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As origens da Teologia da Libertação segundo o olhar de um sociólogo católico

Por Jorge Alexandre Alves

O texto que se segue é fruto de um pedido de um querido amigo sobre as origens da Teologia da Libertação. Um desses pedidos rápidos, via aplicativo de mensagens, sabe? Corri para escrever poucas linhas. Mas logo percebi que a tarefa era hercúlea. Quando vi, tinha quase um artigo pronto. Apressado, com alguns erros, mas um texto.

Foi então que me dei conta do quanto sabia acerca da TdL. É que esse tipo de coisa a gente vive, experimenta, sente, chora, reza… Muito mais do sabe. Mas descobri que sabia alguma coisa. Nomes, pessoas, contexto histórico-social, épocas. Aliás, as vezes tenho a sensação de que gostaria de ter sido jovem e jovem-adulto naqueles dias de efervescência pastoral, de urgência histórica, de ter presenciado tempos de grandes e esperançosas mudanças. De ter estado na luta pela democracia no Brasil, nos primórdios das Cebs. Enfim, de ter vivido aqueles dias que conheço um pouco através da memória daqueles que nos precederam.

De certa forma, tomei uma pequena fração dessas memórias e histórias narradas em textos, entrevistas, livros, palestras e conversas de muitos e muitas que viveram a TdL para escrever. Mas, para dar um arremate final ao texto e ser fiel aos fatos, me fiz valer de dois artigos publicados na internet. Um é de Leonardo Boff. Dispensa apresentações. O segundo, muito bom, de dois protestantes da terceira geração de teólogos da libertação: Cláudio Carvalhaes e Fábio Py. Digamos que me deram uma assessoria teológica. Mesmo assim, peço licença aos teólogos pelo atrevimento de tentar contar essas origens e de fazer essa memória. É uma reflexão sobre o começo dessa história, da qual também faço parte um pouquinho e que mudou em definitivo minha trajetória de vida. Eis o texto:

A Teologia da Libertação (TdL), como seus principais teólogos definem, não surgiu a partir de mera reflexão provocada pela pesquisa acadêmica, ou da genialidade daqueles que a sistematizaram. Os pioneiros da TdL tiveram enorme sensibilidade para intuir o espírito de uma época e para sistematizar as iniciativas do Povo de Deus que estavam acontecendo 50-60 anos atrás. Assim, a Teologia da Libertação surgiu como efeito das práticas do povo de Deus. Em outras palavras, foi consequência do gesto daquelas cristãs e cristãos que começaram a ler a Bíblia em comunidade e, a partir da sua fé, entenderam que o Cristianismo lhes levava a um processo de conversão. Isso se traduziu eticamente em uma prática social, ao engajamento mais concreto na luta por justiça, paz, democracia. Por isso se envolveram nas lutas populares pelos direitos humanos.

Esse imperativo moral é fundamental até hoje para quem vive ou viveu a experiência comunitária cristã nessa perspectiva teológico-pastoral. Nas palavras dos teólogos Cláudio Carvalhaes e Fábio Py: “Teologia da Libertação, tal como a conhecemos, é matéria de sobrevivência, uma matéria de vida e morte, um lugar onde fé, discurso de Deus e vida real encontram-se para proteger e expandir as possibilidades da vida, na eco-bio-diversidade do planeta e na possibilidade de justiça para o pobre. (…) Não foi Gustavo Gutierrez que deu origem ao movimento, mas sim as pessoas e os movimentos populares que clamavam por justiça, movimentos estes que acabaram aceitando o envolvimento de sacerdotes e teólogos e que modificaram profundamente o modo como as coisas aconteciam na América Latina”. Também Leonardo Boff sempre disse coisas na mesma linha.

Essa “teologia em movimento”, ou, se pensarmos na centralidade do pobre como kairós, e locus da Revelação, esse movimento da teologia, foi o principal fruto de uma série de transformações no catolicismo latino-americano nos anos 60 do século XX, por um lado. E, por outro, com iniciativas de leigos evangélicos, das provocações feitas a partir de uma corrente protestante chamada de “Evangelho Social” e da reflexão de autores como o presbiterano Richard Shaull e o batista Harvey Cox, também inspirados em práticas comunitárias de promoção humana. O teólogo Jürgen Moltmann, reformado, também escreveu coisas que fundamentaram a Teologia da Libertação protestante. Assim, a Teologia da Libertação nasceu ecumêmica.

