Desde o início deste governo, foi concedida publicamente – de forma subliminar, indireta, não explícita – uma “licença para matar”.
No Brasil não há pena de morte na lei, mas, na prática, todos os dias, nas periferias das cidades e no campo, jovens negros e negras, LGBTQI, lideranças e membros de povos indígenas, são mortos pela polícia, por milícias, por jagunços ou por particulares. No caso dos jovens periféricos, basta a justificativa de serem suspeitos de ligação com o tráfico de drogas.
Um primeiro sinal da atitude de Bolsonaro frente ao assassinato de adversários surgiu quando da execução, em março de 2018, da vereadora do PSOL Marielle Franco – negra, favelada, defensora dos direitos humanos, da população LGBTQI. Todos os demais pré-candidatos às eleições se posicionaram contrários ao assassinato, enquanto Bolsonaro ficou em silêncio. Semanas depois, em entrevista ao jornal O Globo, Bolsonaro declarou: “Para a democracia, não significa nada. Mais uma morte no Rio de Janeiro e temos que aguardar a investigação” (https://oglobo.globo.com/brasil/caso-marielle-presidenciaveis-comentam-morte-de-vereadora-22619562).
A “licença para matar” veio sendo subliminarmente pregada durante a campanha presidencial de 2018, quando a liberação da posse e do porte de armas foi a principal proposta do candidato Bolsonaro. Seus discursos foram marcados pelo ódio aos adversários, para os quais reservava o exílio, a prisão, a tortura ou a morte. Como no discurso dirigido aos seus apoiadores na Avenida Paulista, às vésperas do segundo turno, em 21/10/2018:
“Só que a faxina agora será muito mais ampla. (…) Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.
Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia [local clandestino de tortura e execução na época da ditadura militar].
Será uma limpeza nunca visto (sic) na história do Brasil.
Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês”.
Neste período, houve vários casos de eleitores de outros candidatos agredidos – eventualmente, mortos, como Mestre Moa do Katendê – por apoiadores de Bolsonaro.
Após a posse, em janeiro, o novo governante destacou-se por jamais tomar posição contra eventuais agressões físicas ou assassinatos cometidos pela polícia, pelas Forças Armadas, por milicianos ou por particulares contra povos indígenas, negros/as, mulheres, membros da população LGBTQI, habitantes de bairros periféricos ou favelas e adversários políticos.
Recentemente, o massacre na favela de Paraisópolis, em São Paulo, mostrou o grau de discriminação e de desprezo da polícia contra os moradores destas comunidades, um modo de agir que também tem sido característico do Rio de Janeiro no atual governo estadual.
Um caso notório foi a morte de um músico confundido com um bandido por militares no Rio de Janeiro, em abril: seu carro, no qual viajava com a família, recebeu 80 tiros. Um catador que foi ajudar a família também foi morto. As Forças Armadas não pediram desculpas e o presidente defendeu o Exército, tratando o caso como um mero “incidente”.
Mas, em termos de alvo preferencial, foram os povos indígenas as principais vítimas: desde invasão de terras, atentados, agressões até assassinatos – alguns com características hediondas (como esquartejamento). O governo federal tem responsabilidade direta sobre este comportamento discriminatório e hostil em virtude de seu discurso não reconhecer qualquer direito a estes povos e mesmo estimular o ódio contra eles.
Não é a primeira vez que indígenas são assassinados, mas é a primeira vez que isso ocorre com respaldo oficial. Nenhuma recriminação, denúncia ou protesto veio da parte da autoridade máxima do país em relação a estes crimes.
Uma frase, em particular, do discurso da Avenida Paulista, é significativa do que viria depois: “Vocês (…)verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês”. Estava ali prenunciada a fórmula do “excludente de ilicitude” que iria integrar o projeto anticrime do ministro da Justiça Sérgio Moro. Seria uma forma de proteger a polícia em casos de violência. Felizmente, até agora, não foi aprovado pelo Congresso.
Pouco tempo depois de iniciado o governo, algumas personalidades políticas – é o caso do ex-deputado Jean Wyllys e da escritora Marcia Tiburi – decidiram pelo exílio para evitar a concretização das ameaças de morte que estavam recebendo. O governo não ofereceu nada para garantir a vida destas pessoas. Era uma forma de dizer que os possíveis agressores estariam protegidos.
O país deixou de ser um lugar seguro para boa parte de seus cidadãos (sejam indígenas, negros/as, LGBTQI, mulheres, sejam aqueles que não pensam como ou não apóiam o governo): os direitos civis não estão garantidos. O artigo 3° da Declaração Universal dos Direitos Humanos não é compromisso do governo brasileiro atual: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
Desrespeito aos direitos humanos
O desrespeito aos direitos humanos não se limitou à disseminação do ódio. Os ataques contra as universidades, a cultura, as artes, cresceram desde o começo do governo.
A suspeição sobre as universidades não teve início em 2019, vieram antes. Em 2017, cinco universidades federais foram vítimas de invasões policiais: a Universidade Federal de Santa Catarina, cujo reitor, Luiz Carlos Cancellier, e mais 6 pessoas foram presas em 14 de setembro, por ordem de uma delegada da Polícia Federal, por suposta prática de improbidade administrativa. 105 policiais foram empregados para prendê-los. O reitor foi preso com seus colegas e passaram por um ritual humilhante de encarceramento. Ao ser solto no dia seguinte, graças a habeas corpus, foi proibido de entrar na sua própria universidade. Dias depois, se suicidou.
Dois anos e três meses depois da operação da Polícia Federal, em julho de 2019, o Ministério Público Federal ofereceu uma denúncia contra 13 pessoas, dentre as quais não se encontrava o reitor. Até hoje, ninguém foi responsabilizado pela sua morte.
As outras universidades alvo de operação policial foram a Universidade Federal do Paraná, a Universidade Federal de Juiz de Fora, a Universidade Federal do Triângulo Mineiro e a Universidade Federal de Minas Gerais.
Às vésperas do 2º turno das eleições presidenciais, entre os dias 23 e 26 de outubro de 2018, 13 universidades públicas de diferentes estados foram objeto de ações policiais, algumas a mando do TRE local, a partir de denúncias de correligionários da campanha de Bolsonaro ou para retirar faixas expressando repúdio ao fascismo.
Os ministros da Educação do governo Bolsonaro, tanto Ricardo Vélez, que ficou apenas três meses no cargo, mas sobretudo Abraham Weintraub, mostraram-se críticos à universidade pública. Weintraub atribuiu às universidades federais toda sorte de malfeitos, inclusive produção de drogas alucinógenas – sem qualquer prova.
E sistematicamente declara seu desprezo em relação aos professores. A recente chamada pública para denúncias de estudantes contra professores nas escolas nos faz relembrar práticas dos totalitarismos estalinista, nazista e fascista.
A cultura é outro campo que sofre sucessivos ataques por parte dos membros do governo. De um lado, as verbas públicas para a produção de eventos culturais são reduzidas, as leis de apoio à cultura são criticadas, de outro lado, artistas de todo tipo, inclusive os reconhecidos pelo público, são desrespeitados e difamados por autoridades ou por apoiadores do governo, em ataques virtuais massivos (“milícias digitais”) – sem que o governo saia em defesa dos artistas. Além disso, produções culturais são alvo de censura ou sofrem ameaças, em alguns casos levando os organizadores a suspender o espetáculo por falta de segurança.
Em resumo: as liberdades de opinião, de pensamento e de expressão não estão garantidas.
Reuniões e debates públicos vêm sendo alvo de variadas formas de “espionagem”, com policiais ou militares filmando ostensivamente tais eventos, como meio de intimidação dos presentes e/ou dos participantes das mesas, inclusive dentro de universidades.
Por outro lado, multiplicam-se casos de arbitrariedade policial ou por parte de órgãos do judiciário local contra pessoas ou grupos defensores dos direitos humanos, ambientalistas, membros de ONGs ou de movimentos sociais. Foi o que aconteceu com militantes do MTST de São Paulo, que foram arbitrariamente presos por vários meses. Assim como ocorreu recentemente a prisão de quatro brigadistas anti incêndio em Alter do Chão (Santarém, Pará), acusados, sem provas, de provocarem queimadas na floresta.
“Fake news”
A campanha eleitoral de 2018 foi marcada por uma utilização fenomenal de falsas notícias para difamar o candidato adversário. Os dados levantados até agora por alguns jornais e pela CPMI das “fake news” mostram que se tratou de uma produção massiva. Mas precisamos de dados mais precisos para comprovar isto. No entanto, parece não haver interesse dos principais órgãos responsáveis para investigar este crime que, pelo que sabemos, não foi interrompido após as eleições.
Mas não precisamos ir tão longe. As falsas notícias têm sido usadas diariamente pelo presidente e por ministros do governo para atacar seus adversários, a oposição, jornalistas e mesmo antigos correligionários, assim como para evitar as críticas feitas ao próprio governo. Tais acusações são feitas sem qualquer responsabilidade, pois dispensam apresentação de provas, sequer indícios. Para citar um único exemplo: a acusação de que eram ONGs as responsáveis pelas queimadas na Amazônia ou que o ator Leonardo Di Caprio financiava tais empreitadas.
Semear a dúvida, espalhar confusão, desprestigiar a busca da verdade, confundir os cidadãos, tem sido uma marca constante deste governo. Transparência e publicidade das ações é o que menos se tem verificado. Processos contra adversários correm céleres enquanto aqueles envolvendo pessoas próximas ao presidente são extraordinariamente lentos.
Liberdade de opinião e de expressão
A liberdade de imprensa é frequentemente questionada pelo presidente, toda vez em que é objeto de alguma reportagem ou notícia crítica. O governo utiliza métodos de cerceamento e ameaça, especialmente através de medidas que possam atingir o financiamento dos meios de comunicação. Esta postura já estava anunciada no discurso de 21 de outubro de 2018:
“Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo. (…) A Folha de S.Paulo é o maior (sic) fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo”.
Nas últimas semanas, a possibilidade de reinstituir o AI-5 (Ato Institucional no. 5, de 13 de dezembro de 1968) foi aventada várias vezes, inclusive por um filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, e pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes. É possível que as grandes manifestações em defesa de direitos que ocorreram em vários países da América Latina e Caribe – Equador, Chile, Colômbia, Bolívia, Haiti, Porto Rico –, na França, assim como a vitória de um governo progressista nas eleições argentinas, tenham deixado membros do governo inseguros, com receio de que manifestações semelhantes também ocorram por aqui.
Não estamos numa ditadura, mas há medidas e sinais cada vez mais evidentes de autoritarismo por parte do governo. Não estamos tranqüilos, muitos de nossos direitos não estão garantidos e estamos constatando uma nítida escalada neste processo.
Em dois livros publicados no ano passado, os autores – cientistas políticos – escrevem sobre: “Como as democracias morrem” e “Como a democracia chega ao fim”. Segundo eles, isto pode ocorrer quando líderes políticos autoritários, mesmo eleitos democraticamente, tomam medidas que na prática suprimem direitos e garantias democráticas e inviabilizam a liberdade de oposição (de opinião, de imprensa, de manifestação, de expressão artística, etc.).
A sociedade civil tem se manifestado a todo momento, há protestos e posicionamentos freqüentes de defensores dos direitos humanos, de ambientalistas, de movimentos de mulheres, de povos indígenas, do movimento negro/e quilombolas, de estudantes, professores e outras categorias. Mais que nunca, temos de deixar clara nossa oposição a qualquer forma de restrição da democracia e dos valores democráticos.
Mas, se as instituições que deveriam defender a democracia e denunciar as arbitrariedades em curso não o fizerem com a firmeza e a clareza que o momento exige, pode ser que amanhã seja tarde demais.
No entardecer de 22 de dezembro de 1988 o seringueiro e ativista ambiental Chico Mendes foi assassinado por um tiro de escopeta em frente à sua casa, na cidade de Xapuri, no Acre.
O sociólogo Michael Löwy, que vem trabalhando o tema do ecossocialismo, nos ajuda a recuperar a figura inspiradora desse mártir da Amazônia. Ele nos ajuda a resgatar o paradigma do Bem-Viver.
Segue o artigo publicado por Michael Löwy, 27/11/2013, blog Boitempo
A herança de Chico Mendes
A convergência entre ecologia e socialismo teve no Brasil um precursor na extraordinária figura de Chico Mendes, um lutador que pagou com sua vida seu compromisso com a causa dos povos da floresta amazônica.
A convergência entre ecologia e socialismo teve no Brasil um precursor na extraordinária figura de Chico Mendes, um lutador que pagou com sua vida seu compromisso com a causa dos povos da floresta amazônica. Chico se transformou numa figura lendária, um herói do povo brasileiro, mas o tratamento mediático de sua história tende a ocultar a radicalidade social e política de seu combate. Existem também tentativas infelizes de “cortar pela metade” sua herança política: ecologistas reconciliados com o capitalismo “esquecem” seu compromisso socialista, enquanto que socialistas atrasados negam a dimensão ecológica de sua luta.
Formado na cultura cristã libertadora das comunidades de base, o jovem seringueiro Francisco Alves Mendes Filho, nascido em 15 de dezembro de 1944, descobre o marxismo nos anos 1960 graças a um veterano comunista, Euclides Fernandes Tavora, antigo tenente de 1935, partidário de Luis Carlos Prestes, que, depois de ficar preso em Fernando de Noronha, se exilou na Bolívia, onde participou nas lutas populares; perseguido, foi morar na selva amazônica, na fronteira do Acre com a Bolívia. Este aprendizado marxista teve uma influência importante na formação das ideias políticas de Chico Mendes: em suas próprias palavras, o encontro com Tavora “foi uma das melhores ajudas e uma das razões pela qual eu julgo que estou em toda essa luta. Outros companheiros, infelizmente, naquela época, não tiveram o privilégio de receber uma orientação tão importante como a que recebi para o futuro”.1 Em 1975 Chico funda, junto com Wilson Pinheiro, o sindicato dos trabalhadores rurais de Brasileia, e, pouco depois, em 1977, o sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri, sua terra natal. No mesmo ano, é eleito vereador pelo MDB para a Câmara Municipal local, mas bem rapidamente se dá conta de que este partido não é solidário com suas lutas. É nesta época que ele vai inaugurar, com seus companheiros do sindicato, uma forma de luta não-violenta inédita no mundo: os famosos empates.São centenas de seringueiros, com suas mulheres e filhos, que se dão as mãos e enfrentam, sem armas, os bulldozers das grandes empresas interessadas no desmatamento, na derrubada das arvores. Algumas vezes os trabalhadores são derrotados, mas frequentemente conseguem parar, com suas mãos nuas, os tratores, bulldozers e motosserras dos destruidores da floresta, ganhando às vezes a adesão dos peões encarregados do desmatamento. Os inimigos dos seringueiros são os latifundiários, o agronegócio, as empresas madeireiras ou pecuárias, que querem derrubar as árvores para exportar a madeira e/ou para plantar mato no lugar da floresta, criando gado para a exportação – inimigos poderosos, que contam com a UDR, como braço político e, como braço armado, jagunços e pistoleiros mercenários, além de inúmeras cumplicidades na polícia, na Justiça e nos governos (local, estadual e federal). É a partir desta época que Chico Mendes começa a receber as primeiras ameaças de morte; pouco depois, em 1980, seu companheiro de lutas, Wilson Pinheiro, será assassinado. Para vingar este crime, que, como de costume, ficou impune, um grupo de seringueiros resolveu “justiçar” o fazendeiro mandante do assassinato.2 Chico Mendes é enquadrado pelo regime militar na Lei de Segurança Nacional, a pedido dos fazendeiros da região que procuravam envolvê-lo neste episodio. Varias vezes, em 1980 e 1982, ele é levado à julgamento diante de Tribunais Militares, acusado de “incitação à violência”, mas acaba sendo absolvido, por falta de provas.
Nestes primeiros anos de sua atividade sindical, Chico Mendes, socialista convicto, milita nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Decepcionado com este partido que, segundo seu depoimento, na hora da luta “se escondia atrás das cortinas”3, ele adere em 1979-80 ao novo Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula e seus companheiros, situando-se logo em sua ala esquerda, socialista. Sua tentativa de se eleger deputado estadual pelo PT em 1982 não tem sucesso, o que não é de surpreender, considerando pequena base eleitoral do partido nestes primeiros anos. Em 1985 ele organiza, com seus companheiros sindicalistas, o Encontro Nacional dos Seringueiros que vai fundar o Conselho Nacional dos Seringueiros; sua luta recebe o apoio do PT, da Pastoral da Terra, da CUT e do MST que se esta formando nesta época.
São nesses anos que o combate dos seringueiros e outros trabalhadores que vivem da extração (castanha, babaçu, juta) para defender a floresta vai convergir com o das comunidades indígenas e grupos camponeses diversos, dando lugar à formação da Aliança dos Povos da Floresta. Pela primeira vez seringueiros e indígenas, que tantas vezes se haviam enfrentado no passado, unem suas forças contra o inimigo comum: o latifúndio, o agro-business, o capitalismo agrícola destrutor da floresta. Chico Mendes definiu com as seguintes palavras as bases desta aliança: “Nunca mais um companheiro nosso vai derramar o sangue do outro, juntos nos podemos proteger a natureza que é o lugar onde nossa gente aprendeu a viver, a criar os filhos e a desenvolver suas capacidades, dentro de um pensamento harmonioso com a natureza, com o meio ambiente e com os seres que habitam aqui”.4
Chico Mendes era perfeitamente consciente da dimensão ecológica desta luta, que interessava não só aos povos da Amazônia, mas a toda a população mundial, que depende da floresta tropical (“o pulmão verde do planeta”):
“Descobrimos que para garantir o futuro da Amazônia era necessário criar a figura da reserva extrativista como forma de preservar a Amazônia. (…) Nós entendemos, os seringueiros entendem, que a Amazônia não pode se transformar num santuário intocável. Por outro lado, entendemos, também, que há uma necessidade muito urgente de se evitar o desmatamento que esta ameaçando a Amazônia e com isto está ameaçando até a vida de todos os povos do planeta. (…)
O que nós queremos com a reserva extrativista? Que as terras sejam da União e que elas sejam de usufruto dos seringueiros ou dos trabalhadores que nela habitam, pois não são extrativistas só os seringueiros.”5
A solução proposta, uma espécie de reforma agrária adaptada às condições da Amazônia, é de inspiração socialista, posto que se baseia na propriedade pública da terra, e no usufruto dos trabalhadores. É provavelmente nesta época que Chico diz à sua companheira de lutas Marina Silva : “Nega velha, isso que a gente faz aqui é ecologia. Acabei de descobrir isso no Rio de Janeiro”.6
Em 1987, organizações ambientalistas americanas convidam Chico Mendes para dar seu testemunho em uma reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento; sem hesitação, ele denuncia que o desmatamento da Amazônia era resultado dos projetos financiados pelos bancos internacionais. É a partir deste momento que ele se torna internacionalmente conhecido, recebendo, pouco depois, o Prêmio Ecológico Global 500, das Nações Unidas. Seu combate era ao mesmo tempo social e ecológico, local e planetário, “vermelho” e “verde”.
