Artigo

  • Em nome de Deus querem neutralizar o Sínodo

    O jornalista Flávio Tavares, no jornal O Estadão, publica artigo em defesa do Sínodo e da Amazônia. “O sínodo sobre a Amazônia será, de fato, o desdobramento concreto da encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, sobre “os cuidados com a casa comum”, nosso planeta. Lançada em maio de 2015, é o mais importante documento do século. Profundo, analítico e didático, alerta sobre a responsabilidade de cada um na vida no planeta. Denuncia a horda brutal da cobiça que, alegando um falso “progresso”, entende que a natureza é algo a destruir e malbaratar”.

    Segue o artigo:

    Em nome de Deus
    O sínodo é uma reunião interna da Igreja e só a ela cabe definir os próprios rumos.

    A vulgaridade que se espalha por todos os cantos passou a invocar o nome de Deus como se fosse um produto nas prateleiras dos supermercados. Não se trata sequer do ignorante, mas respeitoso temor reverencial de séculos atrás, quando os raios e trovões faziam tremer por ser “a ira divina”. Agora se invoca Deus a granel, na política ou no dia a dia, até para os atos mais diabólicos…

    Quando, porém, o papa e a Igreja Católica buscam estudar e analisar a progressiva degradação do planeta, muitos se esquecem de que a vida é a obra suprema. O próximo sínodo dos bispos sobre a Amazônia, a realizar-se em Roma, é o exemplo concreto da preocupação que deveria abarcar toda a sociedade, não apenas os católicos e os luteranos tradicionais, mas, mesmo assim, é atacado.

    A devastação da Amazônia é um horror concreto, agravado nas últimas décadas pela mineração e pelo desmatamento predatórios, que competem entre si sobre quem degrada mais… A região em que chovia todos os dias (e as reuniões se marcavam para “antes” ou “depois” da chuva) agora já padece de seca, numa antevisão do deserto. A maior bacia hidrográfica do planeta abrange nove países sul-americanos e os bispos da região (não só do Brasil) analisarão ações e estratégias para enfrentar o que se agrava a cada dia com o desmatamento e com rios e igarapés contaminados pelo mercúrio da mineração.

    No Brasil, porém, o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (sucessor do antigo SNI dos tempos ditatoriais), está preocupado com o sínodo e o considera uma afronta ao governo Bolsonaro e à própria soberania do Brasil. “Nós não damos palpite sobre o Deserto de Saara ou o Alasca”, disse, adiantando que o governo pretende neutralizar as conclusões que surjam do sínodo…

    Por que “neutralizar”, se a reunião será em outubro e nem se sabe o que recomendará?

    Convocado pelo papa Francisco em 2017, um ano antes da eleição de Bolsonaro, o sínodo é uma reunião interna da Igreja e só a ela cabe definir os próprios rumos. O bispo de Marajó, dom Evaristo Spengler, um dos relatores do encontro (junto a prelados de outros oito países) lembra que a Igreja “não pode ser neutra ou impassível” diante de um crime causado pela visão de lucro fácil. Está em risco um exuberante bioma que se estende das montanhas do Peru, junto ao Oceano Pacífico, até o Atlântico.

    O ministro do Gabinete de Segurança Institucional foi comandante militar na Amazônia brasileira e hoje é a figura mais influente do governo, mas se equivocou ao não entender a missão da Igreja. Amar o planeta não será, antes de tudo, amar a humanidade? No equívoco teve até a companhia de alguns que – alheios à realidade interna da Igreja – fantasiaram situações ou divisões há muito inexistentes no catolicismo ou entre os membros do Conselho Mundial de Igrejas.

    O sínodo sobre a Amazônia será, de fato, o desdobramento concreto da encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, sobre “os cuidados com a casa comum”, nosso planeta. Lançada em maio de 2015, é o mais importante documento do século. Profundo, analítico e didático, alerta sobre a responsabilidade de cada um na vida no planeta. Denuncia a horda brutal da cobiça que, alegando um falso “progresso”, entende que a natureza é algo a destruir e malbaratar, a desrespeitar e odiar. E que tudo, até o horror, é válido em nome do lucro…

    A encíclica deu nova dimensão à luta pela preservação ambiental. Ao superar as ribombantes frases declaratórias dos governos e governantes, saltou dos discursos para a consciência dos indivíduos, a partir do conceito de vida.

    O meio ambiente surgiu (ou ressurgiu) como tema teológico, ligado umbilicalmente à vida na Terra ou à nossa existência e ao que nos rodeia. Anos antes, em 2008, o papa Bento XVI havia definido quatro novos “pecados capitais” – a poluição ambiental foi um deles, ao lado da manipulação genética, das drogas e da exploração econômica que provoca a desigualdade social.

    Mas na voraz sociedade de consumo (que naturalmente nos conduz ao hedonismo e ao prazer) a ideia de “pecado” já não tem a profundidade de séculos atrás. Hoje, se não somos capazes de dominar os sete pecados capitais da tradição bíblica – gula, luxúria, avareza, ira, soberba, vaidade e preguiça –, como incorporar os quatro apontados no século 21?

    A encíclica sobre “os cuidados com a casa comum” abriu nova reflexão a respeito da responsabilidade não só dos governantes ou dos empresários, mas de cada um de nós em torno da vida no planeta. O sínodo busca encontrar caminhos para concretizar o que a encíclica aponta.

    A Igreja não é um ente etéreo. Historicamente, está comprometida com a defesa da vida. Aquilo que a teologia chama de eternidade é, em essência, a manutenção da vida tal qual foi estabelecida pelo Deus criador, seja ele qual for – o “fiat lux” da Bíblia ou o “big-bang” da ciência.

    Só há eternidade se houver o planeta. Sem ele, é o nada!

    Afinal, por que defender o meio ambiente apenas nas grandes conferências de chefes de Estado e, logo, relegar as palavras a plano inferior?

    A Eco-92, realizada há 27 anos no Rio de Janeiro, elaborou a Agenda 21 como cartilha a adotar no novo século para nos salvar da hecatombe próxima. Em 2012, também no Rio, nos 20 anos da reunião anterior, nova reunião de cúpula dos chefes de governo reiterou a advertência, sem que o essencial houvesse mudado. O aquecimento global continuou, sem medidas urgentes de reversão.

    Agora, porém, quando o sínodo dos bispos sobre a Amazônia busca saídas para mitigar e extirpar o horror numa região sensível do planeta, há quem use até “o nome de Deus” para se opor à iniciativa…

    *JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

  • A encruzilhada do catolicismo brasileiro

    O catolicismo brasileiro está diante de uma encruzilhada política. Nesse momento histórico complicado, se avizinham as eleições para CNBB, com rumores de mudança em seus estatutos. Estará nas mãos do episcopado brasileiro resgatar uma tradição profética recente, que fez da Conferência dos Bispos uma das instituições mais respeitadas do Brasil na defesa dos direitos humanos, e de grande credibilidade no dinamismo de suas ações – como a Campanha da Fraternidade. Ou optar por cair em um triunfalismo fundamentalista, alimentado por doses cavalares de formalismo litúrgico, distanciamento da vida concreta do povo, salpicada com generosas pitadas de pentecostalismo.

    Neste último caso, estará a Igreja do Brasil jogando fora mais de cinquenta anos de vanguarda pastoral e protagonismo social, iniciados em 1952 por iniciativa do grande dom da Igreja Católica no Brasil, o arcebispo Hélder Câmara. Ao mesmo tempo, ela poderá se abraçar de vez com o que se tem de mais reacionário no catolicismo e na sociedade. Fascismo na política, moralismo nos costumes e um modelo de Igreja clerical e autorreferencial. Tudo isso em franca oposição ao magistério do Papa Francisco e da sua agenda social.

    Entre o episcopado, há uma cautela excessiva na abordagem dos grandes temas nacionais. Quando confrontados por detratores, silenciam. No sigilo dos bastidores, muitos leigos pensam que falta ousadia e coragem. No clero, sobretudo dentre os mais jovens, não poucos conferem mais importância aos paramentos e vestes que ressaltem a sua condição clerical do que a animação pastoral e o serviço ao povo de Deus. Estes preferem ostentar sua condição de padre com batina e clergyman se escondendo do povo através dos formalismos e das normativas eclesiásticas. Coisas essas muito criticadas pelo Papa, totalmente avesso ao clericalismo e ao triunfalismo.  Não é incomum que sacerdotes considerem a CNBB e suas iniciativas, especialmente a Campanha da Fraternidade, como  coisas muito “políticas”…

    Quem viu ou conviveu com bispos como Luciano Mendes de Almeida, Antônio Fragoso, Adriano Hypólito, Paulo Evaristo Arns, Tomás Balduíno, Waldyr Calheiros ou Aloísio Lorscheider, sente muita diferença. O profetismo pessoal destes e de muitos outros, que oferecia uma pronta resposta aos desafios que se impunham à Igreja e à sociedade, foi substituído por um “profetismo institucional”. Este, por sua vez, é muito precavido nos termos e nas expressões. Embora os pronunciamentos sejam acertados, estão sempre um passo atrás dos acontecimentos. A reação parece lenta demais em um mundo marcado pela comunicação digital permitida pela internet e pelas redes sociais. Claro que temos hoje bispos-profetas, como Dom Adriano Ciocca, Dom Joaquim Mol, Dom Evaristo Spengler, Dom Erwuin Krautler ou Dom Antônio Carlos Cruz. Mas, no conjunto do episcopado atual, estes representam uma “minoria abraâmica”, para ficar nas palavras de Dom Hélder Câmara.

    Do ponto de vista eclesial, a eleição na CNBB marcará também os rumos de uma Igreja no Brasil que parece vacilante diante do magistério de Francisco. Não se percebe aquele entusiasmo efusivo de outrora – e com outros pontífices – em relação aos ensinamentos e orientações vindas do Papa. Na verdade, há uma recepção morna às diretrizes vindas do Bispo de Roma. Inicialmente, verifica-se que os discursos e as falas oficiais são respeitosas, e sempre se faz referência à colegialidade episcopal, à obediência ao Bispo de Roma, ao caminhar “cum et sub Petro”. São poucos os grupos que criticam abertamente o Papa Francisco aqui no Brasil. No entanto, mudanças cotidianas são pouco sentidas e o modelo de formação presbiteral ainda é o mesmo de outros tempos. Os escândalos de abuso sexual em várias partes do mundo indicam que alguma coisa precisa ser feita nesse sentido. Da mesma forma, o perfil de parcela de boa parte do episcopado brasileiro está mais próximo de João Paulo II e Bento XVI do que de Francisco.

    Dessa forma, os documentos papais, primorosos em sua crítica e proféticos em sua denúncia, trazem as sementes de um cristianismo mais sintonizado com as práticas de Jesus, e resgatam um caminho eclesial que foi abandonado por mais de trinta anos, cujo início se deu com João XXIII através do Concílio Vaticano II. No entanto, encontram pouco eco nas dioceses organizadas sob o modelo da grande paróquia católica. Fala-se até muito de Francisco, as emissoras católicas reproduzem suas missas, repercutem suas viagens, mas pouco se aprofunda o conteúdo de seus textos, suas pregações e suas homilias. Ao mesmo tempo, aqueles que mais reivindicam maior presença da mensagem de Francisco nos ambientes católicos são exatamente os que hoje são atacados por muitos de seus irmãos na fé. São chamados de hereges, de vergonha da Igreja, de anticristãos, de falsos católicos e de comunistas. Os comentários feitos nas postagens dos encontros e assembleias da Pastoral da Juventude no Facebook são um triste exemplo disso.

