Artigo

  • A política externa brasileira desmoraliza o Brasil

    A política externa executada pelo Governo de Jair Bolsonaro contraria todos os princípios que devem orientar a política externa brasileira para que esta pudesse contribuir para alcançar os objetivos nacionais, isto é, da maioria do povo brasileiro, de democracia, desenvolvimento, justiça social e soberania“.

    Artigo publicado originalmente em Portal Vermelho Dia: 08/04/2019

    Alinhamento com Israel rompe tradição da política externa do Brasil

    “A geografia é a política das Nações”(Napoleão, 1769-1821).

    “O Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite dos Estados Unidos”(Chanceler Raul Fernandes, 26/08/1954 a 12/11/1955).

    “Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda (…). O Brasil não é um terreno onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”(Jair Bolsonaro, em Washington, 17/03/2019).

    O Governo do Presidente Jair Bolsonaro, de seu mentor espiritual e político, o Professor Olavo de Carvalho, de seu Ministro do Exterior, Ernesto Araújo, do Super Ministro Paulo Guedes, economista ultra neoliberal, de sua Eminência Parda, o Deputado Eduardo Bolsonaro, está disposto, entre outras reformas, a reorientar radicalmente toda a política externa brasileira.

    Essa reorientação se daria pelo alinhamento de toda a política externa brasileira à política do Governo de Donald Trump, a começar pelo apoio a Israel.

    Segundo esses protagonistas, a política dos governos brasileiros anteriores teria:

    1. sido ideológica e privilegiado as relações com governos de “esquerda”, não democráticos;
    2. negligenciado e hostilizado os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos;
    3. envolvido o Brasil em temas nos quais não teria interesse direto nem poder para influir;
    4. dado pouca atenção aos interesses comerciais e econômicos do Brasil;
    5. contrariado e afrontado interesses americanos na América do Sul;
    6. criado um ambiente hostil aos capitais multinacionais.

    A política exterior de Jair Bolsonaro, com excessos verbais, atitudes subservientes e “interpretações” inéditas da História, retoma a política de certos governos anteriores que entre si se diferenciam devido às circunstâncias de cada período, mas com a mesma orientação geral de alinhamento com a política exterior norte-americana.

    Com o Presidente Bolsonaro, o Brasil passou a ter não apenas uma política exterior, mas uma política geral de governo que procura atender antecipadamente e, sem qualquer reciprocidade, às reivindicações históricas dos Estados Unidos:

    • redução da União ao mínimo, em termos de funcionários e organismos;
    • transferência de competências da União para Estados e Municípios;
    • privatização geral;
    • desregulamentação geral e auto fiscalização pelas empresas;
    • abertura radical da economia e do setor financeiro;
    • redução da Petrobrás, maior empresa brasileira, a uma pequena empresa, não integrada, de petróleo;
    • enfraquecimento da chancelaria brasileira, pela quebra de hierarquia e pela inexperiência;
    • privatização de todos os bancos estatais;
    • autonomia do Banco Central;
    • concessão da base militar de Alcântara.

    * * *

    Devido às características do Brasil e às suas vulnerabilidades, as ações concretas de política externa deveriam sempre procurar:

    1. manter as melhores e imparciais relações com todos os Estados da América do Sul;
    2. criar e fortalecer um sistema de segurança político/militar na América do Sul e no Atlântico Sul;
    3. criar e fortalecer um sistema dissuasório de defesa nacional;
    4. estabelecer programas de cooperação com grandes Estados, como os Estados Unidos, a China, a Rússia, a Índia, a França e a Alemanha;
    5. contribuir, ativa, discreta e imparcialmente, para a solução de crises;
    6. participar ativamente de conferências sobre temas universais, como meio ambiente, pobreza, raça, gênero, etc.
    7. cooperar com países subdesenvolvidos em projetos de desenvolvimento, sem impor “condicionalidades”;
    8. diversificar, quanto a produtos, destinos e origens, seu comércio internacional;
    9. abrir novos territórios para a ação das empresas brasileiras;
    10. promover a revisão dos sistemas de decisão dos organismos internacionais para obter condições de melhor participação do Brasil;
    11. conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

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    O Governo de Jair Bolsonaro tem contrariado frontalmente e feito justamente o contrário de tais ações concretas.

    O Brasil participa da Aliança do Pacífico e do Grupo de Lima contra a Venezuela, infringindo os princípios de autodeterminação e de não intervenção, com ameaças militares, gerando ressentimentos, no esforço de agradar aos Estados Unidos em sua campanha para derrubar o governo da Venezuela.

    O Brasil está promovendo o Pro-Sul, que articula governos de direita, e o fim da UNASUL e passou a privilegiar a OEA, organização onde a influência americana é tradicional.

    Bolsonaro tem reduzido os recursos para os programas estratégicos militares (cibernética, espacial, nuclear) além de promover a exploração de urânio por empresas estrangeiras, a venda da Embraer à Boeing, assistir ao esvaziamento do Centro de Estudos de Defesa, da UNASUL, em Quito.

    O Brasil tem participado de forma discreta de reuniões e conferências mundiais, com perfil baixo e sem apresentar propostas importantes, e considera as Nações Unidas um instrumento nefasto do que chama “globalismo” e de interferência externa nos assuntos nacionais, através da ação do que chamam de “marxismo cultural”.

    O Mercosul tem sido desprestigiado e advogada sua transformação (dissolução) em uma Zona de Livre Comércio para poder o Brasil negociar acordos bilaterais com os EUA e outros países desenvolvidos. O Brasil não se interessa em fortalecer a cooperação com a Argentina, nem mesmo quando seu Governo é simpático ao Brasil, nem com a África.

    O Brasil tem se afastado deliberadamente de qualquer política de cooperação com os Estados subdesenvolvidos, do que chamam Cooperação Sul-Sul que, a seu juízo, nenhum benefício trouxe ao Brasil.

    Na gestão Guedes/Bolsonaro/Araújo não há nenhuma preocupação com a perda de participação percentual das manufaturas no total das exportações, com o acentuado processo de desindustrialização, resultado de uma política cambial de valorização do real e controle da inflação, nem com a diversificação do comércio exterior.

    O apoio à internacionalização das empresas de capital brasileiro, em competição com megaempresas multinacionais, não somente na África e América Latina, mas inclusive nos Estados Unidos e na Europa, tem sido considerado como “criminoso”. O Governo tem permitido a desorganização e destruição de grandes empresas brasileiras, o que não ocorreu em outros países, onde os empresários culpados por corrupção foram punidos e as empresas preservadas.

    A luta pela redistribuição de quotas e de poder de voto no FMI e no Banco Mundial foi abandonada devido à oposição americana e ao desejo de Bolsonaro de alinhamento incondicional com os interesses americanos.

    O Presidente Bolsonaro nem o chanceler Araújo não atribuem qualquer importância ao objetivo histórico da política exterior brasileira, e são até contrários, ao Brasil vir a ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, e à coordenação com o Japão, a Alemanha e a Índia, para atingir este objetivo.

    * * *

    Ao contrário da “política” externa de Bolsonaro/Araújo, que parece se fundar em visões religiosas de luta entre o Bem e o Mal, entre o Ocidente e o Oriente, entre valores cristãos e de outras (religiões?) e onde Trump é o Salvador do Ocidente, uma política externa realista para o Brasil deve levar em conta:

    • sua localização geográfica;
    • suas características como sociedade, economia e Estado;
    • suas vulnerabilidades e
    • seu potencial.

    * * *

    O Brasil se encontra na América do Sul e em frente ao Atlântico Sul e a 23 Estados da África Ocidental. Essa é a sua localização e não qualquer outra utópica.

    Por esta razão, o centro principal de sua política externa deve ser a América do Sul, o Atlântico e a África Ocidental, mas a essas áreas não devem se limitar, de forma alguma, suas ações de política externa.

    A América Central e o norte da América do Sul constituem área de influência dos Estados Unidos, sua zona mais estratégica, reconhecida, desde quando a declarou, pelas Potências de então, e onde se encontra o Canal do Panamá, ligação vital militar e comercial do país.

    É objetivo estratégico permanente americano evitar, de forma ativa e enfática, a emergência, em qualquer região do mundo, de um Estado, ou associação de Estados, que desafie sua hegemonia e sua influência política, militar e econômica.

    Esta prioridade americana é ainda mais aguda e sensível em relação ao Caribe, à América Central e ao Norte da América do Sul, como revelam as declarações americanas sobre a presença russa na área.

    A política brasileira na América do Sul (e ainda mais na América Central e Caribe) deve ser em consequência prudente, mas firme e ativa sem se deixar envolver e sem se alinhar com os interesses hegemônicos dos Estados Unidos, centro do Império Americano.

    * * *

    O Brasil apresenta enorme disparidade de território, de população, de recursos e de potencial em relação a seus dez vizinhos de fronteira, cujo desenvolvimento, prosperidade, estabilidade e cooperação são, todavia, de extremo interesse para os objetivos nacionais brasileiros.

    As dificuldades de natureza econômica nos vizinhos podem se transformar em instabilidade social, esta em instabilidade política com eventual transbordamento para o Brasil, sob a forma de migração ou de atividade de grupos irregulares, inclusive militar.

    * * *

    Os objetivos nacionais brasileiros, isto é, da enorme maioria do povo brasileiro, não necessariamente das classes hegemônicas e das elites dirigentes que governam em seu nome, são:

    • aperfeiçoar a democracia;
    • promover o desenvolvimento econômico;
    • reduzir as injustiças sociais e
    • defender a soberania.

    * * *

    A democracia brasileira é frágil e a participação popular, declarada soberana pela Constituição de 1988, é articulada (manipulada) em seus procedimentos pelos interesses das classes hegemônicas econômicas e políticas, através de seus instrumentos de ação e da elite dirigente (ministros, altos funcionários, políticos etc.) que trabalha em seu nome.

    A influência dos interesses políticos e econômicos dos Impérios e de Potências sobre estes processos políticos, exercida através dos tempos, foi e é notável, realizada muitas vezes através de agentes internos e de seus vínculos com as classes hegemônicas do Império Americano.

    O número de vizinhos, e a disparidade de dimensões são de tal ordem, assim como os ressentimentos históricos do processo de formação do território brasileiro, e entre os Estados vizinhos, que afloram no presente, fazem com que o Brasil nunca deva interferir nos processos políticos dos Estados vizinhos.

    Cada Estado vizinho teve uma evolução política, econômica e social própria, decorrente das inter-relações de forças internas e externas e não cabe ao Brasil julgar os seus méritos nem tomar partido, sob pena de criar ressentimentos desnecessários e de difícil superação.

    O Brasil (suas elites dirigentes e suas classes hegemônicas) se ressentiria profundamente de qualquer interferência dos Estados vizinhos em sua política interna. Aliás, o “espantalho” de interferência (cubana, venezuelana, chinesa) é agitado periodicamente por certos grupos para advogar ações de política externa. É verdade que as classes hegemônicas brasileiras (e sua elite dirigente) não se ressentem de interferência do Império na política e economia brasileira até por serem muitas vezes aliados.

