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NENHUM BISPO SERÁ IMPOSTO?
Por Jorge Alexandre Alves

Imagem publicada por Prensa Celam

O Brasil é o país com o maior número de dioceses católicas no mundo. Geralmente as nomeações episcopais para as circunscrições eclesiásticas para o território nacional costumam sair às quartas-feiras. Nessa semana, por exemplo, o Vaticano acaba de anunciar nomeações para duas igrejas particulares do país.

Uma delas muito importante porque é a capital da República. Nesse caso particular algo muito fora da curva ocorreu. Primeiro, o anúncio foi “vazado” por site jornalístico de teor conservador. O site informava que o prelado havia se envolvido em uma polêmica envolvendo racismo religioso.

Segundo, um documento datado do começo do mês, com carimbo de segredo pontifício da Nunciatura Apostólica, onde se anunciava o nome do novo arcebispo circulou por vários grupos de aplicativo de mensagens na véspera do anúncio oficial. Aliás, documentos pontifícios têm vazado com frequência aqui no Brasil. Aconteceu com a encíclica Fratelli Tutti. O que estará por detrás desses vazamentos?

Independente de polêmicas e vazamentos, cabe uma pergunta de maior valor para o Povo de Deus: Como se escolhem os bispos? Fato é que a maioria dos católicos desconhece que elementos são levados em conta nessa temática. É muito difícil saber de véspera quem será o novo titular (ou mesmo um auxiliar) de uma diocese.

O processo de nomeação episcopal é algo secretíssimo, mesmo com todo o aparato midiático que dispomos hoje – o vazamento público da semana é um evento excepcionalíssimo. Apesar disso, as formalidades que envolvem a escolha de candidatos ao grau mais elevado do sacramento da Ordem estão previstas no Direito Canônico. Mas o “xis” da questão reside nas informalidades e subjetividades que determinam tais escolhas.

O que sabemos é que a Nunciatura Apostólica sugere nomes para a Sagrada Congregação para os Bispos. Esse dicastério prepara relatórios e envia uma lista tríplice ao Papa feita pela diplomacia papal. Por sua vez, o Bispo de Roma escolhe o nome.

Acontece que a Igreja é uma instituição universal, presente em todo o globo terrestre. Em 2015 existiam mais de duas mil dioceses em todo o mundo. Se Francisco fosse cuidar da escolha de cada bispo diocesano e dos prelados auxiliares das maiores (arqui) dioceses, talvez nem sobrasse tempo para conduzir a Igreja e exercer seu magistério.

Na prática, deve ser a máquina vaticana quem se encarrega das nomeações no dia a dia. Todos os anos, pelo menos 15 bispos são nomeados na igreja do Brasil. O que nos dá uma ideia do que acontece em escala global. E da impossibilidade do Papa em pessoa acompanhar a escolha de todos os novos bispos.

Isso significa que o Papa se omite nessa importante questão? Não, porque o Sumo Pontífice ratifica o trabalho feito pela Congregação dos Bispos e é quem traça um perfil de bispo a ser nomeado. Francisco já afirmou que o bispo deve ter o “cheiro das ovelhas”. Também se espera que os “candidatos” preencham requisitos que envolvem experiência pastoral, funções de liderança/coordenação e formação acadêmica no campo da Teologia.

Evidentemente, em algumas escolhas episcopais se percebe a marca pessoal do Bispo de Roma.  Foi o que aconteceu em algumas nomeações nos Estados Unidos, na arquidiocese da Cidade do México e, sensivelmente, na arquidiocese de Bolonha (Itália). Mas também em Buenos Aires, por óbvias razões e, de forma espetacular, na arquidiocese de Lima, no Peru.

Sabe-se hoje que, nos tempos de João Paulo II e de Bento XVI, por melhor que fosse sua formação teológica, padres vinculados à Teologia da Libertação eram preteridos para receber a mitra e o báculo. Também não eram bem vistos aqueles que defendessem a ordenação de homens casados. Quem questionasse publicamente a encíclica Humanae Vitae (Paulo VI) também veria suas chances serem reduzidas ao passar pelo crivo da Nunciatura Apostólica. Atualmente, dadas as declarações e as propostas de Francisco, pode-se dizer que o Papa tem outros critérios.

