Está virando moda, em certos grupos, pedir a volta da ditadura militar e a reedição do AI 5, para resolver os problemas nacionais. Eu me pergunto se isto é para se levar a sério ou é uma brincadeira de mau gosto, ou se há outros interesses escusos por trás. A democracia possibilita estas manifestações contra a ordem estabelecida, mas preocupa ver pessoas que são o que são por causa dos processos democráticos de chegada ao poder agindo contra a ordem democrática. O povo brasileiro tomou a taça amarga da ditadura durante vinte anos, no século passado. Vivemos o drama dos desaparecidos, da tortura por parte do Estado, toda uma geração perdida em termos de formação de lideranças. Isto tudo aconteceu e foi a duras penas que voltamos a ordem democrática.
Continuamos, no entanto, sendo um país de corruptos que se apossam da política, fazendo dela um balcão de negócios. Somos uma nação injusta. Uma parte da população está excluída da economia, quando o país tem potencial para integrar a todos. Enquanto uma elite tem acesso à tecnologia de ponta, boa parte dos cidadãos está excluída. A crise do coronavírus expôs ao mundo como é perverso o nosso sistema de saúde, apesar do SUS ser admirado no mundo como exemplo de organização. Estes problemas são históricos e são eles efeito e causa do mal estar da sociedade brasileira.
Uma ditadura militar ou civil só agravaria o quadro das injustiças, mesmo porque o tipo de gente que quer esta solução é o mesmo que é contra as terras indígenas, contra a ecologia, contra o sistema de quotas nas universidades, contra a maioridade penal aos dezoito anos, a favor do porte de armas. Apesar dos problemas, a democracia ainda tem os melhores caminhos para a superação dos nossos problemas, que serão resolvidos quando gente diferente chegar ao poder. Na democracia há duas formas de alguém chegar ao poder: por eleição ou por concurso público. As regras têm que ser claras e valer para todos. Quem ganha a eleição não ganha um poder absoluto, mas tem que obedecer a ordem constitucional que é o conjunto das leis. Quem passa num concurso ou é nomeado por quem de direito, segundo regras, precisas tem que agir dentro da lei.
O jogo democrático tem suas regras que devem ser observadas por todos. A democracia supõem um Estado que está a serviço de todos e que tem o dever de proteger aqueles que são mais fracos. Todo poder é temporário, e deve ser exercido com transparência e dentro dos limites do mandato recebido. Os diferentes grupos se organizam em partidos políticos que tentam convencer a população que suas propostas são as melhores e o voto da maioria decide os rumos da nação. O caminho democrático é organizar partidos que se empenhem a buscar, junto ao povo, o melhor e depois representar os interesses da nação no exercício do poder.
Por isso, para os males da democracia precisamos de mais democracia, mais participação popular. Quanto mais participação direta nos negócios do Estado, mais controle social e aí se tem garantia contra a corrupção. A tentação de entregar o poder absoluto a alguém ou a um grupo de iluminados sempre existiu e sempre vai existir, mas nunca será uma boa solução.
DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO DE MANAUS
JORNAL: EM TEMPO, Data de Publicação: 25 e 26.4.2020
Em meio às incertezas trazidas pela pandemia de coronavírus, repensar sobre as formas de existir, viver e conviver é a chance de sairmos mais humanos disso tudo. É o que aponta o padre e filósofo Manfredo Oliveira.
Entrevista publicada por Entrevista Nota 10, Universidade de Fortaleza – www.unifor.br em 14.04.2020
Manfredo Araújo de Oliveira, docente titular do Curso de Filosofia, recebeu nesta quinta-feira (28) o título de Professor Emérito da UFC, entregue pelo Reitor Henry de Holanda Campos e pelo Diretor do Instituto de Cultura e Arte (ICA), Prof. Sandro Thomaz Gouveia.
Onde só se enxerga caos, há também a possibilidade de um recomeço. Para o filósofo e padre Manfredo Araújo de Oliveira, professor de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC), os momentos de incertezas trazidos à humanidade pela pandemia de Covid-19 oferecem a grande chance de refletirmos sobre as formas de configurarmos nossas vidas em nível individual e coletivo. “É uma ocasião que nos oferece a grande chance de reconhecer a dignidade de cada ser”, disse o professor.
Reconhecido como um dos principais filósofos do Brasil, Manfredo pontuou ainda que, antes mesmo da Covid-19, a humanidade já estava ameaçada em sua sobrevivência. Segundo ele, os modelos econômicos de acúmulo de riqueza e os padrões de consumo adotados estão levando ao colapso tanto social quanto ecológico. Por último, ele enfatizou a necessidade de se criar uma grande rede de solidariedade global para proteger os países mais frágeis do vírus globalizado. “Aqui a solidariedade se revela não simplesmente como um convite, mas como uma obrigação”.
Confira a entrevista.