    De toda a forma, à frente da barca de Pedro está um Pontífice que dá sinais expressivos a respeito da direção que a Igreja deve tomar. Sua agenda social se resume nos três “T’s”: Terra, teto e trabalho. Bergoglio canonizou Dom Oscar Romero e recentemente substituiu um cardeal arquiconservador por um padre perseguido por este mesmo bispo e que foi aluno de Gustavo Gutierrez, um dos mentores da Teologia da Libertação. Na semana passada, o Papa mandou retirar a suspensão “ad divinis” do poeta e padre nicaraguense Ernesto Cardenal, também muito identificado com a Teologia Latinoamericana.

    O Sínodo da Família sinalizou uma abertura pastoral aos recasados. O Sínodo sobre os jovens reforçou o protagonismo juvenil. Em sua última exortação sobre a santidade, Gaudete et Exsultate, o papa insiste em um modelo de santidade que se solidariza com a dor dos outros. Ao mesmo tempo, rejeita certa presunção de santidade baseada no sentir-se “superior aos outros por cumprir determinadas normas” ou por ser fiel “a um certo estilo católico” (n. 49). Também rejeita certa visão de santidade baseada na “obsessão pela lei” e na “ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja (n. 59).

    Na semana passada, Francisco promoveu um encontro com 114 bispos presidentes de conferências episcopais para discutir o abuso sexual na Igreja.  A magnitude desse encontro o torna sem precedentes na história da Igreja, fazendo desse momento uma espécie de “pré-conclave” ou de “mini-concílio”, nas palavras do historiador italiano Alberto Melloni. O Bispo de Roma foi duplamente destemido: por “tocar o dedo na ferida” de forma objetiva, transparente e sem subterfúgios; e porque, em nome da justiça, arriscou um grande debate público a partir do qual poderia surgir uma oposição mais direta a seu pontificado, capaz de influir em sua própria sucessão.

    Consequentemente, não podemos desconectar o magistério papal da realidade eclesial brasileira. Ventos contrários as mudanças propostas por um papa que “veio do fim do mundo” ecoam aqui também. Muitos não se conformam com seu espírito de abertura e com a sua eclesiologia. Dentro e fora da Igreja também, porque o Papa é um crítico severo do livre-mercado, da exploração dos trabalhadores e da situação dos migrantes. Francisco hoje talvez seja o único líder em escala mundial que pode ser chamado de estadista. E isso incomoda muita gente.

    No Brasil, não é diferente. Talvez seja essa uma explicação parcial sobre a sensação de “empurrar com a barriga” muitas vezes sentida em relação às diretrizes do Bispo de Roma em nosso país. Claro que ninguém admite isso, mas em muitos lugares, se não fosse pela menção na Oração Eucarística, um desavisado nem saberia o nome do atual Vigário de Cristo. O Papa pede um novo modelo de Igreja, de leigo, de padre, de bispo e de ação pastoral. Isso causa desconfortos e constrangimentos para quem entende que a Igreja ideal para o século XXI é aquela proposta pelo Concílio de Trento, quinhentos anos atrás.

    Fora dos muros eclesiais, Francisco hoje causa arrepios nos serviços de inteligência do atual governo. Um dos generais responsáveis pelos arapongas admitiu publicamente que padres, bispos e agentes de pastoral estão sob vigilância, espionados pela Abin por causa do Sínodo da Amazônia. Sem desconsiderar a preocupação em relação as críticas que podem ser feitas na reunião de outubro próximo à atual gestão, desgastando ainda mais a imagem já corroída do país, o governo atirou no Sínodo para acertar na eleição da CNBB. Por isso, sua importância.

    Se levarmos em consideração os apoios (explícitos e velados) que parte da hierarquia católica manifestou nas eleições passadas, seria um enorme alívio para Bolsonaro e seus aliados que um “amigo” ocupasse a presidência da conferência episcopal. E as redes sociais, os fatos ocorridos ao longo da campanha e as informações de bastidores são reveladoras sobre quem são os “parceiros católicos” do presidente da República. É aqui que reside a encruzilhada de poder que envolve o episcopado brasileiro. É muito difícil que haja um prelado que seja, ao mesmo tempo, alinhado com a eclesiologia de Francisco e afinado com as ideias bolsonaristas. Logo, um aliado do governo federal na presidência da CNBB certamente seria alguém que, no mínimo, se sente desconfortável com as orientações e com o modelo de Igreja que o Papa propõe.

    É claro que, se nefasta possibilidade ocorresse não seria uma oposição frontal, aberta e pública. Nas falas públicas, o que seria visto são o apelo à unidade da Igreja e à solicitude para com o Pontífice Romano. Portanto, é necessária sensibilidade no olhar para perceber as nuances presentes nos jogos de poder da política eclesiástica. Olhar o cenário internacional da Igreja e os movimentos realizados no Brasil podem nos indicar quem seria o “amigo” do Planalto.

    Indícios já existem. Há algum tempo, o cardeal Burke – o principal opositor do Papa – esteve em algumas cidades brasileiras, duas delas tem algo comum: o mesmo bispo esteve ou está nelas. Outro indício se apresentou nesse início de ano. Dizem em alguns salões paroquiais que uma grande diocese brasileira realizará um evento (ou este ocorrerá em seu território) em abril com o Cardeal Gerhard Müller, que recentemente publicou um “manifesto da fé”. Na verdade, foi uma forma rebuscada de fazer críticas contundentes ao magistério de Francisco. Se os rumores forem confirmados, teremos outro opositor do Papa em uma grande cidade do país há poucos dias da assembleia-geral dos bispos que possivelmente definirá novos estatutos e que escolherá um novo presidente, secretário-geral (ou serão secretários?) e comissões episcopais.  Talvez a oposição ao Bispo de Roma fique evidente demais para o titular dessa diocese a ponto dele ser o anfitrião do evento. Mas ele pode ser ou chancelado por um preposto ou promovido pelos mesmo grupos que “realizaram” a turnê brasileira de Raymond Burke há alguns anos.

    Enfim, haverá chance para um aliado do planalto ocupar a presidência da conferência dos bispos? As citações eclesiásticas feitas pelo ex-governador do Rio de Janeiro terão efeito sobre a assembleia da CNBB em abril? Em breve teremos as respostas.

  • Governo Bolsonaro – 50 dias

    Não houve um período de “lua de mel”, como costuma acontecer em todo início de governo eleito: ao tomar posse, já havia as denúncias relativas ao motorista de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, de ter recebido uma quantia enorme em apenas um ano. O não comparecimento para prestar depoimento, tanto por parte de Queiroz como por parte do ex-deputado estadual, só fizeram aumentar as suspeitas em relação ao caso.

    Seguiu-se a isto a designação pela polícia do assassino da ex-vereadora Marielle Franco, hoje foragido. Tanto a mãe quanto a mulher deste ex-policial e miliciano trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro, o que confirma a proximidade da família com as milícias.

    A ida do presidente a Davos foi um fiasco junto à comunidade internacional. O discurso, que poderia ser de quarenta e cinco minutos não passou de seis. Posteriormente, o presidente e os membros do governo deixaram de comparecer a uma coletiva de imprensa. A avaliação da mídia internacional foi muito crítica: tanto o discurso quanto a ausência revelavam a pouca consistência deste governo.

    Aliás, a mídia no exterior tem sido muito reticente em relação ao governo Bolsonaro. Certamente, haverá apoio a medidas econômicas neoliberais, mas não passarão incólumes as posturas homofóbicas, antifeministas ou racistas, nem tampouco iniciativas autoritárias ou militaristas.

    Existe um processo de desmoralização do governo, que vem se mostrando incapaz de controlar os membros da família, de se relacionar bem com alguns quadros mais próximos, de gerir seu partido. Bolsonaro não parece preparado para o cargo que obteve.

    As medidas iniciais tomadas pelo novo governo revelaram com muita precisão que o discurso de campanha era, no essencial, verdadeiro:

    – O corte de direitos dos povos indígenas e quilombolas (transferindo a responsabilidade pela demarcação dos territórios para o Ministério da Agricultura, nas mãos do agronegócio, e esvaziando a FUNAI).

    – O fim do Ministério do Trabalho.

    – As secretarias da igualdade racial e de política pública para a população LGBTI desaparecem.

    – O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) é extinto.

    – Estabelece-se controle sobre as ONGs (em especial as entidades ambientalistas, os centros de defesa dos direitos humanos).

    Ainda no primeiro mês, tal como havia prometido na campanha, o governo liberou a posse de armas: cada pessoa poderá ter até quatro armas. Especialistas em segurança afirmam que, quanto mais armas disponíveis para os cidadãos, maior o risco de violência.

    – O campo da educação tem sido alvo constante: combate às universidades públicas, aos professores.

    – Impulso às privatizações (Eletrobrás, setores da Petrobras, leilões, venda da EMBRAER para a Boeing, etc.).

    – Reforço da subliminar “licença para matar”, “licença para agredir” (os membros de grupos vulneráveis).

    – Temas sobre os quais os membros do governo têm se manifestado de forma crítica: mulheres, feminismo, direitos sexuais e reprodutivos, luta pela descriminalização do aborto.

    – A relação com a grande mídia: ameaças, denúncias, etc. Em áudio de Bolsonaro, a Globo é alvo de discriminação.

    – A revelação de investigação por parte da ABIN e do GSI a respeito do Sínodo sobre a Amazônia, convocado pelo Papa, a se realizar em Roma, em outubro deste ano. (Este tipo de monitoramento ocorreu durante todo o período da ditadura militar, mas é inteiramente fora de propósito numa democracia: mais incomum é o serviço secreto revelar quem está investigando).

    As duas medidas mais importantes e as mais esperadas do governo:

    1. O pacote anticrime de Sergio Moro.
    2. O centro da proposta econômica do novo governo: a Reforma da Previdência (com apoio total do “mercado” e da grande mídia).
    1. O pacote anticrime tem uma marca evidentemente punitivista: reforça a ideia de que combater a criminalidade é prender mais. Ora, o Brasil já é o terceiro país do mundo em número de encarcerados: 700 mil, atrás apenas dos EUA e da China. A população carcerária dobrou nos últimos anos: nada indica que isto tenha promovido redução da violência.

    O segundo aspecto grave deste pacote é a “licença para matar” concedida aos policiais: ao invés de reforçar o papel da inteligência e da articulação entre as polícias, facilita a abordagem letal por parte dos funcionários da polícia, num país onde o número de mortes causadas por policiais já é enorme. Especialistas têm chamado a atenção para o fato de que, quanto maior o número de mortes produzidas pela polícia, maior o número de policiais mortos.