    Cabe à política externa estar atenta a qualquer iniciativa de interferência externa (que são permanentes) em seus processos políticos internos e de iniciativas “multilaterais” neste sentido para contra-arrestá-las.

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    O Brasil é uma economia subdesenvolvida, caracterizada por extraordinárias disparidades de renda e de riqueza; pelo atraso relativo de seu parque industrial; pela grande penetração das megaempresas multinacionais; pela reduzida diversificação de seu comércio exterior; por um setor financeiro superdimensionado; pelo mercado de capitais subdesenvolvido; pelo pequeno conhecimento dos recursos naturais; pelo fraco dinamismo tecnológico.

    Muitas dessas características da economia brasileira são compartilhadas pelos Estados vizinhos da América do Sul, em maior ou menor grau. A América do Sul é um continente subdesenvolvido, com enorme concentração de renda, exportador de produtos primários e importador de produtos industriais, com enormes disparidades sociais.

    As características atuais da economia brasileira decorrem da longa permanência e da evolução histórica do regime da escravidão; da grande propriedade agrícola senhorial; dos vínculos das classes hegemônicas internas (e de suas elites dirigentes) com os sucessivos Impérios; com a aceitação das elites dirigentes da ideologia do sistema colonial sobre o que deve ser a “correta” divisão internacional do trabalho; da ideologia e da prática conservadora da Igreja Católica e de suas políticas de superioridade racial e de gênero e de obscurantismo científico.

    Estes fatores históricos foram se transformando ao longo do tempo e assumindo novas formas, mas permanecem até hoje, em novo contexto internacional, em que se verifica e age a política externa.

    Essa situação de subdesenvolvimento é agravada pelas tentativas permanentes de Estados desenvolvidos e do Império Americano de imporem políticas econômicas de natureza conservadora, como tem sido as advogadas pelo defensores dos princípios do Consenso de Washington (1989) e as “propostas” de política econômica dele derivadas.

    Essas “propostas” defendem que o Brasil deve ter uma política econômica de total integração no comércio e no sistema financeiro mundial, com a abolição de qualquer barreira ao comércio (acordos de livre comércio etc.), de liberdade total para os fluxos de capital; de total liberdade para investimentos estrangeiros; de equilíbrio fiscal absoluto; de redução do Estado ao mínimo como se estas tivessem sido as políticas que tivessem levado os Estados, hoje desenvolvidos, a seu estágio de desenvolvimento atual ou que eles as praticassem no momento.

    O denominado “tripé macroeconômico” é a âncora do subdesenvolvimento brasileiro, ao impor limitações ao desenvolvimento e mesmo ao crescimento econômico.

    * * *

    O principal objetivo da política externa no âmbito de promoção do desenvolvimento econômico deve ser a negativa (hábil) de participar de qualquer acordo que limite as possibilidades de ação econômica do Estado em prol do desenvolvimento e a ação para limitar os efeitos dos acordos restritivos de que o Brasil já participa.

    Exemplos de situações restritivas do chamado policy space são os acordos de livre comércio (sempre desiguais) com países altamente desenvolvidos; os acordos de promoção e proteção de investimentos estrangeiros; a OCDE e seus códigos etc.

    O segundo objetivo econômico da política externa deve ser a diversificação da pauta exportadora do Brasil em termos de produtos e de mercados de destino. Assim como a diversificação de sua pauta de fornecedores, em termos de empréstimos, de investimento de capital e de transferência (e absorção) de tecnologia.

    Este objetivo é essencial para evitar os efeitos da flutuação especulativa dos preços de produtos primários, enfrentar o surgimento de concorrentes, de substitutos etc. e as pressões políticas externas a que estão sujeitos países que tem suas relações externas concentradas em poucos produtos e parceiros.

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    O objetivo nacional de reduzir as injustiças sociais deve receber o apoio da política externa pela defesa de políticas sociais inclusivas, patrocinadas por organismos das Nações Unidas, pela condenação, na Assembleia Geral da ONU, de práticas discriminatórias contra minorias, de defesa do não uso político dos direitos humanos, pelos direitos dos imigrantes e dos refugiados.

    O objetivo de reduzir as injustiças sociais não deve em nenhum momento levar a julgamentos unilaterais pelo Brasil dessas injustiças em outros países que, muitas vezes como o Brasil, lutam contra elas com pequeno êxito. O princípio da autodeterminação e de não intervenção devem guiar sempre a política externa brasileira no que diz respeito a situações de injustiças sociais e de direitos humanos em terceiros Estados, tema muitas vezes manipulado pelos interesses das Grandes Potências e do Império Americano.

    Assim, o Brasil deve rejeitar e condenar a aplicação de sanções unilaterais de Grandes Potências contra Estados subdesenvolvidos a pretexto de corrigir situações humanitárias, mas que, às vezes, as agravam e levam a justificar “intervenções humanitárias”, justamente das Potências e do Império que provocam aquelas crises humanitárias.

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    O objetivo nacional de defender a soberania deve ser procurado em duas esferas de ação da política externa.

    A primeira esfera é a de ação nos organismos internacionais, a começar pelas Nações Unidas e seu Conselho de Segurança, que detêm o monopólio da força na esfera internacional e que, sozinho, pode autorizar o uso de qualquer medida de força (embargos, sanções, força etc.) contra qualquer Estado que não seja membro permanente do Conselho.

    As dimensões de território, de população, de economia e de seu potencial, de seus problemas internos, fazem com que seja de extremo interesse a participação do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança para defender seus interesses e para impedir ações contra sua soberania.

    A reforma da Carta da ONU, para permitir a ampliação do Conselho, depende do voto de 129 membros (2/3 dos 194 membros) e da aprovação dos cinco membros permanentes atuais. Este resultado depende de uma ação permanente e presença política do Brasil em todos os Estados para obter seu apoio.

    Esta presença brasileira será de extrema importância para obter apoio para as teses e as propostas apresentadas pelo Brasil nas discussões em conferências e reuniões internacionais, regionais, multilaterais ou temáticas (clima, floresta, etc.).

    A segunda esfera de defesa da soberania é a construção de uma capacidade de defesa dissuasória de qualquer agressão, do desenvolvimento de uma indústria bélica autônoma; do desenvolvimento de uma doutrina estratégica de caráter brasileiro; do aperfeiçoamento e diversificação dos centros de treinamento de oficiais, do adestramento da tropa para combate de resistência a qualquer invasão.

    Essas políticas são de longo prazo, dependem de permanência para ter êxito e não podem estar sujeitas a flutuações anuais de constrangimento orçamentário que se revelaram no passado a forma política mais eficaz de “matá-las”.

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    Os quatro objetivos da política externa tem de ser alcançados em um ambiente internacional dominado pelo Império Americano, pelas Grandes Potências auxiliares, e pela luta entre o Império e seus dois Adversários, a República Popular da China e a República Federativa Russa.

    Ademais, essa disputa se verifica em um momento em que o Império Americano empreende uma verdadeira política de “reorganização” em grande escala do sistema internacional que criou após a Segunda Guerra Mundial e em que se verificam fenômenos transnacionais, como prolongada estagnação econômica, degradação do meio ambiente, transformação tecnológica na economia civil e na guerra, a financerização da economia mundial e nacionais, as ações de organizações criminosas internacionais, as migrações em grande escala.

    Neste quadro se torna de grande importância a aproximação e a cooperação do Brasil com os Estados que participam das negociações de acordos internacionais para enfrentar estes desafios e que tem interesses semelhantes, a começar pelos Estados da América do Sul e os Estados subdesenvolvidos em geral, inclusive para evitar que os custos de políticas “imaginadas” para enfrentar questões “transnacionais” venham a recair sobre os países periféricos, subdesenvolvidos, mais frágeis e com menos recursos, grupo em que se encontra o Brasil.

    O alinhamento da política externa brasileira com os objetivos seja do Império Americano, seja com os objetivos dos Estados Adversários do Império será extremamente prejudicial ao Brasil.

    As relações do Brasil com a China e a Rússia, Estados que o Governo dos Estados Unidos classifica como “malignos” e “inimigos” devem ser cautelosas, mas diversificadas e firmes assim como com Estados como o Irã, classificados de “rebeldes” e “párias”.

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    A política externa executada pelo Governo de Jair Bolsonaro contraria todos os princípios que devem orientar a política externa brasileira para que esta pudesse contribuir para alcançar os objetivos nacionais, isto é, da maioria do povo brasileiro, de democracia, desenvolvimento, justiça social e soberania.

    Assim, o alinhamento declarado, ostensivo, unilateral, sem reciprocidade da política externa brasileira com os Estados Unidos e com Israel, não só não obtém o reconhecimento americano, que despreza os subservientes, como desmoraliza o Brasil como interlocutor face aos demais Estados.

    Por outro lado, as declarações de ultra-direita do Governo Bolsonaro sobre certos temas provocam o repúdio de Governos de Direita, como os do Chile e da Argentina, como de líderes de extrema direita, como Marine Le Pen, na França.

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    As declarações do Presidente Jair Messias Bolsonaro, do Deputado Eduardo Bolsonaro, do Embaixador Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, e de Ministros como Paulo Guedes, revelam desconhecimento e uma visão peculiar e simplista da política internacional e dos objetivos que devem orientar a política exterior brasileira para reduzir as vulnerabilidades do país e defender seus interesses de curto, médio e longo prazo.

    As contradições internas que geram e o ridículo das declarações torna cada vez mais ineficaz a ação externa e cada vez maior o desprestígio do Governo do Brasil no mundo.

    Parece que a realidade não consegue se impor às visões de fundo religioso e de Cruzada que imbuem a alma e inebriam o cérebro desses personagens.

    *Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador de carreira, foi Secretário Geral do Itamaraty (2003-2009) e Ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010.

  • O grito de Greta Thunberg: “estão roubando meu futuro”

    Você deve conhecer Greta Thunberg, a jovem sueca de 16 anos que desencadeou o movimento “Sexta-feira para o Futuro”. A estudante promove paralisações estudantis pelo Clima. Toda sexta-feira, ela e muitos estudantes faltam às aulas e vão ao protesto em frente do Parlamento da Suécia, em Estocolmo. Na sexta-feira, 15 de março, mais de um milhão de estudantes, em 125 países, aderiram ao movimento.
    Na última quarta-feira, 17 de abril, Greta teve um histórico encontro com o Papa Francisco.
    A jovem ativista agradeceu Francisco por defender a criação.

    O Papa encorajou Greta pelo seu compromisso com o meio ambiente

    “Francisco agradeceu e encorajou Greta Thunberg pelos seus esforços em defesa do meio ambiente e, por sua vez, Greta, que tinha solicitado o encontro, agradeceu ao Santo Padre pelo seu grande compromisso em defesa da criação.