Pragmático, homem de terreno e de ação, organizador e lutador, preocupado com questões praticas e concretas – alfabetização, formação de cooperativas, busca de alternativas econômicas viáveis – Chico era também um sonhador e um utopista, no sentido nobre e revolucionário da palavra. É impossível ler sem emoção o testamento socialista e internacionalista que ele deixou para as gerações futuras, publicado depois de sua morte numa brochura do sindicato de Xapuri e da CUT :
“Atenção jovem do futuro, 6 de setembro do ano de 2120, aniversario do primeiro centenário da revolução socialista mundial, que unificou todos os povos do planeta, num só ideal e num só pensamento de unidade socialista, e que pôs fim à todos os inimigos da nova sociedade. Aqui ficam somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte. Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado”.7
Em 1988 o Encontro Nacional da CUT aprova a tese apresentada por Chico Mendes em nome do Conselho Nacional dos Seringueiros, com o titulo “Defesa da Natureza e dos Povos da Floresta”, que apresenta, entre suas reivindicações, a seguinte exigência, ao mesmo tempo ecológica e social: “pela imediata desapropriação dos seringais em conflito para a implantação de assentamentos extrativistas de modo a não agredir a natureza e a cultura dos povos da floresta, possibilitando a utilização autossustentável dos recursos naturais, incrementando tecnologias secularmente desenvolvidas pelos povos extratores da Amazônia…”.8 Ele obtém nesta época duas vitórias importantes: a implantação das primeiras reservas extrativistas criadas no Estado do Acre, e a desapropriação do Seringal Cachoeira, do latifundiário Darly Alves da Silva, em Xapuri. Chico atribuía grande significado a esta conquista: “A coisa mais importante para estimular a continuidade deste movimento foi a vitória dos seringueiros da Cachoeira. Esta vitória da Cachoeira teve uma repercussão positiva pra toda a região, pois os seringueiros estão conscientes de que eles lutaram contra o grupo mais forte, com assassinos sanguinários. Os seringueiros tinham consciência que estavam lutando com o esquadrão da morte e mesmo assim não temeram. Tivemos dias em que contamos com 400 seringueiros reunidos (…) em piquetes no meio da mata (…)”.9
Para a oligarquia rural, que tem, há séculos, o habito de “eliminar” – em total impunidade – aqueles que ousam organizar os trabalhadores para lutar contra o latifúndio, ele é um “cabra marcado para morrer”. Pouco depois, em dezembro de 1988, Chico Mendes é assassinado, em frente de sua casa, por pistoleiros a serviço dos Alves da Silva.
Por sua articulação entre socialismo e ecologia, reforma agraria e defesa da Amazônia, lutas camponesas e lutas indígenas, a sobrevivência de humildes populações locais e a proteção de um patrimônio da humanidade – a ultima grande floresta tropical ainda não destruída pelo “progresso” capitalista – o combate de Chico Mendes é um movimento exemplar, que continuara a inspirar novas lutas, não só no Brasil mas em outros países e continentes.
Hoje, princípios de 2005, a luta dos seringueiros continua, com altos e baixos. O prefeito de Xapuri e o governador do Acre são do PT e se enfrentam com o poder da oligarquia. Mas os pistoleiros à soldo dos latifundiários da Amazônia continuam matando, como o mostrou espetacularmente o recente assassinato da missionaria norte-americana Dorothy Stang, amplamente conhecida por seu compromisso com a luta dos camponeses sem terra. Marina Silva é ministra do Meio Ambiente no governo de Lula, onde tenta promover medidas de proteção da floresta amazônica – mas não conseguiu impedir a legalização da soja transgênica imposta pela Monsanto.
Mais do que em partidos ou administrações, a herança de Chico Mendes está presente nas lutas, nos combates de seringueiros e indígenas, na mobilização dos camponeses contra os transgênicos, na convergência entre ecologia e socialismo que começa a se realizar, não só em pequenas redes militantes, mas também em torno do mais importante movimento social do Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. No quadro das comemorações do seu 20° aniversario, o MST organizou, em colaboração com a UFRJ, um seminário internacional no Rio de Janeiro (julho de 2004) sobre os “Dilemas da Humanidade”.10 Na brochura de apresentação da Conferência, encontramos resumido em belas palavras, o “sonho de olhos abertos” (para usar uma expressão do filosofo marxista da esperança Ernst Bloch) dos organizadores: “um sonho que teima em acontecer: um mundo igualitário, que socialize suas riquezas materiais e culturais”. No mesmo documento encontramos este diagnóstico da realidade atual: “A tal ponto o mundo encontra-se aviltado que não se trata mais de pensar estratégias para fazê-lo “voltar ao eixos”, trata-se de construir um caminho novo, baseado na igualdade entre os seres humanos e em princípios ecológicos”. Um caminho novo, igualitário e ecológico, socializando as riquezas: acho que Chico Mendes se reconheceria neste programa.
Notas [1]Chico Mendes por ele mesmo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 64. Trata-se de uma entrevista auto-biográfica realizada em Xapuri em novembro-dezembro de 1988 pelo prof. Pedro Vicente Sobrinho, da Universidade Federal do Acre, segundo um roteiro estabelecido por Candido Grzybowksi, professor na Fundação Getulio Vargas.
[2] Em sua entrevista auto-biográfica, Chico Mendes descreve este incidente: “Mataram Wilson e os trabalhadores ficaram em desespero. (…) Sentindo que não iam ter nenhuma resposta por parte da justiça (…) foram emboscar um dos fazendeiros, um dos mandantes da morte de Wilson Pinheiro. (…) Os trabalhadores submeteram o fazendeiro a um julgamento sumário e a decisão foi pelo seu fuzilamento. (…) Mas, aí, a Justiça funcionou desta vez, de uma forma muito brava. Durante 24 horas dezenas, centenas de seringueiros foram presos, torturados, alguns de unha arrancada com alicate. A Justiça funcionou porque tinha sido uma reação do pequeno contra o grande”. Chico Mendes por ele mesmo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 19.
[3] “Eu discordava da algumas posições do PC do B, naquela época, porque quando a gente se articulava contra o latifúndio, quando eu enfrentava a luta, os embates e a repressão caiam em cima de mim, eles se escondiam por detrás das cortinas. Só eu aparecia na história. Comecei a ficar meio bravo com aquilo, desconfiando daquilo. Rompi com o grupo do PC do B e aderi ao Partido dos Trabalhadores”. (Chico Mendes por ele mesmo, p. 69).
[4] Discurso de Chico Mendes, citado por Ailton Krenak, coordenador da União das Nações Indígenas, in Chico Mendes, Sindicato dos Trabalhadores de Xapuri, Central Unica dos Trabalhadores, S.Paulo, Janeiro de 1989, p. 26.
[5]Chico Mendes por ele mesmo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 24. O título deste capítulo da entrevista autobiográfica é “A criação de reservas extrativistas na Amazônia como alternativa ecológica e econômica”.
[6] Cf. Legado Chico Mendes, Rio de Janeiro, Sesc, 2003, p. 38.
[7]Chico Mendes, Sindicato dos Trabalhadores de Xapuri, Central Unica dos Trabalhadores, S.Paulo, Janeiro de 1989, p.34.
A Reforma da Previdência era para diminuir as desigualdades e acabar com os privilégios?
Por Ivo Lesbaupin, 16/12/2019
Vamos lembrar o que nos foi dito sobre a Reforma da Previdência: ela era fundamental para acabar com o “rombo”, reduzir os gastos e tornar o sistema sustentável.
Disseram-nos que um dos problemas da Previdência Social era que os brasileiros se aposentavam mais cedo que nos demais países. Pois bem, na nova Previdência aprovada esta semana, os militares não terão idade mínima obrigatória para se aposentar.
Também nos disseram que o percentual do salário de contribuição recebido como benefício após a aposentadoria era considerado alto, para os padrões internacionais. Pois bem, segundo a Reforma recém aprovada, os militares da reserva e pensionistas continuam com direito à integralidade (último salário da carreira) e paridade (mesmo reajuste salarial dos ativos). Para o servidor federal, a integralidade e a paridade acabaram com a Reforma do Previdência do setor público de 2003 (governo Lula). E o teto do INSS já está valendo para estes servidores desde 2013.
A alíquota de contribuição dos militares subirá de 7,5% para 9,5% a partir de março de 2020 e, em janeiro de 2021, a alíquota passará para 10,5%. Já no caso dos servidores federais, estes contribuirão com alíquotas entre 7,5% e 22%, dependendo da faixa de salário. Um salário de R$ 2.001,00 pagará 12% para a previdência, mais que qualquer militar.
Outro objetivo da Reforma da Previdência era reduzir a desigualdade na distribuição dos recursos, minimizando privilégios concedidos a determinados grupos sociais. Pois bem, os militares vão manter privilégios.
E vão ter novas vantagens, graças à reestruturação da carreira nas Forças Armadas: aumento nas gratificações (incidentes sobre os soldos); habilitação militar (por cursos realizados); disponibilidade militar (nova gratificação, com percentuais que variam entre 5% e 32%, de acordo com a patente); representação (adicional de 10% pago a militares em função de comando, direção e chefia).
E reajuste no soldo: soldados: 3,77%; alunos em escola de formação: 13,44%; ajuda de custo na transferência para a reserva: o valor que correspondia a quatro vezes o soldo dobrará para oito vezes.
É bem diferente o caso da Reforma da Previdência promulgada em novembro (para o setor privado e servidores civis): com os novos parâmetros, os segmentos populacionais concernidos, em menor ou maior grau, passarão a se aposentar mais tarde e a contribuir por mais tempo; a recolher contribuições maiores; e a receber benefícios menores e sem garantia de correção automática pela inflação anual.
Na avaliação do governo federal, a reforma do sistema de proteção social dos militares é autossustentável. O Ministério da Economia estima que a União terá uma economia de R$ 10,45 bilhões em dez anos.
Comparando com a economia que será feita com a Reforma da Previdência do setor privado e servidores federais, de cerca de R$ 800 bilhões, a Reforma dos militares corresponde a 1,3%, praticamente nada. A explicação do governo é que as mudanças na aposentadoria economizarão R$ 97,3 bilhões, mas a reestruturação custará R$ 86,85 bilhões.
Concluindo: a Reforma da Previdência dos militares não foi feita para reduzir gastos nem tampouco para acabar com privilégios. Ao contrário, ela institui novos privilégios para esta categoria. É o único setor social que vai melhorar os salários através da Reforma da Previdência. Nenhum outro setor – público ou privado – teve direito a esta benesse.
A pergunta que não quer calar é: “por que”? Porque é um setor que tem um trabalho insalubre, arriscado? Alguns poderiam dizer que sim, que os militares se arriscam porque podem ser feridos ou mortos, numa eventual guerra. Mas nós não temos guerra há mais de cem anos e não costumamos intervir em outros países, como fazem os EUA, por exemplo.
Então, o que justifica este privilégio, este tratamento diferenciado? Enquanto os trabalhadores do setor privado e os servidores civis tiveram perdas em seus direitos e cortes em suas aposentadorias, aumento da idade mínima, redução de pensões, etc., os militares serão poupados destes dissabores. Não nos foi dito que todos tinham de contribuir com a sua cota de sacrifício?
Segue-se a conclusão: se podemos não limitar os benefícios para um setor social, o déficit não era tão grande como nos disseram. A Reforma recém aprovada transmite a ideia de que a situação não era grave, pois há recursos.
Ou, talvez, uma conclusão diferente: os benefícios ganhos pelos militares serão pagos pelos demais setores da sociedade (trabalhadores do setor privado e servidores civis). Somente assim se poderá dizer que a Reforma da Previdência (considerados todos os setores) gerará economia e deterá o famoso “rombo”.
A ideia de que os militares são melhores que os civis não resiste a uma análise mais detida. Diante da possibilidade de manter (ou aumentar) privilégios, não hesitam em batalhar para conseguir o melhor para sua corporação, pouco importando o prejuízo para os demais.
Por Ricardo Abramovay, para Ilustríssima, 15 de dezembro de 2019
Cresce no mundo todo o movimento por banir ou limitar o uso de reconhecimento facial. Mais do que avanço da biometria, tecnologia é um instrumento de vigilância contínua.
Os colégios alegavam a possibilidade de economizar tempo dos funcionários e redução de fraudes com as novas tecnologias. Após análise cuidadosa, a Cnil chegou à conclusão de que tais procedimentos são contrários aos princípios de proporcionalidade e de minimização de dados, uma das bases da legislação europeia que regulamenta a coleta, o armazenamento e a análise de informações pessoais obtidas por meio de dispositivos digitais.
Não se trata de idiossincrasia francesa. A autoridade sueca de proteção de dados pessoais baniu o uso de reconhecimento facial em escolas e multou um estabelecimento que utilizava a técnica, apesar do consentimento dos pais dos alunos.
Exagero? Nos Estados Unidos, as câmaras municipais de Berkeley, San Francisco e Oakland, na Califórnia, e de Summerville, em Massachusetts, baniram o uso por autoridades públicas de imagens coletadas por dispositivos de reconhecimento facial.
No início de outubro, o governador da Califórnia assinou uma lei que institui moratória de três anos no uso de câmeras nos uniformes dos policiais do Estado. Parlamentares de lados opostos do espectro, como a democrata Alexandria Ocasio-Cortez e o republicano Jim Jordan, uniram-se para pedir regulamentação legal dessas câmeras antes que seu uso fique “fora de controle”.
Em 2017, Satya Nadella, CEO da Microsoft, chegou a citar a obra de George Orwell para referir-se ao risco de que câmeras de vigilância contribuam para a emergência de um Estado totalitário. Embora o Google tenha feito da “inteligência artificial em primeiro lugar” (AI first) seu lema, a empresa recusou-se, ano passado, a desenvolver um sistema de reconhecimento facial que seus clientes pudessem adaptar facilmente a seus dispositivos.
Um grupo de acionistas da Amazon manifestou preocupação de que o Rekognition, plataforma de reconhecimento facial da empresa, abrisse caminho à violação de direitos humanos e civis. Em causa estão não só o viés e as distorções do dispositivo (mais preciso na identificação de homens brancos do que de mulheres negras, por exemplo), mas também o perigo de que o Rekognition seja vendido a governos autoritários e se transforme em obstáculo ao avanço da democracia no mundo.
Setenta organizações da sociedade civil obtiveram a assinatura de 150 mil pessoas contra esse dispositivo nos Estados Unidos. Em 2018, o Washington Post publicou editorial alertando contra os riscos de um Estado orwelliano que resultaria da vigilância generalizada a que estes equipamentos abrem caminho.
Essas informações suscitam uma constatação importante: o reconhecimento facial não é um instrumento apenas de Estados ditatoriais como a China. Londres hoje tem mais dispositivos de reconhecimento facial por habitante do que Pequim. Nos Estados Unidos, o FBI dispõe de 641 milhões de imagens de americanos não suspeitos de qualquer crime.
Trata-se de um dos mais prósperos e promissores negócios da economia contemporânea. A China, onde há 176 milhões de câmeras de segurança, detém 46% do faturamento em reconhecimento facial no mundo e tem a ambição de que o setor chegue a US$ 150 bilhões por ano em 2030.
Além de seu emprego sistemático por autoridades policiais, a tecnologia é a base do sistema de pagamentos no varejo e dos empréstimos “peer to peer”, altamente difundidos no país. Nos Estados Unidos esse mercado cresce 20% ao ano desde 2016.
Esse crescimento deve intensificar-se com o decreto que instituiu o Cadastro Base do Cidadão, que envolve não apenas foto, digitais e CPF, mas também dados biométricos como retina, íris, formato da face, voz e maneira de andar. Todos esses dados poderão ser compartilhados por diferentes órgãos governamentais, e a gestão desse sistema será feita por um comitê formado por sete representantes do governo, sem qualquer participação da academia, do mercado ou da sociedade civil.
Mas, se é um negócio tão próspero e virtualmente tão útil no comércio, na educação e na segurança pública, por que razão vem suscitando tanta apreensão e tantos protestos?
É difícil acreditar que se trate de uma espécie de doença infantil que atingiria tecnologias incipientes, quando alguns dos mais importantes ícones da revolução digital e empresas como a Microsoft e o Google manifestam publicamente o temor de uma expansão não regulamentada dessas tecnologias. Do que é acusado o reconhecimento facial?
O problema central é que ele muda a natureza da biometria pela qual os indivíduos são identificados.
Um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (o ODS 16.9) é que até 2030 todos os habitantes do mundo possuam uma identidade verificável, base para o exercício de sua cidadania não só no voto mas na obtenção de benefícios de políticas sociais. Hoje 502 milhões de pessoas na África Subsaariana e 357 milhões na Ásia do Sul não possuem identificação oficial.
A primeira delas é que, até o início do século 21, a biometria se apoiava no recolhimento de informações individualizadas e cuja obtenção exigia o conhecimento e a cooperação das pessoas. Quando você renova sua carteira de habilitação, você sabe que suas digitais são captadas eletronicamente. É o que Laura Donohue, do Centro de Direito da Universidade de Georgetown, qualifica de “identificação biométrica imediata”. Você está presente fisicamente no ato que o identifica e não tem como ignorá-lo.
O reconhecimento facial inaugura outra modalidade, que Donohue chama de “identificação biométrica remota”. Como as câmeras de identificação são interligadas e conectadas a dispositivos que contêm gigantesca base de dados (big data), elas podem localizar e identificar as pessoas em qualquer situação sem que elas tenham a menor ideia de que estão sob escrutínio.
Hoje, é perfeitamente possível identificar indivíduos numa multidão. Não é por outra razão que tanto em Hong Kong como em Santiago os manifestantes tentavam despistar as imagens das câmeras, apontando raios laser em sua direção.
Sob o ângulo jurídico, essa forma de identificação pervasiva fere um dos mais importantes preceitos constitucionais americanos, a Quarta Emenda, segundo a qual o cidadão só pode ser investigado se houver uma suspeita bem fundamentada de que ele tenha feito algo errado.
A vigilância generalizada coloca o conjunto da sociedade sob observação e, na verdade, sob suspeita. À medida que o indivíduo sabe que, de forma remota, pode ser reconhecido e catalogado como participante de uma manifestação pública, é difícil dizer que sua própria liberdade de expressão não está comprometida.
Mas isso não se refere apenas a manifestações políticas: é a vida cotidiana, a interação social, a sociabilidade humana que se transformam como resultado da identificação biométrica remota.
Uma cidade inteiramente monitorada e cujos dados são permanentemente processados por algoritmos que interpretam as imagens coletadas perde uma das características mais importantes do próprio conceito de cidade: o anonimato, a possibilidade de não ser identificado em locais públicos. Os espaços públicos tornam-se territórios de vigilância.
A entrada numa igreja, num bar, o cruzamento dos dados da entrada no bar com aquilo que o indivíduo consumiu (e que foi pago também por reconhecimento facial), a ida a um psiquiatra, a um ginecologista, em suma toda a movimentação referente à vida privada e à própria intimidade das pessoas ganha uma dimensão pública que, ao longo do tempo, acaba por interferir em seus comportamentos, já que elas sabem que estão sob observação.
O movimento global pelo banimento ou ao menos pela moratória na expansão das tecnologias de reconhecimento facial ganha força.
A possibilidade de que governos com inclinação autoritária usem o argumento da segurança e da economia para reprimir manifestações públicas, constranger indivíduos e impor condutas coerentes com sua visão de mundo é uma ameaça à democracia muito maior que a dos serviços secretos convencionais.
E o emprego dessas técnicas pelo setor privado traz igualmente o risco de impor a toda a sociedade comportamentos em que os indivíduos vão agir como quem sabe que está sendo permanentemente vigiado.
O tema pode parecer distante, mas é uma realidade que está em franca implantação e sobre a qual é essencial uma séria discussão pública que vá além do mantra de que isso é incontornável —como se o rumo tomado pelas tecnologias fosse independente da capacidade de interferência dos indivíduos e das organizações da sociedade civil.
Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de ‘Muito Além da Economia Verde’ (Planeta Sustentável/Abril).
Análise de Conjuntura publicada originalmente no site do Movimento Fé e Política (fepolitica.org.br), dia 09 de dezembro de 2019.
Apresentação
A conjuntura atual nos desafia a pensar a realidade de modo inovador. Não basta trazer luz sobre os acontecimentos. Trata-se de assumir radicalmente o ponto de vista dos excluídos e excluídas do banquete do mercado e dali olhar o processo histórico. Assim, o passado torna-se fonte inspiradora para a construção do futuro. É o que faz Maurício Abdalla no primoroso texto que temos a alegria de publicar.