    1. A Reforma da Previdência vem sendo apresentada pela mídia como a solução para todos os problemas da economia: se não aprovada, o país vai quebrar; se aprovada, vai gerar emprego, os salários vão aumentar, a economia vai deslanchar.

    Ora, em primeiro lugar, é preciso lembrar o que foi provado pela CPI da Previdência (2018): não há “rombo” na Previdência, há superávit. A Constituição de 1988 previu recursos suficientes para a Seguridade Social (saúde, previdência e assistência). Tais recursos vêm do Estado, dos empregadores e dos empregados.

    Em segundo lugar, a Previdência não é o maior gasto público do país: é a dívida pública. Em 2018, a Previdência representou 25% da despesa e a dívida representou 40%. Destes 40%, uma parte significativa foi para pagar os juros da dívida: cerca de 350 bilhões de reais. Quantia que é dirigida para os mais ricos do país, apenas 1% da população. Por que? Porque a taxa de juros, de 6,5%, continua a ser uma das mais altas taxas de juros reais (descontada a inflação): somente 6 países têm taxas reais acima da nossa. Boa parte dos países têm taxas reais de 0 (zero) ou abaixo de zero. Se nossa taxa fosse baixa, não pagaríamos bilhões aos mais ricos.

    Além disso, só em isenções fiscais, o Brasil hoje abre mão de 350 a 400 bilhões de reais por ano (somente o governo federal).

    Em sonegação fiscal, o Brasil perde 500 bilhões por ano (e, hoje, temos tecnologia que nos permite localizar os sonegadores).

    Ao somarmos 350 bilhões (juros), 350 bilhões (isenções fiscais) e 500 bilhões (sonegação), temos 1 trilhão e 200 bilhões de reais – em um ano – que deixam de ser usados em políticas sociais (saúde, educação, transporte, etc.) e só servem a ricos e a empresários/banqueiros/rentistas. Ora, a Reforma da Previdência pretende arrecadar 1 trilhão em dez anos: não precisa, temos outras fontes certas e seguras.

    Não há necessidade desta Reforma da Previdência, que pretende economizar dinheiro tirando dos mais pobres, dos trabalhadores rurais e dos idosos. Precisamos estender a Previdência àqueles trabalhadores que não têm acesso a ela, precisamos cobrar mais dos mais ricos e pagar mais aos mais pobres.

    O principal objetivo da Reforma da Previdência de Bolsonaro é passar do regime de repartição – que é o atual, baseado na solidariedade social – para o regime de capitalização – que é individualizado. No regime de repartição todos contribuem, trabalhadores, empregadores e Estado. No regime de capitalização, só o trabalhador contribui (e, na maioria dos casos, só contribui quando está empregado). Assim, todos os períodos em que o trabalhador ficar desempregado, não contribuirá para a previdência e terá dificuldade de atingir o tempo mínimo de contribuição para obter a aposentadoria.

    O país exemplo do regime de capitalização é o Chile de Pinochet. Hoje em dia, 80% dos aposentados neste país recebe menos que o salário-mínimo de aposentadoria. Os grandes beneficiários deste modelo de Previdência não são os trabalhadores, são os bancos e os fundos de pensão[1].

    A verdadeira Reforma que permitiria reduzir as desigualdades e os privilégios seria a Reforma Tributária, de modo que os que ganham mais paguem mais impostos e os que ganham menos paguem menos (ou nada). Hoje, os mais ricos não pagam impostos sobre lucros e sobre dividendos: só um país no mundo, além do Brasil, tem esta regalia, a Estônia. Com uma Reforma Tributária progressiva, teríamos recursos mais que suficientes para as políticas públicas.

    Frente a esta ofensiva contra direitos, inclusive o pacote anticrime e o projeto de Reforma da Previdência, temos de desmascarar o conteúdo prejudicial à maioria e divulgar os efeitos demolidores que tais projetos teriam.

    [1] Sobre a proposta de Reforma da Previdência de Bolsonaro, ver as entrevistas do professor Eduardo Fagnani na Carta Capital, https://www.youtube.com/watch?v=e7j_izWR6fY e do ex-ministro da Previdência, Carlos Gabas, https://www.youtube.com/watch?v=CTzgfL_giTs .

    Foto de capa: site sputniknews.com/brasil

     

  • Crise para quem, cara pálida?

    Em 22 anos, de 1997 a 2018, o Estado brasileiro repassou para o sistema financeiro (e a turma que vive de renda) o equivalente a R$ 5,1 trilhões, tirados do Orçamento Anual da União (diga-se das Políticas Públicas de Saúde, Educação, Previdência, Transporte etc). Não, você não se enganou na leitura. É isso mesmo: R$ 5 tri!

    Segue artigo de Paulo Kliass, Publicado 13/02/2019 em OUTRAS PALAVRAS

    Superávit primário: história de uma fraude

    Nos anos 1980, surgiu a ideia de que o mais importante, na gestão das contas públicas, era garantir o pagamento de juros aos barões. O novo termo é fruto desta deformação

    Paulo Kliass

    É bem verdade que o famigerado termo do economês caiu um pouco em desuso nos meios dos “especialistas”, as figurinhas carimbadas sempre chamadas a fornecer suas opiniões nas colunas de economia dos “grandes” meios de comunicação. Afinal, não tem mesmo mais sentido ficar clamando pelo sacrossanto “superávit” quando os resultados fiscais têm apresentado – de forma sistemática desde 2014 – saldos negativos na abordagem do balanço dito “primário” das contas públicas.

    Mas não nos deixemos enganar. O fato de o resultado primário não ter sido superavitário depois de 2013 não significa que a essência da malandragem tenha sido abandonada. De modo algum! Muito pelo contrário! Lembremo-nos todos que essa metodologia “inovadora” no tratamento das contas públicas data ainda lá da década de 1980, no período em que os países do chamado Terceiro Mundo estavam atolados em dívidas externas e passaram a enfrentar dificuldades em honrar esses compromissos em moeda norte-americana. A maior parte dos credores era composta de bancos privados, que não queriam ficar sem receber sua parte no butim. Era o início do período que ficou conhecido como o da crise da dívida.

    Tendo em vista a impossibilidade de pagamento das obrigações junto à banca estrangeira, entram em cena os organismos multilaterais do financismo internacional. O Banco Mundial (BM) e, especialmente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) se oferecem, generosa e voluntariamente, como guardiães da liquidez. Se propõem a honrar os compromissos dos países endividados para evitar perdas maiores e um risco de colapso sistêmico no âmbito financeiro, mas exigem como contrapartida que as tais nações “beneficiadas” passassem a assumir internamente a agenda de liberalização e privatização.

    Privilégios para o financismo

    E aqui entra a novidade espoliadora. Para evitar que houvesse outra crise mais à frente, os defensores do financismo apresentam, como um dos itens das “condicionalidades” da dita “ajuda”, o compromisso dos governos com uma nova sistemática de condução da política fiscal. Bingo! A partir de então não seria necessário buscar o superávit nas contas públicas de forma geral. O pequeno “detalhe” era a exigência de superávit nas contas primárias. E o que isso significa na prática? Mais do que mero adjetivo, o sentido era de compromisso em buscar reduzir despesas e ampliar receitas apenas nas contas não-financeiras (as tais contas “primárias”) dos orçamentos. Por meio de tal estratagema, sobrariam recursos assegurados para o cumprimento das despesas financeiras dos governos. Entenda-se aqui como o pagamento de juros e demais serviços da dívida pública.

    Ao longo dessas últimas três décadas a prática se generalizou e hoje em dia a grande imprensa trata as duas metodologias como sinônimos. Uma grande falácia! Isso porque a aplicação da regra do “resultado primário” confere um tratamento privilegiado aos gastos públicos associados ao mundo financeiro. Essas rubricas são intocáveis. Já as demais despesas – a exemplo de saúde, previdência, educação, assistência, saneamento, ciência e tecnologia, investimento, pessoal, etc – podem ser comprimidas para obtenção de um superávit que vai justamente para o pagamento dos compromissos financeiros inquestionáveis.

    Precisamos de algum número para comprovar o que escrevo por aqui? Pois então, basta que consultemos a página do BC e então poderemos identificar os valores que foram despendidos com pagamento de juros ao longo de 2018. Uma loucura! Entre janeiro e dezembro do ano passado, por exemplo, foram gastos exatamente R$ 379 bilhões para esse fim. Ou seja, o país seguia quebrado, com mais de 13 milhões de desempregados, quase 30 milhões de pessoas sub-aproveitadas em suas atividades na informalidade do mercado de trabalho, falências por todos os lados, cortes orçamentários por todos os cantos. Mas os recursos para o setor financeiro não poderiam faltar de maneira alguma.

    Em 2018: país quebrado e R$ 380 bi com juros

    O governo Temer passou seus longos e tenebrosos dois anos reclamando por uma Reforma da Previdência, decretou a Emenda Constitucional “do Fim do Mundo” congelando as despesas orçamentárias (não financeiras, que fique bem claro) por longos 20 anos e provocou um verdadeiro desmonte do Estado com o argumento de que não havia recursos. Uma grande mentira! O dinheiro público existia, como ainda existe. O problema é que ele é direcionado para outras prioridades. No caso, para o poderoso jogo de interesses e de pressão do sistema financeiro.

    O governo do capitão e seu porta-voz na economia vão pelo mesmo caminho. Para Paulo Guedes, a “Reforma” da Previdência seria a mãe de todas as reformas. Sem ela, as contas públicas ficariam inviabilizadas agora e no futuro. Em troca da destruição da Previdência Social, ele acena com a economia de R$ 1 trilhão ao longo das duas décadas à frente. Mentira! Está mais do que provado que basta que as atividades econômicas voltem a crescer e os níveis de emprego sejam recuperados para que as necessidades de financiamento atualmente existentes no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) sejam eliminadas.

    O problema é outro. Trata-se de saber quem terá a coragem política de propor a mudança desse modelo perverso de transferência de recursos para o sistema financeiro e para a rede que se alimenta do parasitismo em seu entorno. Afinal, desde que o Tesouro Nacional começou a contabilizar uma série estatística de apuração de “resultado primário” os dados são estarrecedores. Entre 1997 e 2018, por exemplo, foram repassados ao sistema financeiro o equivalente a R$ 5,1 trilhões dos 22 Orçamentos Anuais da União do período. Não, você não se enganou na leitura. É isso mesmo: R$ 5 tri!

    Entre 1997 e 2018: R$ 5 trilhões com juros

    E tem mais. Entre 1998 e 2013, foram superávits religiosamente gerados e cumpridos. Eram valores que giravam em torno de 1,9% do PIB na média anual. Com o recorde tendo ocorrido justamente durante o primeiro mandato de Lula. Naquele momento, a duplinha dinâmica Antonio Palocci (Ministério da Fazenda) e Henrique Meirelles (Banco Central) chegou ao absurdo de alcançar uma média de 2,5% do Produto Interno entre 2003 e 2005. Um sistema de extração de recursos de toda a sociedade, com a intenção de promover um redirecionamento dos mesmos para uma reduzida casta de privilegiados.