    24ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP24)

    Greta Thunberg chamou a atenção de políticos de todo o mundo durante seu discurso na COP24, na Polônia, em janeiro deste ano. Falando em nome da organização ambiental Climate Justice Now (Justiça Climática Já) para líderes de mais de 200 países, sobre o fracasso dos governos em se comprometerem com a proteção das futuras gerações, Thunberg não se conteve.

    “No ano de 2078, celebrarei meu 75º aniversário. Se eu tiver filhos, talvez eles passem esse dia comigo. Talvez eles me perguntem sobre vocês. Talvez eles perguntem por que vocês não fizeram nada enquanto ainda havia tempo para agir.
    Devemos responsabilizar as gerações mais velhas pela bagunça que criaram … e dizer a elas que vocês não podem continuar arriscando nosso futuro dessa maneira”.

    Vídeo de Greta

    Após seu encontro com Papa Francisco, a jovem compartilhou uma mensagem em vídeo.
    Assista ao vídeo aqui.

    Greta disse “nosso lar está em chamas”. Jovens católicos em todo o mundo estão tomando medidas para deter as chamas. Juntos, eles são a Geração Laudato Si’ que tem se mobilizado por justiça climática.

    24 de maio, a próxima paralisação mundial pelo clima

    A próxima paralisação pelo clima está prevista para o dia 24 de maio, data do aniversário da Laudato Si’. Marque essa data na sua agenda, mobilize sua escola, seu grupo de jovens e organizem uma manifestação.

    A recepção do Papa Francisco a Greta mostra um belo espírito de solidariedade entre gerações.

    Espalhe o vídeo de Greta nas redes sociais. Curta a publicação do Facebook do Movimento Católico Global pelo Clima, para levar a mensagem de Greta e do Papa Francisco ainda mais adiante.

    Demos graças pelo espírito corajoso de Greta e por todos os jovens que estão retomando as rédeas de seu futuro.

    Papa Francisco com Greta Thunberg foto do Vatican News
  • Pastorais do Campo: país caminha para condições de vida piores

    “Nossa constatação sobre os primeiros cem dias do novo governo acena que os próximos anos podem ser muito piores e que o caminho traçado é de uma crueldade sem precedente contra os povos do campo”.
    Segue a Carta:

    Carta aberta das Pastorais Sociais do Campo ao Governo e à sociedade brasileira

    As Pastorais do Campo (CPT, CIMI, SPM, Cáritas, CPP e PJR) divulga Carta Pública à sociedade sobre as diversas reformas do atual governo, de cunho neoliberal e que vão acabar por entregar “os bens naturais existentes nas diferentes regiões, em especial na Amazônia, o governo submete os interesses do Brasil e dos brasileiros a outros países, especialmente aos Estados Unidos da América, e de grandes conglomerados financeiros e empresariais multinacionais”. Confira o documento na íntegra:

     “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27) – CF 2019.

    As Pastorais Sociais do Campo, da Igreja Católica, estamos convencidas que a realidade no Brasil está caminhando, a passos acelerados, para a eliminação de direitos e o agravamento das condições de vida de seus cidadãos.  Com as diversas reformas de cunho neoliberal executadas e propostas e, ao mesmo tempo, com negociatas que entregam os bens naturais existentes nas diferentes regiões, em especial na Amazônia, o governo submete os interesses do Brasil e dos brasileiros a outros países, especialmente aos Estados Unidos da América, e de grandes conglomerados financeiros e empresariais multinacionais.

    É verdade que o ataque aos direitos trabalhistas e previdenciários já vêm ocorrendo, na forma de “minirreformas” há algum tempo, mas o que assistimos agora é uma tentativa de “golpe final” aos direitos dos mais explorados em nosso país. Após enfraquecer ainda mais os sindicatos, eliminar direitos e fragilizar os trabalhadores na relação com os empregadores, a reforma trabalhista, realizada sob a justificativa de que geraria milhões de empregos e até acabaria com o desemprego no país, tem seus resultados efetivos revelados nos últimos levantamentos que demonstram a existência de mais de 13 milhões de desempregados, sem contar aqueles que nem mais procuram emprego e as pessoas que fazem trabalhos informais.

    Com a mesma propaganda e discursos falaciosos de salvar o Brasil, está sendo “negociada” a Reforma da Previdência. Para nós é evidente que o objetivo, mais uma vez, é prejudicar os trabalhadores e as trabalhadoras da cidade e do campo. Além de favorecer fortemente os interesses de grupos financistas com o incentivo à previdência privada, o golpe contra os direitos dos assegurados especiais do campo, sendo as mulheres as mais prejudicadas, provocaria um enorme empobrecimento e esvaziamento do mundo rural, com o aumento da migração forçada. Frequentemente essas populações são deslocadas forçosamente de territórios onde secularmente viveram e de onde não desejariam sair. Milhares de pessoas são reassentadas em locais sem condições de sustentabilidade, submetidas à precarização do trabalho e, não raro, a condições análogas ao trabalho escravo, devido também a carência de políticas públicas eficazes.

    Isto é tudo o que os ruralistas e as grandes corporações internacionais do agronegócio almejam, a fim de estender ainda mais seu domínio e hegemonia no setor, aumentando assim seus já estratosféricos lucros e afetando radicalmente a soberania territorial e alimentar de nosso país.

    São inúmeras as tentativas de efetivação da ocupação dos espaços amazônicos e da rapina dos bens naturais neles existentes. O recente anúncio das intenções do governo brasileiro de explorar a Amazônia em conjunto com o governo estadunidense revela, no entanto, o interesse e a articulação arquitetada para avançar na empreitada exploratória, no saque das riquezas naturais e das populações locais de forma ainda mais acelerada, submissa e entreguista.

    A postura governamental de atacar os direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e demais grupos tradicionais, facilita a entrega do território brasileiro aos interesses do capital nacional e internacional. As declarações recorrentes do presidente Bolsonaro de que pretende não demarcar sequer um centímetro de terra e rever todas as demarcações possíveis situam-se nesse contexto e intencionalidade.  A transferência da responsabilidade de demarcação de terras indígenas do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, que historicamente defende os interesses do latifúndio, é uma medida concreta para efetivar estas agressões à Constituição brasileira.

    Não satisfeitos em ameaçar o direito constitucional de homologar e regularizar territórios indígenas e comunidades tradicionais, o governo investe fortemente na perspectiva do extermínio cultural e dos modos próprios de vida destes povos. O incentivo político-ideológico e financeiro a métodos do agronegócio de produção em larga escala de commoditiesagrícolas para exportação, com uso intensivo de agrotóxicos, sementes transgênicas e adubação química nas terras da agricultura familiar e territórios dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, além de favorecer os interesses das empresas fornecedoras, acelera o etnocídio colonizador presente no Brasil há séculos. Além disso, com esta iniciativa, o governo enfraquece radicalmente a múltipla variedade de alimentos saudáveis e ataca fortemente a soberania alimentar dos povos do Brasil, tornando-os dependentes da aquisição e consumo de produtos “enlatados” e carregados de veneno, provocando prejuízos financeiros e à saúde destas populações.

    O projeto armamentista do atual governo potencializa a grilagem de terras e a ação criminosa contra o ambiente. Dentre os reflexos destes primeiros três meses de governo, o aumento da violência e do desmatamento no campo são evidentes. Os dados da CPT, na sua publicação Conflitos no Campo Brasil 2018, registram que foram afetadas por violência, no ano passado, quase um milhão de pessoas, enquanto o território em disputa soma pelo menos 39,4 milhões de hectares, dos quais 92% estão na Amazônia.

    Nossa constatação sobre os primeiros cem dias do novo governo acena que os próximos anos podem ser muito piores e que o caminho traçado é de uma crueldade sem precedente contra os povos do campo, seus territórios e os bens naturais.

    Na véspera da celebração do Massacre de Eldorado do Carajás, no Pará (17 de abril de 1996),  e do dia Internacional da Luta Campesina, lembramos as palavras do Papa Francisco em sua Exortação Evangelii Gaudium, ao afirmar que “assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata.”

    Por isso, repudiamos esta postura devastadora do atual governo, geradora de morte. Conclamamos a todos os povos do campo, suas organizações, as Igrejas e a sociedade em geral a somar na resistência contra as diversas ameaças orquestradas contra o povo brasileiro.

    Brasília (DF), 16 de abril de 2019.

    Comissão Pastoral da Terra – CPT
    Conselho Indigenista Missionário – CIMI
    Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM
    Cáritas Brasileira
    Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP
    Pastoral da Juventude Rural – PJR

     

  • Religiões & Antropoceno: O Caso do Catolicismo

    Esse foi o tema de uma mesa coordenada pelo professor José Eli da Veiga do Instituto de Estudos Avançados dos USP para discutir o cenário traçado pela Encíclica Laudato Sí frente às mudanças climáticas.

    Como as religiões têm reagido diante da escalada dos impactos ambientais negativos do processo civilizador? Ou melhor: como têm adaptado suas doutrinas ao que os historiadores ambientais denominam “A Grande Aceleração”, desencadeada em meados do século passado, justamente o que tende a definir – sob o prisma científico – o Antropoceno?

    Um claro posicionamento surgiu com a Encíclica Laudato Sí, que está no centro da apresentação do sociólogo Ricardo Abramovay, professor sênior do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam/IEE/USP). Para ele, a principal virtude dessa Encíclica reside no esforço de colocar em questão os modelos de produção e consumo em torno dos quais a vida econômica contemporânea está organizada. Ela não aponta o dedo apenas contra os gigantes fósseis. É uma peça de acusação contra o poder das corporações globais, seus objetivos e os meios que usam para atingi-los. Também contribui muito para o diálogo entre ciência e religião ao postular que mudanças da magnitude necessária deverão se apoiar em redefinição dos próprios objetivos da oferta de bens e serviços, sob o ângulo da ética e da espiritualidade.

    Para comentar e debater tais proposições a conversa contará com a especialista Paula Montero, professora titular do departamento de antropologia da FFCLH/USP, pesquisadora do Cebrap e coordenadora adjunta da Fapesp.
    Assista ao vídeo (1.58 min).

     

  • 13 milhões de desempregados e uma multidão de moradores de rua – Por Cid Benjamin

    Cid Benjamin, um analista sensível ao drama humano, faz uma tipologia dessa massa de excluídos pelo mercado, que mora nas ruas das grandes cidades. O artigo publicado pela Revista Fórum, 10 abril 2019.
    Segue a publicação.

    Sou um otário assumido

    Por Cid Benjamin

    Moro num bairro de classe média do Rio de Janeiro. Como há muitos anos decidi não ter mais carro, além de usar regularmente ônibus e metrô, ando bastante a pé. Isso dá outra perspectiva da cidade. Ao caminhar, a pessoa vê um mundo diferente daquele que vislumbra ao volante de um carro, protegido por vidros escuros.

