleitorado perdido, seja por causa da secularização, de uma sociedade multicultural, com uma mistura de pessoas de diferentes etnias e religiões, onde o percentual de católicos é cada vez menor. De frente a essa mudança de panorama sócio-etno-religiosa, há um pedaço da sociedade, na Itália e também em outros países, que reconhece nesses símbolos religiosos da extrema direita qualquer coisa de confortável. Os ideólogos entenderam que esse é um caminho a ser explorado. O cristianismo é uma linguagem que mais ou menos todos entendem, há uma referência cultural, traz um senso de identidade, mesmo se a maioria do eleitorado não frequenta a igreja. O referimento tem pouco a ver com a fé cristã, funciona mais como marcador identitário. Isso se tornou forte nos últimos anos e tenho a convicção de que vai aumentar com a pandemia.

    Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo, como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa.

    Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário. Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo, vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do terceiro milênio].

    Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir, será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em 2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

    O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-se um conflito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um alvo e também um ponto de observação privilegiado.

    Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do nazismo).

    Esse papa criou condições para um movimento que representa uma contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como João Paulo II e Bento XVI, pontífices que deixaram de lado os pontos do concílio e que fizeram alianças conservadoras.

    Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu pontificado. Essa mudança aconteceu significativamente após a eleição de Trump. A oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os opositores ficaram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um pedido de demissão de Bergoglio.

    O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita?

    A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco.

    Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes financiando-a, mas também mantendo contatos com cardeais contrários.

    Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre como enfrentar o papa.

    Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo, como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa.

    Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário. Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo, vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do terceiro milênio].

    Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir, será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em 2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

    O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-se um conflito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um alvo e também um ponto de observação privilegiado.

    Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do nazismo).

    Esse papa criou condições para um movimento que representa uma contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como João Paulo II e Bento XVI, pontífices que deixaram de lado os pontos do concílio e que fizeram alianças conservadoras.

    Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu pontificado. Essa mudança aconteceu significativamente após a eleição de Trump. A oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os opositores ficaram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um pedido de demissão de Bergoglio.

    O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita?

    A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco.

    Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes financiando-a, mas também mantendo contatos com cardeais contrários.

    Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre como enfrentar o papa.

    O papa Francisco se move bem nessa história? Ele já fez críticas aos populistas da direita, mas muitas vezes parece tomar distância e não é muito incisivo, sobretudo em relação a líderes como Bolsonaro e Trump.

    É verdade, mas acho que ele foi mais direto em relação a Bolsonaro. Ele escreveu uma carta para Lula [quando o ex-presidente estava preso], depois o recebeu em Roma. Enviou recentemente respiradores para o Brasil, dizendo ao núncio apostólico que no país havia um grande problema com o coronavírus. Ele falou certa vez numa homilia sobre como se faz um golpe, com acosso judicial, que depois é explorado pela mídia. Faltava só dizer nome e sobrenome, mas era claro para todo mundo que ele se referia à situação vivida por Dilma Rousseff.

    Acho que há pelo menos duas razões para explicar isso. Primeiro, o seu papel. Ele fala de maneira bastante direta, mas enquanto papa, não pode promover uma guerra do Vaticano contra Estados Unidos ou Brasil. Depois, ele é uma autoridade espiritual, não política. O papa dá indicação de fundo moral, mas o Vaticano já aceitou a diferença entre Igreja e estado faz tempo. A Igreja não vai entrar em questões político-partidárias, esse é um ponto saudável da separação entre estado e Igreja.

    E acho que existe também uma decisão de salvar a unidade da Igreja. Ele inclusive diminuiu um pouco a velocidade das reformas que estava promovendo para preservar essa unidade. Francisco entendeu que dentro e fora há o risco de uma ruptura, um cisma, pequeno ou grande, mas existe o risco. E um dos papéis do papa é preservar a unidade da Igreja. Bolsonaro, Trump ou Putin são referências para uma parte de cardeais, monsenhores e bispos, e também para uma parcela dos fiéis, que vê a modernidade como um incômodo e critica os imigrantes. O papa vai para outro lado, mas não pode ignorar um pedaço do mundo católico.