A questão é saber se os protocolos de escolha de candidatos ao episcopado foram atualizados pelos curiais do Vaticano, estando em sintonia de fato com a orientação pastoral imprimida pelo Bispo de Romano. O fato de as escolhas dos bispos serem mantidas em segredo pontifício impede que se debata mais abertamente essa questão no seio da Igreja. Assim, fica-se muito nas “conversas de sacristia”, discute-se veladamente muito mais nomes do que perfis que seriam importantes para uma dada realidade diocesana.

Entretanto, trata-se de complexa e delicada questão.  O segredo pontifício nos processos de nomeação episcopal é uma forma preventiva de a Igreja sustar ingerências do poder civil. No passado alguns Estados Nacionais, certos governantes ou nobres mantinham acordos (chamados de concordatas) com a Santa Sé, que lhe outorgavam o poder de indicar candidatos e de vetar nomes ao episcopado. Isso aconteceu no Brasil durante o Império.

Imaginem se o atual governo brasileiro tivesse poder parecido nos dias atuais? Ou um governador de estado? Pensem no que poderia ocorrer nas dioceses da Amazônia ou em lugares estratégicos como São Paulo e Rio de Janeiro… Certamente a liberdade da Igreja estaria seriamente comprometida.

Por outro lado, isso não impede necessariamente que se proteja a instituição eclesial e seus fiéis de ingerências políticas. Ao contrário, se elas ocorrerem discretamente, quase ninguém fica sabendo. Além disso, questões pastorais importantes ficam interditadas, situações escandalosas não são discutidas abertamente pelo Povo de Deus. Será uma maneira de infantilizar o laicato?

Nas últimas décadas do século XX, muitas dioceses receberam novos bispos sem nenhuma identificação com a caminhada pastoral até então realizada naquela sede episcopal. A sucessão de Dom Helder Câmara na Arquidiocese de Olinda e Recife foi emblemática nesse sentido. Da mesma forma, situações controversas foram “varridas para debaixo do tapete” sem que as mudanças necessárias tenham ocorrido.

Muitas vezes, não há nitidez na forma pela qual as nunciaturas chegam a uma relação de candidatos ao episcopado. O padre Jose Oscar Beozzo (1994) apontava que, naquele tempo, províncias eclesiásticas e “regionais da CNBB, como o do Ceará, desistiram inteiramente dessa tarefa, pois os nomes aprovados pelos bispos e apresentados à Nunciatura nunca foram levados em conta” (BEOZZO, 1994, p. 280). Estávamos no contexto da restauração conservadora imposta à Igreja do Brasil. Mas em tempos de Francisco, como isso funciona?

No passado, a nomeação dos bispos foi um efetivo instrumento de enquadramento da CNBB, freando as opções teológico-pastorais feitas por significativa parcela do catolicismo brasileiro. Hoje, quando temos um Papa que propõe caminhos distintos de seus antecessores, a escolha de candidatos ao episcopado reflete os ventos da mudança que Francisco representa ou é um bastião de resistência dos opositores do Pontífice? Uma análise do perfil das recentes nomeações episcopais em alguns regionais pode ser muito elucidativa nesse sentido…

O código de direito canônico prescreve algumas normativas para a escolha de candidatos ao episcopado: que as conferências episcopais ou bispos das províncias eclesiásticas elaborem uma lista de possíveis candidatos a cada três anos pelo menos, e a encaminhe a Santa Sé, e que cada bispo possa pessoalmente indicar os nomes daqueles que considerem aptos ao ministério episcopal (Cân. 377). Mas cabe ao Núncio Apostólico elaborar a chamada terna (lista tríplice), promovendo consultas.

Segundo consta, podem ser consultados alguns membros do clero secular. Religiosos podem ser ouvidos, se o candidato pertencer a uma congregação. Leigos? Canonicamente apenas aqueles notáveis por sua sabedoria podem ser escutados. Tudo secretamente.