    Dito isto, afirmo sem medo de errar: é visível a multiplicação da quantidade de gente morando nas ruas. E quando falo em multiplicação, não exagero. É a mais pura verdade. Não foi um aumento qualquer.

    Como consequência das injustiças sociais que vêm de séculos e de um fim da escravidão que abandonou suas vítimas à própria sorte, o Brasil sempre teve pobres e mendigos. Gente pedindo esmola nas ruas e crianças perambulando por elas, eventualmente cometendo pequenos delitos, não são novidades.

    No caso do Rio, consolidou-se um contingente de trabalhadores que, desempregados, passam a semana nas ruas do Centro ou de bairros da Zona Sul recolhendo latas vazias de cerveja para vender e revirando latas de lixo de restaurantes, buscando restos de comida. Nas sextas-feiras à noite vão para casa, em bairros distantes da Zona Oeste ou da Baixada Fluminense, para estarem de volta na segunda-feira seguinte. O transporte é caro e não há dinheiro para as passagens todo dia.

    Aumentou, também, o número de pessoas largadas nas calçadas, meio dormindo, meio acordadas, alheias ao que acontece ao redor. De tão derrotadas, já nem pedem esmola ou cometem pequenos roubos. Derrotadas pela fome – e, muitas, pelo crack – simplesmente vegetam. Quase não são percebidas por quem passa.

    Na música “Construção”, de Chico Buarque, há menção a um trabalhador da construção civil que despenca de um prédio e cai na contramão “atrapalhando o trânsito”. Mal é notado pelos que estão envoltos pelas coisas do dia a dia, salvo pelas consequências que sua queda traz: o engarrafamento, que, este sim, é percebido pelos motoristas e os aborrece. Os mortos-vivos nas calçadas também são invisíveis à maioria. Só são vistos quando atrapalham o vaivém das pessoas. A maioria delas, diga-se, já brutalizada e alheia ao drama humano que se apresenta aos seus olhos. Um drama quase invisível para quem passa.

    Há também moradores de rua vivendo em grupo. É gente que mora nas calçadas, mas em situação próxima à de acampamentos. São, às vezes, mais de 15 ou 20 pessoas. Instalam-se embaixo de viadutos com colchões velhos e móveis danificados que recolhem em algum lugar. Dormem durante parte do dia. Sempre acompanhadas por alguns cachorros, que servem de companhia aos mais solitários e de guardiões dos parcos bens de seus donos ou da pequena comunidade.

    De certa forma, essa gente está menos largada do que os que vegetam sós nas calçadas. Tem, ao menos, a solidariedade dos que estão a seu lado. Mas está só um pequeno degrau acima dos que vegetam sozinhos. Um degrau quase imperceptível e que, amanhã, pode desaparecer. A fronteira entre eles é tênue, muito tênue.

    Cresceu muito, também, o número dos que buscam outras formas de sobrevivência. Quaisquer que sejam. Estes tampouco têm emprego, mas são de uma camada social superior àqueles. Na orla, tocam e cantam em busca de uma gorjeta dos que comem e bebem nos bares. Quase sempre conseguem levantar alguma coisa.

    Adoro música e em toda a vida ouvi samba e choro. Nas rodas, sempre canto e chego a empunhar um violão, quando os verdadeiros músicos são amigos e tolerantes com os amadores. Mas o que se ouve na orla está longe do que se poderia chamar de música de boa qualidade. Um pandeiro espancado pelo “percussionista”, um tamborim mal tocado (afinal, todo mundo acha que sabe tocar tamborim…), um tantam primário e, quase sempre, um insuportável cavaquinho (às vezes substituído por um banjo estridente, o que é ainda pior). Não bastasse isso, os “músicos” cantam mal e alto.

    Pois bem, toda semana tomo uma cerveja na orla com um grupo de amigos, acompanhando um querido companheiro com quem militei na clandestinidade nos anos de chumbo e que teve um AVC. Ele está em cadeira de rodas e não fala, mas acompanha as conversas. Esse programa, aos sábados, lhe faz muito bem. E para nós, seus amigos, também é muito agradável. Os tais grupos musicais quase sempre aparecem. Quando chegam, ninguém mais conversa em paz, pois, esmerando-se em agradar a “plateia”, os “músicos” cantam a todo volume, achando que assim farão jus aos trocados. Não fosse uma indelicadeza que não merecem, seria o caso de dar-lhes logo a gorjeta com a condição de que fossem baixar em outra freguesia. Mas é gente que está tratando de sobreviver.

    Estávamos comentando isso recentemente no grupo a que me referi quando Sérgio Henrique, conhecido por Tchecha – o principal organizador da rede de solidariedade ao nosso amigo doente, e o mais velho da mesa quando não está presente Milton Temer – nos trouxe à razão: “Vamos ter paciência com esses caras. Não tem emprego pra ninguém. Eles estão correndo atrás…”

    A partir daí, passei a ver com mais condescendência não só esses “músicos”, como também outro tipo de gente que batalha nas ruas. Por exemplo, os que aplicam um conhecido golpe. Abordam os passantes com uma história que, com poucas variações, é a seguinte: “Moro em tal lugar (uma cidade do interior) e vim ao Rio ver uma oferta de emprego (mostra um endereço). Deu tudo errado e não tenho como voltar pra casa. Tenho isso aqui (mostra algumas notas) e me falta tanto (mostra um papel com as contas) para comprar a passagem”.

    Já caí nesse golpe algumas vezes. Em outras, escolado, me recusei a dar o dinheiro. Mas, passei a ver coisas assim com outros olhos. Passei a levar em conta de que essas pessoas prefeririam ter um emprego, em vez de andar por aí tentando passar a perna nos demais. Passei a dar o dinheiro, mesmo sabendo que a história era conversa fiada. Afinal, é coisa pequena o que pedem, em torno de R$ 10 ou R$ 15.

    Minha ótica passou a ser a da solidariedade, não a da condenação da pequena trapaça. Quem aplica o golpe é gente que busca alguma forma de sobreviver.

    Enquanto esse quadro de terrível desigualdade social se agrava, o presidente da República esbraveja contra o IBGE e a pesquisa que mostra 13 milhões de brasileiros desempregados. Ao reclamar do resultado da pesquisa, Bolsonaro faz mais ou menos como faziam os déspotas antigamente, mandando matar os portadores das más notícias.

    Ele e sua turminha braba governam para os ricos. Arrocham cada vez mais os pobres. Agora, querem praticamente acabar com a Previdência pública. Até que a resistência popular vire esse jogo (e para isso não se pode esperar longos quatro anos!!!!), vão aumentar a prostituição infantil, juvenil e adulta, o desamparo à velhice, o abandono de crianças pobres e o número de pessoas nas ruas.

    Algumas dessas últimas, prostradas, como mortos-vivos. Outras, maltratando sambas que muitas vezes até são bons. E há, também, as que aplicam pequenos golpes para comer e chegar ao dia de amanhã.

    A quem tem consciência do drama que vivemos, resta cerrar fileiras e resistir aos sucessivos ataques aos direitos dos trabalhadores. De minha parte, admito, enquanto faço isso, não deixo mais de dar uns trocados para o cara que vem me contar que precisa voltar para sua cidade natal e reencontrar a família, depois de frustrada a busca de um emprego no Rio.

    Não importa que não seja verdade. Por uma questão de humanidade, finjo que me deixo enganar e que caio no golpe. Dou o dinheiro solicitado. Conscientemente.

    Sou um otário assumido.
     

    Cid Benjamin – Foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.

     

    *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

  • As origens da Teologia da Libertação segundo o olhar de um sociólogo católico

    O texto que se segue é fruto de um pedido de um querido amigo sobre as origens da Teologia da Libertação. Um desses pedidos rápidos, via aplicativo de mensagens, sabe? Corri para escrever poucas linhas. Mas logo percebi que a tarefa era hercúlea. Quando vi, tinha quase um artigo pronto. Apressado, com alguns erros, mas um texto.

    Foi então que me dei conta do quanto sabia acerca da TdL. É que esse tipo de coisa a gente vive, experimenta, sente, chora, reza… Muito mais do sabe. Mas descobri que sabia alguma coisa. Nomes, pessoas, contexto histórico-social, épocas. Aliás, as vezes tenho a sensação de que gostaria de ter sido jovem e jovem-adulto naqueles dias de efervescência pastoral, de urgência histórica, de ter presenciado tempos de grandes e esperançosas mudanças. De ter estado na luta pela democracia no Brasil, nos primórdios das Cebs. Enfim, de ter vivido aqueles dias que conheço um pouco através da memória daqueles que nos precederam.

    De certa forma, tomei uma pequena fração dessas memórias e histórias narradas em textos, entrevistas, livros, palestras e conversas de muitos e muitas que viveram a TdL para escrever. Mas, para dar um arremate final ao texto e ser fiel aos fatos, me fiz valer de dois artigos publicados na internet. Um é de Leonardo Boff. Dispensa apresentações. O segundo, muito bom, de dois protestantes da terceira geração de teólogos da libertação: Cláudio Carvalhaes e Fábio Py. Digamos que me deram uma assessoria teológica. Mesmo assim, peço licença aos teólogos pelo atrevimento de tentar contar essas origens e de fazer essa memória. É uma reflexão sobre o começo dessa história, da qual também faço parte um pouquinho e que mudou em definitivo minha trajetória de vida. Eis o texto:

    A Teologia da Libertação (TdL), como seus principais teólogos definem, não surgiu a partir de mera reflexão provocada pela pesquisa acadêmica, ou da genialidade daqueles que a sistematizaram. Os pioneiros da TdL tiveram enorme sensibilidade para intuir o espírito de uma época e para sistematizar as iniciativas do Povo de Deus que estavam acontecendo 50-60 anos atrás. Assim, a Teologia da Libertação surgiu como efeito das práticas do povo de Deus. Em outras palavras, foi consequência do gesto daquelas cristãs e cristãos que começaram a ler a Bíblia em comunidade e, a partir da sua fé, entenderam que o Cristianismo lhes levava a um processo de conversão. Isso se traduziu eticamente em uma prática social, ao engajamento mais concreto na luta por justiça, paz, democracia. Por isso se envolveram nas lutas populares pelos direitos humanos.

    Esse imperativo moral é fundamental até hoje para quem vive ou viveu a experiência comunitária cristã nessa perspectiva teológico-pastoral. Nas palavras dos teólogos Cláudio Carvalhaes e Fábio Py: “Teologia da Libertação, tal como a conhecemos, é matéria de sobrevivência, uma matéria de vida e morte, um lugar onde fé, discurso de Deus e vida real encontram-se para proteger e expandir as possibilidades da vida, na eco-bio-diversidade do planeta e na possibilidade de justiça para o pobre. (…) Não foi Gustavo Gutierrez que deu origem ao movimento, mas sim as pessoas e os movimentos populares que clamavam por justiça, movimentos estes que acabaram aceitando o envolvimento de sacerdotes e teólogos e que modificaram profundamente o modo como as coisas aconteciam na América Latina”. Também Leonardo Boff sempre disse coisas na mesma linha.