Por ser um estudo de fôlego, o texto é mais longo do que aqueles que estamos habituados a encontrar em sites. Recomendo, portanto, que o leitor ou leitora reserve pelo menos uma hora para sua leitura. Poderá então acompanhar a argumentação que, partindo do relato bíblico da luta desigual de Davi contra Golias, nos ajuda a descobrir a estratégia, as táticas e as armas capazes de libertar quem hoje sofre a opressão do capitalismo. Será uma leitura muito proveitosa. Tenho certeza! Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Uma análise estratégica da conjuntura
“Saul vestiu Davi com sua própria armadura, colocou-lhe na cabeça um capacete de bronze, revestiu-o com a sua couraça, e pôs a espada na cintura dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou andar, pois nunca tinha usado nada disso. Então falou a Saul: «Não consigo nem andar com essas coisas. Não estou acostumado». Tirou tudo, pegou o cajado, escolheu cinco pedras bem lisas no riacho e as colocou no seu bornal. Depois pegou a funda e foi ao encontro do filisteu.[…] Enquanto o filisteu se aprumava e se aproximava de Davi pouco a pouco, Davi correu depressa para se posicionar e enfrentar o filisteu. Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu. A pedra afundou na testa do filisteu, que caiu de bruços no chão. Assim Davi foi mais forte que o filisteu, apenas com uma funda e uma pedra: sem espada na mão, feriu e matou o filisteu” (1Sm 17, 38-40.48-50).
Uma lição de estratégia
Todos conhecem a história do jovem pastor de ovelhas israelita que derrotou um guerreiro gigante, experiente e fortemente armado usando apenas uma funda. A luta de Davi contra Golias é sempre evocada como metáfora para a possibilidade de alguém ou um grupo mais fraco vencer adversários grandes e poderosos. Contudo, na maioria das vezes, ela só é usada como narrativa motivacional ou, no contexto religioso, apenas para dizer que Deus ajuda e dá a vitória aos que creem. Mas há, também, uma lição estratégica fundamental embutida na história que pode ser bastante útil para ajudar a pensar nossa ação na atual conjuntura mundial.
Sob um olhar não teológico, o grande ensinamento da vitória do jovem pastor sobre o guerreiro gigante está na maneira como ele conseguiu derrotá-lo. Quando Davi decidiu enfrentar Golias, o rei Saul o equipou com armadura e armas de guerra tradicionais, equivalentes às que usavam o filisteu e todos os soldados nas batalhas. Porém, sob o peso daquele equipamento, Davi, que era pastor e não soldado, não conseguiu sequer andar. Sabiamente, o jovem preferiu abdicar das armas e armaduras tradicionais para usar o instrumento de ataque que ele manejava com mais destreza: a funda e as pedras que, em seu ofício de pastoreio, usava para proteger o rebanho de predadores como leões e ursos.
Golias era considerado invencível tanto pelos israelitas, quanto pelos filisteus, pois eles só concebiam a luta contra o gigante com o uso das armas convencionais. Portanto, só o venceria quem se igualasse a ele em força, qualidade da armadura e destreza no manuseio das armas ofensivas e defensivas tradicionais: lança, espada, couraça, elmo, armadura e escudo. Na ausência de alguém assim, ninguém o derrotava.
Davi, porém, teve outra concepção de luta. O caminho não seria disputar força com o inimigo no seu contexto de batalha, onde a derrota seria certa. No seu contexto, o gigante venceria tanto o mais destemido israelita que quisesse vingar sua nação dos insultos dos filisteus, quanto o mais piedoso crente em Javé, o que mostra que a lição maior da história não repousa apenas sobre um ato de coragem ou fé. Embora ambas não tenham faltado a Davi, não foi por elas que ele saiu vencedor. De maneira perspicaz, Davi deslocou a luta para um contexto de ação que neutralizou a superioridade da força e das armas do gigante e que lhe permitiu usar suas habilidades de pastor de forma eficaz.
Em um combate convencional, Davi seria derrotado por dois motivos. Primeiro porque o peso dos equipamentos de guerra, com os quais não estava acostumado, eliminaria toda sua mobilidade e capacidade de luta. Ao invés de ser um meio que facilitaria a vitória, a armadura e as armas tradicionais e equivalentes às que Golias usava anularia suas habilidades. Segundo, porque a destreza e força do inimigo no uso dessas armas eram superiores e jamais seriam igualadas por Davi, mesmo que ele se esforçasse o máximo e conseguisse suportar seu peso. Ou seja, além do inimigo ter a vantagem inicial, o combate convencional imobilizaria o jovem israelita e impediria seu progresso. Era, portanto, um contexto duplamente desvantajoso.
Assim, a única chance de vitória baseava-se em três ideias gerais: impedir a aproximação do inimigo para evitar o combate corpo a corpo, não permitir o prolongamento da luta e derrotar o inimigo à distância. Isso eliminaria a possibilidade de que o gigante usasse suas armas e sua força. Essas ideias gerais constituíram a estratégia de Davi. Para colocá-las em prática, a táticautilizada foi recusar as armas tradicionais, pois elas o colocavam em uma insuperável condição de inferioridade, e usar a funda, uma arma que ele conhecia e manejava muito bem.
Portanto, o que deu a vitória ao jovem pastor sobre aquele que consideravam invencível não foi apenas seu ímpeto, coragem e fé, mas a estratégia e a tática utilizadas. Davi foi ao encontro de Golias com sua roupa de pastor, um cajado, uma funda e as pedras no bornal. Sua arma era simples, mas além de ter peso suportável, tratava-se de um instrumento que ele sabia usar com destreza e que já demonstrara eficácia contra animais ferozes que ameaçavam os rebanhos que estavam sob seu cuidado. E o seu uso era fundamental para concretizar sua estratégia.
Por ser um texto bíblico, a vitória é, obviamente, interpretada como um sinal da predileção de Deus pelos israelitas. Mas, apesar disso, a vitória do jovem pastor sobre o gigante é narrada sem adicionar qualquer interferência divina ou sobrenatural na ação. Davi venceu Golias por ter sido capaz de neutralizar as forças e a ação do adversário e de potencializar a sua própria força com uma decisão sábia e fora do padrão tradicional das batalhas militares.
A luta dos explorados e oprimidos em todo o mundo, principalmente nos países periféricos, sempre foi a luta dos fracos contra gigantes poderosos e bem armados. A história registra vitórias e derrotas, mas, no geral, enfrentamos poderes que muitos julgam invencíveis e cuja dominação é planetária. Com que força eles dominam? Qual o seu contexto de batalha em que nós estamos sendo derrotados? Conseguiríamos derrotá-los em uma luta “corpo a corpo” no contexto em que eles têm vantagem? Como poderíamos refletir sobre estratégias e táticas de lutas fundadas não apenas na coragem e vontade de lutar, mas na eficácia de nossa ação em relação às forças do gigante e nas armas que, mesmo não tendo o mesmo poder que as do inimigo, sabemos manejar com destreza?
O primeiro passo nessa reflexão é saber quem é o “Golias” que enfrentamos, quais são suas armas e seu contexto de luta e onde está fundada a vantagem que tem sobre nós.
O aspecto visível imediato da conjuntura
A conjuntura brasileira atual nos apresenta um quadro desesperador. Sob o aspecto visível imediatotemos o seguinte cenário. Um parlamentar insignificante, que passou 27 anos na Câmara dos Deputados falando asneiras, destilando ódio e preconceito e representando ideias radicalmente contrárias a todos os avanços conquistados pela sociedade brasileira desde o fim da ditadura militar, tornou-se presidente da República em uma eleição que sucedeu um golpe de Estado – no estilo dos “golpes suaves”, que têm caracterizado a nova estratégia de derrubada de governos utilizada pelas potências ocidentais.
Seu governo tem representado o que há de pior na sociedade e, embora caótico nos aspectos intelectual, ético, cultural, administrativo e político, tem sido bastante competente e eficaz (mais do que qualquer outro anterior) para tornar o país absolutamente submisso aos interesses do setor financeiro e da indústria de petróleo, à geopolítica estadunidense, à ganância de ruralistas, garimpeiros, madeireiros e outros destruidores da natureza, ao empresariado nacional de mentalidade escravocrata e à indústria de armamentos. Isso se dá porque enquanto o presidente, seus filhos e ministros protagonizam um teatro tragicômico na mídia e redes sociais, o governo real, mais discreto e pragmático, é exercido pelo ministro da economia Paulo Guedes, fiel servidor dos interesses dos setores capitalistas mais gananciosos e inescrupulosos.
Adicionalmente, revelou-se que as milícias que agem criminosamente no Rio de Janeiro – tendo recentemente se aliado ao narcotráfico – possuem íntimas relações com a família do presidente e têm sido beneficiadas há anos com a presença dos Bolsonaro na política. Suspeita-se, inclusive, da participação do clã Bolsonaro na morte da vereadora Marielle Franco. O lado mais violento, assassino e equipado do crime organizado conquistou agora presença no Poder Executivo Nacional.
O presidente e todo seu ministério, naquilo que falam e fazem, representam uma afronta constante aos valores republicanos, à ética da coisa pública, aos direitos humanos e das minorias, à ciência, à educação, aos princípios civilizatórios básicos e à própria racionalidade que, às duras penas e sem pleno sucesso, tentou-se imprimir na política desde o iluminismo europeu.
Surpreendentemente, o Parlamento e o Judiciário parecem ignorar que um presidente incapacitado, com relações íntimas com as milícias, com sintomas explícitos de sociopatia e inclinação ditatorial está no cargo destruindo a República e a democracia e dando a seus filhos um status de “família real”. Embora com alguns recentes conflitos e rachas em sua base de sustentação no Congresso e em seu próprio partido, as coisas fluem como se estivéssemos em um período normal da política, abalado apenas por algumas diferenças de ideias, interesses, disputas partidárias, conflito de egos e coisas menores.
A mídia comporta-se de maneira ambígua. Enquanto a Rede Globo e o Grupo Folha (proprietário da Folha de São Paulo, portal UOL, dentre outros veículos) partem para um ataque pessoal contra o presidente, outras empresas de comunicação lhe dão a sustentação necessária para impedir que a população perceba o fosso em que nos metemos. Mesmo a oposição da Globo e da Folha é derivada de conflitos momentâneos de interesses. As críticas só atingem o lado superficial do governo, permanecem no plano de uma guerra privada ocasional contra a pessoa do presidente e não ultrapassam algumas denúncias e chacotas. Já as medidas que entregam o Brasil à rapina dos rentistas, petrolíferas, ruralistas, garimpeiros e proprietários do capital, enquanto destroem o sistema público de previdência, aniquilam a capacidade de gestão do Estado sobre a sociedade e a economia, retiram todos os direitos dos trabalhadores e sacrificam a soberania nacional, são aplaudidas e defendidas pelos veículos das empresas dos Marinho e dos Frias. Apesar de muitos se sentirem satisfeitos com a oposição parcial desses veículos, não será por essa mídia que a população irá às ruas contra o atual governo, como foi no tempo dos governos petistas.
Esse, porém, é o aspecto visível imediato– e, mesmo assim, só o é para aqueles que têm um mínimo de consciência crítica com relação à conjuntura política. Mas o visível pode nos enganar. Se o problema for reduzido ao evento extraordinário de uma eleição de resultado ruim, que levou, por acidente, um protoditador desequilibrado ao poder, pode parecer que a solução está em uma próxima eleição presidencial em que o erro seja “corrigido” com a eleição de alguém melhor. O fenômeno do lulismo, ampliado com a libertação do ex-presidente Lula de seu cárcere injusto, pode contribuir com essa visão reducionista do problema e adiar as ações para 2022.
Ao pensarmos assim, não dimensionamos a força do gigante que temos de enfrentar e acabamos optando por lutar no contexto de batalha que o favorece e no qual estaremos sempre em desvantagem: o campo eleitoral e da ocupação do Estado. E seguiremos derrotados, pois esses campos nos sufocam e impedem nosso progresso em outro contexto de luta que nos seria mais favorável, onde poderíamos lutar com armas que realmente sabemos manejar. Precisamos, portanto, saber o que se encontra por trás do visível imediato e em que se fundamenta, realmente, a vantagem do inimigo. Analisar a conjuntura não é apenas descrever o visível, mas compreender, de forma sintética, quais fatores determinam o plano conjuntural. Esses fatores nem sempre estão conectados diretamente às notícias da conjuntura e, por isso, precisam ser resgatados nas análises.
Identificar o inimigo: que gigante enfrentamos?
O processo que culminou no golpe que precedeu as eleições presidenciais de 2018 é um dos fatores determinantes da conjuntura atual. Não se pode simplesmente ignorá-lo como algo passado e superado. Na verdade, o bolsonarismo foi um efeito colateral de todo o processo que culminou com a destituição da presidente Dilma e a total submissão do Brasil aos interesses do capital internacional e local.
Mas o golpe de 2016 também foi resultado particular de uma guerra de maior duração. Nessa guerra, novos armamentos e formas de batalha entraram em cena e novos terrenos se tornaram estratégicos para serem conquistados. O golpe só foi possível porque sua consecução envolveu o controle das instituições republicanas, da mídia e, principalmente, da subjetividade social. A ausência do uso da violência e a reação quase nula da sociedade comprovam o sucesso da investida do inimigo e a eficácia das estratégias atuais de dominação – que se revela também na passividade com que assistimos à destruição do país pelo governo Bolsonaro.
Os eventos de 2016 não podem ser analisados como lances isolados da política local passíveis de serem revertidos pelo investimento pesado nas próximas eleições, por meio de alianças amplas, candidaturas, campanhas bem estruturadas etc. As forças envolvidas na preparação e execução do golpe não são ingênuas e tampouco estão inclinadas a aceitarem decisões democráticas ou resultados eleitorais. Quando colocamos a realidade brasileira no contexto da conjuntura latino-americana e mundial, vemos que há aspectos comuns mesmo dentro de particularidades, e um desses aspectos é a rejeição pesada, organizada e violenta a qualquer resultado da democracia formal que embargue os interesses do capital. Honduras, Paraguai, Venezuela, Bolívia e o próprio Brasil, apenas para citar os casos latino-americanos, nos mostram exatamente isso.
Portanto, o inimigo está além e é maior do que se pode enfrentar no terreno político institucional. Tampouco se trata de uma simples luta de classes entre patrões e empregados, que se trava nas relações de trabalho diretas e locais ou na disputa pelo Estado como território estratégico para a tomada de poder. Trata-se de uma guerra, iniciada há mais de 3 décadas, entre uma minoria da sociedade mundial, que conseguiu concentrar o maior volume de capital da história, e o restante da população do planeta – mesmo que a maioria desse restante não perceba que está, quer queira ou não, em um dos lados nessa guerra.
A hegemonia no campo do capital está nas mãos dos rentistas, bancos, empresas e pessoas que vivem apenas de fazer seu dinheiro gerar mais dinheiro, sem necessidade de investimentos em produção e emprego. Os mecanismos que criaram para fazer seu capital render o máximo e com riscos mínimos tornaram a economia complexa, caótica e dependente do endividamento e submissão dos Estados nacionais, mas são eles que permitem a maior acumulação e concentração de renda da história. Ladislau Dowbor chamou a atual fase do capitalismo de “era do capital improdutivo” 1 e Thomas Piketty revelou os meandros da acumulação irracional de renda, viabilizada pelo capitalismo mundial desregulamentado.2
O dinheiro que se multiplica nas operações com títulos das dívidas públicas nacionais e que se beneficia da evasão fiscal e lavagem de dinheiro por meio de empresas off-shore em paraísos fiscais tem origem mista em ações legais (operações financeiras, comércio, produção e serviços) e ilegais (principalmente o tráfico de armas e drogas, falsificações, tráfico de pessoas, tráfico de vida selvagem, exploração da prostituição etc.).3
As legais exploram sem piedade seus trabalhadores e trabalhadoras, destroem o ecossistema para gerar produtos comercializáveis e massacram populações locais. Adicionalmente, não pagam os impostos que deveriam pagar por usarem a infraestrutura do país e pela responsabilidade social que lhes cabe, pois, além de se beneficiarem dos paraísos fiscais,4 pressionam os governos nacionais a limitarem a cobrança de impostos ao mínimo.5 Os montantes estratosféricos advindos das atividades produtivas e de serviços não são reinvestidos em produção e salários, não retornam à sociedade por meio de impostos e nem contribuem com ações que possam preservar o ecossistema: vão direto para as contas de uma parcela irrisória da população para reproduzir-se de maneira improdutiva por meio de operações financeiras que endividam os cidadãos e os Estados.
As atividades lucrativas ilegais produzem centenas de milhares de mortes anuais relacionadas ao uso e tráfico de drogas, guerras civis e criminalidade alimentadas pelo tráfico de armas, entre outras coisas decorrentes de atividades clandestinas de alto risco. Mas seus lucros são “lavados” e se misturam aos legais no sistema de autorreprodução das fortunas pela via financeira.6
Trata-se, portanto, de um dinheiro que, como disse Marx, “nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.7 Nas mãos dos agentes financeiros, esse dinheiro se mescla e se multiplica de forma assustadora, sem um correlato na produção de riqueza real.8 Para sua reprodução, investem em títulos da dívida pública e controlam os Estados (pela intervenção na política) para que ofereçam juros vantajosos, aplicações livres de riscos e impostos, legislação favorável, fiscalização mínima e retorno garantido. Assim, criam um dreno que suga os recursos dos estados-nacionais (por meio do endividamento interno e pagamento de juros) e acabam com as possibilidades de atendimento público às necessidades dos setores mais pobres e vulneráveis da sociedade. Os proprietários desse capital formam uma classe poderosíssima que têm em comum o interesse na manutenção do sistema econômico mundial que os alimenta. Para isso, precisam controlar a política de cada um dos países, definir as leis e interferir na gestão do orçamento público de acordo com suas metas.
Outro setor poderosíssimo, que também depende da submissão e da perda de soberania dos estados-nação, são os que enriquecem com a exploração e comércio de petróleo e gás. O setor movimenta centenas de bilhões de dólares por ano e as empresas petrolíferas lideram, abaixo dos bancos, seguradoras e setor automotivo, o ranking da revista Forbes das maiores e mais lucrativas empresas do mundo.9 Seus lucros dependem fundamentalmente da disponibilidade das reservas a serem exploradas, da sua influência sobre a legislação fiscal e ambiental nos países que possuem esses recursos e da perda de soberania e controle dos estados-nacionais sobre suas riquezas minerais. Por isso, a intervenção na política local dos países produtores de petróleo e gás é absolutamente estratégica para esse setor, o que explica seu apoio a guerras, golpes de estado e a grupos de oposição a governos de esquerda ou nacionalistas em qualquer país onde haja reservas de petróleo e gás natural.10
A necessidade que os setores hegemônicos do capitalismo mundial têm de controlar os estados-nacionais fez tomar força uma ideologia e um projeto mais radical do que o neoliberalismo que conhecemos desde a década de 80. Trata-se do “anarcocapitalismo”, uma ideologia elaborada por Murray Rothbard a partir das ideias ultraliberais de Ludwig Von Mises, que demoniza o Estado e propõe a sua total destruição em nome do vale-tudo do mercado e da privatização de todas as esferas da vida social.11
A pequena parcela que corresponde a 1% da população planetária e que concentra mais riqueza do que os 99% restantes é o Golias do capital que sai das fileiras do exército filisteu para amedrontar e desafiar qualquer um que queira questionar seu domínio. O capitalismo não se resume a ele (assim como Golias não era o único filisteu), mas, por ser mais forte e mais bem armado que todos os outros, é ele que desafia, amedronta e intimida os que ousam lutar contra o sistema, mesmo aqueles que defendem um capitalismo “mais moderado” ou com maior presença do Estado. Sem enfrentar esse gigante jamais ganharemos a guerra.
Portanto, temos aí o nosso principal inimigo. Toda a conjuntura local, respeitando todas as particularidades e desafios próprios de cada país e de cada momento político, tem seu sentido vinculado ao domínio desse gigante e à sua necessidade de controlar e destruir os estados-nacionais, a fim de continuarem alimentando suas fortunas à custa do empobrecimento e morte dos seres humanos e da destruição da Mãe Terra. Precisamos, então, conhecer suas armas e estratégias para compreendermos as nossas derrotas e os caminhos possíveis para a vitória.
O bolsonarismo é um epifenômeno de um fenômeno maior
No caso brasileiro, a incapacidade de articulação, coerência e entendimento da realidade demonstrada pelo presidente eleito em 2018, ao mesmo tempo em que seu governo supera todos os outros na competência para a destruição do Estado e para fazer as reformas ultraliberais, mostra que não é ele o responsável pela conjuntura que estamos vivendo. Ele é consequência, refugo, efeito colateral de uma dominação que foge até à sua própria capacidade de entendimento e que pode perfeitamente descartá-lo sem que isso comprometa a hegemonia do capitalismo rentista e da indústria de petróleo e seu controle sobre o Estado.