Mas aqui pairam importantes questões: Quem define quem são os leigos “notavelmente sábios”? Por que as religiosas não são mencionadas no Direito Canônico? Tal processo não deveria ser mais pastoral e “menos canônico”? A ausência de respostas confirma o que escreveu padre Beozzo, quando afirmou que a Santa Sé atua no sentido “alienar totalmente as Igrejas particulares do direito de fazerem ouvir sua voz” (BEOZZO, 1994, p. 280).

Em tempos de Vaticano II, com toda uma eclesiologia baseada na colegialidade e na coparticipação dos leigos, em que se reconhece que a Igreja não é somente a hierarquia, mas o Povo de Deus, ainda cabe tanto segredo? A escolha dos bispos não poderia ser mais transparente e mais inclusiva? O teólogo espanhol González Faus (1996) demonstra como era diferente o processo de seleção dos candidatos ao ministério episcopal nos primeiros séculos do cristianismo, com relativa participação do Povo de Deus, com candidatos locais.

Ao longo da história da Igreja, tivemos cada vez maior concentração do poder eclesiástico e um ministério papal que assumiu para si a seleção de membros do episcopado. Faus (1996) argumenta que isso originalmente não fazia parte das prerrogativas do ministério petrino. Não por acaso o nome do livro em que o teólogo espanhol trata do tema é uma famosa frase de São Celestino, Papa do Século V: “Nenhum bispo será imposto”. Dessa forma, não faria parte de um projeto de “Igreja em saída” modificar a forma como são eleitos os bispos?

Pouco tempo atrás, o Papa Francisco instaurou um procedimento experimental na escolha do Vigário da Diocese de Roma (trata-se do bispo que comanda a diocese romana em nome do Pontífice). Segundo o jornalista Andrea Tornielli (2017), Francisco promoveu uma consulta que envolveu as paróquias da Cidade Eterna e de Óstia. Como resposta, recebeu mais de 400 cartas com sugestões nomes e indicando as necessidades diocesanas.

Bergoglio respeitou a consulta e fez o bispo-auxiliar Angelo de Donatis seu Cardeal-Vigário. Menos de dois anos antes, Donatis era um simples pároco. Essa forma de proceder não deveria ser um protocolo válido para toda a Igreja?

*Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor. Atua no Movimento Fé e Política.

 

REFERÊNCIAS:

BEOZZO, José Oscar. Indícios de uma reação conservadora – Do Concílio Vaticano II à eleição de João Paulo II. Comunicações do ISER. Rio de Janeiro, ano 9, n. 39, p. 05-16. 1990.

________. A Igreja do Brasil: De João XXIII a João Paulo II – de Medellín a Santo Domingo. Petrópolis – RJ: Vozes, 1994.

CÓDIGO de Direito Canônico. Promulgado por João Paulo II, Papa. Tradução Conferência Episcopal Portuguesa. Lisboa: Editorial Apostolado Da Oração, 1983. Disponível em http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf. Acesso em: 06 mai. 2020.

GONZÁLEZ FAUS, José Ignácio. “Nenhum bispo imposto” (S. Celestino, Papa) – As eleições episcopais na história da Igreja. São Paulo: Paulus, 1996.

MEDEIROS, Mirticeli. O pároco que pode virar papa. Dom Total, Belo Horizonte, 30 ago. 2019. Disponível em <https://domtotal.com/noticia/1384213/2019/08/o-paroco-que-pode-virar-papa/>. Acesso em: 06 mai. 2020.

Papa lança consulta inédita para eleição do próximo vigário de Roma. O Globo, 13 mar. 2017. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/papa-lanca-consulta-inedita-para-eleicao-do-proximo-vigario-de-roma-21052973>. Acesso em: 06 mai. 2020.

TORNIELLI, Andrea. Há um ano e meio, novo vigário-geral do papa era pároco. La Stampa, 27 mai. 2017. Disponível versão traduzida em http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/568160-ha-um-ano-e-meio-novo-vigario-geral-do-papa-era-paroco. Acesso em: 06 mai. 2020.

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