    Essa “teologia em movimento”, ou, se pensarmos na centralidade do pobre como kairós, e locus da Revelação, esse movimento da teologia, foi o principal fruto de uma série de transformações no catolicismo latino-americano nos anos 60 do século XX, por um lado. E, por outro, com iniciativas de leigos evangélicos, das provocações feitas a partir de uma corrente protestante chamada de “Evangelho Social” e da reflexão de autores como o presbiterano Richard Shaull e o batista Harvey Cox, também inspirados em práticas comunitárias de promoção humana. O teólogo Jürgen Moltmann, reformado, também escreveu coisas que fundamentaram a Teologia da Libertação protestante. Assim, a Teologia da Libertação nasceu ecumêmica.

    No catolicismo, desde a década de trinta tivemos movimentos e reflexões que procuravam resgatar o compromisso com a transformação social e com a liberdade humana. No entanto, nenhum deles tinha posto no lugar central da reflexão teológica a figura do pobre. De toda a maneira, podemos destacar aqui o pensamento de Emmanuel Mounier e o humanismo integral de Jacques Maritain, ambos filósofos. As experiências dos padres-operários dos anos trinta do século XX na Bélgica e na França,  da Ação Católica Operária e da Ação Católica Geral, e do método ver-julgar-agir também foram fontes inspiradoras. No campo teológico tivemos a Nouvelle Théologie francesa (Yves Congar foi seu maior expoente) e a Teologia do Político de Johann Baptist Metz. Tanto a experiência dos padres operários quanto os teólogos acima mencionados foram perseguidos e proibidos pelo Papa Pio XII.

    Foi com João XXIII e o Concílio Vaticano II que essas novidades ganharam evidência, influenciando intensamente a vida do catolicismo. Havia uma enorme demanda reprimida – por liberdade de pensamento e de ação – que Il Papa Buono e, sobretudo o Concílio, possibilitaram que fluísse. Todavia, embora a vontade do próprio João XXIII que o Vaticano II fosse um concílio dos pobres, foi a questão do aggionarmento, ou seja, do diálogo com a modernidade e da atualização das formas de ser da Igreja, que prevaleceu. Vários daqueles teólogos perseguidos por Pio XII  se assomaram a grandes nomes da Teologia, como Karl Rahner e Edward Schillebeeckx, e foram peritos conciliares, junto com então jovens promissores como Huns Küng e Joseph Ratzinger

    De toda a forma, o Concílio produziu uma chave fundamental para que se desenvolvesse tudo que serviu de pilar da Teologia da Libertação. Na abertura do Concílio, São João XXIII indicou o caminho a ser seguido: “Agora, a Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia em vez de tomar as armas do rigor”. Isso não nos lembra um certo Francisco, oriundo do fim do mundo, que hoje vive em Roma?  Mesmo que o tema dos pobres não tenha sido central naquela oportunidade, causou um enorme impacto o discurso do cardeal Lercaro sobre a pobreza, em que ele reforça aquilo que  o próprio João XXIII manifestava como vontade, que a Igreja fosse “a Igreja de todos, mas principalmente a Igreja dos pobres”.

    Outro gesto de grande de grande impacto dos tempos conciliares foi o Pacto das Catacumbas. Tratou-se de um manifesto assinado por mais de 40 bispos que participaram o Vaticano II, liderados por Dom Hélder Câmara e pelo bispo equatoriano Leônidas Proaño. Seus signatários se comprometeram a viver como os pobres, solidários às suas causas, sem luxos ou regalias. Essas figuras do episcopado latinoamericano foram muito importantes no apoio dado aos teólogos da libertação e às comunidades de base nos anos 70 e 80.

    Se, no Vaticano II a questão dos pobres não foi central como se desejava, a aplicação das bases do concílio na América Latina fez da questão da pobreza seu objeto principal para a ação pastoral. A conferência dos bispos latinoamericanos (CELAM) organizou um encontro para discutir como iriam aplicar as premissas conciliares. Em Medelín, Colômbia, o tema dos pobres veio com força e, junto dele, a Teologia da Libertação.

    A expressão Teologia da Libertação surge de forma quase simultânea no catolicismo e no protestantismo, no mesmo ano da conferência do CELAM em Medelín, que se deu em agosto de 68. Um mês antes, em um encontro de sacerdotes no Peru, o padre Gustavo Gutierrez, compartilhando sua experiência pastoral na periferia de Lima, fez uma conferência que se chamou “Notas para uma Teologia da Libertação”, Depois, em 1969, essa fala virou um artigo publicado no Uruguai chamado “Hacia unaTeologia de la Liberacion”. Esta publicação foi a base para aquela que é considerada a publicação mãe da TdL. Trata-se do livro “Teologia da Libertação”, de 1971. Vale dizer que, nessa mesma linha, o teólogo belga radicado no Brasil José Comblin publicou em 1970  o livro “Teologia da Revolução”.

    No segundo semestre de 1968, o então pastor protestante Rubem Alves (que ficou muito conhecido por seus textos no campo da Educação) estava defendendo sua tese de doutorado no Princeton Theological Seminary nos EUA. Ela foi chamada “Towards a Theology of Human Liberation” (algo como “Em direção a uma Teologia da Libertação Humana”). Em 1969, uma editora católica resolveu publicar essa tese, tirando o termo “libertação”. O livro foi chamado “Uma teologia da esperança humana”.

    Por isso, em muitos meios se discute a verdadeira origem do termo Teologia da Libertação. Pessoalmente, creio que tanto Rubem Alves (que se sempre defendeu sua paternidade) e Gutierrez  tiveram os mesmos “insights”, embora jamais tenham se encontrado naquela época. Se considerarmos as dificuldades de comunicação da época e o fato de serem de países distintos, muito possivelmente eles chegaram a conclusões parecidas por vias diferentes.

    A eles, posteriormente podemos juntar uma série de autores considerados da primeira geração da TdL. Evangélicos como Hugo Assmann, Jether Ramalho, Zwinglio Dias, Júlio de Sant’ Anna, Jorge Pixley e Milton Schwantes. E católicos como Comblin, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Gustavo Gutierrez , Carlos Mesters, Juan Luis Segundo e Segundo Galilea.

    Aqui no Brasil, os anos 60 do século XX foram de muita efervescência social. E segmentos católicos não ficaram de fora disso. A ação católica especializada junto a juventude (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC), as escolas radiofônicas no sertão do Rio Grande do Norte, o grupo em torno de Dom Hélder Câmara, as primeiras comunidades de base, a leitura popular da Bíblia…Tudo isso foi o terreno fértil que possibilitou a sistematização teológica sobre a libertação dos. Nesse sentido, não é equivocado dizer que a Teologia da Libertação foi feita por milhares de mãos, a partir da base.

    Finalmente, as contradições sociais em escala internacional fizeram com que essa temática da libertação fosse discutida e refletida em várias áreas do saber e em vários lugares. Enrique Dussel (de matriz católica, também teólogo) discute uma filosofia da libertação no México. Paulo Freire também o faz em seu “Pedagogia do Oprimido”. A juventude universitária francesa também o faz em Maio de 1968. Mesmo Fernando Henrique Cardoso (que pediu para esquecermos o que ele escreveu!), em sua teoria da dependência, trata desse tema.

    Tivemos a psicologia humanista e o desenvolvimentismo econômico de Celso Furtado. Em todas essas correntes a questão da libertação estava presente, de um jeito ou de outro. Essa foi uma daquelas temáticas que inspirou uma época inteira e toda uma geração de pessoas. Na teologia não foi diferente.

    Mas é preciso dizer que, sobretudo nesse momento em que ela se faz mais necessária para a Igreja e a sociedade, a Teologia da Libertação precisa rever caminhos para não cometer os mesmos erros do passado. Aqui não se tratam de equívocos teológicos ou doutrinários que legitimariam a cruel perseguição sofrida nos anos 80 e 90 do século XX. Trata-se sim da pedagogia de sua aplicação pastoral, que relegou a devoção popular como algo menor em certos momentos.

    Muito já se disse do caráter racionalizante da aplicação pastoral da TdL, de um certo intelectualismo da pastoral popular, coisa que provocou afastamento de uma parte dos membros da Cebs, sobretudo os menos escolarizados. Há uma chave de leitura disso tudo com a qual vamos precisar nos defrontar: o empoderamento. Houve pouco empoderamento pastoral, houve pouca ou insuficiente formação teológica para os agentes de pastoral e para o laicato em geral. Faltou mistagogia no processo de educação na fé. Durante um bom tempo, a pastoral libertadora estava muito no intelecto, e pouco na mística e no encontro afetuoso com Deus e os irmãos de caminhada.

    Contudo, a Teologia da Libertação é, com toda convicção, a grande possibilidade de sobrevivência do Cristianismo na atualidade. Ou os cristãos se convertem à causa dos pobres e oprimidos, ou o Cristianismo (A Igreja inclusive) estará fadada a negar a sua própria razão de ser: a de sinal-sacramento de Cristo em nossos dias e comunidade dos seguidores de Jesus de Nazaré. Se a Igreja não se tornar “pobre para os pobres”, como deseja Francisco de Roma, corre-se o risco da fé cristã desparecer. Dom Hélder Câmara dizia que “conosco, sem nós, contra nós, as massas vão abrir os olhos. As massas terão a consciência despertada. E se amanhã elas tiverem a impressão de que o Cristianismo teve medo, que não teve a coragem de dizer a verdade, de mostrar a verdade… Então, acabou-se o Cristianismo”.

    Por isso, ao contrário do que defendem e gostariam de seus detratores, a TdL continua mais viva do que nunca. Pode não estar na grande paróquia de classe média dos centros urbanos, nem nas periferias abandonadas pelo poder clerical e hoje consumidas no pentecostalismo evangélico ou carismático. Mas ela vive, no coração de todo ser humano de boa vontade. E também na espiritualidade daqueles que, partindo da vida e do seguimento de Jesus de Nazaré, desejam um mundo melhor, igualitário, justo e fraterno.

    Referências:

    BOFF, Leonardo. Quarenta anos da Teologia da Libertação. Postado em 09/08/2011. Disponível em: http://twixar.me/1hhK.   Acesso em Abr. 2019.

    CARVALHAES, Cláudio e PY, Fabio. Teologia da libertação no Brasil. Postado em 16/01/2018. Disponível em: http://twixar.me/YhhK. Acesso em Abr. 2019.

  • Movimentos Sociais realizam seminário sobre o momento político

    No início de abril, aconteceu em Brasília um Seminário Nacional da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político para avançar na discussão sobre a democratização do poder e da efetivação da Reforma do Sistema Político. Participaram cerca de cem pessoas de diversas lutas, de muitas regiões do país.