As ações que sustentam a dominação atual vêm de longa data, conforme veremos adiante, mas receberam novas e potentes tecnologias auxiliares e foram intensificadas nas últimas décadas como parte da estratégia dos “golpes suaves” nos países latino-americanos. Elas foram fundamentais para que o golpe de 2016 fosse bem-sucedido no Brasil. Porém, como consequência, deixou-nos em um pântano político, ético e social.
Em resumo, a estratégia do golpe suave pressupõe a manipulação e o controle das consciências para criar um clima de oposição contra os governos que pretende derrubar.12 No caso do Brasil, as políticas sociais dos governos petistas, sua ampla aprovação pela maioria da sociedade e o carisma pessoal do ex-presidente Lula impediam que a manipulação das notícias e a criminalização do PT se revertessem em prejuízos eleitorais para o partido e favorecessem um candidato da direita mais palatável aos setores hegemônicos do capital. Tiveram, então, que reforçar a dose do veneno aplicado às consciências, investindo contra tudo que pudesse se relacionar aos governos petistas. Nesse pacote entraram os direitos humanos e das minorias, as políticas sociais compensatórias e todas as bandeiras sociais, inclusive as que compunham o ideal liberal clássico. Alimentaram, assim, as ideias fascistas e o ódio social a tudo que pudesse ser relacionado à esquerda, mesmo às ideias e valores que pertencem à própria modernidade e que foram defendidas por pensadores e líderes liberais.13
A dose excessiva do veneno, potencializada com o uso inteligente e planejado das mídias digitais para a formação do inconsciente coletivo, embora tenha possibilitado a destituição da presidente Dilma sem reações da sociedade, não se reverteu em intenção de votos favoráveis à direita tradicional, mas resultou no crescimento do fundamentalismo, intolerância, obscurantismo e fascismo na criação de uma nova extrema-direita nacional. Tratava-se, no entanto, de um espírito difuso, não conectado a uma liderança política carismática (como Hitler ou Mussolini na Europa) ou a um movimento organizado (como o Partido Nacional-Socialista alemão ou o Partido Nacional Fascista italiano). Na falta de uma liderança política ou partido que canalizassem esse espírito em um movimento coeso, apareceu a figura de Bolsonaro, como uma espécie de boneco de Judas às avessas (pois, ao invés de malhado foi exaltado) para fazer esse papel. O PSL e sua legião de políticos esdrúxulos surfaram na mesma onda e fizeram a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados Federais.
Sem opções melhores na política, visto que nenhum outro candidato conseguia fazer frente à popularidade de Lula (que, mesmo preso, era o maior cabo eleitoral das eleições de 2018), os setores hegemônicos do capitalismo decidiram apostar no que tinham à disposição e sustentaram a eleição de Bolsonaro, conseguindo emplacar Paulo Guedes no controle da economia.
Hoje, enquanto o atual presidente faz o papel de um bufão com humor de mau gosto e ensaia a organização de um movimento protofascista com seu novo partido (Aliança Pelo Brasil), o Golias do capital abocanha o país por meio do ministro da economia e de um Parlamento cuja maioria ou é submissa aos mesmos interesses ou não tem competência para debater os problemas nacionais e suas soluções. O resultado disso é a aprovação de todas as medidas de ajuste fiscal, destruição do Estado, aniquilação da previdência pública, supressão de direitos dos trabalhadores, entrega das reservas do pré-sal, privatizações, ataque ao serviço público, perdão de dívidas bilionárias, isenções fiscais vultosas, segurança de não se taxar as grandes fortunas, taxação da pobreza, afrouxamento das leis e fiscalização ambientais, restrição do orçamento e desvinculação de receitas para manter o sistema de transferência de recursos públicos para o sistema financeiro.
Para os donos do capital, o resultado das eleições foi positivo. Para o restante da população, além dos prejuízos econômicos, a investida resultou no crime organizado no poder, na possibilidade de formação de uma ditadura com ares fascistas e no aumento dos casos de violência por intolerância e preconceito cometidos pela polícia e os autointitulados “cidadãos de bem”. Enfim, os instrumentos de repressão – Forças Armadas, Polícias militar e civís – e a impunidade à violência contra as populações de periferia configuram-se como uma política de terrorismo preventivo de Estado.
Nesse quadro, precisamos entender que, mesmo diante de um aparente caos, há fatores estruturais que determinam a realidade presente e que permanecem independentemente da conjuntura político-eleitoral. Esse é o principal inimigo que temos que identificar e cujas armas precisamos conhecer para pensarmos nossa estratégia. A figura tosca do atual presidente da República, seus filhos sociopatas, seus ministros caricatos e obscurantistas e a bizarrice dos parlamentares (principalmente os do PSL) são fenômenos graves e dolorosos, mas passageiros. Isso não significa que não devam ser enfrentados, pois sua presença no poder traz consequências terríveis para a sociedade, tanto no plano das medidas concretas adotadas, quanto no plano dos valores e ações sociais. Preconceito, ódio, violência, intolerância, racismo e fundamentalismo religioso se fortalecem e se convertem em ações quando seus expoentes ocupam os poderes estatais. Por isso, a luta contra o atual governo e os parlamentares que o sustentam é fundamental. Mas não são eles o “Golias” a ser derrotado.
Para além do visível imediato da conjuntura
Uma pergunta recorrente que tem sido feita pelas organizações populares, partidos de esquerda, movimentos identitários e setores progressistas das igrejas é “como chegamos a esse ponto no Brasil?”. Parece-me, porém, que na maioria das vezes a indagação está dirigida especificamente ao fenômeno do bolsonarismo. Mas, analisando o quadro latino-americano, a pergunta deve ser formulada de forma ligeiramente diferente: “o que está por trás do bolsonarismo e do avanço da extrema direita que hoje se mescla com o fundamentalismo religioso cristão, não só no Brasil, mas em outros países da América Latina?”
O setor hegemônico do capitalismo do século XXI, embora já em crescimento na década de 1970, começou a ganhar suas configurações atuais a partir de meados década de 1980. Seu domínio foi pensado no contexto de um mundo em processo de globalização econômica que exigia uma geopolítica diferente da que marcou o período da Guerra Fria. No final daquela década, a destruição do bloco socialista já era uma realidade irreversível e o mundo experimentava o triunfo da economia de mercado.14
As novas tecnologias de produção, informatização e comunicação possibilitaram um sistema integrado de economia que tendia à financeirização, seguindo o movimento cíclico do capitalismo descrito por Arrighi, no qual o capitalismo especulativo supera o produtivo após um período em que a acumulação e expansão materiais da economia chegam a seu limite.15 As grandes corporações econômicas transnacionais, que determinavam a política dos países que compunham a tríade dominante no mundo em fase avançada de globalização (EUA, União Europeia e Japão), apressavam-se para reconfigurar as relações geopolíticas e constituir um novo sistema de dominação sobre as economias dos países do Sul. Foi o período do Consenso de Washington, que, em 1989, escreveu e impôs a cartilha econômica a ser seguida pelas economias dependentes.
A ideologia predominante nesse período foi o neoliberalismo, que propagava a perfeição do mercado e a redução do Estado ao mínimo de intervenção na sociedade, reduzida à definição da política econômica que atendesse às demandas do mercado e à ação para minimizar os conflitos sociais decorrentes da crescente desigualdade que podia ameaçar a fluidez da engrenagem econômica.16
Na América Latina, a liderança dos EUA precisava ser remodelada e as ameaças à sua supremacia deveriam ser debeladas de forma eficaz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) consolidou a nova política, iniciada na década anterior, na qual o poder mundial foi transferido, de forma definitiva, da arena política para o campo das corporações e suas entidades representativas. Isso não significa que a esfera econômica transnacional tenha parado de depender do poder político dos estados-nação para impor seus interesses sobre o mundo, mas sim que o lócus das decisões que direcionariam a ação dos Estados havia sido transferido totalmente da esfera interestatal para a esfera das corporações privadas transnacionais.17
Foi nesse contexto que a CIA realizou, nos anos 1980, as reuniões na cidade de Santa Fé, Novo México, nas quais se elaboravam as estratégias de ação dos governos estadunidenses para a manutenção de seu domínio sobre a América Latina. As conclusões dessas reuniões foram publicadas com o nome de “Documentos de Santa Fé”. As análises estratégicas contidas nesses documentos são extremamente esclarecedoras para a compreensão de como a dominação foi pensada em uma perspectiva de longo prazo e de um império permanente. O texto apresenta a proposta de deslocamento do foco de atuação da intervenção estadunidense nos países latino-americanos da esfera eleitoral para a conquista da sociedade civil, por meio da formação de uma subjetividade social adequada aos seus propósitos.
O Documento de Santa Fé II, de 1988,18 oferece-nos uma lição de pensamento estratégico e revela as ações de médio e longo prazos pensadas pelos estrategistas políticos estadunidenses para garantir e perpetuar o domínio sobre a América Latina. Sem conhecer esses movimentos do inimigo, as armas que decidiu utilizar e o contexto de batalha no qual que ele optou por se mover, dificilmente poderemos pensar, também estrategicamente, as contra-ações necessárias e os passos para se derrotá-lo.19
Os autores do Documento de Santa Fé II foram o cientista político L. Francis Bouchey, à época presidente do Conselho de Segurança Interamericana (CSI), uma extinta entidade da direita estadunidense surgida da Liga Mundial Anticomunista e que se tornou a principal conselheira e influenciadora dos governos Reagan e George Bush pai;20 Roger W. Fontaine, escritor e jornalista de direita, especialista em relações internacionais e em estudos sobre América Latina, ex-consultor da CSI e da missão dos EUA na OEA; David C. Jordan, diplomata, professor universitário especialista em estudos sobre América Latina e ex-embaixador dos EUA no Peru; e o tenente-general Gordon Summer Jr., graduado em ciências políticas, ex-embaixador dos EUA para a América Latina e ex-secretário de estado de Reagan. Ou seja, eram todos figuras chaves da diplomacia estadunidense.
As ideias contidas no documento definiram as relações internacionais dos EUA para a América Latina nas décadas posteriores. A intenção declarada dos autores pode ser encontrada na conclusão:
Os EUA e o sistema interamericano se deparam com tremendos problemas na América Latina. […] Santa Fé II é uma estratégia para o ataque a esses problemas e para a promoção de democracia, liberdade e oportunidade econômica através da região numa tomada de posição, ao invés de uma mera postura de resposta (p. 29).
Ou seja, os EUA deveriam assumir uma postura proativa para assegurar seu controle sobre o continente, por meio de uma estratégia mais eficaz e, ao mesmo tempo, mais sutil e de longo prazo, como veremos adiante. Sua orientação ideológica neoliberal não foi escondida, conforme o documento deixa explícito:
O Documento de Santa Fé II dá atenção particular à economia […] Estatização, gigantismo do aparato burocrático e nacionalizações são desaprovados, enquanto a formação de um mercado de capital nacional, a remoção do controle governamental na economia e a privatização das companhias estatais são encorajadas (p. 29-30).
Os autores ainda falam na “da defesa dos méritos da empresa privada, em oposição ao capitalismo estatal” como algo a ser promovido pelo governo dos EUA em nossos países. Nota-se aí que não se trata mais de uma guerra entre países e sim de uma guerra movida pelos interesses das corporações econômicas que controlavam a política estadunidense contra a soberania de nossas nações.
Porém, ao invés de investir apenas na eleição de políticos afinados com seus interesses, os estrategistas de Santa Fé percebiam a necessidade de ir além da interferência no processo eleitoral. De forma perspicaz, como convém ao pensamento estratégico, eles entenderam que havia outro campo de batalha em que precisavam lutar para seguirem vitoriosos: o campo subjetivo. Perceberam que seus inimigos – as forças emancipatórias latino-americanas que cresciam nas organizações de base dos movimentos sociais, na formação de um campo intelectual crítico, no trabalho de conscientização política da população e dos formadores de opinião e na ação das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica – estavam avançando nesse terreno estratégico e os EUA precisavam dar uma resposta:
[…] O problema subjacente é um problema cultural: a luta sobre qual é a natureza do melhor regime. A questão, portanto, não são só as formas e processos eleitorais. A atenção dada aos processos eleitorais desvia a atenção de outros requisitos essenciais para a democracia.21 Há uma tendência dos defensores da democracia, nos EUA, a defender eleições, esquecendo outras questões fundamentais (p. 7).
Por isso, o documento pretendia
Oferecer uma estratégia que vá além de apenas garantir um sistema eleitoral, e, se isso for seguido pela próxima administração,22 poderá trazer estabilidade para as hoje estremecidas e instáveis situações políticas dos países da América Latina. Especificamente, isso significa dar apoio às organizações independentes dentro das sociedades latino-americanas, educar o povo, e lutar contra o marxismo e outras forças políticas e culturais estatizantes (pg. 29).
Havia, portanto, uma ação na América Latina que ameaçava seriamente o domínio do capitalismo e da hegemonia estadunidense. Tratava-se de uma ação tão eficaz que foi reconhecida pelos melhores estrategistas dos EUA e mereceu uma reação organizada e pesada para anular sua força. E que ação era essa? Aqui se situa a parte central do documento que nos oferece um duplo esclarecimento: primeiro, sobre que tipo de ação se constituía em ameaça real para os propósitos do capital (e não era o avanço das esquerdas nas eleições…); segundo, nos faz entender os rumos que nossa sociedade tomou nas décadas que sucederam à elaboração do documento. Note-se que eles se referem a “educar o povo” e lutar contra “o marxismo e outras forças políticas e culturais” que viam como ameaça.
Após uma breve exposição sobre o que interpretam do pensamento gramsciano, os autores do documento afirmam:
Os métodos marxistas e os intelectuais marxistas poderiam realizar [a mudança do regime] dominando a cultura da nação, processo que requeria uma forte influência na religião, nas escolas, nos meios de comunicação de massa, e nas universidades. Para os teóricos marxistas, o método mais eficaz para criar um regime estatista num ambiente democrático era através da conquista da cultura da nação […].
É nesse sentido que a Teologia da Libertação deve ser entendida: ela é uma doutrina política disfarçada de crença religiosa, tendo a característica de ser contra o papa e a livre-empresa, com objetivo de enfraquecer a independência da sociedade frente ao controle do Estado. […] Assim, vemos que a inovação da doutrina marxista se insere em um fenômeno cultural e religioso de longa duração.
O ataque não é dirigido apenas a um ou dois componentes da cultura. Ele é eficaz porque dirigido a uma frente ampla que procura redefinir o todo da cultura numa nova terminologia; assim como o catolicismo é redefinido pelos teólogos da libertação, a arte é transformada, os livros são reinterpretados, os currículos são retificados. A investida da penetração cultural na América Latina é seguida pelos teóricos marxistas que são educadores em escolas e universidades.
A ascendência da esquerda sobre grande parte dos meios de comunicação de massa na América Latina também deve ser entendida nesse contexto. Nenhuma eleição democrática pode mudar a caminhada contínua na direção do regime estatista se a “indústria de criar consciência” está nas mãos de intelectuais estatistas. Os meios de comunicação de massa, as igrejas e as escolas continuarão a transformar as formas democráticas em estatismo, se os EUA e os recém estabelecidos governos democráticos não encararem isto como uma luta de regime. A cultura social e o regime têm de ser moldados para proteger a sociedade democrática (p. 10).
Essa parte é extremamente esclarecedora. Os autores do documento identificaram no crescente trabalho de formação e organização das bases populares, na religião libertadora e no crescimento da consciência crítica no meio acadêmico uma ameaça real e definiram o seu contexto de batalha como “conflito de baixa intensidade”:
Muitos dos regimes latino-americanos estão se deparando com o que foi identificado por Washington como conflito de baixa intensidade (LIC). O termo é usado para descrever uma forma de combate que inclui operações psicológicas, desinformação, contrainformação, terrorismo e subversão cultural e religiosa (p. 18).
Consequentemente, deveriam deslocar sua ação para esse novo contexto, no qual, a julgar pela sua análise, as forças emancipatórias estavam em vantagem. Ao contrário do Golias filisteu, o gigante do capital havia antecipado o poder da funda de Davi e tomou providências para não ser atingido mortalmente na testa por uma pedrada certeira.
Diferentemente das análises academicistas, cujo interesse é apenas a narrativa e interpretação da situação, a análise estratégica procura conhecer a realidade para guiar a ação futura. O que é dito na teoria é uma chave para se compreender a prática que a sucedeu. Consequentemente, a identificação do problema pelos estrategistas de Santa Fé foi seguida de um pacote de propostas táticas que foram implementadas pelos governos estadunidenses posteriores. Dentre as muitas propostas apresentadas no documento, duas merecem destaque:
O desenvolvimento da política cultural é básico para a sustentação, pelos EUA, do esforço latino-americano para desenvolver a cultura democrática. O esforço gramsciano para minar e destruir a tradição democrática através de subversão ou corrupção das instituições que dão corpo e mantêm aquela tradição deve ser combatido. Fortalecer o orçamento da USIA, tendo esse problema em vista, deve ser a principal prioridade. A USIA é a nossa agência para a guerra cultural (p. 12). 23
As instituições públicas e privadas americanas devem envolver-se na educação dos meios de comunicação e dos líderes comunitários sobre a natureza da estratégia de conflito do marxismo-leninismo, adaptado pelos nacionalistas aos desafios do subdesenvolvimento. O casamento entre comunismo e nacionalismo na América Latina acarreta o maior perigo tanto para a região quanto para os interesses americanos (p. 19).
A partir da década de 90, iniciada dois anos após a redação do Documento de Santa Fé II, vimos crescer no Brasil o neopentecostalismo de origem estadunidense, tanto por meio da multiplicação e fortalecimento de igrejas evangélicas, quanto pelo crescimento de movimentos espiritualistas da Igreja Católica. Todos receberam aportes financeiros e midiáticos para seu crescimento e divulgação. Nessa época, tomaram força, além das igrejas evangélicas neopentecostais, a Renovação Carismática Católica, a Canção Nova e outros movimentos espiritualistas católicos, com amplo apoio da mídia corporativa – que fez, inclusive, os “padres cantores” adquirirem status de celebridades pop. Hoje, lidamos com o crescimento vertiginoso do fundamentalismo cristão evangélico nas periferias e com movimentos cismáticos de oposição ao papa Francisco dentro da Igreja Católica por seu pontificado mais aberto a um cristianismo libertador. O crescimento do fundamentalismo religioso e o apoio dos neopentecostais (evangélicos e católicos) à extrema direita e às ideias ultraliberais não podem ser interpretados apenas sob a luz de fatores sociopsicológicos: foram também resultados de uma ação planejada.
Em outro campo, nas universidades, o marxismo e o pensamento vinculado à tradição crítico-emancipatória foi perdendo espaço rapidamente para as teorias pós-modernas.24 O pensamento crítico, com inspiração marxista e ampliado pelas reflexões das teorias emancipatórias latino-americanas (teologia da libertação, pedagogia do oprimido, pedagogia histórico-crítica, filosofia da libertação, etc.) viu seu espaço ocupado pelo relativismo pós-moderno e os autodenominados “estudos pós-críticos”, que reivindicam a superação das teorias emancipatórias “contaminadas” pelo “paradigma da modernidade”, em nome de um relativismo acrítico, da descrença em qualquer transformação estrutural e global da sociedade e da redução da emancipação a questões de ordem subjetiva e cultural.25 Também essa “mudança de paradigma” não pode ser compreendida apenas como fruto da desilusão de intelectuais com o paradigma crítico-emancipatório.