    A partir de 2014, a economia começou a patinar e as contas públicas passaram a apresentar seus primeiros problemas. Mas apesar dos déficits primários gerados desde então, a cada exercício a conta de juros no orçamento federal era religiosamente cumprida. No total foram pagos escandalosos R$ 1,8 trilhões ao longo dos 5 anos de resultado fiscal deficitário em 5 anos. Pois é! Crise para quem, cara pálida?

    A mudança nessa verdadeira eternização da perversidade e da injustiça social exige mais do quem uma simples retomada do crescimento. É necessário que a sociedade brasileira tome para si a responsabilidade de romper com esse pacto de privilégios do financismo. Um modelo que aponte para o desenvolvimento e a redução das desigualdades não pode conviver com tamanha fonte de disparidade. A agenda das forças progressistas deve incorporar a redefinição dessa metodologia nas contas públicas, que nos é apresentada como “natural”. Além disso, necessitamos uma revisão das amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal e a libertação do País das condições draconianas de gestão da dívida pública sob o império de juros elevados. Enfim, tudo isso passa pelo fim da ditadura do superávit primário.

    Paulo Kliass – Possui graduação em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – SP (1985), mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo (1988) e doutorado em economia pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 – Nanterre (1994) e pós doutorado em economia na Université de Paris 13. Desde 1997 é integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Informações coletadas do Lattes em 03/12/2018.

  • Por direitos ameaçados e por direitos nunca conquistados

    Dia 20 de fevereiro (quarta-feira) acontecerá o lançamento oficial da Comissão Arns, às 11 h, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, São Paulo. Notícia publicada por Lourdes Nassif – 13/02/2019 em jornal GGN. Segue a publicação:

    Está nascendo a nova Comissão de Defesa dos Direitos Humanos: Dom Paulo Evaristo Arns dará nome e Margarida Genevois será a presidenta de honra. Por que Arns? Por que Margarida Genevois?

    Padre Ticão e Professor Waldir nos dão uma pista, no livro Dom Paulo Evaristo Arns – Cardeal das Periferias, dos Pobres e da Justiça:
    Crescem assustadoramente os atos de injustiça e autoritarismo praticados pelo governo militar. Os terríveis atos institucionais eram decretados a seu bel prazer, dando-lhe poderes para agir do modo que melhor lhe aprouvesse a fim de reprimir qualquer manifestação contrária ao sistema imposto. O povo estava acuado e amedrontado diante de tantas perseguições.

    São inúmeras as declarações feitas por Dom Paulo e registradas em livros, jornais e revistas sobre as perseguições sofridas pelo povo que ocupava as periferias, sobremaneira por aquelas pessoas que exerciam algum tipo de liderança. Como ajudar, proteger ou mesmo socorre a tantos? (…)

    Certamente inspirado e conduzido pelo amor incondicional aos mais pobres, Dom Paulo, a exemplo de Paulo VI que havia feito em Roma, decide constituir em São Paulo[ em 1972] a Comissão de Justiça e Paz.

    Artigo da Folha de S. Paulo, assinado por Eleonora de Lucena, nos conta de Margarida Genevois:
    Quando começou a trabalhar na Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, em 1972, Margarida Genevois falou para a família e amigos de casos de tortura e de desaparecidos da ditadura. Encontrou desinformação e desconfiança.

    “Eu contava e ninguém acreditava, diziam que era imaginação. Até meu marido acreditava meio desconfiado”, relembra às vésperas de fazer 90 anos: “Tomei conhecimento das coisas horríveis que se passavam nas prisões, das barbaridades. Mas a classe média é meio protegida das desgraças da sociedade”.

    Em seu apartamento em São Paulo, onde mora só, ela recorda que a comissão “era um dos poucos lugares que apoiavam os perseguidos. Eu recebia pessoas que estavam desesperadas, muitas tinham saído de prisões e estavam profundamente marcadas por aquilo tudo. É horrível perder um pai, um irmão que desapareceu feito fumaça no ar”.

    (…)

    Margarida trabalhou com Arns por 25 anos, presidindo a comissão por três vezes. “O bem que d. Paulo fez não é bastante reconhecido. Quem trabalha com ele cresce.”

    Os criadores da Comissão Arns, inspirados, assim, em Dom Paulo, em Margarida e na Comissão de Justiça e Paz, entendem que os direitos consolidados na Constituição de 1988 sofrem sérios riscos de retrocesso. Eles, no entanto, vão além dos direitos reconhecidos na lei: sabem que há, na sociedade brasileira, “uma dívida histórica quanto à incorporação dos direitos humanos na vida dos cidadãos”. Acrescentam que:

    O objetivo da iniciativa é dar visibilidade e acolhimento institucional a graves violações da integridade física, da liberdade e da dignidade humana, especialmente as cometidas por agentes do Estado contra pessoas e populações discriminadas – como negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTs, mulheres, jovens, comunidades urbanas ou rurais em situação de extrema pobreza.

    Os 20 membros-fundadores da Comissão Arns, sob a presidência de honra de Margarida Genevois, reúnem seis ex-ministros:
    Claudia Costin, José Carlos Dias, José Gregori, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Paulo Sérgio Pinheiro e Paulo Vannuchi; o ex-secretário de Justiça de São Paulo, Belisário Santos Jr.; o advogado e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente; os juristas Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Fábio Konder Comparato e Oscar Vilhena Vieira; os cientistas políticos André Singer, Luis Felipe de Alencastro, Maria Hermínia Tavares de Almeida e Maria Victoria Benevides; os filósofos Sueli Carneiro e Vladimir Safatle; o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak; a jornalista Laura Greenhalgh.

    Os membros fundadores da Comissão Arns divulgarão manifesto, chamando a atenção da sociedade brasileira para o ambiente onde crescem o discurso do ódio, a intolerância, o preconceito e a discriminação.

    O lançamento oficial da Comissão Arns será no próximo dia 20 de fevereiro (quarta-feira), às 11 h, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco.

     

  • Generais de Bolsonaro revelam plano para calar Igreja Católica

    O Jornal Brasil de Fato repercutiu hoje matéria do Estadão revelando plano, nada secreto do governo, para vigiar a preparação do Sínodo para a Amazônia, promovida pela REPAM – Rede Eclesial Pan-Amazônica, que inclui as Igrejas católicas dos diversos países da região. As atividades preparatórias seguem até outubro de 2019, quando os bispos se reunirão em Roma. O Sínodo foi convocado pelo papa Francisco e é ele quem assina o documento preparatório. O episódio revela mais uma vez o alto grau de desinformação do atual governo. Segue a matéria de Pedro Ribeiro Nogueira, Brasil de Fato, 10 de Fevereiro de 2019.

    “Queremos neutralizar isso aí”: generais de Bolsonaro agem para calar Igreja Católica

    Setores de Inteligência querem silenciar setores progressistas do clero que irão participar do Sínodo para Amazônia no Vaticano.

    Em outubro, cardeais e bispos da Igreja Católica se reunirão no Vaticano para discutir a situação da floresta amazônica. O evento, chamado de Sínodo, é um encontro do clero que irá debater a realidade de índios, ribeirinhos e povos da floresta, além de políticas de desenvolvimento da região, mudanças climáticas e conflitos agrário. A existência dessa conferência motivou preocupação do governo, que vê as pautas como “agenda da esquerda”.

    Reportagem do Estado de S. Paulo, divulgada neste domingo (10), mostra que o governo encara com preocupação a atuação da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) e dos órgão associados, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e as pastorais Carcerária e da Terra.

    A reportagem traz declarações de Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que afirma que o governo está preocupado. “Queremos neutralizar isso aí”, declarou o responsável pela contraofensiva.

    Para tentar conter as possíveis denúncias da Igreja, o governo solicitou participar do Sínodo, o que é pouco ortodoxo. Lideranças católicas dizem que governos não costumam participar dessas conferências, que terão a participação do Papa Francisco, visto como “comunista” pelo governo Bolsonaro.

    Além disso, escritório da Abin em Manaus (AM), Belém e Marabá (PA), além de Boa Vista (RR), responsável pelo monitoramento de estrangeiros em  Raposa Terra do Sol e terras ianomâmi, serão direcionados para monitorar, em paróquias e dioceses, as reuniões preparatórias para o Sínodo. O governo também irá se aliar a governadores, prefeitos e autoridades eclesiásticas próximas aos quartéis, para tentar diminuir o alcance da conferência.

    Um militar da equipe de Bolsonaro afirmou à reportagem do Estado, em condição de anonimato, que o Sínodo vai contra toda a política de Bolsonaro para região e deverá “recrudescer o discurso ideológico da esquerda”.

    “O trabalho do governo de neutralizar impactos do encontro vai apenas fortalecer a soberania brasileira e impedir que interesses estranhos acabem prevalecendo na Amazônia. A questão vai ser objeto de estudo cuidadoso pelo GSI. Vamos entrar a fundo nisso”, declarou Heleno.

    O evento, batizado de  “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, terá como diretrizes: “Ver” o clamor dos povos amazônicos; “Discernir” o Evangelho na floresta. O grito dos índios é semelhante ao grito do povo de Deus no Egito; e “Agir” para a defesa de uma Igreja com “rosto amazônico”, e deverá ser atendido por 250 bispos.

    “Se os bispos fazem crítica é querendo ajudar, não derrubar. Eles sabem onde o sapato aperta. Vão falar da situação dos povos e do bioma ameaçado. Mas não para atacar frontalmente o governo”, disse D. Erwin Kräutler, Bispo Emérito do Xingu (PA).

  • Michael Löwy: O Ecossocialismo como saída para a Crise

    O pensador que ajudou a conceber a articulação entre marxismo e movimentos verdes volta ao tema e diz que esse pode ser o caminho de saída para a crise civilizatória e a violenta onda conservadora que nos atinge.

    Michael Löwy

    O sistema capitalista, impulsionado pela maximização do lucro, independentemente dos custos sociais e ecológicos, é incompatível com um futuro justo e sustentável. O ecossocialismo oferece uma alternativa radical que coloca em primeiro lugar o bem-estar social e ecológico. O ecossocialismo se opõe tanto à “ecologia do mercado” reformista quanto ao “socialismo produtivista”. Ao adotar um novo modelo de planejamento democrático, a sociedade pode assumir o controle dos meios de produção e seu próprio destino. Jornadas de trabalho mais curtas e um foco em necessidades autênticas sobre o consumismo podem facilitar a elevação do “ser” sobre o “ter” e a conquista de um senso mais profundo de liberdade para todos. Para realizar essa visão, no entanto, ambientalistas e socialistas precisarão reconhecer sua luta comum e como isso se conecta com o “movimento de movimentos” mais amplo que busca uma Grande Transição.

    Por Michael Löwy, em Great Transition , traduzido por  Marianna Braghini, Publicado em 04/02/2019 pelo site Outras Palavras.