    Segue artigo de Marcel Farah publicado pelo site da Plataforma http://www.reformapolitica.org.br
    07.04. 2019, onde se pode ver fotos, vídeo e outros artigos.

     O fim da nossa democracia?

    Por Marcel Farah

    Ocorreu em Brasília, nos dias 2 e 3 de abril, o seminário nacional da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político. A reforma política, há algum tempo (mais de dez anos), motiva estas organizações sociais a pensarem e agirem no sentido de potencializar a democracia brasileira.

    O seminário contou com uma diversidade enorme de organizações, com agendas variadas, desde acadêmicos que estudam a democracia, passando por movimentos de combate à corrupção, até entidades de defesa de direitos das mulheres, das populações LGBTI, de populações de negros e negras, de juventude, de comunidades tradicionais e povos de terreiros. Um dos pontos centrais, portanto, foi o baixo nível de representatividade dos poderes Legislativos e Executivos, além do Judiciário e do próprio poder da mídia de massas.

    O tom dos debates da Plataforma, como é conhecido este movimento, é que o sistema político vai muito além das eleições, pois relaciona-se com a forma como o poder está distribuído em nossa sociedade. Por exemplo, como as decisões políticas são tomadas.

    Sobre o debate em si, há três questões de alta importância social e democrática, advindas do momento da vida nacional em que estamos. As ameaças à democracia brasileira, as ameaças aos direitos das gerações, digo a idosos e idosas, e a ameaça militar.

    Ameaças à democracia

    A eleição de um governo saudosista da ditadura militar, do autoritarismo, que nega a estrutura racista, machista e homofóbica de nossa sociedade é uma contradição, senão um sinal de mal funcionamento da democracia brasileira. Neste sentido, é preocupante a legitimação institucional das eleições de 2018 sem ressalvas, mesmo com as suspeitas de caixa 2 para difusão de mentiras via redes sociais.

    No mesmo sentido, é comprometedora, para as instituições, principalmente judiciárias, a proibição da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, preso sob duvidosos argumentos jurídicos, em 2018.

    Sobre o tema, inclusive, nos aproximamos de julgamento do STF, agendado para 10 de abril, que decidirá se é constitucional ou não prender uma pessoa antes do julgamento definitivo.

    Segundo a Constituição não é permitido prender ninguém, a não ser cautelarmente, até o trânsito em julgado, quando não há mais recursos. A questão tem implicação direta no caso do ex-presidente, mas não se refere ao caso em específico. O que se decidirá é se está mantida a presunção de inocência ou se alteraremos a Constituição de nosso Estado.

    O problema é que, para alterar a Constituição de nosso Estado, é preciso que atue o Poder Legislativo e, no caso, como se trata de “cláusula pétrea”, somente uma nova Constituição poderia fazê-lo.

    Conclusão: vivenciamos rupturas na democracia chanceladas pelas instituições.

    Ameaça aos direitos geracionais

    Sob o argumento de que é preciso reduzir um suposto déficit para liberar dinheiro do orçamento público, idosos e idosas têm seus direitos ameaçados com a proposta de reforma da Previdência. Contudo, fica cada dia mais nítido que a proposta de reforma não busca combater privilégios, mas apenas fazer caixa para o orçamento.

    A justificativa é de que a redução dos gastos com Previdência permitiria ao país voltar a crescer. Mas, retirar dinheiro da Previdência sem combater privilégios, ou seja, penalizando os que usam toda sua aposentadoria para sobreviver, é retirar dinheiro da economia.

    Aposentados que recebem até dois salários mínimos, que são 82% do regime geral de Previdência, gastam seu salário no consumo. Consumo faz a economia girar, gerando emprego e renda. Retirar este dinheiro vai contrair a economia. Por outro lado, o governo não diz, e acho que nem sabe, onde utilizaria esta suposta economia caso não fosse para a Previdência.

    Na CCJ da Câmara, o ministro da Economia chegou a dizer que se gasta muito mais com Previdência do que com saúde ou educação. Entretanto, para muitos, a Previdência é saúde, pois permite a compra de medicamentos, e educação, paga mensalidades, alimentação, transporte, todos gastos necessários para que as famílias mantenham seus filhos e filhas bem nas escolas.

    Outra vez é a Constituição que está sob ameaça, pois é lá que estão garantidos os direitos previdenciários.

    Ameaça militar

    Por fim, outro problema, tão relevante quanto os demais, é a numerosa participação militar no atual governo federal. As forças militares são uma incógnita para a sociedade em geral, apesar de serem vistas com bons olhos, as experiências históricas demonstram o contrário. Adicionalmente, para o governo federal, a democracia seria uma concessão dessas forças.

    Neste ponto, o grande desafio é inverter esta equação, mostrando que, em uma democracia, as forças militares existem desde que em respeito às regras do jogo, ou seja, elas é que são uma concessão da democracia. Afinal de contas, quem garante que não atuarão enquanto militares se sucumbirem enquanto políticos?

    Novamente, uma ameaça à Constituição de 1988.

    É imprescindível, portanto, o debate feito pela Plataforma, no sentido de que a democracia como foi constituída em 1988 encontra-se sob ameaça, logo, a luta pela reforma do sistema político está na ordem do dia e representa a resistência democrática e popular.

    Marcel Farah é Educador Popular

  • Carta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

    Carta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

    A sociedade civil organizada e movimentos sociais, por meio da Frente Parlamentar Mista  em Defesa da Democracia e Direitos Humanos com Participação Popular, movidos pelo ímpeto de defesa dos direitos fundamentais, sobretudo das populações mais vulneráveis, vêm, à CNBB, apresentar suas preocupações quanto aos Projetos de Lei n. 881/2019 e 882/2019 em tramitação na Câmara dos Deputados, bem como quanto aos Projetos de Lei do Senado n. 1.864/2019 e 1.865/2019, popularmente denominados “Pacote Moro” e/ou “pacote anti-crime” e solicitar o engajamento da CNBB.

    O “pacote anti-crime”, apresentado pelo Ministério da Justiça ao Congresso Nacional, contém apresenta de alterações ao Código de Processo Penal, Código Penal, Lei de Execução Penal e se propõe a enfrentar a corrupção e o crime organizado, a partir do recrudescimento penal e da relativização dos direitos e garantias individuais.

    Os projetos estão com tramitação avançada: na Câmara dos Deputados foi composto um Grupo de Trabalho para conduzir audiências públicas e analisar as propostas e, no Senado Federal, já possuem relatores designados e, a princípio, tramitarão somente pela Comissão de Constituição e Justiça (em apreciação terminativa), sem qualquer discussão aprofundada.

    As fórmulas primordialmente baseadas recrudescimento penal estão sendo experimentadas há anos pela sociedade brasileira e têm se mostrado ineficazes e, na prática, ensejado o aprofundamento da insegurança pública e da violência contra a população periférica, incluindo o encarceramento em massa.

    A ampliação das excludentes de ilicitude para policiais, um dos itens de destaque da proposta em comento, vai de encontro à necessidade de adoção de medidas voltadas à diminuição da morte de civis por agentes de segurança pública, com atenção à evidente seletividade no que toca ao exercício da violência letal por parte desses agentes. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Núcleo de Estudos da Violência da USP mostram que, em 2017, apenas no Estado de São Paulo, 19,5% das mortes violentas foram provocadas por policiais, sendo que três quartos desse contingente é composto por jovens negros. Tal número, no entanto, é inferior ao real e de difícil aferição em escala nacional, dada a subnotificação, especialmente nos casos envolvendo a associação de agentes de segurança pública e grupos de extermínio ou milícias.

    A inclusão do “medo, surpresa e violenta emoção” como possíveis causa de redução ou isenção de pena, ampliam a discricionariedade do judiciário e podem contribuir para a ampliação da violência contra a mulher – retomando a tese da legítima defesa da honra, por exemplo. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras e uma média de 13 mulheres assassinadas por dia no país. Os dados são do Atlas da Violência 2018, que aponta ainda que, em dez anos, entre 2006 e 2016, observou-se um aumento de 6,4% na taxa de homicídios de mulheres. A taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3%) do que entre as não negras (3,1%) — uma diferença de 71%.

    Diante ainda desse quadro, a adoção de medidas de estímulo à posse e porte de armas de fogo, responsáveis por mais de 70% das mortes violentas no país, merece também especial destaque. Há o risco de aumento dos feminicídios também pela ampliação da posse de armas, dado o fato de que a maioria desses delitos ocorre em ambiente doméstico, além da precarização da atividade de segurança pública, a partir dos riscos que a política de confronto traz à vida dos policiais.

    Vale destacar ainda a inadequação da adoção de mecanismos negociais como solução para a ineficiência e morosidade do sistema de justiça criminal brasileiro. A proposta viola a garantia constitucional do devido processo legal e ignora a ausência de efetivo controle sobre a atividade do Ministério Público. Importar o mecanismo de acordos penais, previstos em legislações estrangeiras, desconsiderando as diferenças entre os sistemas jurídicos dos países, agravará o superencarceramento.

    Outro problema da proposta apresentada pelo Ministério da Justiça está na inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, após a condenação em segunda instância ou mesmo em primeiro grau, no caso do procedimento do júri. Diante do número considerável de provimento de recursos pelos Tribunais Superiores, a execução antecipada é um caminho aberto para o aumento de casos de erros do judiciário.

    O aumento dos lapsos para progressão de regime – e a vedação da progressão em alguns casos – viola o princípio constitucional da individualização das penas e ignora o crescimento exponencial das taxas de aprisionamento no Brasil, especialmente por crimes menos graves. A proposta contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que valoriza o sistema progressivo de penas (Súmula Vinculante 26 e HC 82.959). A vedação da liberdade provisória e progressão de regime a pessoas com conduta criminosa considerada “reiterada ou habitual”, poderá ter impacto significativo no encarceramento de acusados da prática de delitos leves, como mulheres em situação de vulnerabilidade social e usuários de drogas.

    As medidas de endurecimento da execução das penas, como os modelos de segurança máxima ou os que implicam em isolamento, restrição de visitas e monitoramento indiscriminado de conversas (com advogados, familiares, representantes religiosos, etc), bem como a obstrução de saídas temporárias, também objeto dos projetos de lei, violam direitos e garantias constitucionais, incluindo de familiares, tendo se mostrado problemáticas e inefetivas nos países em que foram empregadas.

    O “pacote anti-crime” foi elaborado sem qualquer participação ou consulta à sociedade civil e a integrantes do sistema de justiça, carecendo de efetiva construção democrática, de embasamento teórico e de análise de impacto social e econômico.

    Não olvidamos que a violência é uma realidade que hoje assola o país, contudo temos claro que as estratégias para o enfrentamento devem ser consistentes e embasadas em pesquisas empíricas, observando os direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal e nos tratados internacionais de Direitos Humanos.