Essas teorias viriam, mais tarde, a embasar alguns novos movimentos identitaristas, para os quais as causas relacionadas às minorias (mulheres, negros, etnias oprimidas, LGBTs) – que passaram a fazer parte das pautas de movimentos emancipatórios críticos por força da luta dos movimentos feministas e negros de esquerda – poderiam (e para alguns até deveriam) desvincular-se da luta pela transformação das bases econômicas da sociedade e abrir mão da solidariedade de classe entre as vítimas de opressão – o que gerou divisões e conflitos dentro dos próprios movimentos sociais e grupos emancipatórios.26
No interior do que muitos hoje chamam de “as novas formas de luta”, há grupos e formas de abordagem das temáticas que devem ser vistos com precaução e boa dose de suspeita, principalmente quando são apoiadas e financiadas com recursos de bancos internacionais e entidades como a Open Society (pertencente ao megainvestidor George Soros) e fundações como a Ford, Rockefeller, Bill & Melina Gates e outras. Com o avanço das pautas identitárias e a sua vinculação com as propostas de transformação social e grupos de esquerda, a iniciativa privada, atendendo ao chamado do Documento de Santa Fé II,27 percebeu que não poderia contar apenas com o dinheiro estatal para ganhar a guerra cultural nesse campo e decidiu aportar também parte de seus bilhões para ONGs, sites e grupos identitaristas, desde que não tivessem relações com a esquerda tradicional (de preferência que a criticassem), com ideias marxistas ou com a crítica radical à economia capitalista.28
Essa ação do inimigo provocou uma grande confusão no campo da esquerda, principalmente entre os mais jovens, pois lidou com questões caras à ação emancipatória que começaram a ganhar força na década de 90. Os movimentos feministas, negros e, mais recentemente, LGBTs, expuseram o fato de que o patriarcado, o racismo e questões relacionadas a gênero são elementos culturais que precisam ser transformados e que não tiveram prioridade e atenção nas lutas políticas até os anos 1980. As elaborações teóricas críticas nesses campos propõem que patriarcado e racismo são conceitos gerais que se encarnam historicamente em uma realidade determinada por um sistema econômico e ganham concreticidade na configuração de classes que esse sistema determina. Não se pode compreender o capitalismo nos países periféricos sem a escravização do negro nas Américas, o racismo, o etnocentrismo, a questão indígena e o papel destinado à mulher na dinâmica da exploração. E vice-versa: a situação dos que são vítimas desse tipo de opressão, embora envolva elementos culturais e subjetivos que ultrapassem a questão econômica, recebeu uma determinada configuração em consequência da maneira como o sistema a utilizou em benefício da exploração econômica.
Os movimentos negros e feministas existem há décadas e há uma ampla elaboração teórica em várias áreas das ciências humano-sociais fundada na perspectiva de raça, gênero e etnia. A maioria desses movimentos, na história, tem suas origens entrelaçadas com a luta socialista e anticapitalista e são resultados da percepção de que há opressões específicas no interior da classe trabalhadora, que diferenciam a exploração entre os próprios dominados e que precisam ser tratadas por lutas específicas, sem renunciar à compreensão da necessidade de superação do sistema.
Dentro da heterogeneidade que hoje caracteriza os diversos movimentos, situam-se certos grupos identitaristas, muitos apoiados por fundações estrangeiras e com ampla visibilidade midiática e editorial, que abandonaram a reflexão sobre o patriarcado e o racismo conectada ao sistema. Tornaram-nos temas genéricos e conceitos que existem por si sós, independentes das configurações materiais da sociedade, conforme convém às teorias pós-marxistas. Como resultado, para essa visão, o machismo e o racismo passam a ser problemas apenas dos “homens” e dos “brancos” individualizados e compreendidos indistintamente. Estes passam a ser os inimigos e não a cultura que os reproduzem e o sistema que os envolvem em sua lógica. Visto dessa forma, não se percebe, inclusive, que o próprio sistema se tem apropriado desses temas a seu favor, pois é capaz de, estrategicamente, adaptar-se às novas necessidades da dominação. Os donos do capital perceberam que podem também influenciar a formação da subjetividade social nesse campo e ganhar mulheres, negros, indígenas e população LGBT para seu ideal ultraliberal e apresentá-lo como solução também para seus problemas.
O problema surge quando a concepção liberal dos temas identitários, talvez pela sua ampla difusão pela mídia, sites, livros etc. (possibilitada pelo aporte financeiro das fundações citadas) se confunde, muitas vezes, com as próprias pautas. Daí decorre, por um lado, que muitos acabem pensando que a adesão à luta pelas causas identitárias significa necessariamente a defesa incondicional de qualquer ideia relacionada a elas e, por outro, que quaisquer críticas a certas ideias (e não às pautas) sejam rebatidas como se fossem dirigidas às causas identitárias em si mesmas.29 Com isso, criam-se fissuras e divisões dentro dos movimentos emancipatórios, que são multigenéricos e multirraciais.
A dificuldade de se lidar com essa questão nasce da incapacidade de se fazer distinção entre, de um lado, a pertinência das causas e o valor histórico dos movimentos identitários (tanto os mais antigos quanto os que se organizam sob novas formas e expressões) e, de outro, a penetração invisível do ideário liberal e pós-moderno que tem dominado alguns grupos. A crítica a uma forma de se conceber a luta (principalmente quando feita por homens brancos) pode ser facilmente confundida com a postura branca e masculina dominadora. Porém, não se trata de fazer qualquer questionamento à importância dos temas identitários ou dos grupos que os têm como eixo, mas de questionar uma maneira específica de se tratar a questão – questionamento, ademais, feito no interior dos próprios movimentos.30 Enquanto essas questões permanecerem um “tabu” e motivos de divisões na esquerda, os estrategistas do sistema comemorarão a eficácia de sua ação.
Em síntese, a estratégia definida pelo “quartel-general” dos filisteus no limiar da década de 1990 previa duas frentes: avançar no território estratégico que, segundo eles, estava dominado pelo inimigo e, ao mesmo tempo, aniquilar as defesas do adversário destruindo suas armas e gerando divisões entre seu exército (na linha do “dividir para conquistar”, um dos mais antigos e eficazes princípios estratégicos).
As recentes tecnologias de informação digital e o uso das redes sociais de forma cientificamente planejada em vista de fins bem definidos potencializaram ao máximo essa estratégia do Golias do capital. Sua força tornou-se assustadora na tomada do território estratégico da consciência social, gerando irracionalismo, fundamentalismo, visões distorcidas e invertidas da realidade, crescimento da intolerância e do espírito fascista. Mas não podemos pensar essas tecnologias sem entender os objetivos para os quais são utilizadas. Caso contrário, tenderemos a interpretá-las como se elas, por si mesmas, fossem a nova forma de dominação e, consequentemente, não entenderemos seu verdadeiro papel nessa guerra.
Davi largou a funda…
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o sistema colocava em marcha suas ações planejadas de conquista da subjetividade social, a esquerda , os movimentos sociais e mesmo os setores progressistas das igrejas31, descuidadamente e carente de percepção estratégica, abandonaram gradativamente o território estratégico que ocupavam, não construíram defesas e deixaram o campo aberto para a penetração do inimigo. Coincidiu que, na mesma década de 1990, a priorização da disputa eleitoral e da gestão dos espaços de poder conquistados passou a absorver todas as energias dos partidos e movimentos emancipatórios.
O resultado não poderia ser outro. Quando abandonamos um território estratégico sem deixar defesas sólidas construídas, é quase um convite para a invasão do inimigo. A maioria dos que lutavam pela transformação do sistema passaram a preencher todo seu tempo e canalizar todas as energias nas eleições e ocupação do poder institucional e deixaram de lado o trabalho de educação popular, organização das bases, estudo e produção teórica crítica sobre a realidade. A consciência social, deixada ao sabor da mídia corporativa e das redes sociais, foi conquistada pelos que queriam a manutenção da ordem e o estabelecimento do mercado como único princípio definidor das relações entre os seres humanos e destes com a natureza. O campo que os estrategistas de Santa Fé viam como obstáculo para seus objetivos se converteu em ameaça para nossos propósitos.
Hoje, como consequência, vemos esse território subjetivo dominado por ideias ultraconservadoras, protofascistas e pelo fundamentalismo religioso e totalmente suscetível aos ataques psicológicos e informacionais da mídia corporativa e dos meios digitais. A ameaça que movimentos sociais e governos de esquerda, centro-esquerda e nacionalistas podem representar para os interesses do Golias do capital pode ser facilmente debelada com a manipulação da sociedade civil. O controle desse campo pode se converter em votos ou mobilizações que favoreçam os políticos e movimentos de direita, facilitando golpes (suaves ou militares) ou eleições que mudem os rumos da política e da economia dos países para submetê-los às exigências do mercado.
Depois de várias décadas de influência planejada na sociedade civil, para a qual se destinou vultosos recursos, não é de se admirar que parte significativa da população venha a apoiar alternativas de direita ou extrema-direita, que atualmente se mesclam com o fundamentalismo religioso neopentecostal. Os casos brasileiro e boliviano recentes mostram apenas a que ponto pode chegar a intensificação dessa estratégia. Bolsonaro e Jeanine Áñez são apenas resultados visíveis (talvez não previsíveis para o sistema, mas, de qualquer forma, aceitáveis) de uma estratégia de longo prazo que a esquerda não percebeu.
Como retomar a funda?
Na ânsia de respostas sobre as causas da tragédia política do Brasil, tem sido comum a busca pela autocrítica e correção de erros passados cometidos pelos partidos de esquerda, movimentos sociais, igrejas progressistas e intelectuais críticos. É certo que conhecer os erros e procurar corrigi-los é atitude fundamental para todos que querem avançar de forma mais eficaz. Porém, pode haver exageros e equívocos quando se faz a autocrítica isolada da análise estratégica. Nunca podemos esquecer que estamos em luta contra um inimigo e que nem tudo o que acontece tem apenas causas endógenas. Ou seja, nem tudo é produto de erros internos ou de ações equivocadas, pois, ao mesmo tempo em que nos movimentamos e agimos, há um inimigo muito competente e poderoso atuando no sentido contrário e buscando anular a efetividade de nossas ações. Nem tudo o que fizemos, mesmo que tenhamos sido derrotados, pode ser descartado como erro.
Pensar estrategicamente exige a análise dos movimentos do adversário, a fim de se pensar as contra-ações que visem proteger nossa tática das tentativas de anulação perpetradas pelo inimigo, suprimir seus efeitos, corrigir equívocos e reforçar acertos. Não se trata de buscar, sempre, um recomeço do zero diante de cada batalha perdida.
Uma pequena metáfora nos ajuda a entender isso melhor. Imaginemos que nossa missão seja montar um castelo com cartas de baralho. Planejamos empilhá-las cuidadosamente, de maneira que se equilibrem e se sustentem. Na metade do trabalho, um inimigo, para evitar que atinjamos o objetivo, liga um ventilador a uma certa distância, fazendo com que o vento impossibilite o equilíbrio das cartas. O que devemos fazer?
Primeiro, precisamos avaliar a situação que provocou o fracasso de nossa empreitada. Se a avaliação for guiada pela ideia de que tudo o que ocorre é fruto apenas de decisões e ações equivocadas de nossa parte, sem considerar a ação contrária do inimigo, pode-se chegar à conclusão de que o problema está apenas na maneira que escolhemos para construir o castelo. Pode resultar daí o abandono da ação de empilhar e equilibrar as cartas, seguida da tentativa de se pensar maneiras totalmente diferentes de se atingir o objetivo. As críticas e a rejeição à maneira “tradicional” de se montar o castelo, nesse caso, poderão dar o tom de nossos discursos e reflexões teóricas e, a seguir, surgirão centenas de ideias sobre a necessidade de “novas formas” de ação – a maior parte delas, senão todas, carentes de apontamentos práticos para o que seriam essas novas formas.
Se é um erro obtuso continuar na tentativa de montar o castelo de cartas da mesma forma sem considerar o ventilador colocado pelo inimigo, é igualmente errado acreditar que apenas uma nova forma de se montá-lo poderá solucionar o problema do vento nas cartas.
O correto, nesse exemplo, seria: a) tentar desligar o ventilador do inimigo ou, caso não seja possível ou não tenhamos forças suficientes para tanto, b) criar uma barreira de proteção para que o vento não atinja as cartas. Caso a montagem tradicional do castelo tenha dado resultados favoráveis em outras ocasiões (sem o ventilador) e nada indique que ela seja ineficaz, o esforço deve se concentrar na anulação da tática do inimigo e não necessariamente no abandono da forma de se fazer o que já foi feito. Claro que se pode pensar em alternativas que aprimorarem o modo de montagem, mas abandonar uma ação que se mostrou correta em diversas ocasiões, sem considerar as ações do inimigo em sentido contrário, é um erro profundo.
Portanto, qualquer autocrítica deve evitar converter-se em lamentação catártica, rejeição em bloco do passado disfarçada de “abertura para o novo” ou exercício livre, muitas vezes inconsequente, de teorização sobre “novidades redentoras” e “novos paradigmas”. A necessidade de uma contra-ação do inimigo a uma ação estratégica nossa revela, na verdade, o acerto e a eficácia da ação executada. Pois, caso ela fosse ineficaz, bastaria a ele deixá-la ocorrer, sem necessidade de envidar tantos esforços para anulá-la. Para usar uma terminologia do pugilismo, se foi aí que ele sentiu o golpe, é aí que devemos golpear com mais intensidade.
Essa é uma importante chave de leitura da realidade quando se considera que estamos em uma disputa contra um inimigo inteligente, poderoso e que age constantemente. Ela nos ajuda, inclusive, a nos conhecer melhor, renovar as ações, abrirmo-nos para novidades, incorporar conhecimentos e recursos que não existiam no passado, mas também a evitar “modismos discursivos”. Como nos movemos no terreno dos projetos, é muito fácil cairmos na tentação do “melhor discurso” no lugar da “melhor estratégia” – e o anúncio do “novo” sempre contribui para a estética discursiva. Porém, para citar uma frase de Pedro Ribeiro de Oliveira: “nem tudo que é bom é novo e nem tudo que é novo é bom”.
O que, para nós, poderia ser comparado à “funda de Davi” foi aquilo que provocou o medo e a reação do Golias: a conquista gradual e permanente do território estratégico da subjetividade social. A pedra ia na direção certa rumo à testa do gigante, até que ele a interceptasse. Portanto, a questão estratégica central é: como retomar o território perdido? Se aceitamos a centralidade desse objetivo estratégico, todas demais ideias e propostas devem ser pensadas nessa direção.
Antes de apresentar algumas proposições para debate e crítica – o que será feito em 5 pontos a seguir –, precisamos ser realistas e ter consciência de que não são possíveis ações de curto prazo que se contraponham aos efeitos de uma estratégia de longo prazo bem executada. Estamos em um momento que exige o abandono do imediatismo (sem largar o esforço de ações que minimizem os efeitos do problema) e a retomada da paciência histórica. Por mais dura e triste que seja a realidade, o desespero e a ação imediatista não contribuem para a busca de soluções adequadas. A história teve momentos piores.
A mística e o cultivo da utopia são elementos imprescindíveis para a formação da consciência histórica e de ação de longo prazo, como nos mostram os movimentos emancipatórios surgidos na América Latina inspirados na Teologia da Libertação e a formação de um campo evangélico crítico pela Teologia da Missão Integral. A versão secular da mística transformadora tem sido sempre trabalhada por movimentos como o MST. Seja pela mística religiosa e a utopia de um Reino de Deus, seja pela mística secular e a utopia do socialismo, o reforço desse plano é pré-condição para a elaboração e aceitação de estratégias não imediatistas.
Mas, como vimos, não foram apenas o ímpeto e a fé de Davi que o fizeram vencedor, embora sem eles Davi não se teria lançado ao desafio. Por isso, precisamos pensar objetivos estratégicos que se transformem em ações. Consciente da complexidade da tarefa, deixo algumas modestas sugestões, para críticas, aperfeiçoamentos ou contestações. É preciso, ao menos, começar por algum lugar.
1) Deslocar-se do contexto de batalha no qual o gigante é mais forte.
Já foi demonstrado pela história recente do Ocidente que a disputa eleitoral na limitada democracia capitalista favorece a quem tem dinheiro e o controle da mídia. Consequentemente, o poder dos parlamentos, que deliberam por maioria, é sempre dos que possuem o poder econômico. Parlamentares de esquerda fazem a diferença, pelas denúncias, projetos apresentados, interlocução com a sociedade civil etc., mas, por serem minoria, não conseguem ter, de fato, poder de definir a ação legislativa. Sem desconhecer os avanços possíveis e a necessidade de ampliar a representação das classes populares nesse poder, não podemos esconder o fato de que sempre perdemos nas batalhas maiores nesse campo.
Por outro lado, o deslocamento do poder da esfera política para a econômica deixa pouca margem de ação transformadora para quem ocupa o Poder Executivo. A força dos ataques na esfera econômica globalizada limita a capacidade de ação do Executivo e o impele a inúmeras capitulações e concessões ao mercado. No modelo de presidencialismo de coalisão, como o do Brasil, a necessidade de maioria no parlamento força o Executivo a jogar com as regras da política viciada e corrupta. Adicionalmente, o poder da mídia sobre a avaliação popular dos governos também limita a continuidade e permanência no poder das forças mais progressistas ou contrárias ao reino absoluto do mercado.
Muitos optaram por lutar com as armas do gigante no contexto de batalha político-eleitoral e do exercício do poder institucional, o que significou aliar-se aos inimigos, aceitar seus recursos e permitir que as regras viciadas do jogo, que conduzem à corrupção, fossem usadas sob o pretexto da justificação dos meios pelos fins.32
Resulta daí que o contexto de batalha das eleições e gestão das parcelas de poder conquistadas, sem a contrapartida da luta em outros contextos, é sempre favorável ao gigante. É uma luta com as armas do inimigo, cujo peso não suportamos, e, por isso, sucumbimos e acumulamos derrotas.33
Continuar reduzindo nossa estratégia de luta ao contexto de batalha que favorece o adversário é desperdiçar nossas forças, sem contar o já mencionado problema do abandono do território estratégico sem construção de defesas. Isso não significa deixar de dar importância ao processo eleitoral ou à gestão de parcelas do poder em benefício da população mais vulnerável. Significa apenas que o foco das ações deve deslocar-se desse campo para outro contexto de luta. Da mesma forma que a vitória de Davi não veio do uso das armas que Saul lhe queira emprestar, nossa salvação não virá das “próximas eleições”.
2) Reconquistar a subjetividade social pelas bases.
O contexto de batalha que já se mostrou favorável às classes populares é o da formação crítica da subjetividade social que se converteu em movimentos e ações concretos. A formação e organização das bases da sociedade civil, a influência na academia e no campo da educação e produção teórica e a vivência libertadora das religiões alertaram os estrategistas de Santa Fé para o risco que a conquista desse território representava. Se foi aí que o adversário “sentiu o golpe”, é aí que devemos bater mais.
No passado recente, mesmo no contexto de uma ditadura militar explícita, a conquista da consciência social se fez pela educação popular, produção teórica-crítica nas universidades, comunicação popular, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), pastorais populares, pastorais da juventude, trabalhos formativos dos movimentos sociais etc. Foi uma ação que deu resultados concretos e grande parte dos movimentos organizados e militantes políticos que ainda hoje estão em ação são seus produtos diretos. Basta fazer uma análise da nossa história pessoal ou das pessoas mais antigas que ainda hoje compõem esses movimentos.
Algumas análises, baseadas apenas em uma avaliação endógena da situação atual, anunciam o “esgotamento” dessa estratégia ou atribuem o presente quadro de derrotas à sua suposta inadequação. Penso que isso seria o mesmo que ignorar o ventilador da metáfora que usei anteriormente. As práticas e as teorias a elas relacionadas, que muitos julgam esgotadas em sua realização, foram, na verdade, abortadas antes de mostrarem seu pleno resultado. Além da contra-ação do inimigo, como já foi assinalado, houve um abandono dessa estratégia ainda em seu momento de crescimento prático e de acúmulo teórico. Poucos militantes que iniciaram sua vida política após a década de 90 conhecem a riqueza das experiências e dos materiais teóricos produzidos no campo da educação popular, seja no campo religioso popular ou dos movimentos sociais. Resgatar essa práxis é possível e necessário.