    Porque Ecossocialismo: Por um Futuro Vermelho-Verde

    Michael Löwy – Dezembro de 2018

                                                                                       Introdução
    A civilização capitalista contemporânea está em crise. A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a exploração impiedosa do trabalho e da natureza e uma brutal competição solapam as bases de um futuro sustentável e portanto colocam em risco a própria sobrevivência da espécie humana. A ameaça profunda e sistêmica que enfrentamos demanda uma transformação profunda e sistêmica: uma Grande Transição.

    Ao sintetizar os princípios básicos de ecologia e a crítica marxista da economia política, o ecossocialismo oferece uma alternativa radical a um status quo insustentável. Ao rejeitar uma definição capitalista de “progresso”, baseada em crescimento de mercado e expansão quantitativa (a qual, como demonstra Marx, é um progresso destrutivo), defende políticas fundadas em critérios não-monetários, como as necessidades sociais, o bem estar individual e o equilíbrio ecológico. O ecossocialismo propõe uma crítica tanto da “ecologia de mercado” mainstream, que não desafia o sistema capitalista, como “socialismo produtivista”, que ignora limites naturais.

    À medida que as pessoas vão percebendo, cada vez mais, como as crises econômicas e as crises ambientais estão entrelaçadas, o ecossocialismo tem ganhado aderentes. O ecossocialismo, enquanto movimento, é relativamente novo, mas alguns de seus argumentos básicos vêm desde a época dos escritos de Marx e Engels. Atualmente, intelectuais e ativistas estão recuperando este legado e buscando uma reestruturação radical da economia, em acordo com os princípios do planejamento democrático ecológico, colocando as necessidades humanas e do planeta em primeiro plano e acima de tudo.

    Os “socialismos de fato existentes” do século XX, com suas frequentes burocracias alheias a questões ambientais, não oferecem um modelo atrativo para os atuais ecossocialistas. Em vez disso, devemos traçar um novo caminho à frente, que conecte a miríade de movimentos ao redor do mundo que compartilham a convicção de que um mundo melhor não é somente possível, mas também necessário.

    Planejamento Democrático Ecológico

    O núcleo do ecossocialismo é o conceito do planejamento democrático ecológico, no qual a própria população, não “o mercado” ou o comitê central do partido comunista tomam as decisões sobre a economia. No início da Grande Transição para este novo modelo de vida, com seu novo modo de produção e consumo, alguns setores da economia terão de ser suprimidos (por exemplo, a extração de combustíveis fósseis implicados na crise climática) ou reestruturados, enquanto novos setores são desenvolvidos. A transformação econômica deve ser acompanhada de uma ativa busca de pleno emprego, com condições iguais de trabalho e remuneração. Está visão igualitária é essencial tanto para construir uma sociedade justa como para atrair o apoio da classe trabalhadora para a transformação estrutural das forças produtivas.

    Em última instância, tal visão é irreconciliável com o controle privado dos meios de produção e do processo de planejamento. Em particular, para que investimentos e inovações tecnológicas sirvam ao bem comum, a tomada de decisões deve ser retirada dos bancos e empreendimentos capitalistas que atualmente a controlam e colocada sob domínio público. Então, a própria sociedade — nem uma pequena oligarquia de donos de propriedade, nem uma elite de tecno-burocratas — irão democraticamente decidir quais linhas produtivas serão privilegiadas, e como os recursos serão investidos em educação, saúde e cultura. Grandes decisões nas prioridades de investimento – tais como terminar todas as instalações a base de carvão ou direcionar subsídios agrícolas à produção orgânica – seriam tomadas por voto popular direto. Outras, menos importantes, seriam tomadas por grupos eleitos, em suas relevantes escalas, nacional, regional ou local.

    Apesar do receio dos conservadores do “planejamento central”, o planejamento democrático ecológico, fundamentalmente, implica mais liberdade, não menos, por diversas razões. Primeiro, ele oferece libertação das reificadas “leis econômicas” do sistema capitalista que aprisiona os indivíduos no que Max Weber chamou de “jaula de aço”. Os preços dos bens não seriam deixados para as “leis de oferta e demanda”, mas em vez disso, iriam refletir prioridades sociais e políticas, com o uso de impostos e subsídios para incentivar bens sociais e desarticular os males sociais. Idealmente, enquanto a transição ecossocialista avança mais produtos e serviços fundamentais para atender as necessidades humanas seriam oferecidos de forma gratuita, de acordo com a vontade dos cidadãos.

    Segundo, o ecossocialismo é mensageiro de um aumento substancial do tempo livre. Planejamento e redução da jornada de trabalho são dois passos decisivos rumo ao que Marx chamou de “o reinado da liberdade”. Um aumento significativo de tempo livre é, de fato, uma condição para a participação dos trabalhadores nas discussões democráticas e gestão da economia e da sociedade.

    Por último, o planejamento democrático ecológico representa o pleno exercício, pela sociedade, de sua liberdade para controlar decisões que afetam seu destino. Se o ideal democrático não concede o poder de tomada de decisão a uma pequena elite, por que o mesmo princípio não deveria ser aplicado para as decisões econômicas? Sob o capitalismo, o valor de uso – o valor de um produto ou serviço ao bem estar – existe apenas a serviço do valor de troca, ou valor no mercado. Deste modo, muitos produtos na sociedade contemporânea são socialmente inúteis, ou desenhados para serem rapidamente substituídos (obsolescência programada). Em contraste, em uma economia ecossocialista planejada, o valor de uso seria o único critério para a produção de bens e serviços, com consequências econômicas, sociais e ecológicas de longo alcance1.

    O planejamento seria focado em decisões econômicas de larga escala — não as de pequena escala, que podem afetar restaurantes locais, mercados, pequenas lojas ou empreendimento artesanais. Mais importante, tal planejamento é consistente com a autogestão, pelos trabalhadores, de suas unidades produtivas. A decisão, por exemplo, de transformar uma planta de produção automobilística para produzir ônibus e bondes, seria tomada pela sociedade como um todo, mas a organização e o funcionamento internos do empreendimento seriam democraticamente administradas pelos trabalhadores. Há muitas discussões sobre o caráter “centralizado” ou “descentralizado” do planejamento, mas mais importante é o controle democrático em todos os níveis – local, regional, nacional, continental ou internacional. Por exemplo, questões ecológicas do planeta, como o aquecimento global, devem ser tratadas em uma escala global e portanto, requerem alguma forma de planejamento democrático global. Isso posto, a tomada democrática de decisões é bem o oposto do que geralmente se descreve, frequentemente com desdém, como “planejamento central”, já que as decisões não são tomadas por um “centro”, mas democraticamente decididas pela população afetada em sua respectiva escala.

    O debate democrático e plural deverá ocorrer em todos os níveis. Por meio de partidos, plataformas ou outros movimentos políticos, proposições variadas seriam submetidas às pessoas, e delegados seriam respectivamente eleitos. Entretanto, democracia representativa deve ser complementada – e corrigida – por uma democracia direta possibilitada pela Internet, por meio da qual as pessoas irão escolher – em nível local, nacional e posteriormente global – entre as grandes opções sociais e ecológicas. O transporte público deveria ser gratuito? Os proprietários de carros devem pagar impostos especiais para subsidiar o transporte público? A energia solar deveria ser subsidiada, a fim de competir com energia fóssil? A jornada de trabalho semanal deveria ser reduzida para 30, 25 horas ou menos, com uma respectiva redução da produção?

    Tal planejamento democrático precisa de contribuições de estudiosos, mas seu papel é educacional, para apresentar, à consideração popular dos processos de tomada de decisão, visões informadas ou resultados alternativos. Qual a garantia de que as pessoas irão tomar as decisões ecologicamente sãs? Nenhuma. O ecossocialismo aposta que as decisões democráticas se tornarão, cada vez mais, razoáveis e esclarecidas, enquanto a cultura muda e as garras do fetichismo das mercadorias sejam quebradas. Ninguém pode imaginar tal nova sociedade sem o alcance, por meio da luta, auto-educação e experiência social, de um alto nível de consciência socialista e ecológica. Em qualquer caso, não são as alternativas – o mercado cego ou uma ditadura ecológica de “experts” — muito mais perigosas?

    A Grande Transição do progresso destrutivo capitalista ao ecossocialismo é um processo histórico, uma permanente transformação revolucionária da sociedade, cultura e mentalidades. Promulgar esta transição leva não só a um novo modo de produção e uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização ecossocialista, além do reinado do dinheiro, além de hábitos de consumos artificialmente produzidos pela publicidade, e além da produção ilimitada de commodities que são inúteis e/ou danosas ao meio ambiente. Tal processo transformativo para um programa ecossocialista depende do apoio ativo da vasta maioria da população. O fator decisivo ao desenvolvimento da consciência socialista e ecológica é a experiencia coletiva da luta, de confrontos locais e parciais até a mudança radical da sociedade global como um todo.

    A Questão do Crescimento

    A questão do crescimento econômico dividiu socialistas e ambientalistas. O ecossocialismo, entretanto, rejeita a moldura dualista de crescimento versus decrescimento, desenvolvimento versus antidesenvolvimento, porque ambas as posições dividem uma concepção puramente quantitativa das forças produtivas. Uma terceira posição ressoa mais com a tarefa à frente: a transformação qualitativa do desenvolvimento.

    Um novo paradigma de desenvolvimento significa dar um fim ao notório desperdício de recursos sob o capitalismo, dirigido pela larga escala de produção de produtos inúteis ou danosos. A indústria de armas é, obviamente, um exemplo dramático, mas, de forma mais geral, o propósito primário dos “bens” produzidos – com suas obsolescências programadas – é gerar lucro para grandes corporações. O problema não é o consumo excessivo no abstrato, mas o tipo prevalente de consumo baseado como é, em maciços desperdícios, e a conspícua e compulsiva perseguição das novidades promovidas pela “moda”. Uma nova sociedade iria reorientar a produção destinada à satisfação de necessidades autênticas, incluindo água, alimentação, vestimenta, moradia e serviços básicos tais como saúde, educação, transporte e cultura.

    Obviamente, os países do Sul Global, onde estas necessidades estão bem longe de serem satisfeitas, devem perseguir um desenvolvimento mais “clássico” — ferrovias, hospitais, sistemas de saneamento e outras infraestruturas. Além disso, em vez de imitar o modo como países ricos constroem seus sistemas produtivos, estes países podem perseguir desenvolvimento de maneiras mais ecologicamente amigáveis, incluindo a rápida introdução de energias renováveis. Muitos países mais pobres irão precisar expandir a produção agroecológica para cuidar de populações crescentes e famintas; mas a solução ecossocialista é promover métodos agroecológicos enraizados em unidades familiares, cooperativas ou fazendas coletivas de larga escala – não os métodos destrutivos do agronegócio industrializado, que envolve a adição intensa de pesticidas, químicos e transgênicos. 2

    Ao mesmo tempo, a transformação ecossocialista iria encerrar o gigantesco sistema de dívidas que o Sul Global agora enfrenta, bem como a exploração de seus recursos por países avançados industrialmente, e países em rápido desenvolvimento como a China. Em vez disso, podemos vislumbrar um forte fluxo de assistência técnica e econômica do Norte ao Sul, enraizado no robusto senso de solidariedade e reconhecimento de que problemas planetários requerem soluções planetárias. Isto não implica que as pessoas em países ricos “reduzam seus padrões de vida” — apenas que evitem o consumismo obsessivo, induzido pelo sistema capitalista, de mercadorias inúteis que não atendem necessidades reais ou contribuem para o bem estar e prosperidade humana.