    A complexidade e magnitude dos problemas em questão requerem a construção de respostas sistêmicas e sofisticadas, que passam pela implementação de direitos sociais, pela discussão das competências federativas e reclamam um amplo planejamento e uma reorganização estrutural da governança, gestão e controle social dos órgãos de segurança pública, do sistema prisional e do sistema de justiça criminal.

    A insistência em soluções calcadas na ampliação do encarceramento revela despreocupação com o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional, cuja superlotação tem servido menos à redução da violência e mais ao recrutamento de pessoas em situação de vulnerabilidade pelas facções que se pretendem ver desarticuladas.

    Desta feita, as entidades e Parlamentares aqui presentes, por meio da Frente Parlamentar Mista com Participação Popular em Defesa da Democracia e Direitos Humanos, conclamam, por fim, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil a se unirem a nós na luta em defesa aos direitos fundamentais, os quais encontram-se vilmente ameaçados por tais projetos de lei que, repisa-se, não devem prosperar.

    Brasília, 03 de abril de 2019.

    Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e Direitos Humanos com Participação Popular

  • Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964

     

    Inventário da violência

    Do Prof. Dr. Fernando Altmeyer da PUC-SP  já foram publicadas várias matérias de cunho histórico e estatístico. É conhecido por sua seriedade. Desta vez, é importante que leiamos o que recolheu de maldades e barbaridades que a ditadura civil-militar-empresarial produziu em 21 anos de sua vigência.  Consciência da verdade, da justiça e sobretudo da memória de dor exigem/clamam que enfrentemos a vontade diabólica do atual presidente  que pretende celebrar o golpe após 55 ano de uma sangrenta ditadura  imposta em 31 de março de 1964.

    Seria como se Angela Merkel obrigasse celebrar a figura de Adolf Hitler e Putin a figura de Stalin, com os horrores que ambos e outros cometeram contra a humanidade e a dignidade humana. Desta forma somos, como cidadãos, degradados por um Presidente que deveria, por ofício, representar valores humanitárias e democráticos e respeitosos das vítimas, de ambos os lados,  pois houve excessos de ambas as partes, dos que reprimiam e dos que eram reprimidos. Ocorre que a violência repressiva  provinha  dos agentes do Estado de exceção que, por dever, como Estado, deve proteger  o cidadão e não persegui-lo, torturá-lo, fazê-lo desaparecer e finalmente assassiná-lo.

    Brasil Nunca Mais
     é o livro publicado pelo Card.Paulo Evaristo Arns de São Paulo.  A singularidade deste livro que o torna insuspeito reside no fato de que foi escrito estritamente a partir de documentos produzidos pelas próprias autoridades encarregadas da repressão. Não vinham das vítimas das torturas mas dos produtores das torturas em nome do Estado de Segurança Nacional em processos do Superior Tribunal Militar (STM), num total que ultrapassa um milhão de páginas de mais de 707 processos completos e de outros incompletos.

    Dai a importância deste breve inventário dos horrores que a ditadura impôs ao povo brasileiro produzido acuradamente pelo Prof. Fernando Altmeyer Jr. Ele vem comemorado pela paranóia do atual presidente que não reconhece o fato da ditadura e que disse e repetiu:”a ditadura cometeu um erro: torturou quando devia ter fuzilado os subversivos”.  Aí não temos mais palavras. A ignomínia é demasiadamente grande para ser pensada e refutada.

    Brasil, Nunca Mais (1985 pela Editora Vozes) foi o título do livro que o Cardeal Arns apresentou em nome da Igreja diante do mundo inteiro os horrores das salas de tortura mas no sentido da paz e para que nuca mais se repita esta tragédia e se supere a banalidade do mal. Lboff

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    Inventário da violência praticada durante a ditadura cívico-militar-empresarial desde 1.4.1964: 55 anos de dor, amnésia, injustiça e sofrimentos de todo o povo brasileiro:

    500.000 cidadãos investigados pelos órgãos de segurança
    200.000 detidos por suspeita de subversão
    50.000 presos entre março e agosto de 1964
    11.000 acusados em julgamentos viciados de auditorias militares
    5.000 condenados
    10.000 torturados no DOI-CODI de São Paulo
    40 crianças presas e torturadas no DOI-CODI paulistano
    8.300 vítimas indígenas de dezenas de etnias e nações
    1.196 vítimas entre os camponeses
    6.000 mil apelações ao STM que manteve as condenações destes 2.000 casos
    10.000 brasileiros exilados
    4.882 mandatos cassados
    1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos
    1.312 militares reformados compulsoriamente
    1.202 sindicatos sob intervenção do Estado e do Judiciário cúmplice e inconstitucional
    248 estudantes expulsos de universidades pelo famigerado decreto ditatorial numero 477
    128 brasileiros e 2 estrangeiros banidos sendo alguns sacerdotes católicos …
    4 condenados à morte (pena comutada para prisão perpetua)
    707 processos políticos instaurados pela Justiça militar em diversas Auditorias
    49 juízes expurgados, três deles do Supremo Tribunal Federal
    3 vezes em que o Congresso Nacional foi fechado pelos generais ditadores
    7 Assembleias Legislativas postas em recesso
    Censura prévia a toda a imprensa brasileira

    434 mortos pela repressão
    144 desaparecidos
    126 militares, policiais e civis mortos em ações contra a resistência à ditadura
    100 empreiteiras e bancos envolvidos em escândalos abafados pelos militares
    Reimplantação do trabalho escravo nas fazendas do Brasil com o beneplácito dos governos militares.
    Sucateamento das Universidades pela imposição do programa MEC-USAID
    Destruição do movimento social brasileiro
    Fim das organizações da sociedade civil como UNE, Centros de Cultura, Ligas Camponesas, JUC, Agrupamentos e partidos de esquerda.
    Corrupção em todos os níveis por grupos militares e cobrança de propinas para as grandes obras.
    Submissão aos interesses norte-americanos pela presença da CIA e de torturadores treinados na Escola das Américas em todos os órgãos policiais e militares.
    Destruição das Guardas municipais e estaduais e militarização das policias
    Domínio da Lei de Segurança Nacional e propaganda da Ideologia de Segurança Nacional.
    Expansão do poder de empresas beneficiarias do golpe como redes de TV, jornais pro-ditadura e grupos econômicos que financiaram a tortura e a repressão.

    21 anos de ditadura e escuridão com a destruição das vias democráticas e o vilipêndio da Constituição e da Liberdade em nome do Estado autocrático e destrutivo da nação brasileira.
    Construção de obras faraônicos como Transamazonica, Ponte rio-Niteroi, Itaipu e outras com desvio de vultosas quantias do erário publico para empresas e corruptos do governo federal e estadual.
    Instauração de senadores e prefeitos biônicos.
    Criação de locais de tortura e casas da morte, como por exemplo, a de Petrópolis-RJ.
    Instalação de campos de concentração em território nacional usando de técnicas nazistas.
    Pagamento e manutenção de imensa rede de arapongas e informantes das forças repressivas para denunciar os que lutavam pela democracia.
    Apoio de médicos para a realização da tortura e para fazer laudos falsos das mortes em prisões e locais do Estado brasileiro.
    Perseguição e morte de brasileiros fora do Brasil em ligação com as forças ditatoriais de outros países do Cone Sul.
    Acolhida de ditadores de outros países como Alfredo Stroessner do Paraguai.
    Financiamento de grupos paramilitares.
    Apoio a atos terroristas e incêndio de prédios (UNE), bancas de jornais, redações, igrejas, sindicatos, e apoio às milícias de latifundiários para extermínio sistemático e impune de índios e
    posseiros em toda a Amazônia e Nordeste brasileiro.
    Campanha de difamação contra bispos, pastores, líderes políticos em canais de televisão para indispor a opinião pública e favorecer a repressão.
    Proibição de citar o nome de Dom Helder Câmara em qualquer órgão de imprensa do Brasil por mais de 20 anos, quer notas positivas quer negativas.
    Bombas explodidas em todo o território nacional e em particular no episódio do RioCentro a mando de generais e grupos terroristas dentro das Forças Armadas.
    Perseguição aos artistas brasileiros.
    Formação da ARENA, partido de direita manipulado pelos militares e elite financeira do Brasil.
    Repressão e perseguição da UNE e invasão da PUC-SP pelo coronel Erasmo Dias.

     Fontes: relatórios da CNV, dados de Luiz Claudio Cunha e informes do
    gabinete do Deputado Adriano Diogo, da Assembleia Legislativa do
    Estado de São Paulo, dados do livro Brasil, Nunca Mais.

    26/03/2019 do site de Leonardo Boff

  • A armadilha da Reforma da Previdência

    JEFERSON MIOLA – Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial, publicou em seu blog (19.03.2019) uma análise bastante lúcida que fazemos questão de repercutir.

    O objetivo da Reforma da Previdência, em discussão na Câmara de Deputados, é drenar, em 10 anos, com a “nova previdência,” R$ 1 trilhão para o sistema financeiro, sob o pretexto que o sistema de seguridade social implantado pela Constituição Cidadã de 1988 está falido.
    Segue o artigo:

    Como financiar a previdência quando o trabalho desaparece e a riqueza cresce: capitalização individual ou taxação da riqueza?

    Por Jeferson Miola

    O ataque destrutivo do governo Bolsonaro aos direitos previdenciários não tem como objetivo ajustar o sistema de aposentadorias e pensões às mudanças demográficas, tecnológicas e laborais que ocorreram nas últimas décadas no Brasil.

    Paulo Guedes, o especulador assentado no Ministério da Economia, deixou claro que o objetivo primordial da PEC 6/2019 é substituir o sistema vigente, de repartição simples, baseado na solidariedade intergeracional e sustentado por toda sociedade por meio de impostos, taxas e contribuições, pelo regime de capitalização individual [artigo 201 da PEC], que no médio prazo pode desviar os R$ 350 bilhões anuais das contribuições de empregadores e trabalhadores para a especulação financeira.

    É uma cifra extraordinária, superior ao PIB de 140 países. Esse valor deixaria de ser aportado ao sistema público e solidário de previdência social – inviabilizando atuarialmente o regime de repartição simples – e entraria na engrenagem dos fundos financeiros da agiotagem internacional, sem nenhuma garantia de proteção vitalícia dos trabalhadores, sobretudo na velhice.

    A estratégia do governo Bolsonaro é abrir espaço fiscal para, em 10 anos, drenar R$ 1 trilhão para o sistema financeiro, sob o pretexto da “economia” gerada pela falaciosa “nova previdência”.

    O regime de capitalização, em que a Previdência deixa de ser uma política pública de proteção social para ser um negócio financeiro, não deu certo em nenhuma parte do mundo. No Chile, é causa do mais elevado índice de suicídios de idosos do mundo.

    Velhos e falsos mantras

    Os defensores do desmonte previdenciário repetem velhos e falsos mantras. Sustentam que [i] a previdência é deficitária e que [ii] os gastos previdenciários são a causa principal do desequilíbrio das contas públicas.