    Uma eventual derrota de Trump neste anos é esperada como portadora de novos ares, principalmente no Brasil. Se isso ocorrer, mudará também a dinâmica no Vaticano?

    Sim, mudaria o mundo e também o Vaticano. Há quatro anos, esse papa parecia realmente sozinho. Ele iniciou o pontificado com grande apoio popular, depois começam as eleições que praticamente deixaram Bergoglio sozinho ao falar sobre China, islã, imigrantes etc. Mas alguma coisa aconteceu nos últimos anos. O jornal Financial Times, ainda antes do coronavírus, falava da crise do capitalismo, da desigualdade. Quando o papa escreveu a Laudato Sì [encíclica ecológica divulgada em 2015], ele era uma pessoa bastante isolada nessa questão ambiental. Agora tem a Greta Thunberg, goste-se ou não dela. O coronavírus criou, em quem quer entender, uma consciência sobre a relação com o meio ambiente, o tempo, o consumo. Nos últimos anos, Francisco passou a estar menos isolado. Esse papa sabe muito de política, de política externa, e ele levou seu papado para fora da Europa. Mas houve uma coincidência com a chegada de todas essas questões da extrema direita a Roma.

    Este artigo se encontra em https://theintercept.com/2020/07/27/entrevista-direita-populista-usa-cristianismo-para-criar-sentido-comum-e-respeitabilidade/

  • VIVAT BRASIL – Nota de repúdio à política do governo brasileiro no atendimento aos povos indígenas e às comunidades tradicionais durante a pandemia covid-19

    Nós, VIVAT BRASIL, com mais de 1.200 integrantes das 13 Congregações Religiosas associadas (Sociedade do Verbo Divino, Missionárias Servas do Espírito Santo, Congregação do Espírito Santo, Irmãs Missionárias do Espírito Santo – Espiritanas, Congregação das Irmãs da Santa Cruz, Missionários Combonianos do Coração de Jesus, Irmãs Missionárias Combonianas, Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu – Scalabrinianas, Missionários Oblatos de Maria Imaculada, Congregação das Irmãzinhas da Assunção, Irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo, Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos) e Irmãs Missionárias do Santo Rosário),   manifestamos nossa solidariedade aos Povos Indígenas e às comunidades tradicionais, especialmente da Amazônia brasileira, pela perseverante luta e constante resistência em defesa da vida e da ecologia integral, diante da situação atual de desgoverno do País, seja em nível social, político, econômico e ambiental.

    Nos juntamos com a voz da CNBB, que no dia 13 de julho lançou uma carta aberta, pedindo a “aprovação pelo Congresso Nacional do Plano emergencial (PL 1142/2020), derrubando os 16 vetos do Presidente no que refere ao enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais”.

    Com profunda indignação, repudiamos a atual política do governo nos seguintes aspectos:

    Desrespeito aos Povos Indígenas da Amazônia diante da atual situação de calamidade pública. No Brasil, a Covid 19 já atingiu 143 etnias, contaminando 16.656 indígenas, dos quais 542 já morreram, segundo dados publicados na Folha de São Paulo (“Os militares e o genocídio indígena” – 21 de julho) e confirmados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Devido à conhecida vulnerabilidade dos povos indígenas, o Estado deveria ter evitado que o vírus chegasse às aldeias, mas, ao contrário, não tomou nenhuma providência para evitar que garimpeiros, madeireiros e grileiros invadissem as terras indígenas, levando a contaminação. Neste contexto, é ainda mais grave a atitude genocida do Presidente Bolsonaro que vetou o fornecimento de água potável, alimentos e leitos hospitalares às populações tradicionais. O próprio Papa Francisco recorda que a água “é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (Laudato Si, n. 30).

    A situação é tão grave que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no dia 20 de julho, notificou o governo Brasileiro com medidas cautelares, a dar proteção aos Povos indígenas Yanomami e Ye’kwana em Roraima.

    Omissão do Governo Brasileiro que, mesmo diante da pandemia, mantém há mais de 60 dias o Ministério da Saúde sem um Ministro para liderar o enfrentamento do coronavírus no país.