    Mas como nós distinguimos necessidades autenticas das artificiais e contraprodutivas? Em um grau considerável, os últimos são estimulados pela manipulação mental da publicidade. Nas sociedades capitalistas contemporâneas, a indústria da publicidade invadiu todas as esferas da vida, moldando tudo desde o alimento que comemos e as roupas que vestimos, até os esportes, cultura, religião e política. A publicidade promocional se tornou onipresente, insidiosamente infestando nossas ruas, paisagens, mídia tradicional e digital, moldando hábitos de consumismo conspícuo e compulsivo. Além disso, a própria indústria de anúncios é uma fonte de considerável de desperdício de recursos naturais e tempo de trabalho, no fim das contas pago pelo consumidor, para um ramo de “produção” que repousa na contradição direta com as reais necessidades socioecológicas. Indispensável para a economia de mercado capitalista, a indústria da publicidade não teria lugar numa sociedade em transição ao ecossocialismo; ela seria substituída por associações de consumidores que obtêm e disseminam informações sobre bens e serviços. Enquanto estas mudanças já estiverem acontecendo em alguma medida, velhos hábitos provavelmente persistirão por alguns anos, e ninguém tem o poder de ditar os desejos das pessoas. Alterar padrões de consumo é um desafio educacional presente, dentro de um processo histórico de mudança cultural.

    Uma premissa fundamental do ecossocialismo é que em uma sociedade sem divisões de classe acentuadas e alienação capitalista, o “ser” terá precedência em detrimento do “ter”. Em vez de buscar bens intermináveis, as pessoas buscarão mais tempo livre, e as conquistas pessoais e significativas que podem obter por meio de atividades culturais, atléticas, recreacionais, científicas, eróticas, artísticas e políticas. Não há nenhuma evidência de que a posse compulsiva deriva de uma intrínseca “natureza humana”, como sugere a retórica conservadora. Em vez disso, é induzida pelo fetichismo de mercadorias inerente ao sistema capitalista, pela ideologia dominante e pela publicidade. Ernest Mandel resume bem este ponto fundamental: “A contínua acumulação de mais e mais bens […] não é de nenhuma forma um fenômeno universal e até mesmo predominante no comportamento humano. O desenvolvimento de talentos e inclinações para seu próprio bem; a proteção da saúde da vida; o cuidado com as crianças; o desenvolvimento de relações sociais ricas […] se tornam motivações maiores assim que as necessidades materiais básicas são satisfeitas.”3

    É claro, mesmo uma sociedade sem classes depara-se com conflitos e contradições. A transição ao ecossocialismo iria confrontar tensões entre as necessidades de proteger o meio ambiente e atender necessidades sociais, entre imperativos ecológicos e o desenvolvimento da infraestrutura, entre hábitos de consumo popular e a escassez de recursos, entre impulsos comunitários e cosmopolitas. Lutas entre a desejos em competição são inevitáveis. Portanto, pesar e balancear tais interesses deve se tornar tarefa de um processo democrático de planejamento, liberto dos imperativos do capital e da geração de lucros, para se ter soluções por meio de discursos transparentes, plurais e abertos ao público. Tal democracia participativa, em todos os níveis, não significa que não serão cometidos erros, mas sim permite a auto-correção, pelos membros da coletividade social, de seus próprios erros.

    Bases Teóricas

    Ainda que o ecossocialismo seja um fenômeno bastante recente, suas bases teóricas podem ser rastreadas até Marx e Engels. Pois questões ambientais não eram tão salientes no século XIX como na nossa era de catástrofe incipiente ecológica, estas preocupações não exerciam um papel central nos trabalhos de Marx e Engels. Ainda assim, seus escritos usam argumentos e conceitos vitais para a concepção de uma alternativa socialista e ecológica frente ao sistema prevalente.

    Algumas passagens em Marx e Engels (e certamente nas correntes dominantes marxistas que se seguiram), de fato adotam uma postura não crítica em relação às forças produtivas criadas pelo capital, tratando o “desenvolvimento das forças produtivas” como o principal fator no progresso humano. Entretanto, Marx era radicalmente oposto ao que nós agora chamamos de “produtivismo” – a lógica capitalista pela qual a acumulação de capital, riqueza e commodities se tornam um fim em si mesmo. A ideia fundamental de uma economia socialista – em contrastes com as caricaturas burocráticas que prevaleceram nos experimentos “socialistas do século XXI – é produzir valores de uso, bens que são necessários à satisfação das necessidades humanas, bem estar e plenitude. O fenômeno central do progresso técnico, para Marx, não era o crescimento indefinido de produtos (“ter”) mas sim a redução do trabalho social necessário e o concomitante aumento de tempo livre (“ser”).[4] A ênfase de Marx no autodesenvolvimento comunista, no tempo livre para atividades artísticas, eróticas ou intelectuais – em contraste com a obsessão capitalista de consumir cada vez mais e mais bens materiais – implica em uma redução decisiva da pressão no meio ambiente.[5]

    Para além dos benefícios presumidos ao meio ambiente, uma contribuição marxista chave para o pensamento socialista e ecológico, é atribuir ao capitalismo uma ruptura metabólica – isto é, uma destruição do intercambio material entre sociedades humanas e o meio ambiente. O problema é discutido, inter alia, em uma famosa passagem de O Capital:

    A produção capitalista […] perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, isto é, impede o retorno ao solo de seus elementos constituintes consumidos pelo homem na forma de alimento e vestuário; daí impede o funcionamento das condições naturais eternas para a fertilidade duradoura do solo […] Todo progresso na agricultura capitalista é progresso na arte, não apenas de roubar o trabalhador, mas de roubar o solo […] Quanto mais um país […] se desenvolve com base na grande indústria, mais esse processo de destruição ocorre rapidamente. A produção capitalista […] apenas desenvolve […] ao minar simultaneamente as fontes originais de toda riqueza – o solo e o trabalhador”. [6]

    Esta importante passagem esclarecer a visão dialética de Marx das contradições do “progresso” e suas consequências destrutivas para a natureza sob condições capitalistas. O exemplo, é claro, é limitado à perda de fertilidade do solo. Mas neste base, Marx desenha um insight mais amplo que a produção capitalista engloba uma tendência de solapar as “condições naturais eternas.” De uma perspectiva semelhante, Marx reitera seu argumento mais familiar que a mesma lógica predatória do capitalismo explora e degrada os trabalhadores.

    Enquanto os ecossocialistas mais contemporâneos são inspirados pelos insights de Marx, ecologia se tornou bem mais central para suas análises e ação. Durante os anos 1970 e 1980 na Europa e nos EUA, um socialismo ecológico começou a tomar forma. Manuel Sacristan, um filósofo dissidente comunista espanhol, fundou o jornal ecossocialista e feminista Entretanto em 1979, introduzindo o conceito dialético de “forças produtivas-destrutivas”. Raymond Williams, um socialista britânico e fundador de estudos culturais modernos, se tornou um dos primeiros na Europa à chamar por um “socialismo conscientemente ecológico” e frequentemente creditado à ter criado o próprio termo “ecossocialismo”. André Gorz, um filósofo e jornalista francês, argumentou que a ecologia política deve conter uma crítica do pensamento economista e chamou por uma transformação ecológica e humanista do trabalho. Barry Commoner, um biólogo americano, argumentou que o sistema capitalista e sua la destruição do meio ambiente, o que o levou à conclusão de que “algum tipo de socialismo” era a alternativa realista.[7]

    Nos anos 1980, James O’Conner fundou o influente jornal Capitalismo, Natureza e Socialismo, que foi inspirado por sua ideia da “segunda contradição do capitalismo.” Nesta formulação, a primeira contradição é a marxista, entre as forças e relações de produção; a segunda contradição repousa entre o modo de produção e as “condições de produção”, especialmente, o estado do meio ambiente.

    Uma nova geração de eco-marxistas apareceu nos anos 2000, incluindo John Bellamy Foster e outros ao redor do jornal Revisão Mensal, que posteriormente desenvolveu o conceito marxiano de ruptura metabólica entre as sociedades humanas e a natureza. Em 2001, Joel Kovel e o presente autor publicaram “Um Manifesto Ecossocialista”, que foi posteriormente desenvolvimento pelos menos autores, juntos com Ian Angus, no Manifesto Ecossocialista de Belém em 2008, o qual foi assinado por centenas de pessoas de quarenta países e distribuído no Fórum Social Mundial em 2008. Desde então ele se tornou uma importância referência para ecossocialistas ao redor de todo o mundo. [9]

    Porque ambientalistas devem ser socialistas

    Como estes e outros autores mostraram, o capitalismo é incompatíveis com um futuro sustentável. O sistema capitalista, uma máquina de crescimento econômico alavancada por combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial, é uma das principais culpadas da mudança climática e a crise ecológica mais ampla que ocorre na Terra. Sua lógica irracional de expansão e acumulação intermináveis, desperdício de recursos, ostentação do consumismo, obsolescência programada e busca de lucro a qualquer custo, está levando o planeta a beira do abismo.

    O “capitalismo verde” – estratégia de redução do impacto ambiental enquanto se mantém as instituições econômicas dominantes – oferece uma solução? A implausibilidade de tal cenário de Reforma Política tem sido visto mais vividamente no fracasso de um quarto de século de conferências internacionais para efetivamente mirar as mudanças climáticas. As forças políticas comprometidas com a “economia de mercado” capitalista que criou o problema não pode ser a fonte da solução.

    Por exemplo, na Conferência Climática de Paris em 2015, muitos países resolveram se esforçar seriamente para manter o aumento médio da temperatura global abaixo de 2º C (idealmente, eles concordaram, abaixo de 1,5º C). De forma correspondente, eles se voluntariam à implementar medidas de redução da emissão de gás carbônico. No entanto, eles não implementam mecanismos de imposição nem quaisquer consequências em caso de descumprimento e, portanto, nenhuma garantia que qualquer país irá cumprir sua promessa. Os EUA, o segundo maior emissor de carbono, é atualmente administrado por um negacionista do aquecimento global, que tirou os EUA do acordo. Mesmo se todos os países de fato cumprirem o que acordaram, a temperatura global subiria cerca de 3º C ou mais, com grande risco de mudanças climáticas terríveis e irreversíveis.[10]

    Ao fim das contas, a falha fatal do capitalismo verde está no conflito entre a micro-racionalidade do mercado capitalista com seu cálculo curto-prazista de lucros e perdas, e a macro-realidade da ação coletiva pelo bem comum. A lógica cega do mercado resiste a uma rápida transformação da energia, longe da dependência de combustíveis fósseis, em intrínseca contradição com a racionalidade ecológica. A questão não é acusar os “maus” capitalistas ecocidas, em oposição aos “bons” capitalistas verdes; a culpa repousa em um sistema enraizado em uma impiedosa competição e uma corrida pelo lucro de curto prazo que destrói o equilíbrio da natureza. O desafio ambiental – construir um sistema alternativo que reflita o bem comum em seu DNA institucional – se torna intrinsecamente conectado ao desafio socialista.