No catolicismo, desde a década de trinta tivemos movimentos e reflexões que procuravam resgatar o compromisso com a transformação social e com a liberdade humana. No entanto, nenhum deles tinha posto no lugar central da reflexão teológica a figura do pobre. De toda a maneira, podemos destacar aqui o pensamento de Emmanuel Mounier e o humanismo integral de Jacques Maritain, ambos filósofos. As experiências dos padres-operários dos anos trinta do século XX na Bélgica e na França,  da Ação Católica Operária e da Ação Católica Geral, e do método ver-julgar-agir também foram fontes inspiradoras. No campo teológico tivemos a Nouvelle Théologie francesa (Yves Congar foi seu maior expoente) e a Teologia do Político de Johann Baptist Metz. Tanto a experiência dos padres operários quanto os teólogos acima mencionados foram perseguidos e proibidos pelo Papa Pio XII.

Foi com João XXIII e o Concílio Vaticano II que essas novidades ganharam evidência, influenciando intensamente a vida do catolicismo. Havia uma enorme demanda reprimida – por liberdade de pensamento e de ação – que Il Papa Buono e, sobretudo o Concílio, possibilitaram que fluísse. Todavia, embora a vontade do próprio João XXIII que o Vaticano II fosse um concílio dos pobres, foi a questão do aggionarmento, ou seja, do diálogo com a modernidade e da atualização das formas de ser da Igreja, que prevaleceu. Vários daqueles teólogos perseguidos por Pio XII  se assomaram a grandes nomes da Teologia, como Karl Rahner e Edward Schillebeeckx, e foram peritos conciliares, junto com então jovens promissores como Huns Küng e Joseph Ratzinger

De toda a forma, o Concílio produziu uma chave fundamental para que se desenvolvesse tudo que serviu de pilar da Teologia da Libertação. Na abertura do Concílio, São João XXIII indicou o caminho a ser seguido: “Agora, a Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia em vez de tomar as armas do rigor”. Isso não nos lembra um certo Francisco, oriundo do fim do mundo, que hoje vive em Roma?  Mesmo que o tema dos pobres não tenha sido central naquela oportunidade, causou um enorme impacto o discurso do cardeal Lercaro sobre a pobreza, em que ele reforça aquilo que  o próprio João XXIII manifestava como vontade, que a Igreja fosse “a Igreja de todos, mas principalmente a Igreja dos pobres”.

Outro gesto de grande de grande impacto dos tempos conciliares foi o Pacto das Catacumbas. Tratou-se de um manifesto assinado por mais de 40 bispos que participaram o Vaticano II, liderados por Dom Hélder Câmara e pelo bispo equatoriano Leônidas Proaño. Seus signatários se comprometeram a viver como os pobres, solidários às suas causas, sem luxos ou regalias. Essas figuras do episcopado latinoamericano foram muito importantes no apoio dado aos teólogos da libertação e às comunidades de base nos anos 70 e 80.

Se, no Vaticano II a questão dos pobres não foi central como se desejava, a aplicação das bases do concílio na América Latina fez da questão da pobreza seu objeto principal para a ação pastoral. A conferência dos bispos latinoamericanos (CELAM) organizou um encontro para discutir como iriam aplicar as premissas conciliares. Em Medelín, Colômbia, o tema dos pobres veio com força e, junto dele, a Teologia da Libertação.

A expressão Teologia da Libertação surge de forma quase simultânea no catolicismo e no protestantismo, no mesmo ano da conferência do CELAM em Medelín, que se deu em agosto de 68. Um mês antes, em um encontro de sacerdotes no Peru, o padre Gustavo Gutierrez, compartilhando sua experiência pastoral na periferia de Lima, fez uma conferência que se chamou “Notas para uma Teologia da Libertação”, Depois, em 1969, essa fala virou um artigo publicado no Uruguai chamado “Hacia unaTeologia de la Liberacion”. Esta publicação foi a base para aquela que é considerada a publicação mãe da TdL. Trata-se do livro “Teologia da Libertação”, de 1971. Vale dizer que, nessa mesma linha, o teólogo belga radicado no Brasil José Comblin publicou em 1970  o livro “Teologia da Revolução”.

No segundo semestre de 1968, o então pastor protestante Rubem Alves (que ficou muito conhecido por seus textos no campo da Educação) estava defendendo sua tese de doutorado no Princeton Theological Seminary nos EUA. Ela foi chamada “Towards a Theology of Human Liberation” (algo como “Em direção a uma Teologia da Libertação Humana”). Em 1969, uma editora católica resolveu publicar essa tese, tirando o termo “libertação”. O livro foi chamado “Uma teologia da esperança humana”.

Por isso, em muitos meios se discute a verdadeira origem do termo Teologia da Libertação. Pessoalmente, creio que tanto Rubem Alves (que se sempre defendeu sua paternidade) e Gutierrez  tiveram os mesmos “insights”, embora jamais tenham se encontrado naquela época. Se considerarmos as dificuldades de comunicação da época e o fato de serem de países distintos, muito possivelmente eles chegaram a conclusões parecidas por vias diferentes.