Obviamente, não se pode repetir as estratégias com as mesmas táticas, sem levar em consideração as mudanças objetivas e subjetivas da realidade atual. Porém, suas orientações, metodologias, objetivos e experiências bem-sucedidas, desde que passem por um processo de adequação à realidade, são ainda concretizáveis.
Ao se propor uma reconquista da base subjetiva da sociedade, deve-se também compreender criticamente seu contexto subjetivo atual e as novas formas de sociabilidade que desenvolvem. Aqui entram discussões que, pela amplitude e profundidade, fogem aos limites do presente (e já longo) texto. Mas é possível, ao menos, enunciá-las.
As classes populares latino-americanas são profundamente religiosas. Qualquer ação que vise conquistar a subjetividade popular que desconheça ou despreze o fenômeno religioso tem poucas condições de êxito. As populações mais vulneráveis não recorrem ao neopentecostalismo por imposição dos estrategistas do capital, mas pela necessidade de vivenciar uma dimensão de suas vidas. O sistema apenas oferece o atendimento à demanda de acordo com seus objetivos e o usa para atingi-los. Torna-se fundamental compreender e saber trabalhar de maneira adequada e crítica esse elemento essencial da subjetividade popular que tem sido apropriado pelo neopentecostalismo católico e evangélico dentro da estratégia do sistema.
O combate ao fundamentalismo e à captura dos sentimentos religiosos da população por formas alienantes de vivência da fé não pode ser feito pela negação da religiosidade, pelo sarcasmo e ridicularização dos seguidores de seitas, pelas atitudes que escandalizam (que, em gíria militante, têm sido chamadas de “lacração”) etc. Trata-se de um desafio para a Teologia da Libertação e para a Teologia da Missão Integral oferecer uma vivência religiosa que atenda, ao mesmo tempo, a procura do espiritual e a formação da consciência crítica.
O campo da cultura também é estratégico. Para avançar nesse plano, é preciso um conhecimento crítico da cultura popular, que saiba diferenciá-la da cultura de massas e dos produtos da indústria cultural e identificar seus pontos de interseção. Nem tudo que vem “da periferia” é cultura produzida e massificada “pela periferia”. Apenas incorporar ou valorizar quaisquer produtos culturais apropriados, processados e massificados pela indústria cultural – que costumam vir carregados, inclusive, de diversos valores que combatemos – só porque se reproduzem “na periferia” não contribui para a conquista dessa importante parte do território subjetivo. Tampouco podemos desprezá-los ou rejeitá-los de forma elitista – não é disso que se trata. Importa saber como trabalhar e promover a cultura popular, em diálogo principalmente com a juventude e suas formas de manifestação cultural, sem, contudo, perder a dimensão crítica da análise desses fenômenos e da produção de valores e concepções de mundo que se opera por meio deles.
As maneiras de organização das bases sociais também nos apresentam novidades. Além de mudanças na estrutura organizativa tradicional mostrada pelos “coletivos” temáticos (mudança na forma), há também os grupos que se unem em torno da prática econômica alternativa (mudança de conteúdo). As experiências da economia solidária, produção associativa, autogestão e outras práticas de produção coletiva da vida e de cuidado com o ambiente são realidades crescentes. Porém, nem sempre criam, espontaneamente, a consciência crítico-social ou fazem correlação de sua prática com a estrutura socioeconômica. Por isso, são ainda espaços em disputa. Conhecê-las, integrá-las, reforçá-las, criá-las e teorizar sobre elas também são importantes ações estratégicas dentro do objetivo geral de retomar o território subjetivo pelas bases.
3) Trabalhar a dimensão teórica
Conforme foi visto, o documento de Santa Fé II trata a produção intelectual crítica e sua influência no meio acadêmico como ameaças. O plano teórico também é um campo de disputa na sociedade, pois, visto que ação humana é sempre consciente, não existe prática sem uma compreensão teórica (mesmo que difusa) da realidade sobre a qual se age. A ação humana é, como disse Marx, práxis, uma unidade entre consciência e ação. Tanto os autores do Santa Fé II como as estratégias descritas por Rothbard para o predomínio da concepção anarcocapitalista preveem o domínio do ambiente acadêmico e da produção teórica.34
Por outro lado, a inconsistência das elaborações teóricas pós-modernas – que se tornaram modas no ambiente acadêmico e se apresentam como as novas e únicas abordagens capazes de lidar com as transformações do mundo – tem gerado práticas militantes que rejeitam ou não conseguem compreender os nexos entre as micro-opressões e a estrutura sistêmica do capitalismo. A deficiência do instrumental teórico analítico-interpretativo tem consequências na nossa capacidade de interpretação coerente do mundo e cria também dificuldades na ação transformadora.
Não podemos negar, no entanto, que as mudanças no mundo trouxeram algumas realidades e desafios que não podem simplesmente ser compreendidas à luz do que já se tem elaborado no campo da tradição teórica crítica de inspiração marxista ou nas teorias emancipatórias elaboradas nos países periféricos. As teorias devem responder às questões que surgem em cada época. Por exemplo, é ainda um problema teórico importante a vinculação das teorias críticas de transformação social centradas na economia com os problemas específicos das opressões de raça, gênero e etnia. Mas, como ainda vivemos, no plano do tempo estrutural (o tempo da longa duração dos sistemas econômicos), sob o império do capitalismo, não podemos descartar as teorias que desvendaram a lógica e os mecanismos desse sistema, possibilitaram a compreensão de sua relação com os planos objetivo e subjetivo de nossa existência e especularam sobre os caminhos possíveis para sua superação.
Por isso, a tarefa de elaboração teórica e de pensar a emancipação de maneira adequada ao nosso tempo é também um imperativo da militância no plano intelectual. E isso não pode reduzir-se à publicação de inúmeros artigos acadêmicos em revistas especializadas, cujo número de leitores é assustadoramente pequeno, para aumentar os quantitativos que medem a produtividade dos professores universitários. Trata-se de uma ação de conquista de mentes. As universidades formam professores, jornalistas, comunicólogos e outros formadores de opinião que tem papel fundamental na formação da subjetividade social. Não é à toa que tanto a CIA quanto os mentores do anarcocapitalismo a colocam como elemento fundamental de sua ação.
4) Usar a conquista de parcelas do poder de forma tática para fortalecer a ação estratégica
Disse anteriormente que o foco da nossa estratégia não pode estar na conquista e gestão de parcelas do poder institucional. Agora, porém, é preciso dizer que sua ocupação não deixa de ter uma grande importância na concretização dos objetivos estratégicos. Contudo, essa ação deve ser compreendida como tática, ou seja, como instrumento, meio para se chegar aos objetivos estratégicos. Como tal, os mandatos parlamentares e as administrações progressistas que compartilham os objetivos gerais do processo emancipatório podem se colocar a serviço dos movimentos sociais e contribuir com a conquista da subjetividade social.
As possibilidades são muitas, algumas já executadas ou em execução. Há mandatos parlamentares que aglutinam movimentos, associações, grupos de economia solidária, de produtores agroecológicos, de ambientalistas, ativistas de direitos humanos etc. e oferecem-lhes oportunidades para o fortalecimento de suas lutas – por meio da apresentação de leis, apoio institucional para seus eventos, canais de interlocução com o Executivo etc. – e para a formação da consciência de seus integrantes.35
A presença no Poder Executivo precisa ser pensada com mais atenção. Se a ocupação desse espaço não for entendida plenamente como a presença das classes populares no poder, com todas as consequências que isso tem para o planejamento e execução das ações administrativas, e pretender revestir-se com a falsa ideia de neutralidade, de um “governo de todos”, sua conquista não trará mais benefícios para a transformação social do que a presença de um “bom político” da direita moderada poderia trazer.
Os representantes do capital nunca fazem um “governo para todos”. Eles não demonstram ter escrúpulos para gerir a máquina pública totalmente de acordo com os interesses exclusivos dos donos do capital. Sequer se mostram preocupados com os protestos da sociedade civil, desde que não se transformem em protestos da mídia.
Muitos governos que se pretendem de esquerda, ao contrário, compraram a ideia de que precisam ser “neutros” e “governar para todos” (seja lá o que isso signifique em uma sociedade de classes antagônicas), mesmo em uma história de 500 anos em que o Estado serviu exclusivamente às elites econômicas. Dessa forma, e com um temor paralisante da opinião da mídia que só se justifica pela priorização do jogo eleitoral,36 acabam não utilizando a estrutura da máquina estatal para a formação da consciência crítica, politização da população, democratização da comunicação, fortalecimento das organizações e experiências de economia alternativa e outras ações que poderiam produzir um avanço na consecução da estratégia de retomada do território perdido da subjetividade social.
Por isso, repensar a ocupação do poder institucional é elemento fundamental para a consecução do objetivo estratégico de retomar e avançar sobre o território subjetivo.
5) O desafio da comunicação digital
Por fim, algumas palavras precisam ser ditas sobre o que se tem considerado o grande desafio – e, ao mesmo tempo, se apresentado como o “caminho das pedras” – para a conquista da subjetividade social: as mídias digitais. Seria excesso de presunção tratar um tema tão específico e complexo neste texto sem a necessária especialização no tema, mas algumas breves considerações podem ser colocadas para discussão.
Após seu papel nas eleições de 2018, o uso das redes sociais e de aplicativos de mensagens digitais, principalmente o Twitter e WhatsApp, tornou-se o centro das preocupações. A sua incrível eficácia na produção e generalização de visões falsas e distorcidas do mundo, sua capilaridade (está em todos os celulares, nas mãos de diversas camadas sociais) e sua força para dar divulgação e credibilidade às falsas notícias acenderam um alerta. As empresas especializadas em seu uso para fins bem definidos, no marketing comercial ou na política, tornaram-se poderosas pela capacidade de analisar dados e criar algoritmos que direcionam ideias e notícias (falsas ou verdadeiras) de acordo com perfil de cada pessoa para manipular pensamentos e atitudes. São armas poderosíssimas que merecem uma especial atenção.
Porém, devemos ter alguns cuidados na análise desse fenômeno. Primeiro é preciso entender que as mídias digitais, como o próprio nome já diz, são meios (mídiavem do latim media, quesignifica “meios”). Todo meio é usado em função de um fim. Não podemos confundir os fins com os meios e pensar que a comunicação digital moderna é um mal em si mesma. O sistema a utiliza para seus fins tanto quanto utiliza jornais, rádio, TV e a World Wide Web dos primórdios da Internet. Por outro lado, tampouco podemos pensá-la como a nossa salvação. É bastante ingênua a crença de que as formas de luta, mobilização e resistência terão seu novo plano de concretização nas redes sociais virtuais, em função do que elas possibilitaram na chamada “Primavera Árabe”, ou nas mal compreendidas “Jornadas de Junho e Julho” no Brasil em 2013.
As mídias digitais são instrumentos que reproduzem, potencializam e formatam, no plano virtual, o que acontece no plano objetivo e subjetivo das relações sociais reais. Como instrumentos e meios, têm um papel relevante, que pode inclusive retroalimentar as relações reais e dar-lhes características específicas, mas estarão sempre submetidas à dinâmica das relações sociais concretas, que não nascem no ambiente virtual, senão que são forjadas em um mundo determinado. Consequentemente, as transformações no plano da realidade concreta sempre terão impacto também no mundo virtual.
Em segundo lugar, é preciso avaliar se realmente temos condições de deslocar o foco de nossas ações para esse campo. Empresas como a Cambridge Analytica (de Steve Bannon, mentor da campanha de Trump e consultor da campanha de Bolsonaro) e diversas outras contam com um arsenal de estudiosos, técnicos, tecnólogos da informação e volume enorme de recursos financeiros para atuarem de maneira eficaz no mundo digital. Podemos lutar com essas armas nesse contexto de batalha com nossos parcos recursos humanos, técnicos, financeiros e de conhecimento? Não seria um caso em que Davi iria ao encontro de Golias no seu contexto de batalha tentando arrastar-se sob o peso da armadura, couraça, espada e lança de Saul?
Ou seria melhor pensarmos que, assim como há uma parcela da população que se encontra suscetível à produção de “verdades” da mídia digital, há outra sobre a qual elas não têm tanta eficácia? O que tornou essa outra parcela imune ao bombardeio de fake news e da ideologia anarcocapitalista e neopentecostal? A base militante dos movimentos sociais, CEBs e pastorais sociais e aqueles que estão sob sua área de influência possuem uma espécie de “anticorpo” que neutraliza a ação do “vírus”. Isso sugere que a eficácia do uso das mídias digitais para fins opostos aos nossos depende da subjetividade social que recebe os ataques informacionais.
A TV, em outras épocas, liderava a formação ideológica da população. Fomos tão capazes de criar suspeitas em relação a ela que até os adversários, hoje, se utilizam da ideia de que os meios de comunicação manipulam a realidade. De onde veio a revelação de que a mídia televisiva propaga valores negativos em novelas e programas e manipula as notícias em seus telejornais? A força da TV permanece, embora tenha perdido a liderança para as redes sociais e aplicativos de mensagens, mas foi reduzida após décadas de críticas e denúncias feitas pelos setores críticos e organizados da sociedade civil.37 Não seria um caso possível de se comparar com a barreira que reduziria o efeito do ventilador em nossa metáfora do castelo de cartas?
Não estaria, também aí, colocada a necessidade de uma funda para lutar contra a força e as poderosas armas do gigante? Acredito que, também nesse campo, seria mais adequado e possível neutralizar sua estratégia do que entrar em uma luta “corpo a corpo” com armas similares em situação inicial de tremenda (e talvez insuperável) desvantagem.
Apesar de o problema da comunicação digital não dever, em minha opinião, ser colocado como o eixo da estratégia, não podemos, de maneira alguma, diminuir sua importância, seus riscos e possibilidades. Esse é um desafio que cabe aos que podem pensar a comunicação popular com domínio dos conhecimentos, tecnologias e técnicas desse campo tão especializado.
“Às barricadas!”
O objetivo deste texto não é mais do que a convocação para a discussão e o debate sobre questões estratégicas nestes tempos tão sombrios e desoladores da conjuntura. Embora com algumas proposições formuladas em forma de imperativos (“devemos”, “é preciso”, “faz-se necessário”…) não pretendi apresentar nenhuma fórmula ou ditar caminhos como se fosse portador de algum mapa. Trata-se apenas de uma visão pessoal e limitada de quem entende que é preciso começar por algum lugar.
Não vejo melhor forma de conclui-lo do que citar alguns versos da canção que se tornou popular na Revolução Espanhola de 1936, ¡A las barricadas!
Negras tormentas agitam os ares Nuvens escuras nos impedem de ver Mesmo que nos espere a dor e a morte Contra o inimigo nos chama o dever […] De pé, povo operário, para a batalha, É preciso derrotar a reação Às barricadas! Às barricadas!38
Referências
1 – DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
2 – PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
3 – O Fórum Econômico Mundial fez, em 2016, uma estimativa de que as atividades do crime organizado rendem anualmente cerca de US$ 1 trilhão. O Escritório da ONU contra Drogas e Crimes estima esse rendimento em US$ 2 trilhões (mais do que o PIB brasileiro de 2018). Cf. BBC News. As cinco atividades do crime organizado que rendem mais dinheiro no mundo. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160331_atividades_crime_organizado_fn
4 – O FMI estimou em U$ 800 bilhões o prejuízo mundial anual causado pela evasão fiscal. Trata-se de dinheiro que poderia tornar-se receita para os Estados investirem no combate à pobreza, defesa e recuperação do meio ambiente degradado e serviços públicos de qualidade. Cf. CORREIO BRAZILIENSE. Prejuízo mundial com paraísos fiscais chega a US$ 800 bilhões, 05/10/19. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/10/05/internas_economia,794922/prejuizo-mundial-com-paraisos-fiscais-chega-a-us-800-bilhoes.shtml. O volume de recursos da atividade corporativa mundial sem controle e sem taxação foi estimado, em 2013, entre 21 trilhões a 32 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 73,5 trilhões (Cf. DOWBOR. Idem, p. 83-91).
5 – “Em 2018, o governo estima que as perdas com gastos/incentivos tributários cheguem a R$ 283,5 bilhões, o que representa 4,0% do nosso PIB e cerca de 1/5 da receita administrada pela Receita Federal no mesmo ano. Para fins comparativos, este montante seria suficiente para cobrir 9 anos de Bolsa Família, considerando o valor gasto com o programa em 2018. […] A previsão do governo para 2019 é de que as perdas de receita atinjam R$ 306,4 bilhões, um incremento de quase R$ 23 bilhões em relação ao ano passado”. DAMASCENO, Juliana. Quanto custam os benefícios fiscais no Brasil. Disponível em https://ekonomus.home.blog/2019/02/14/quanto-custam-os-beneficios-fiscais-no-brasil/.
6 – Uma maneira ao mesmo tempo divertida e instrutiva de entender o esquema de lavagem de dinheiro e evasão fiscal possibilitado pelas empresas off-shore em paraísos fiscais, bem como a mistura de dinheiro legal e ilegal, é por meio do filme A lavanderia, dirigido por Steven Soderbergh e disponível no Netflix. O filme é baseado no caso real de vazamento que ficou conhecido como Panamá Papers.
7 – MARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 539.
8 – Em fevereiro de 2017, enquanto o PIB mundial girava em torno de US$ 80 trilhões, as transações em valores monetários somavam cerca de 544 trilhões (DOWBOR, idem, p. 108-109).
10 – Um desses grupos é o Estudantes Pela Liberdade (EPL), fundado no Instituto Charles Koch, vinculado a indústria de petróleo dos irmãos Koch. Os Koch figuravam, em 2018, na lista dos 10 maiores bilionários do planeta e estão entre as 26 famílias que juntas detêm mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. Cf. ÉPOCA NEGÓCIOS. Quem são os 26 bilionários que têm a mesma riqueza que metade do mundo. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2019/01/quem-sao-os-26-bilionarios-que-tem-mesma-riqueza-que-metade-do-mundo.html. O EPL atuou fortemente na articulação das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff e propaga o ultraliberalismo entre estudantes universitários em diferentes países. Outro exemplo é o American Enterprise Institute (AIE), um think thank (entidade de estudo e produção de ideias) dos EUA que nega o aquecimento global e oferece dinheiro a pesquisadores negacionistas do desequilíbrio climático de vários países. A entidade é financiada pela gigante petrolífera Exxon Mobil.
11 – As ideias de Rothbard e outras relacionadas ao anarcocapitalismo (também chamado de “libertarianismo”) podem ser conhecidas pelas publicações disponíveis no site do Instituto Rothbard: https://rothbardbrasil.com/biblioteca/. Algumas palavras de Rothbard: “Os libertários veem o estado como o supremo, eterno e mais bem-organizado agressor das pessoas e da propriedade de grande parte do público. Todos os estados, em todos os lugares, sejam eles democráticos, ditatoriais ou monárquicos, sejam eles vermelhos, brancos, azuis ou marrons.” ROTHBARD, M. Por uma nova liberdade: o manifesto libertário. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013, p. 64. Disponível para download no site citado.
13 – Ideias como igualdade de gênero e etnia, tolerância religiosa, laicidade do Estado, ideais republicanos etc. estavam presentes em pensadores liberais do século XVIII, como Condorcet, Rousseau, Voltaire, Locke, Montesquieu e outros. A declaração dos direitos humanos foi obra da burguesia revolucionária francesa.
14 – As mudanças no regime soviético implantadas por Mikhail Gorbachev, conhecidas como perestroika e glasnost (reconstrução e transparência), começaram em 1986. Segundo Arthur Gonzáles, documentos da CIA que tiveram o sigilo expirado sugerem que o ex-líder soviético pode ter agido com apoio da CIA e do bilionário George Soros com a intenção de “aniquilar o comunismo”. Ver. GONZÁLES, Arthur. Gorbachov se confiesa: “El objetivo de mi vida fue la aniquilación del comunismo”. Razones de Cuba, 07/07/18. Disponível em http://razonesdecuba.cubadebate.cu/articulos/gorbachov-se-confiesa-el-objetivo-de-mi-vida-fue-la-aniquilacion-del-comunismo/.
15 – Arrighi, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996.