    O desafio requer a construção do que E.P. Thompson descreveu como “economia moral” fundada em princípios não monetário, extraeconômicos e sociais-ecológicos e governado através de processos de tomada de decisão democráticos.[11] Muito mais do que uma reforma incremental, o que é necessário é a emergência de uma civilização social e ecológica que traga como prioridade uma nova estrutura energética e um conjunto de valores e padrão de vida pós-consumista. Realizar esta visão não será possível sem planejamento público e controle sobre os “meios de produção”, os insumos físicos utilizados para produzir valor econômico, tais como instalações, maquinário e infraestrutura.

    Uma política ecológica que trabalha entre o prevalecimento das instituições e as regras da “economia de mercado” estará longe de atender os profundos desafios ambientais ante nós. Ambientalistas que não reconhecem como o “produtivismo” flui a partir da lógica do lucro estão destinados ao fracasso – ou, pior, serem absorvidos pelo sistema. Exemplos não faltam. A falta de uma postura anticapitalista coerente levou a maioria dos Partidos Verdes europeus – notavelmente na França, Alemanha, Itália e Bélgica – a se tornarem meros parceiros “eco-reformistas” na administração social-liberal do capitalismo pelos governos de centro-esquerda.

    É claro, a natureza não se deu muito melhor sob o estilo de “socialismo” soviético do que no capitalismo. Na verdade, essa é uma das razões que o ecossocialismo carrega um programa e uma visão muito diferentes do chamado “socialismo realmente existente” do passado. Já que as raízes do problema ecológico são sistêmicas, o ambientalismo deve desafiar o sistema capitalista prevalecente, e isso significa levar a sério a síntese do século XXI de ecologia e socialismo – o ecossocialismo.

    Porque socialistas devem ser ambientalistas

    A sobrevivência da sociedade civilizada, e talvez muito da vida no Planeta Terra, está em risco. Uma teoria socialista, ou movimento, que não integre a ecologia como elemento central em seu programa e estratégia é anacrônica e irrelevante.

    Mudanças climáticas representam a expressão mais ameaçadora da crise ecológica no planeta, colocando um desafio sem precedente histórico. Se for permitido que a temperatura global exceda níveis pré-industriais em cerca de mais de 2º C, cientistas projetam consequências cada vez mais terríveis, tais como o nível dos mares subir tanto que arriscaria submergir boa parte das cidades marítimas, de Dacca em Bangladesh à Amsterdã, Veneza ou Nova York. Desertificações de larga escala, alteração do ciclo hídrico e da produção agrícola, eventos climáticos mais extremos e frequentes e perda de espécies. Nós já estamos em 1º C. Será que vamos chegar a um ponto de inflexão para além do qual o planeta pode suportar a vida civilizada ou mesmo tornar-se inabitável?

    Particularmente preocupante é o fato de que os impactos da mudança climática estão se acumulando em um ritmo mais rápido do que o previsto pelos cientistas climáticos – os quais – quase como todos os cientistas – tendem a ser altamente cautelosos. A tinta mal secou no relatório do Painel Intergovernamental de Mudança Climática e os crescentes impactos climáticos o fazem parecer por demais otimista. Onde uma vez a ênfase era em o que aconteceria no futuro distante, a atenção se volta cada vez mais para o que nós enfrentamos agora e nos próximos anos.

    Alguns socialistas reconhecem a importância de incorporar a ecologia, mas objetam o termo “ecossocialismo” argumento que o socialismo já inclui ecologia, feminismo, antirracismo e outros fronts progressistas. Entretanto, o termo ecossocialismo, ao sugerir uma mudança decisiva nas ideias socialistas, carrega uma importância política significativa. Primeiro, ele reflete um novo entendimento do capitalismo enquanto sistema baseado não só na exploração, mas também na destruição – a massiva destruição das condições de vida no planeta. Segundo, ecossocialismo estende o significado de transformação socialista para além de uma mudança de proprietários para uma transformação civilizacional do aparato produtivo, padrões de consumo e todo um modo de vida. Terceiro, o novo termo ressalta a visão crítica que ele adota das experiências do século XX em nome do socialismo.

    O socialismo do século XXI, em suas tendências dominantes (social-democracia de comunismo soviético), foi, na melhor das hipóteses, desatento ao impacto humano no meio ambiente e, na pior, completamente indiferente. Governos adotaram e adaptaram o aparato produtivo do capitalismo ocidental em um esforço precipitado de “se desenvolver”, enquanto permaneceram largamente alheios dos profundos custos negativos na forma de degradação ambiental.

    A União Soviética é um exemplo perfeito. Os primeiros cinco anos após a Revolução de Outubro viram uma corrente ecológica se desenvolver e um conjunto de medidas para proteger o meio ambiente foi, de fato, promulgado. Mas aos fins de 1920, com o processo de burocratização stalinista em andamento, um produtivismo negligente com o meio ambiente foi sendo imposto na indústria e agricultura por meio de métodos totalitários, enquanto ecologistas foram marginalizados ou eliminados. O acidente de Chernobyl em 1986 representa um dramático emblema das desastrosas consequências de longo prazo.

    Alterar os donos da propriedade sem alterar como esta propriedade é administrada é o fim da linha. O socialismo deve colocar uma administração e reorganização democráticas do sistema produtivo no coração da transformação, junto com um firme compromisso com a administração ecológica. Nem o socialismo ou a ecologia sozinhos, mas ecossocialismo.

    Ecossocialismo e a Grande Transição

    A luta pelo socialismo verde no longo prazo requer lutar por reformas concretas e urgentes no curto prazo. Sem ilusões acerca das perspectivas para um “capitalismo limpo”, o movimento para a profunda mudança deve tentar reduzir os riscos às pessoas e ao planeta, enquanto consegue tempo para construir o suporte para uma transição mais fundamental. Em particular, a batalha para forçar os poderes que podem reduzir drasticamente emissões do esfeito estufa segue sendo o front chave, junto com os esforços locais para a mudança rumo aos métodos agroecológicos, energia solar cooperativa e administração comunitária de recursos.

    Tais lutas imediatas, concretas, são importantes em si mesmas porque vitórias parciais são vitais para o combate à deterioração ambiental e desespero em relação ao futuro. No longo prazo, estas campanhas podem ajudar a levantar consciência ecológica e socialista e promover o ativismo desde abaixo. Tanto a consciência bem como a auto-organização são pré-condições decisivas e as bases para radicalmente se transformar o sistema mundial. A síntese de milhares de esforços locais e parciais ao formar um arco sob um movimento global sistêmico forja o caminho para uma Grande Transição: uma nova sociedade e modo de vida.

    Esta visão infunde na popular ideia de um “movimento de movimentos”, o qual emergiu do movimento global de justiça e Fórum Sociais Mundiais e que por muitos anos abrigou a convergência de movimentos sociais e ambientais em uma luta comum. O ecossocialismo é apenas uma das correntes dentre um fluxo mais ampla, com nenhuma pretensão de que é “mais importante” ou “mais revolucionária” que outras. Tal competitiva alegação de forma contraproducente cria polarização quando o que é necessário é unidade.

    Em vez disso, o ecossocialismo mira contribuir para uma série de ethos adotadas pelos variados movimentos para uma Grande Transição. O ecossocialismo vê a si como parte de um movimento internacional: já que crises globais ecológicas, econômicas e sociais, não veem fronteira, a luta contra as forças sistêmicas dirigindo estas crises deve também ser globalizada. Muitas intersecções estão surgindo entre ecossocialismo e outros movimentos, incluindo esforços para relacionar eco feminismo e ecossocialismo como convergentes e complementares.[12] O movimento de justiça climática traz antirracismo e ecossocialismo juntos em uma luta contra a destruição das condições de moradia de comunidades sofrendo discriminação. Em movimentos indígenas, algumas lideranças são ecossocialistas, enquanto, por sua vez, muitos ecossocialistas vêem o modelo de vida indígena, assentado em solidariedade comunitária e respeito à Mãe Natureza, como uma inspiração para a perspectiva ecossocialista. Da mesma forma, o ecossocialismo encontra voz dentro dos movimentos camponeses, sindicais, de decrescimento e outros.

    O agrupador movimento dos movimentos busca a mudança do sistema, convencido de que outro mundo é possível, para além da mercantilização, destruição ambiental, exploração e opressão. O poder das elites dominantes entrincheiradas é inegável e as forças de oposição radical continuam fracas. Mas elas estão crescendo e se colocam como nossa esperança para parar o catastrófico curso de “crescimento” capitalista. O ecossocialismo contribui com uma importante perspectiva para fomentar a compreensão e a estratégia para este movimento para uma Grande Transição.

    Walter Benjamin definiu revolução não como locomotivas da história, como Marx, mas como a humanidade tentando alcançar o freio de emergência antes que o trem caia no abismo. Nós nunca precisamos tanto alcançar em conjunto a alavanca e colocar em um novo trilho para um destino diferente. A ideia e prática do ecossocialismo pode nos ajudar a guiar este projeto histórico-mundial.

    NOTAS
    1 Joel Kovel, Enemy of Nature: The End of Capitalism or the End of the World? (New York, Zed Books, 2002), 215.
    2 Via Campesina, uma rede mundial de movimentos de camponeses que há muito argumenta em favor deste tipo de transformação agricultural, ver mais em https://viacampesina.org
    3 Ernest Mandel, Power and Money: A Marxist Theory of Bureaucracy (London, Verso, 1992), 206.
    4 A oposição entre “ter” e “ser” é frequentemente discutida no Manuscritos de 1844. Em tempo livre como fundação do “Reino da Liberdade” socialista, ver Karl Marx, Das Kapital, Volume III, Marx-Engels-Werke series, vol. 25 (1884; Berlin: Dietz Verlag Berline, 1981), 828.
    5 Paul Burkett, Ecological Economics: Toward a Red and Green Political Economy (Chicago, Haymarket Books, 2009), 329.
    6 Karl Marx, Das Kapital, Volume 1, Marx-Engels-Werke series, vol. 23 (1867; Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1981), 528-530.
    7 Ver, por exemplo, Manuel Sacristan, Pacifismo, Ecología y Política Alternativa (Barcelona: Icaria, 1987); Raymond Williams, Socialism and Ecology (London: Socialist Environment and Resources Association, 1982); André Gorz, Ecology as Politics (Boston, South End Press, 1979); Barry Commoner, The Closing Circle: Man, Nature, and Technology (New York: Random House, 1971).
    8 “Um Manifesto Ecossocialista,” 2001, http://environment-ecology.com/political-ecology/436-an-ecosocialist-manifesto.html; “Belem Ecosocialist Declaration,” December 16, 2008
    9 Ver https://www.greattransition.org/explore/scenarios para acessar o cenário de Reforma Política e outros cenários globais
    10 Programa de Meio Ambiente dos EUA, The Emissions Gap Report 2017 (Nairobi: UNEP, 2017). Para acessar o relatório ver em https://news.un.org/en/story/2017/10/569672-un-sees-worrying-gap-between-paris-climate-pledges-and-emissions-cuts-needed
    11 E. P. Thompson “The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century,” Past & Present, no. 50 (February 1971): 76-136.
    12 See Ariel Salleh’s Ecofeminism as Politics (New York: Zed Books, 1997), or the recent issue of Capitalism, Nature and Socialism (29, no. 1: 2018) on “Ecofeminism against Capitalism,” with essays by Terisa Turner, Ana Isla, and others.