A eles, posteriormente podemos juntar uma série de autores considerados da primeira geração da TdL. Evangélicos como Hugo Assmann, Jether Ramalho, Zwinglio Dias, Júlio de Sant’ Anna, Jorge Pixley e Milton Schwantes. E católicos como Comblin, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Gustavo Gutierrez , Carlos Mesters, Juan Luis Segundo e Segundo Galilea.

Aqui no Brasil, os anos 60 do século XX foram de muita efervescência social. E segmentos católicos não ficaram de fora disso. A ação católica especializada junto a juventude (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC), as escolas radiofônicas no sertão do Rio Grande do Norte, o grupo em torno de Dom Hélder Câmara, as primeiras comunidades de base, a leitura popular da Bíblia…Tudo isso foi o terreno fértil que possibilitou a sistematização teológica sobre a libertação dos. Nesse sentido, não é equivocado dizer que a Teologia da Libertação foi feita por milhares de mãos, a partir da base.

Finalmente, as contradições sociais em escala internacional fizeram com que essa temática da libertação fosse discutida e refletida em várias áreas do saber e em vários lugares. Enrique Dussel (de matriz católica, também teólogo) discute uma filosofia da libertação no México. Paulo Freire também o faz em seu “Pedagogia do Oprimido”. A juventude universitária francesa também o faz em Maio de 1968. Mesmo Fernando Henrique Cardoso (que pediu para esquecermos o que ele escreveu!), em sua teoria da dependência, trata desse tema.

Tivemos a psicologia humanista e o desenvolvimentismo econômico de Celso Furtado. Em todas essas correntes a questão da libertação estava presente, de um jeito ou de outro. Essa foi uma daquelas temáticas que inspirou uma época inteira e toda uma geração de pessoas. Na teologia não foi diferente.

Mas é preciso dizer que, sobretudo nesse momento em que ela se faz mais necessária para a Igreja e a sociedade, a Teologia da Libertação precisa rever caminhos para não cometer os mesmos erros do passado. Aqui não se tratam de equívocos teológicos ou doutrinários que legitimariam a cruel perseguição sofrida nos anos 80 e 90 do século XX. Trata-se sim da pedagogia de sua aplicação pastoral, que relegou a devoção popular como algo menor em certos momentos.

Muito já se disse do caráter racionalizante da aplicação pastoral da TdL, de um certo intelectualismo da pastoral popular, coisa que provocou afastamento de uma parte dos membros da Cebs, sobretudo os menos escolarizados. Há uma chave de leitura disso tudo com a qual vamos precisar nos defrontar: o empoderamento. Houve pouco empoderamento pastoral, houve pouca ou insuficiente formação teológica para os agentes de pastoral e para o laicato em geral. Faltou mistagogia no processo de educação na fé. Durante um bom tempo, a pastoral libertadora estava muito no intelecto, e pouco na mística e no encontro afetuoso com Deus e os irmãos de caminhada.

Contudo, a Teologia da Libertação é, com toda convicção, a grande possibilidade de sobrevivência do Cristianismo na atualidade. Ou os cristãos se convertem à causa dos pobres e oprimidos, ou o Cristianismo (A Igreja inclusive) estará fadada a negar a sua própria razão de ser: a de sinal-sacramento de Cristo em nossos dias e comunidade dos seguidores de Jesus de Nazaré. Se a Igreja não se tornar “pobre para os pobres”, como deseja Francisco de Roma, corre-se o risco da fé cristã desparecer. Dom Hélder Câmara dizia que “conosco, sem nós, contra nós, as massas vão abrir os olhos. As massas terão a consciência despertada. E se amanhã elas tiverem a impressão de que o Cristianismo teve medo, que não teve a coragem de dizer a verdade, de mostrar a verdade… Então, acabou-se o Cristianismo”.

Por isso, ao contrário do que defendem e gostariam de seus detratores, a TdL continua mais viva do que nunca. Pode não estar na grande paróquia de classe média dos centros urbanos, nem nas periferias abandonadas pelo poder clerical e hoje consumidas no pentecostalismo evangélico ou carismático. Mas ela vive, no coração de todo ser humano de boa vontade. E também na espiritualidade daqueles que, partindo da vida e do seguimento de Jesus de Nazaré, desejam um mundo melhor, igualitário, justo e fraterno.

Referências:

BOFF, Leonardo. Quarenta anos da Teologia da Libertação. Postado em 09/08/2011. Disponível em: http://twixar.me/1hhK.   Acesso em Abr. 2019.

CARVALHAES, Cláudio e PY, Fabio. Teologia da libertação no Brasil. Postado em 16/01/2018. Disponível em: http://twixar.me/YhhK. Acesso em Abr. 2019.

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