    Falta de respeito com as culturas indígenas quanto ao ritual de velório e funeral das vítimas da Covid-19. Muitos indígenas estão sendo enterrados sem notificação a seus parentes e, em muitos casos, não é registrado no atestado de óbito que são indígenas. Além do mais, é negado o direito de levar o corpo para suas aldeias mesmo com o compromisso de obedecerem às orientações sanitárias.

    Omissão dos órgãos federais na fiscalização da grilagem de terras públicas, invasão de garimpeiros, desmatamento provocado por madeireiros, pecuaristas e agronegócio da soja. Segundo o INPE, de agosto de 2019 a 10 de julho de 2020, a degradação na Amazônia legal aumentou em 64%, somando um total de 7.540 km² de área desmatada.

    Diante da urgência de defesa da vida dos povos indígenas e das comunidades tradicionais na Amazônia, inclusive com doações de qualquer espécie estamos dispostos a encaminhar para as localidades mais afetadas. Assim, alçamos nossas vozes como grito de protesto à omissão do governo Bolsonaro e manifestamos nossa solidariedade a todos os defensores e defensoras do povo, que lutam e contribuem para amenizar tanto sofrimento. Por isso, fazemos memória aos mártires como Pe. Ezequiel Ramin (35 anos) e Ir. Dorothy Stang (15 anos) em nome de todos que deram suas Vidas pela Vida, Vidas pelo Reino e Vidas pela Amazônia. Assim, a VIVAT BRASIL se une com todas as pessoas e suas organizações sociais e pastorais em defesa da vida e da ecologia integral para o BEM VIVER em nossa CASA COMUM.

    VIVAT BRASIL, 24 DE JULHO DE 2020.

  • Realmar a economia pela comunhão dos povos – Eduardo Brasileiro e Gabriela Consolaro

    Foto de Ismael dos Anjos, publicada em Diário do Aço, 23/10/2018, quando a tragédia de Mariana completou três anos.
    Hoje, o Papa Francisco nos convida a realmar a Economia. Da mesma forma, como os apóstolos que olharam ao redor e questionaram com dúvidas como seria possível alimentar uma infinidade de pessoas no meio de um deserto, nós também nos deparamos com as incertezas. 

    Realmar a economia pela comunhão dos povos

    Por: Eduardo Brasileiro e Gabriela Consolaro, publicado em CNLB, 23/07/2020

    “Ser humano é buscar a espiritualização
    de todas as dimensões da existência.” (Frei Betto)

    1. A PARTILHA

    Ao fomentar a partilha e, assim, alimentar uma multidão cansada e incrédula, Jesus, por meio da multiplicação dos pães, mais que perpetuar um milagre, apresenta uma proposta. Quando caminha junto de milhares de pessoas que o seguem e acreditam nas palavras de paz e justiça que propõe, o Mestre indica o seguimento da humildade, solidariedade e fraternidade. Na vivência fiel aos ensinamentos que prega, olha o povo com compaixão, temendo que desfaleçam pelo caminho (Mt 15, 32).

    A mesma realidade encontramos hoje. Uma multidão cansada de lutar para sobreviver em um sistema falido, que até aqui matou, excluiu e degradou, se encontra incrédula e com medo de deixar esvair pelas mãos a vida num futuro próximo. Mais uma vez, o Pastor olha com compaixão aos discípulos fatigados e chama a um momento novo: de partilha, comunhão e esperança. Convida a trilhar o caminho para a saciedade, a suficiência, a convivência entre irmãs e irmãos na busca da construção do Bem Comum.

    Hoje, o Papa Francisco nos convida a realmar a Economia. Da mesma forma, como os apóstolos que olharam ao redor e questionaram com dúvidas como seria possível alimentar uma infinidade de pessoas no meio de um deserto, nós também nos deparamos com as incertezas. Deus nos mostra, de novo, que o milagre reside na partilha, na construção coletiva, na comunhão entre povos que escolhem acreditar na construção de novos paradigmas – por vezes tomados como radicais, mas que só assim são capazes de responder à radicalidade da normalização da morte, da exclusão e da desigualdade.