    Michael Löwy

    Michael Löwy, 6 de maio de 1938, é um pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique. É um relevante estudioso do marxismo, com pesquisas sobre as obras de Karl Marx, Leon Trótski, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin. Autor de A guerra dos deuses: religião e política na América Latina e outras publicações.

  • Leonardo Boff: No Brasil abriram-se janelas do inferno

    Boff decide sair do Twitter após ofensa baixa de ministro

    Há uma constatação inegável no Brasil: em muitos setores se nota a irrupção do ódio, da ofensa, dos palavrões de todo tipo, da distorção, do preconceito e de milhares e milhares de fake news que, em grande parte, deram a vitória ao atual presidente.
    Precisamos compreender o porquê deste despropósito tresloucado. Publicado no site leonardoboff.wordpress.com em 05.02.2019

    Segue o artigo

    Há uma constatação inegável no Brasil: em muitos setores se nota a irrupção do ódio, da ofensa, dos palavrões de todo tipo, da distorção, do preconceito e de milhares e milhares de fake news que, em grande parte, deram a vitória ao atual presidente. Há ainda youtubers que falseiam a realidade, misturando palavrões com zombarias e reles moralismo, sujeitos a um processo judicial.

    Comunista e socialista viraram palavras de acusação. Sequer se define o seu real significado, como se estivéssemos ainda na Guerra Fria de há trinta anos. Quantos, inclusive um dos ministros de parcas luzes, enviam seus críticos para Cuba, Coreia do Norte ou Venezuela. A maioria sequer leu alguma página da Teologia da Libertação, tida por marxista. Ignora seu propósito básico: a opção pelos pobres e por sua libertação, isto é, em favor da maioria da humanidade que é pobre.

    Enfim, respiramos ares tóxicos. Muitos mostram completa falta de educação e degradação das mentes. Na campanha eleitoral esta raiva enrustida saiu do armário. Foi reforçada a violência pre-existente, dando legitimação a uma verdadeira cultura da violência contra indígenas, quilombolas, negros e negras, especialmente os LGBTI e opositores.

    Precisamos compreender o porquê deste despropósito tresloucado. Iluminam-nos dois intérpretes do Brasil, aqui pertinentes: Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928) e Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1936) no seu capítulo V. “O homem cordial”.

    Ambos têm algo em comum, no dizer de Ronaldo Vainfas, pois “tentam decifrar o caráter brasileiro a partir de suas emoções” (Intérpretes do Brasil, vol.II, 2002 p.16). Mas em sentido contrário. Paulo Prado é profundamente pessimista caracterizando o brasileiro pela luxúria, a cobiça e a tristeza. Buarque de Holanda faz diferenciações quanto à cordialidade.

    ”A contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade- daremos ao mundo o “homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro”(p.106). Mas logo observa:”Seria engano supor que estas virtudes possam significar “boas maneiras, civilidade”(107). E continua:”A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração”(107 nota 157). Sabemos que do coração emergem tanto o amor quanto o ódio. A tradição psicanalítica nos confirma que aí impera o reino dos sentimentos. Estimo que definiríamos melhor o caráter do brasileiro se sustentássemos que o seu design básico não é a razão mas o sentimento. Este é contraditório: pode se expressar como amor e também como ódio virulento.

    Pois esse lado dual da “cordialidade”, melhor dito. “do sentimento” ambiguo do brasileiro ganhou hoje asas e ocupou mentes e corações. Dominou a “falta de boas meneiras e de civilidade”. Basta abrir os sites, os twitters, facebooks e youtubes para constatar que janelas do inferno se abriram de par em par. Daí saíram demônios, separando pessoas, ofendendo figuras tão beneméritas como Dráuzio Varela e como a mundialmente apreciada de Paulo Freire. A palavra de um incivilizado ocupa o mesmo espaço como aquela do Papa Francisco ou do Dalai Lama.

    Mas este é apenas o lado de sombra do sentimento brasileiro, Há o lado de luz, enfatizado acima por Buarque de Holanda e também por Cassiano Ricardo. Temos que resgatá-lo para que não tenhamos que viver numa sociedade de bárbaros na qual ninguém mais consegue conviver humana e civilizadamente.

    Não há por que se desesperar. A condição do próprio universo é feita de ordem e desordem (caos e cosmos), as culturas possuem seu lado sim-bólico e dia-bólico e cada pessoa humana é habitada pela pulsão de vida (éros) e pela pulsão de morte (thánatos). Tal fato não é um defeito da criação. É a condição natural das coisas. As religiões, as éticas e as civilizações nasceram para conferir hegemonia à luz sobre as sombras a fim de impedir que nos devorássemos uns aos outros. Terminava o pessimista Paulo Prado:”a confiança no futuro não pode ser pior do que o passado”(p.98). Concordamos.

    Inspira-nos um verso de Agostinho Neto, líder da libertação de Angola:“Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É preciso que a pureza e a justiça existam dentro de nós”(Poemas de Angola, 1976, 50)

  • D. Mol – MINERADORAS LESAM A HUMANIDADE

    Riquezas das Minas Gerais, seus minérios e tantas outras maravilhas, que tão generosamente nos foram dadas pelo Criador, transformaram-se em sua perdição. Minas vê, gravíssima e rapidamente, seus rios, lagos, afluentes, terras agricultáveis, comunidades e suas culturas sendo dizimadas. São cometidos crimes contra a vida humana, contra o meio ambiente e contra o direito de viver em comunidade e em família.

    Na Encíclica Laudato si, o Papa Francisco nos alerta para a necessidade da urgente compreensão de que o Planeta agoniza e clama contra o mal que provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nele colocou.
    O que foi legado ao homem para que prospere e tenha uma vida plena e a transmita às futuras gerações, a ação irrefreavelmente gananciosa e criminosa das mineradoras destrói em tão pouco tempo. Vemo-nos diante da débil regulação deste setor pelo Legislativo, eivado de pessoas financiadas por essas empresas e que são autorizadas pelo Executivo, imiscuído em múltiplos interesses nem sempre republicanos e precariamente fiscalizadas pelos órgãos que existem para isso. Soma-se a isso um Judiciário leniente, ensimesmado, caríssimo, insensível, pretensioso e divorciado do povo brasileiro. Foi assim em Mariana, pela Vale/Samarco, até hoje “na justiça”; é assim em Brumadinho, pela Vale. Não podemos deixar que assim continue.

    Não houve um acidente nessas Minas Gerais. Houve um crime ambiental e um homicídio coletivo. Uma matança de pessoas, animais e do meio ambiente. Quase mataram também a esperança, a fé, a dignidade e o amor das pessoas que sobraram, agora terrível e indescritivelmente sofridas, mas em processo curativo, em reconstrução, soerguimento, revitalização e retomada de posse de sua brava dignidade. Como não há uma empresa mineradora em abstrato, as pessoas que nela atuam e têm responsabilidade sobre esta tragédia devem ser rigorosamente punidas, para que, juntamente com a mineradora, não caiam em desgraça também os que exercem os poderes acima citados e já tão pouco acreditados. Conscientemente, as mineradoras optam, por serem mais baratos, por modelos de exploração de minério de ferro e de outros metais mais danosos ao meio ambiente e à vida humana. O lucro exorbitante, quase ilimitado, com pouco retorno à sociedade por meio do poder público, é o único critério e preside, inconsequentemente, as decisões em relação aos modelos de exploração dos recursos naturais.

    Por causa dessa sede insaciável e enlouquecida por riquezas cada vez maiores, “que a traça e a ferrugem destroem e os ladrões roubam” (MT. 6,19), concentradas sempre mais nas mãos de pouquíssimas pessoas, empresas mantêm trabalhadores na pobreza a vida inteira e expostos à morte. A mineração em nosso País se tornou eticamente insustentável, calamitosa e de altíssimo risco para a vida humana e toda a vida existente em suas áreas de atuação.

    A dimensão cruel e potência danosa da reincidência desses crimes nos apontam que apenas o fato de não se tratarem de um contexto de conflito armado é que os distingue de que sejam entendidos como crimes de lesa-humanidade. As práticas de seus infratores, afinal, se mostram sistemáticas, resultam da clareza dos riscos e danos de suas ações em covardes atos desumanos e contra a população civil.

    Dom Joaquim Giovani Mol

    Por isso mesmo, urge que as pessoas, organizações e instituições que valorizam a vida humana, que querem defender a natureza dessa progressiva e suicida destruição, se insurjam contra esse modelo de negócio que enriquece tão poucos, destruindo a vida de tantos. Do modo que se realiza, esta economia mata, repito o Papa Francisco, o maior líder humanitário do mundo atual.

    É inadmissível a persistência desse modelo econômico de enriquecimento pela destruição. É impossível continuarmos aceitando que a natureza, obra-prima de Deus, seja sistematicamente destruída. E que milhares de trabalhadores, idosos e crianças, mulheres e jovens, prevalentemente os mais pobres e humildes, sejam diariamente expostos ao risco de morrer em função de uma ganância deplorável.
    Precisamos, talvez como nunca antes, como nos convoca o Papa Francisco, cujo nome tem inspiração em São Francisco de Assis, “exemplo por excelência pelo cuidado com o que é frágil e a ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (Laudato Si), de um debate que una a todos, porque o desafio ambiental diz respeito e tem impacto sobre todos nós.

  • Ladislau Dowbor: A burrice no poder

    “A criatura mais inteligente que já andou na terra,
    está destruindo sua única casa” – Jane Goodall

    O título “A burrice no poder” pode parecer um pouco provocador, mas pense um pouco: a desigualdade está explodindo no mundo, e as propostas vão no sentido de austeridade não dos que esbanjam, mas dos que mal sobrevivem. O planeta está sendo destruído e o que se vislumbra não é consumo mais inteligente e sim expansão do consumismo irresponsável. A violência se espraia, e a solução seria disseminar mais armas. O homo demens transforma a burrice em bandeira. Uma visão construtiva é fácil de identificar: é só fazer o contrário.

    Paulo Freire declarou um dia que queria “uma sociedade menos malvada”. Os nossos desafios são imensos, e a nós que somos professores, ou comunicadores, ou organizadores sociais, ou simples cidadãos, cabe a tarefa de explicar o óbvio: uma sociedade que funcione tem de ser uma sociedade para todos. A burrice se enfrenta, de preferência, com inteligência.
    Divirta-se.
    O autor.

    BAIXE AQUI
    Ladislau Dowbor – A burrice no poder

    Ladislau Dowbor
    22 de dezembro de 2018
    edição revista em 7 janeiro de 2018
    Publicado em http://dowbor.org

Close
Close