16 – Na definição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os excluídos seriam a “areia na máquina”, que deveriam ser ajudados pelo Estado apenas para não atrapalhar o mercado. CF. FOLHA DE SÃO PAULO. A nova esquerda de FHC. Entrevista ao Caderno Mais!, 13/10/1996. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/13/mais!/9.html.
17 – Segundo Arrighi, “por volta de 1970 […] as empresas multinacionais haviam evoluído para um sistema de produção, intercâmbio e acumulação, em escala mundial, que não estava sujeito a nenhuma autoridade estatal e tinha o poder de submeter a suas próprias ‘leis’ todo e qualquer membro do sistema interestatal, inclusive os Estados Unidos. A emergência desse sistema de livre iniciativa […] [pode ter] dado início à decadência do moderno sistema interestatal como lócus primário do poder mundial (ARRIGHI, idem, p. 74).
20 – Vários membros dessa entidade tornaram-se embaixadores dos EUA em países latino americanos.
21 – Quando o documento fala em “democracia” ou “defensores da democracia”, os termos são confundidos com “capitalismo liberal” ou “defensores do capitalismo liberal”. Por isso falam da discussão sobre o melhor “regime”, em contraposição com o estatismo ou o socialismo.
22 – Ou seja, a administração que veio a ser assumida por George Bush, pai.
23 – United States Information Agency (USIA) – Agência de Informações dos Estados Unidos. Trata-se de “uma agência independente para relações exteriores dentro do Poder Executivo dos EUA. A USIA expõe e defende a política externa americana e promove os interesses nacionais dos EUA por meio de uma ampla gama de programas de informações no exterior. A agência promove o entendimento mútuo entre os Estados Unidos e outras nações, realizando atividades educacionais e culturais. A USIA mantém mais de 211 postos em mais de 147 países” (Fonte: https://govinfo.library.unt.edu/npr/library/status/mission/musia.htm). Sua atuação nos campos da educação, informação, radiodifusão, serviços de biblioteca etc. foi intensa, e incluía intercâmbios culturais, bolsas de estudos, parceria com universidades, pesquisas etc. A USIA foi extinta em 1999, mas suas atividades permaneceram abrigadas em outras agências e secretarias do Governo dos EUA.
24 – Um documento da CIA, de 1985, revela também que houve uma ação da Agência de Inteligência estadunidense na promoção de autores pós-modernos e críticos do marxismo. “Segundo a própria Agência de espionagem, a teoria francesa pós-marxista contribuiu diretamente para o programa cultural da CIA de persuadir a esquerda para a direita, ao mesmo tempo em que desacreditava o anti-imperialismo e o anticapitalismo, criando assim um ambiente intelectual no qual seus projetos imperiais poderiam ser perseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico sério da intelligentsia. […] Na verdade, seu estudo sobre a teoria francesa aponta para o papel estrutural que as universidades, as editoras e os meios de comunicação social desempenham na formação e consolidação de um ethos político coletivo.” ROCKHILL, Gabriel. Como a teoria francesa pós-marxista contribuiu com a CIA em desacreditar o anti-imperialismo e o anticapitalismo. Opera Mundi, 10/03/17. Disponível em https://operamundi.uol.com.br/opiniao/46597/a-cia-le-a-teoria-francesa-sobre-o-trabalho-intelectual-de-desmantelamento-da-esquerda-cultural. O documento da CIA que se refere à nova intelectualidade francesa pode ser lido (em inglês) no site da própria Agência: https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/CIA-RDP86S00588R000300380001-5.PDF.
25 – O abandono do marxismo também teve como estímulo a implosão do bloco socialista, simbolizado pela queda do muro de Berlim e dissolução da URSS. Ou seja, o avanço das teorias pós-modernas encontrou, além de estímulo externo, um terreno fertilizado pelas desilusões com o “socialismo real”.
27 – “As instituições públicas e privadas americanas devem envolver-se na educação dos meios de comunicação e dos líderes comunitários sobre a natureza da estratégia de conflito do marxismo-leninismo…” (cr. citação acima).
28 – A Fundação Ford, por exemplo, recusou-se a manter seu financiamento ao Fórum Social Mundial quando de sua edição em Mumbai, alegando que puderam “ver maior colaboração de grupos da esquerda comunista da Índia no fórum”. Ver AZENHA, Luiz Carlos. Ford, Soros, Gates: A quem servem as megafundações? A professora Joan Roelofs dá algumas pistas. VIOMUNDO, 17/03/18. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/politica/a-quem-servem-as-mega-fundacoes-a-professora-joan-roelofs-da-algumas-pistas.html.
29 – Foi essa confusão, inclusive, que me obrigou a estender a reflexão para além do que o presente texto exigiria…
31 – As Comunidades Eclesiais de Base e os setores eclesiais alinhados com a Teologia da Libertação foram alvo de perseguição implacável da Restauração identitária conduzida pelos Papas João Paulo II e Bento XVI, que colocaram em seu lugar um clero formado conforme a doutrina do Catecismo da Igreja Universal e enquadrado pelo novo Código de Direito Canônico.
32 – Basta ver quantas ações dos governos de esquerda foram justificadas sob argumento da “governabilidade” e quantas práticas eleitorais ilícitas foram praticadas em nome do “jogo eleitoral”.
33 – Há diversas experiências locais bem-sucedidas (em municípios menores do Brasil) em que a tomada do Poder Executivo é resultado da mobilização de movimentos sociais e união de práticas alternativas de produção. Há também mandatos parlamentares que conseguiram aglutinar um campo de poder alternativo e desenvolver um trabalho de fortalecimento das organizações da sociedade civil. Porém, essa não é a realidade dos grandes centros, da maioria dos Estados e da Federação. E isso não é uma particularidade apenas do nosso país.
34 – O principal elaborador do anarcocapitalismo, M. Rothbard, também fala que a estratégia dos libertaristas deveria ser a conquista da subjetividade social. Seu livro Por uma nova liberdade: o manifesto libertário, citado anteriormente, é apenas um manifesto e, embora relevante para compreender os movimentos do inimigo, não tem a mesma importância do documento de Santa Fé II. Eis algumas de suas propostas: “uma condição primordial e necessária para a vitória libertária […] é a educação: a persuasão e a conversão de um grande número de pessoas para a causa”. “Os libertários […] devem refletir profundamente, se envolver no meio acadêmico, publicar artigos, periódicos e livros teóricos e sistemáticos, e participar de conferências e seminários. Por outro lado, uma mera elaboração da teoria não levará a lugar algum se ninguém ouvir falar dos livros e dos artigos; daí a necessidade de publicidade, slogans, ativismo estudantil, palestras, aparições no rádio e na televisão etc.” “Os jovens nos campi universitários têm tido uma posição de destaque na ascensão do movimento libertário. […] estes jovens fornecem um campo fértil para o libertarianismo […], um crescimento que já está sendo alcançado pela aderência ao movimento de um número crescente de jovens acadêmicos, professores e estudantes de pós-graduação.” A mídia, também, tem se revelado uma fonte rica de interesse favorável por este novo credo libertário. (ROTHBARD, Por uma nova liberdade: o manifesto libertário. p. 349.364).
35 – Um bom exemplo dessas possibilidades foi o mandato do ex-deputado estadual Durval Ângelo (PT-MG). Além do suporte à diversos movimentos e associações, o mandato realizou por quase 24 anos o Encontro Anual de Políticos Cristãos, um espaço de mística e formação para políticos do campo progressista, atualmente viabilizado pelo mandato do deputado estadual Marquinhos Lemos (PT-MG).
36 – Ou seja, temem desagradar a mídia para não verem sua popularidade reduzir e suas pretensões eleitorais futuras malograrem.
37 – Isso explica, em parte, a popularidade do Governo Lula e da própria figura do ex-presidente mesmo após um linchamento televisivo. Usei a TV como exemplo por ser ainda o veículo tradicional com mais capilaridade e penetração na população brasileira.
38 – Negras tormentas agitan los aires, nubes oscuras nos impiden ver, aunque nos espere el dolor y la muerte, contra el enemigo nos llama el deber.[…] ¡En pie pueblo obrero, a la batalla! Hay que derrocar a la reacción! ¡A las barricadas! ¡A las barricadas!
Maurício Abdalla Guerrieri
Possui licenciatura plena em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1990), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (1994) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (2009). Atualmente é professor associado do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Filosofia e Educação, com ênfase em: a) No campo da Filosofia: Filosofia das ciências e Filosofia social e Política; b) No campo da Educação: Educação Popular e Teoria educacional Crítica. Atua principalmente nos seguintes temas: filosofia da biologia, cooperação e emancipação, metodologia da educação popular, educação e emancipação. Possui livros publicados nessas temáticas no Brasil e na Espanha. Não tem paciência de atualizar o Lattes o tempo todo, portanto, muitos trabalhos ficam de fora…
Informações coletadas do Lattes em 22/10/2019
No campo, a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é, na realidade, a Garantia da Lei e da Desordem (GLD). A estrutura fundiária do Brasil, ou seja, a forma como são distribuídas as propriedades rurais – além de ser extremamente conservadora- é uma “desordem legalizada e institucionalizada”, uma das faces mais perversas e iníquas do pecado estrutural: pecado sócio-econômico-político-ecológico-cultural.
Os grandes latifúndios – 1% dos donos de terras – ocupam 44,4% das terras do Brasil. A maior concentração fundiária ocorre nas Regiões Centro-Oeste e Nordeste. Os Trabalhadores Rurais – em sua maioria – não tem sequer um pedaço de terra para produzir (produção familiar e comunitária agroecológica) e viver com dignidade.
Segundo o pensamento de Santo Tomás de Aquino -que posteriormente foi assumido pelo Ensino Social da Igreja – a destinação dos bens (no nosso caso aqui, da terra) para o uso (com o cuidado necessário) de todos os seres humanos, é um direito primário e a posse (ou propriedade), um direito secundário (nunca absoluto), que deve ter sempre uma função social. Quando o direito secundário se sobrepõe ao direito primário (prejudicando ou impedindo sua realização: o acesso aos bens – inclusive à terra – de todos/as) é injusto e antiético. Portanto, lutar pela Reforma Agrária Popular é um direito humano urgente e inadiável.
Hoje, a GLO (ou, melhor,GLD) é uma operação de segurança autorizada pelo Poder Executivo que pode durar meses e inclui a participação de agentes civis e militares, como das Forças Armadas e da Polícia Federal. É papel dos Governos Estaduais acionar forças de segurança locais para fazer cumprir decisões judiciais.
Depois do “massacre de Eldorado do Carajás” em 1996 (19 trabalhadores rurais mortos) – que teve uma repercussão negativa não só no Brasil, mas também no exterior – Governos Estaduais, para evitar novas tragédias,têm adotado uma postura de cautela, protelando o cumprimento de decisões judiciais.
Jair Bolsonaro, que – como já demostrou várias vezes – pouco se importa com a vida e os direitos dos Trabalhadores/as Sem Terra (para ele são “sobras”, “material descartável”), sentiu-se incomodado com essa postura. Por isso, no dia 25 de novembro último, afirmou que pretende enviar ao Congresso um Projeto de Lei que autoriza o Governo Federal a empregar a GLO (ou, melhor,GLD) para as chamadas operações de reintegração de posse.
O presidente – totalmente submisso aos interesses dos Ruralistas (grileiros, fazendeiros, madeireiros)e atendendo ao acordo feito com eles – não só defende a criminalização das Ocupações (que ele chama de “Invasões”) dos Sem-Terra (um direito dos trabalhadores/as), mas quer também a “intervenção federal” (com o uso das Forças Armadas e da Polícia Federal) nas operações da chamada reintegração de posse (verdadeiras operações de guerra).
A linguagem que Jair Bolsonaro usa para se referir aos Trabalhadores/as que lutam pelo direito à terra dá nojo e provoca vômito em qualquer pessoa que tem um mínimo de sensibilidade humana. “Quando marginais (reparem: “marginais”!) invadem propriedades rurais e o juiz determina a reintegração de posse, como é quase uma regra que Governadores protelem sua execução, poderia ter – pelo nosso Projeto – uma GLO do campo para chegar a tirar os caras”. E ainda: “tem de ser algo urgente. E, você dando uma resposta urgente, inibe outros de fazer isso”. “A GLO – continua o presidente – não é uma ação social, chegar com flores na mão; é chegar preparados para acabar com a bagunça (reparem mais uma vez: “acabar com a bagunça”!)”.Presidente, chamando os Trabalhadores/as Sem Terra de “marginais e bagunceiros”, o senhor torna-se o “maior marginal e o maior bagunceiro”.
Vejam o absurdo: Jair Bolsonaro ao mesmo tempo que defende a intervenção federal nas Ocupações dos Sem-Terra, incentiva as Invasões (essas sim verdadeiras Invasões) de terras indígenas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no ano de 2018 foram registrados 111 casos de Invasões em 76 terras indígenas. De janeiro a setembro deste ano, o número subiu para 160 Invasões em 153 terras indígenas.
(Fonte: Gustavo Uribe. Bolsonaro quer aval do Congresso para expulsar invasor de terras nos Estados. Folha de São Paulo, 26/11/19, p. A10. Vejam também: CPT. Nota Pública – Governo cede aos Ruralistas e ameaça vida no campo. Goiânia, 25/11/19).
Por fim, pergunto: por que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não denuncia profeticamente tamanhas barbaridades políticas e não se posiciona – clara e inequivocamente – a favor dos Movimentos dos Trabalhadores/as Sem Terra? O silêncio não é um pecado de omissão?
Goiânia, 03 de dezembro de 2019
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Por padre Medoro – Publicado em Entre-Rios Jornal, 04 de dezembro de 2019
Nos dias 29 e 30 de novembro, aconteceu no auditório da UFRRJ de Três Rios o Fórum Religião, Política e Direitos Humanos. Esse evento foi organizado pelo Movimento Fé e Política de Três Rios em parceria com o Núcleo de Práticas Jurídica da UFRRJ/ITR. Foram 4 mesas de debates muito ricos, em que aprofundamos diversas questões relacionadas ao tema do Fórum, com especialistas das áreas discutidas.
Na primeira mesa, da qual participei como convidado para fazer a abertura, junto com o professor Rullian Emmerick, coordenador do Núcleo de Práticas Jurídicas, tivemos o tema Políticas Públicas e Políticas de Direitos Humanos e os convidados dessa mesa foram o ex-Ministro chefe da Secretaria -Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho, que com sua simplicidade, foi nos apresentando, criticamente, as dificuldades em desenvolver Políticas Públicas voltadas para a construção de direitos para uma população historicamente excluída de todo processo de desenvolvimento. A grande novidade na última década foi a inclusão do pobre no orçamento do país, política que vê o combate à miséria e à pobreza não como custo, mas como investimento. Infelizmente, hoje nós temos os interesses do capital destruindo todos os avanços sociais conquistados. E outro convidado foi o Professor Cunca Bocayuva do Núcleo de Estudo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ, que com uma análise instigante, nos levou a pensar as contradições existentes nas diversas linguagens políticas, religiosas, midiáticas que envolvem hoje toda essa problemática do não direito. Ou seja, há um processo de desconstrução em que o mecanismo utilizado é o MEDO, por isso há necessidade de se organizar na sociedade uma resistência contra essa lógica perversa que destrói as possibilidades de vida de uma grande maioria da nossa sociedade.
Na segunda mesa, o tema discutido foi Democracia e Direitos Humanos, e o convidado foi o professor Waldeck Carneiro da Pós Graduação da Faculdade de Educação da UFF e Deputado Estadual, que de uma forma bem aprofundada e didática, nos introduziu no debate da atual crise democrática demonstrando que todo o processo de perdas de direitos sociais está diretamente ligada aos interesses do capital internacional e que hoje estamos, cada vez mais, reféns desses interesses, e a perda da soberania é uma marca da atual gestão do país. Ele apresenta como exemplo o corte de recursos para as universidades e os órgãos de pesquisa e tecnologia uma forma de regresso ao colonialismo e a dependência as grandes potencias. Isso aprofunda a crise social e econômica em que nos encontramos, aprofundando as mazelas sociais. Foi um rico debate com grande participação da plateia. Uma mesa muito bem conduzida pela professora Marcela Siqueira Miguens da UFRRJ/ITR, que com seus comentários nos levou a pensar como as perdas de direitos está atingindo a essência da democracia que é o Estado de Direitos.
A terceira mesa foi relato de vida e de pesquisa frente a duas realidades em que se encontra o que nós chamamos de minorias sociológicas, as populações afrodescendentes e as indígenas. Os debatedores foram os professores Babalawô Ivanir dos Santos da UFRJ e Heiberle Horácio coordenador do curso de Ciências da Religião da Universidade Montes Claros – MG, que aprofundaram o tema Direitos Humanos, Religião e Minorias. Ivanir dos Santos demonstra que a intolerância contra a população negra não está presente só nas relações, mas também, de forma enfática, na construção do pensamento moderno e isso, sem dúvida nenhuma, fortalece essa realidade de intolerância contra as religiões de matrizes africanas. Por isso, a necessidade de se mobilizar contra qualquer forma de preconceito passa por articulações entre as próprias religiões. Dentro desse contexto, ele exemplifica a Caminhada em defesa da Liberdade Religiosa, em que é um dos organizadores, e que no Rio acontece desde 2008, como uma forma de resistência contra a toda e qualquer forma de intolerância religiosa. O professor Heiberle, através do seu relato das suas pesquisas e, principalmente, das suas relações com povos indígenas (principalmente com o povo Xakriabá, no município de São João das Missões – Norte de Minas e povos indígenas da região Amazônica) nos faz pensar sobre algumas questões que são fundamentais. Uma delas seria o local da fala. Quando inicia a sua explanação, deixa claro isso, mesmo como pesquisador, que “ele não fala pelos povos indígenas, mas fala com os povos indígenas”. É se situar na luta e na vida desses povos e não vê esses povos como um objeto utilitários das suas pesquisas. Uma outra questão é que a Religião mata, ou seja, quando as religiões se adentram nas comunidades indígenas elas, muitas vezes, eliminam ritos, símbolos e vivências desses povos, fazendo com que percam referenciais das suas culturas; e por último, podemos dizer que continuamos vendo a realidade dos povos indígenas dentro de uma perspectiva etnocêntrica, a partir de nós, das nossas realidades, ou seja de um olhar de fora, não se abrindo para ouvir a fala desses povos por eles mesmos, isso certamente ajuda na continuidade desse processo de intolerância e preconceito.
E por fim, a última mesa de debates, o Tema foi: Fé e Política: Alienação ou Transformação. Para essa mesa, contamos com a presença do professor (PUC- RIO), Teólogo e Assessor Nacional das Cebs Celso Carias e com o professor da Escola do Legislativo da ALERJ e da Pós graduação do Direito da PUC Leonardo Ribas. Celso nos leva a pensar o tema, a partir de duas referências para a vida cristã. A primeira é a vida dos primeiros cristãos, que mais que ações políticas tiveram experiências que modificavam as formas de viver e de se relacionar. Opunham-se ao poder Romano, a partir da solidariedade com os mais excluídos. E a segunda, e mais importante é pensar a vida do Jesus histórico, pensar o que significa o seguimento de Jesus na realidade dos nossos dias. E o Leonardo nos apresenta a ideia da ruptura democrática está levando cada vez mais para a desumanização da sociedade e que a crise da democracia é também uma crise humana. E que hoje, mais do que uma questão ideológica faz-se necessário resgatar essa humanidade nessa sociedade cada vez mais desumana.
Além dos debates temáticos esse fórum propiciou uma aproximação da universidade com a sociedade, dividindo experiências e saberes, fazendo-nos cada vez mais comprometidos com a luta pelos Direitos Humanos, dentro de uma perspectiva que o Papa Francisco nos traz:
“Cada um é chamado a colaborar com coragem e determinação, na especificidade de sua função, em prol do respeito dos direitos fundamentais de cada pessoa, especialmente as “invisíveis”: aquelas que têm fome e sede, que estão nuas, doentes, estrangeiras ou detidas, que vivem às margens da sociedade ou são descartadas.” Papa Francisco.