    A CPI da Previdência [relatório] demonstrou que a Seguridade Social é superavitária. Estudo da ANFIP [Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal] também evidenciou que a Seguridade Social, como concebida na Constituição Federal, prevendo benefícios previdenciários e fontes correspondentes de financiamento, sempre foi superavitária. Para se garantir, portanto, o equilíbrio e a sustentabilidade do sistema previdenciário, basta respeitar a CF.

    Considerando-se as fontes de financiamento previstas na Constituição, no período de 2007 a 2015 a Seguridade acumulou superávit de 524,3 bilhões de reais, como demonstra o gráfico da  ANFIP:


    De outra parte, é desonesto culpar a Previdência pelo desequilíbrio fiscal. De 2005 a 2015, as despesas com previdência totalizaram R$ 2,957 trilhões. No mesmo período, o país dispendeu R$ 2,528 trilhões somente em juros da dívida, afora os gastos com amortização, confirmando-se como importante gargalo do orçamento da União:

    Apesar do montante de juros pagos nesse período, o saldo da dívida, que em 2005 estava na casa dos R$ 2,08 trilhões, em 2015 disparou para R$ 4,14 trilhões – é como enxugar gelo.

    A recessão econômica e o desemprego comprometem o equilíbrio da seguridade social, porque diminuem a arrecadação federal e os aportes previdenciários. A grande urgência nacional, por isso, deveria se concentrar na reconstrução da economia brasileira e no enfrentamento dos problemas estruturais da dívida e da injustiça tributária, não na destruição do sistema previdenciário.

    Modelo proposto por Bolsonaro é genocida

    É pacífico que a política previdenciária que o mundo contemporâneo conhece, inspirada na Alemanha de Bismarck do final do século 19, requer atualizações para preservar um sistema de proteção social capaz de assegurar dignidade e justiça para trabalhadores quando concluem o longo ciclo de vida dedicado ao trabalho – nunca inferior a 35, 40 ou mais anos de trabalho.

    Qualquer sistema público, para garantir proteção vitalícia do trabalhador, deve ser atualizado vis a vis as mudanças demográficas, a expectativa de vida ao nascer, a expectativa de sobrevida, a dinâmica do mercado de trabalho e, em especial, a produção e reprodução social da riqueza.

    O sistema de capitalização proposto por Bolsonaro, todavia, ao invés de proteger o trabalhador por toda a vida, tem prazo de validade limitado, pois dura apenas enquanto durar o “saldo disponível” da “conta individual de investimento” do trabalhador. Se o fundo vai a falência, o que não é incomum nas crises cíclicas do capitalismo, o prejuízo irreversível para o trabalhador pode chegar antes mesmo da aposentadoria.

    A natureza macabra do sistema de capitalização pode ser facilmente comprovada. Tome-se por exemplo o trabalhador que se aposenta aos 60 anos e “consome” o “saldo disponível” da “conta individual de investimentos” depois de 10 anos, ao alcançar a idade dos 70 anos. A partir daí, como esse aposentado já não possuirá “saldo disponível” na sua “conta individual de investimento”, ele então ficará desamparado, sem cobertura previdenciária pelo período remanescente de vida. Ou seja, torna-se um indigente – e, então, a saída é abreviar tragicamente sua vida.

    O efeito dessa realidade, no Chile, é o suicídio recorde de idosos desesperados e desalentados. O regime de capitalização, que foi imposto no país andino pelo sanguinário Pinochet em 1981, seguindo as idéias de economistas da mesma escola do Paulo Guedes, é um modelo genocida.

    O professor da Universidade do Chile e conselheiro regional da OIT, Andras Uthoff, explica que o regime de capitalização transformou chilenos adultos de classe média em idosos pobres [ler aqui]. Ele lembra que

    quando a reforma foi implantada, prometia-se uma aposentadoria de 70% da média dos salários que a pessoa recebera durante a vida ativa. Hoje em dia, as taxas de reposição são em média de 35%. Quer dizer que a renda dessas pessoas diminuiu 65%, é uma mudança muito grande. Você vive a vida de trabalhador como classe média. Ao sair dela, se torna pobre”.

    Antecipando o fracasso da proposta do Bolsonaro, Uthoff alerta que, mesmo com os subsídios estatais criados por Bachelet em 2008 para tentar corrigir a crueldade do regime de capitalização, atualmente 79% das pensões estão abaixo do salário mínimo chileno [que equivale a 1.810 reais], e “44% dos aposentados vive abaixo da linha de pobreza, ganhando menos de 600 reais por mês”.

    A solução é taxar a riqueza para pagar aposentadorias e pensões

    Pesquisa realizada em 2018 pelo Laboratório de Aprendizado de Máquina em Finanças e Organizações [LAMFO] da UNB projeta que até 2026, ou seja, em apenas 7 anos, 54% das profissões formais no país poderão ser substituídas por robôs e programas de computador [aqui].

    Se esse prognóstico se confirmar, isso corresponderia ao desemprego – ou desocupação – de cerca de 30 milhões de trabalhadores formais, que serão substituídos por robôs. Ao exército dos atuais 13 milhões de desempregados e outros milhões de desalentados, em poucos anos se adicionará esse enorme contingente.

    Como a pesquisa abrange apenas as profissões substituíveis por robôs, essa estimativa deve crescer de modo significativo se consideradas também as atividades humanas passíveis de substituição por inteligência artificial, o que ocorrerá de maneira intensiva em distintas áreas do conhecimento, como das profissões da saúde, de gestão, contabilidade, finanças e outras.

    Outro estudo, do sociólogo italiano Domenico De Masi, chega a resultado semelhante à pesquisa do LAMFO/UNB. De Masi avalia que até 2030, ou seja, no curso de 1 década, cerca de 60% dos postos de trabalho que hoje conhecemos não mais existirão.

    O desaparecimento do trabalho humano é uma característica marcante da fase atual do capitalismo monopolista. O desaparecimento do trabalho, contudo, não compromete a acumulação de riqueza. Ao contrário disso, a riqueza gerada aumenta continuamente, porém, fica cada vez mais concentrada.

    Com o avanço da robótica, da inteligência artificial, da nanotecnologia e das novas tecnologias, será necessário menos quantidade de trabalho humano para se produzir mais bens, serviços e riquezas.

    De Masi considera contraproducente, por isso, se continuar taxando o trabalho para sustentar o sistema de aposentadorias e pensões. No entendimento dele, é preciso taxar a riqueza:

    Quanto mais se aumentam os ganhos de produtividade com tecnologia, mais cresce a riqueza dos empreendedores. Oito pessoas têm metade da riqueza da humanidade. Isso não pode continuar ao infinito. Na sociedade industrial, foi dado ao trabalho uma importância que antes não havia e o ser humano foi tratado como máquina. Agora, esse trabalho pode ser relegado a elas [as máquinas]. Não serão mais os trabalhadores a serem taxados, mas sim a geração de riqueza produzida pela tecnologia.

    Ao questionar sobre como serão pagas as pensões e aposentadorias se haverá redução de postos de trabalho e da quantidade de pessoas trabalhando, o próprio De Masi responde:

    Teremos mais riqueza. Hoje, quem trabalha paga pelo que recebem os pensionistas e aposentados. No futuro, como os trabalhadores serão sempre menos e a riqueza produzida será sempre maior, o recolhimento deverá ser feito sobre a base da riqueza e não dos trabalhadores. É uma revolução. Haverá menos trabalhadores, mas produzirão muito mais riqueza [aqui]”.

    É irrealista, nesse sentido, em pleno século 21, se continuar pensando financiar o sistema de aposentadorias e pensões centralmente através da tributação do trabalho.  A solução para o sistema previdenciário do mundo contemporâneo é taxar a riqueza produzida para financiar o pagamento das aposentadorias e pensões.

    Os privilégios tributários obscenos dos ricos no Brasil

    A tributação da riqueza no Brasil só não é menos obscena que a obscena concentração da renda e da riqueza socialmente produzida.

    Um punhado de acionistas dos Bancos Itaú e Bradesco, por exemplo, receberam R$ 43 bilhões em dividendos no exercício de 2018, porém não tiveram de desembolsar um único centavo sequer de impostos.

    Os proprietários, sócios ou executivos de empresas que recebem 100 mil, 400 mil, 1 milhão ou 5 milhões por mês via distribuição de dividendos, não pagam nada de imposto, ao passo que o trabalhador que recebe R$ 4.664,68 de salário mensal desconta 27,5% de imposto de renda.

    Essa pornografia tributária é uma obra inesquecível brindada à oligarquia rentista e parasitária por FHC no primeiro ano do período do seu governo [1995].

    Os proprietários rurais, que se beneficiam da valorização astronômica das terras que servem de reserva de valor, ainda são beneficiários pela valorização histórica das commodities, mas pagam ao redor de R$ 800 milhões de ITR [Imposto Territorial Rural] ao ano, ou irrisórios 0,02% das receitas da União. Além disso, os produtores rurais são desonerados dos impostos de exportações. Qualquer cidadão urbano paga em IPTU e IR, proporcionalmente, muito mais que um latifundiário paga de ITR e outros impostos diretos.

    O imposto sobre herança, de outra parte, representou 0,12% do PIB em 2016, bastante inferior à Bélgica, que arrecadou 0,8%. O economista André Calixtre estima que

    a aplicação do Imposto sobre Grandes Fortunas tenha potencial de arrecadar mais de R$ 70 bilhões (incidindo sobre patrimônios acima de R$ 100 milhões), o que teria efeito desejável de qualquer imposto sobre estoques: os patrimônios tendem a se redistribuir nos anos seguintes, reduzindo gressivamente o potencial arrecadatório, mas cumprindo seu papel de reduzir desigualdades rompantes” [aqui].

    São notórios, além disso, os mecanismos de desonerações tributárias, de isenções e favores fiscais concedidos ao capital sem o cumprimento de contrapartidas como expansão produtiva, ampliação de postos de trabalho e preservação ambiental.

    Se chegou a hora de mudar a previdência – e isso é duvidoso, a se considerar os velhos e falsos mantras repetidos pelo governo –, é porque então chegou a hora de se taxar a riqueza gerada pelo trabalho humano e pela tecnologia para pagar as aposentadorias e as pensões da população.

    No exaustivo estudo A reforma tributária necessária [aqui], da ANFIP, estão expostas diretrizes para uma reforma tributária que promova justiça tributária, ajude a diminuir as disparidades sociais e regionais, e assegure o financiamento sustentável de políticas Estado que têm sentido civilizatório.

    O regime de capitalização individual proposto na PEC 6/2019 é o germe da barbárie que, se adotado no Brasil, transformará o país no campeão mundial de suicídios de idosos, desbancando o Chile desse posto vergonhoso.

    JEFERSON MIOLA – Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.

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