    A partir da realidade posta, Jesus e seus discípulos organizam a multidão, reúnem as ofertas do povo, suscitam a partilha para todos comerem e saírem saciados. O chamado para a construção da Economia de Francisco e Clara busca dar uma nova perspectiva aos que hoje sofrem com a marginalização de um sistema voltado ao lucro. Com a certeza de uma origem comum, uma pertença recíproca e um futuro partilhado (LS 202), os pães são postos na mesa em uma comunhão entre os povos, para que, outra vez, todos comam e se sintam saciados.

    2. O ENCONTRO

    No caminhar conjunto, Deus não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-lo no chão da realidade. O Papa Francisco, em 2015, no encontro com os movimentos populares em Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), aclamou aos povos se unirem em três grandes tarefas.

    A primeira, uma economia a serviço dos povos, retoma o lugar da economia como cuidado da casa no desafiante contexto de encontrar na própria humanidade a possibilidade de recompor um sistema que gere vida e não exclua. Uma economia biocentrada, retoma o chamado da relação ampla com os seres e não fixada no lucro. A segunda, que é a união dos povos no caminho da paz e da justiça, provoca o lugar de poder na sociedade capturado pelos mercados, corporações e elites e o devolve ao povo, como “artífice do seu próprio destino”. A última tarefa apresentada pelo Papa Francisco nos convida a defender a nossa irmã, Mãe Terra. Substituindo a compreensão de dominação humana, nos coloca como elementos da Criação, subvertendo a lógica de apropriação e degradação das vidas.

    O encontro é um lugar da genuína alegria. Nele, a espiritualidade humana se descobre misturada aos diversos tons que compõem a fraternidade universal. Na pluralidade que, com sede de justiça e fome de paz, se descobre artesã do novo tempo em encontros coletivos, em formulações políticas, em incidência territorial, em potencialização de vozes silenciadas, para assim construir uma aldeia de justiça que é totalmente contra a sociedade marcada pelo medo, ódio e indiferença.

    3. O PACTO

    A sociedade globalizada pela indiferença viu o projeto de poder estabelecido pelo neoliberalismo ruir o tecido que sustenta a humanidade. Fraturando o bem comum que estabelece a relação comunitária e de partilha privatizou todas as dimensões do nosso convívio. Estabelecendo a competição e o lucro como essência de governos, empresas e famílias, foram forjados homens e mulheres tomados pela mentalidade empresarial e afastados de suas relações com todas as outras formas de vida.

    Portanto, mais que crises separadas, o que ocorre diante das crises atuais – com o trabalho, com a democracia, com a fome – faz parte do conjunto de iniciativas que destituíram do poder e exaurem diariamente a humanidade e a Terra. A Economia de Francisco e Clara nos convida a fiar o tecido de uma nova cultura e um/a novo/a homem e mulher. Esse contraponto exige a superação daquilo que o sociólogo coreano Byung Chul Han apontou ser uma sociedade produtora de uma vida feliz que nega toda complexidade da vida humana e massacra a humanidade com um padrão: a ideologia de felicidade baseada exclusivamente no enriquecimento individual não contribuindo na afirmação de uma cultura e de instituições democráticas.

    A afirmação de uma economia na complementaridade das relações toma fôlego por inúmeras iniciativas já existentes no mundo, presentes na Economia Solidária, por exemplo, que restitui o lugar da solidariedade como mote das relações de troca e compra. O reconhecimento da economia pelo suficiente que considere as relações com a vida do Planeta, tirando a lógica do lucro e emergindo a lógica do ser. Uma economia pela proximidade que ambienta a necessidade de superação do modelo de finanças globais que produzem dinheiro para enriquecimento individual e passemos para modelos diversos que não unifiquem, mas que planificam a diversidade cultural e econômica do planeta.

    Um novo humanismo é a emergência de uma sociedade em redes, que partilha e coopera no autocentramento comunitário. Assim, as comunidades se empoderam de uma espiritualidade capaz daquilo que diz a exortação do Papa Francisco, ‘Evangelii Gaudium’: “encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (24), para construir o pacto global por novas economias.

    Gabriela Consolaro, selecionada para o evento em Assis, é Secretária Nacional de Formação da JUFRA – Juventude Franciscana do Brasil.

    Eduardo Brasileiro, selecionado para o evento em Assis, é membro do coletivo de Paróquias da Zona Leste de São Paulo: IPDM – Igreja Povo de Deus em Movimento.

     

     

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