Por Magali do Nascimento Cunha – Publicada na Edição do mês da Revista Cult – 2 de dezembro de 2019
Bispo Edir Macedo, missionário R. R. Soares, apóstolo Estevam Hernandes, pastor Silas Malafaia, bispo Valdemiro Santiago, pastora Damares Alves, apóstolo Rina, pastor Marco Feliciano, apóstola Valnice Milhomens, pastora Cassiane. O que essas lideranças religiosas, destacadas por mídias brasileiras, têm em comum? São pentecostais, o segmento religioso cristão que mais se expandiu, numérica e geograficamente, no Brasil nas últimas décadas. Hoje, compreender o pentecostalismo é imprescindível para quem se interessa pelas dinâmicas socioculturais e políticas que envolvem o país.
O pentecostalismo é uma das ramificações evangélicas formada por uma variedade de grupos, desde grandes igrejas, como a Assembleia de Deus (que também tem suas divisões), até pequenas denominações de uma única congregação, como a Igreja Evangélica Pentecostal Maná do Céu, em São Vicente (SP), e tantas outras vistas Brasil afora.
Evangélicos pentecostais e neopentecostais
O segmento evangélico é bastante diverso. Tem origem na Reforma Protestante do século 16 que abriu caminho para o surgimento de luteranos, congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas, anglicanos. No século 20, surgiram os pentecostais, expressão de um movimento de protesto contra o racismo e o classismo nas Igrejas, e de afirmação da população negra, migrante, feminina e pobre nos Estados Unidos.
Os primeiros evangélicos chegaram ao Brasil por meio de missionários estadunidenses, na primeira metade do século 19. A identidade “protestante” nunca foi bem afirmada por boa parte deles, que sempre optaram por se denominar “evangélicos”, reforçando disputas religiosas com o histórico catolicismo romano ao colocarem-se como detentores “do verdadeiro Evangelho”.
Atualmente, o grupo mais significativo desse mosaico religioso são os pentecostais. Representam a maior fatia numérica (são cerca de 60% dos evangélicos, segundo o Censo de 2010), com presença geográfica importante, ocupação de espaço nas mídias tradicionais (rádio e TV) e intensa atuação na política partidária.
O que diferencia evangélicos pentecostais dos históricos é a crença no segundo batismo, uma experiência mística atribuída à ação do Espírito Santo, que leva os fiéis a falarem línguas estranhas como sinal de
sua presença. Essa ação do Espírito Santo também atribui dons especiais, como profecia e cura pela oração.
Missionários trouxeram o pentecostalismo ao Brasil na primeira década do século 20 e se estabeleceram no Pará (suecos, Assembleia de Deus) e em São Paulo (estadunidenses, Congregação Cristã do Brasil e Evangelho Quadrangular). A partir dos anos 1950, com os intensos movimentos migratórios do campo para as cidades e o processo de industrialização do país, surgiram as Igrejas pentecostais fundadas por brasileiros, como a Casa da Bênção, a Brasil para Cristo, a Deus é Amor, entre outras. Várias delas tiveram em programas de rádio um importante apoio para disseminar sua fé.
A ação pentecostal no país é historicamente marcada por presença mais voltada à população empobrecida e às periferias das cidades. Essa prática tornou possível maior enraizamento nas culturas populares, com lugar garantido para a emoção e expressões corporal e musical, ainda que marcada por um puritanismo de restrições morais e culturais. Isso deu aos grupos pentecostais condições de consolidação nos espaços religiosos e crescimento numérico mais expressivo.
Mas o boom pentecostal, de fato, ocorreu a partir da década de 1980 e transformou significativamente o perfil do segmento evangélico brasileiro. Essa expansão tão marcante tem alicerces nas transformações do mundo naquele período. Foi o momento dos processos de derrocada do socialismo, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, e a consolidação do capitalismo globalizado e da cultura do mercado, baseados na lógica da plena realização do ser humano pela posse de produtos e serviços e pelo acesso à tecnologia da informática.
Grupos cristãos estadunidenses adequaram seu discurso à nova ordem mundial e criaram a Teologia da Prosperidade. Ela foi abraçada por uma parcela de pentecostais brasileiros que passou a pregar que as bênçãos de Deus, na forma de prosperidade material (posse de finanças, saúde e felicidade na família), são concedidas aos fiéis que se empenham nas práticas de devoção aliadas às ofertas em dinheiro às igrejas. A elas também é destinada a prosperidade, por meio de amplo número de fiéis, ocupação geográfica, aquisição de patrimônio e influência no espaço público. Os estudiosos da religião dizem que se trata de uma relação de troca com Deus, bem própria do clima social estabelecido pelo mercado neoliberal.
Como essa noção de prosperidade também tem a dimensão da saúde plena, as propostas de cura se amplificaram, bem como se intensificaram as práticas de exorcismo contra os males (demônios) que impedem a felicidade. Isso representou um reprocessamento de elementos da matriz religiosa brasileira com a farta (re)utilização de símbolos e representações do catolicismo e de religiões de terreiros.
Cura, exorcismo e prosperidade tornaram-se marcas de uma nova forma de pentecostalismo, que deixava de enfatizar a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para que se alcançasse a bênção divina.
Esse pentecostalismo se expandiu no Brasil pelos anos 1990 e 2000, com a formação de um sem-número de igrejas. Estudiosos da religião denominam essa expressão religiosa de neopentecostalismo, ao qual estão vinculadas as Igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra, Bola de Neve, entre as maiores, somadas a inúmeras igrejas autônomas.
O crescimento pentecostal passou a exercer influência decisiva sobre o modo de ser das demais Igrejas cristãs. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos grupos chamados “avivalistas” ou “de renovação carismática”, que têm similaridade de propostas e posturas com o pentecostalismo e que, em busca de crescimento numérico, passaram a conquistar espaços importantes na prática religiosa das Igrejas chamadas históricas, incluindo a Católica.
Mídias, política e mercado
O neopentecostalismo não significa a superação do pentecostalismo clássico do início do século 20. Pelo contrário, a Assembleia de Deus consolidou-se como a maior denominação pentecostal, e é também a maior Igreja Evangélica do Brasil, em termos numéricos e geográficos, com suas grandes e pequenas divisões em “ministérios”. A Congregação Cristã do Brasil, a Evangelho Quadrangular, a Deus é Amor e a Brasil para Cristo continuam a ter presença significativa em todas as regiões do país.
Entretanto, os grupos neopentecostais ganharam intensa visibilidade por conta da ocupação das mídias tradicionais, como rádio e TV, e dos projetos de participação política.
Na virada para o século 21, pastores e líderes neopentecostais tornaram-se empresários de mídia e detentores do que se poderia chamar “verdadeiros impérios” no campo da comunicação, buscando competir até mesmo com empresas não religiosas historicamente consolidadas (caso das Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo e Internacional da Graça de Deus). Chegou ao ponto de alguns desses grupos religiosos já nascerem midiáticos, isto é, a interação com as mídias passaram a fazer parte de sua própria razão de ser.
Ao mesmo tempo, as grandes mídias (seculares) assimilam essa atmosfera e passam a produzir programas, ou parcelas deles, para disputar a audiência evangélica: espaço para a música cristã contemporânea (“gospel”) e seus artistas; patrocínio de festivais e megaeventos de rua; veiculação de programas de entretenimento com temática religiosa (inclusive com a concepção de personagens para telenovelas e criação das próprias telenovelas bíblicas).
A tudo isso se conecta o crescimento de um mercado da religião. Os cristãos tornam-se um segmento de mercado com produtos e serviços especialmente desenhados para atender às suas necessidades religiosas, sejam de consumo de bens, sejam de lazer e entretenimento. Passou a ser possível encontrar produtos os mais variados, como roupas, cosméticos, doces, viagens, filmes e jogos com marcas formadas por slogans de apelo religioso, versículos bíblicos ou, simplesmente, o nome de Jesus. A Igreja Católica passou a seguir a mesma trilha.
A maior presença dos evangélicos no campo da política partidária é parte desse contexto. Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira bancada evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” foi sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”.
A atuação daquela primeira bancada no Congresso Constituinte (1986-1989) foi marcada por fisiologismo e pela histórica farta distribuição de estações de rádio e canais de TV aos deputados evangélicos (determinante para a ampliação da presença de pentecostais nas mídias).
Depois de altos e baixos numéricos, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo nas legislaturas pós-Congresso Constituinte, a bancada evangélica consolidou-se como força a partir dos anos 2000, chegando a alcançar 92 parlamentares (88 deputados e 4 senadores) em 2014, e nas eleições de 2018, 94 (85 deputados e 9 senadores), sendo os pentecostais uma força hegemônica.
Essa potência solidificou-se na última década e meia, muito especialmente por conta da força de duas Igrejas Evangélicas que concretizaram, desde 1986, projetos de ocupação da política institucional do país: as Assembleias de Deus (AD) e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ambas passaram a ocupar, depois de 2003, espaços plenos de poder em partidos (respectivamente o Partido Social Cristão, PSC, e o Partido Republicano Brasileiro, PRB), maior quantidade de deputados e senadores no Congresso, conquistas de cargos públicos, como as nomeações de ministros de Estado de Dilma Rousseff (dois da IURD) e de Michel Temer (dois da IURD), e lançaram dois candidatos à Presidência da República (Marina Silva e pastor Everaldo, ambos da AD). A IURD conseguiu ainda eleger o bispo, ex-senador e ex-ministro Marcelo Crivella como prefeito da cidade do Rio de Janeiro (2016).
Além disso, dois fatos impulsionaram o poder pentecostal na política. Um deles foi a inusitada nomeação do deputado Marco Feliciano (hoje, Podemos, o PODE/SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, em 2013. Ela culminou no revigoramento de campanhas por legislação pautada pela moralidade sexual religiosa, sob o rótulo “Defesa da Família Tradicional”, contra movimentos feministas e LGBTI, em aliança com a bancada católica. Essas pautas encontraram eco na população conservadora não religiosa e reforçaram movimentos reacionários às conquistas de direitos alcançadas nas últimas duas décadas.
Outro fato foi a eleição do deputado federal pentecostal Eduardo Cunha (Movimento Democrático Brasileiro, MDB/RJ) à presidência da Câmara dos Deputados, em 2015. Representou um poder sem precedentes para a bancada evangélica e facilitou tanto a defesa das pautas descritas aqui como a abertura à concessão de privilégios a Igrejas no espaço público. A prisão e a cassação do deputado, em 2016, não afetou significativamente as conquistas políticas da bancada.
Tanto a IURD como a AD ofereceram amplo apoio à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018, acompanhadas por outras denominações pentecostais, no rastro das propostas conservadoras apresentadas por ele. Bolsonaro candidatou-se à Presidência com um discurso identificado como cristão, marcadamente evangélico conservador, embora declarando-se católico. Nesse contexto, a bancada evangélica se fortaleceu como interlocutora do novo governo e ganhou representantes nos ministérios da Casa Civil (Onyx Lorenzoni) e da Mulher, Família e Direitos Humanos (pastora Damares Alves), com fiéis alocados em cargos estratégicos no Ministério da Educação.
Para refletir
Esse quadro retrata a ampliação da visibilidade pública alcançada pelos evangélicos no Brasil nas últimas décadas, por conta da hegemonia (neo)pentecostal.
É um fenômeno que marca o momento sociopolítico e cultural do país, em que os evangélicos se colocam na arena como bloco organicamente articulado. Eles não são mais “os crentes” ou os grupos fechados de outrora; desenvolvem uma cultura “da vida normal” que combina a religião com presença nas mídias, no mercado, no entretenimento e na política. Um segmento religioso que se vê fortalecido como parcela social que tem suas próprias reivindicações e pode eleger seus próprios representantes para os espaços de poder público.
MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA é doutora em Ciências da Comunicação pela USP, integrante da Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura e da Associação Mundial de Comunicação Cristã
A série documental Sementes do Amanhã estreia nesta terça-feira (12), às 23h15, no Canal Futura. Resgatando espécies alimentícias brasileiras que correm risco de extinção, divide-se em 13 episódios, exibidos todas as terças, que vão contar as histórias de comunidades tradicionais, ambientalistas e pesquisadores que atuam na defesa desses alimentos e na conservação da biodiversidade.
Dirigida por Alan Mendonça e apresentada por Nanda Barreto, a série foi produzida ao longo de 10 meses. Conforme conta Nanda, jornalista que faz sua estreia como apresentadora, apesar do cenário de destruição, quem assistir à série vai conhecer modos de vida que respeitam a natureza, tirando dela o seu sustento. “É um passeio pela cultura alimentar da nossa gente, dando visibilidade à manifestações artísticas e voz ao conhecimento ancestral e científico”, afirma.
Série faz resgate de alimentações brasileiras tradicionais
A série começou de um jeito e terminou de outro, conta Alan Mendonça. “Inicialmente, a ideia de falar sobre a extinção dos alimentos era uma forma de sensibilizar os espectadores sobre a questão do meio ambiente. Hoje, vejo como um trabalho de resistência política, social e cultural, uma vez que foi preciso endurecer o discurso após os retrocessos das últimas eleições. Venceu o que existe de pior na política. As pessoas precisam entender que modelos econômicos destrutivos tem consequências”, avalia o diretor.
O Cerrado, exemplifica Alan, está sendo destruído numa velocidade assustadora, o que vai resultar, em poucos anos, em uma crise hídrica no Sudeste no Brasil. “Você pode imaginar o que é uma cidade como São Paulo? É sobre isso que estamos falando. Hoje, a nossa geração é a última que ainda pode fazer algo para salvar a vida do planeta. A única opção é preservar o pouco que ainda resta”, conclui.
* Com colaboração de Fabiana Reinholz Edição: Marcelo Ferreira
Publicamos Artigo de Dom Amilton Manoel da Silva, CP, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Curitiba – PR, publicado no site da arquidiocese de Curitiba, dia 04 de novembro de 2019.
As críticas e ataques ao Papa Francisco têm fundamento?
Nos últimos tempos têm circulado, nas redes sociais, inúmeras críticas e ataques maldosos ao Papa Francisco. Isso tem me incomodado, por isso escrevo este artigo sem muitas pretensões, apenas com o objetivo de afirmar a unidade da Igreja, no momento vacilante, e discutir alguns pontos que não estão sendo levados em consideração.
Defendo que essas críticas são infundadas e quase sempre elas partem de pessoas ou de grupos do interior da própria Igreja, dizimando a unidade e fomentando a rejeição ao Sumo Pontífice. Para início de conversa, é bom lembrar nossa fé católica de que Jesus Cristo edificou a sua Igreja sobre Pedro (cf. Mt 16,18) e este “ofício pastoral de Pedro e dos outros Apóstolos faz parte dos fundamentos da Igreja e é continuado pelos Bispos sob o primado do Papa” (CIC n. 881).
O teólogo Victor Codina, no seu artigo “Francisco, um Papa que incomoda”, situa essas críticas em duas vertentes (na primeira vertente, exponho uma síntese do pensamento do autor; na segunda vertente, tomo a liberdade de discorrer sobre a acusação ao Papa Francisco de ser comunista), a saber:
Teológica: Onde se afirma que Francisco não é um teólogo, por isso comete “erros doutrinais” nos seus documentos e discursos.Nesse sentido vale a afirmação de Santo Tomás de Aquino, quando distingue entre a cátedra magisterial (dos teólogos professores das universidades), da cátedra pastoral correspondente aos Bispos e ao Papa; embora em muitos momentos ambas aparecem juntas. Não é preciso muito esforço, para perceber que Francisco é um teólogo que parte da realidade: da injustiça, da pobreza, da destruição da natureza e do clericalismo eclesial.
Sociopolítica: Neste aspecto, as acusações são de que Francisco é “comunista”, pela insistência numa Igreja pobre para os pobres em busca de uma sociedade justa e solidária.Fico a pensar se as pessoas ou grupos que fazem tal acusação, têm lido os documentos e exortações do Papa, escutado seus pronunciamentos, prestado atenção nos seus gestos e na sua maneira de ser. Indago-me se conhecem o manifesto de Karl Marx e Friedrich Engels e o pensamento comunista… E mais ainda, se têm lido e rezado a Palavra de Deus, “mantido os olhos fixos em Jesus” (Hb 12,2), nas suas ações (Mt 9,35) e mandamentos (Mt 25, 35-45). Creio que não, pois se assim fosse, nos poupariam de tais aberrações e calúnias.
Sobre a segunda vertente é importante um aprofundamento:
O Marxismo defende uma Sociedade igualitária – ateísta – materialista. O Papa Francisco, em muitos pronunciamentos, tem se manifestado contrário a essa concepção, como no capítulo IV da Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, onde destaca que a construção de uma sociedade justa exige, em primeiro lugar, uma confissão de fé. A sociedade nova é a instauração do Reino de Deus, que está no coração do Evangelho e que significa um espaço de fraternidade, de justiça, de paz e dignidade para todos. Porém, isto só é possível com uma relação pessoal com Deus, de amor, uma vez que Ele reina no mundo (cf. n. 177 a n. 258). “Sem amor e sem Deus, nenhum homem pode viver sobre a terra” (Encontro com os jovens, na Romênia, 01/06/2019).
O Marxismo privilegia a sociedade (coletivo) e não a pessoa humana, sua liberdade e seus direitos. O Papa Francisco defende a pessoa em vista de uma Igreja nova e uma sociedade mais humana, como nesta afirmação: “Cada ser humano é objeto da ternura infinita do Senhor e, Ele mesmo, habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afeto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida” (EG, n. 274).
Algumas declarações suas estão na mesma linha: “Para mim, o âmago do Evangelho pertence aos pobres. Há dois meses ouvi uma pessoa dizer ‘Este Papa é comunista’. Não! Esta é uma bandeira do Evangelho, não do comunismo. A pobreza sem ideologia… E por isso creio que os pobres estão no centro do anúncio de Jesus. É suficiente lê-lo! O problema é que esta atitude em relação aos pobres, às vezes, na história, foi ideologizada. No Evangelho não há ideologia, a ideologia é algo diferente…” (Resposta do Papa Francisco a um grupo de jovens da Bélgica, 2014).
Perguntado se gostaria de uma sociedade de inspiração marxista, respondeu: “Isso me foi perguntado muitas vezes e minha resposta sempre foi essa: se há alguma semelhança, na busca de cuidar dos pobres, então são os comunistas que pensam como os cristãos. Cristo falava de uma sociedade onde os pobres, os fracos e os marginalizados tinham direito de decidir. Não os demagogos, nem Barrabás, mas o povo, os pobres, tendo eles fé em um Deus transcendente ou não. São eles (os pobres) que precisam ajudar para alcançar a igualdade e a liberdade (…)” (Entrevista ao jornal italiano La Repubblica, 2014). Durante a Missa celebrada na Casa Santa Marta, na manhã do dia 24/05/2018, o Papa Francisco lamentou que se identifique como comunistas os que pregam a “pobreza”, uma vez que a pobreza está no centro do Evangelho.
Sobre a caridade: “A caridade nunca é ideológica, dado que não se servem ‘ideias’, mas ‘pessoas’, e nesse sentido, amar não se reduz a uma atitude de servilismo, mas fixa sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, como a carne de Cristo, sente a sua proximidade” (Homilia em Cuba, 2015).
Diante disso pergunto: As críticas e ataques ao Papa Francisco, têm fundamento? Não! Desde que assumiu o ministério petrino, em março de 2013, Francisco tem buscado dar à Igreja um rosto mais simples, serviçal e misericordioso. Estas características se fundamentam na pessoa de Jesus que “veio para servir e não para ser servido” (Mt 20,28), nas exigências do Evangelho e na vivência cristã das comunidades primitivas. Suas mensagens confirmam as decisões do Concílio Vaticano II e a doutrina social da Igreja. Onde o Papa está errando?
Permaneçamos em comunhão com o “Vigário de Cristo” (LG, n.22), zelemos pelo respeito e obediência ao Pastor, eleito num conclave, sob a condução do Espírito Santo, para guiar a Igreja Católica Apostólica Romana e descartemos toda forma de agressão que não gera a unidade.
Deus abençoe a todos (as)!
Dom Amilton Manoel da Silva, CP
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Curitiba – PR