Quais os paradigmas que a pandemia de Covid-19 já quebrou e quais paradigmas novos começam a surgir?
Talvez seja ainda cedo para afirmar que paradigmas foram quebrados, mas podemos experimentar certos paradoxos que abrem perspectivas de transformação dos modelos de configuração de nossas vidas. O primeiro e fundamental é o da absolutização do mercado como mecanismo básico de regulação do sistema econômico. Suas regras são consideradas como um mecanismo semelhante às leis da natureza, algo objetivo que o ser humano não tem condições de modificar. Por isto se situam fora do campo das interrogações éticas. Cria-se, assim, uma dicotomia radical entre economia e ética. A única questão aqui é a da eficiência na acumulação de riqueza, o que tem produzido o espetáculo tremendo de milhões de pessoas em condições de fome e miséria ao mesmo tempo em que o desenvolvimento tecnológico se faz cada vez mais capaz de produzir em abundância os bens necessários à vida. Na atual crise são justamente os mais pobres os mais vulneráveis e esse fato é uma oportunidade para se compreender a natureza do sistema que nos marca e suas consequências desastrosas. Uma das consequências mais graves deste sistema é a crise ecológica. Por esta razão, a crise atual abre possibilidades para uma verdadeira “transição ecológica”. Por exemplo, a crise poderá ter efeitos benéficos sobre o aquecimento global e, consequentemente, sobre a saúde pública. Na China, as mortes associadas à poluição do ar são estimadas em um ou dois milhões de pessoas a cada ano e a poluição diminuiu em 20% a 30% durante a crise. Estas coisas nos levam a refletir seriamente sobre o mundo que construímos abrindo perspectivas de estruturação de uma economia sustentável que respeite e cuide da comunidade dos seres vivos e melhore a qualidade da vida humana.
O que a pandemia de Covid-19 pode trazer de positivo para a sociedade? Sairemos desta pandemia pessoas melhores?
Não se pode ter certeza disto, pois, levando em consideração que somos seres livres, sabemos que não temos condições de saber de antemão como as pessoas vão orientar suas vidas no futuro, que elementos sociais, políticos, econômicos e culturais serão condicionantes das decisões humanas no futuro. Mas um acontecimento como o do Covid-19, enquanto ameaça à humanidade, pode conduzir a uma reflexão fundamental sobre aquilo que verdadeiramente importa na vida humana, sobre os verdadeiros valores que devem orientar nossas vidas. É uma oportunidade extraordinária para tomarmos consciência de nossa fragilidade fundamental, por um lado e, por outro, de nossa grandeza enquanto seres vocacionados à fraternidade, à justiça e ao amor. É uma ocasião que nos oferece a grande chance de reconhecer a dignidade de cada ser, de sua alteridade e, de forma muito especial, da dignidade de todo ser humano o que nos deve conduzir à busca de mecanismos para efetivar o reconhecimento universal do valor intrínseco de cada ser, superando toda forma de violência e discriminação, portanto, de refletir sobre a forma de configurar nossas vidas em nível individual e coletivo.
Este momento de estresse coletivo tem despertado inúmeras experiências altruístas, ações de amor ao próximo. São atitudes e sentimentos que tendem a se perpetuar mesmo após a pandemia ser controlada ou cairão no esquecimento quando tudo se acalmar?
É uma possibilidade, mas certamente é uma boa oportunidade para nos lembrarmos de que, antes do Covid-19, a humanidade já estava ameaçada em sua sobrevivência. O Covid-19 visualizou o que muitos não conseguem enxergar ou até tentam negar. Já se sabia que a universalização dos padrões de crescimento e de consumo do mundo rico conduziria a um apocalipse social e ecológico. A imposição pura e simples do ser humano sobre a natureza, em sua fúria de apropriação, conduz, em última instância, à destruição de toda vida no planeta. Somos convidados a pensar num mundo que seja capaz de superar todo tipo de humilhação do ser humano tanto da fome e da miséria quanto do que hoje se chama de “questões da identidade”, ou seja, por exemplo, o fato de ser negro, índio, mulher, drogado, homossexual etc. Por trás destas questões, há posturas que negam a dignidade inviolável do ser humano. A crise é uma grande oportunidade de sairmos dela mais humanos.
Vivemos em uma sociedade cada mais técnico-científica, mas estamos passando por um momento em que a ciência ainda não conseguiu dar respostas às inúmeras incertezas que permeiam a pandemia de Covid-19. Neste momento de incertezas e grandes perdas humanas, qual o papel da religião na vida das pessoas? Como o homem pode equilibrar-se entre razão e fé neste momento?
As respostas da religião não podem substituir as respostas das ciências como também o contrário, pois se põem em níveis diferentes, com objetivos diferentes. O ser humano é um ser extremamente complexo, constituído de inúmeras dimensões. Assim, também, são suas atividades que se realizam em diferentes óticas buscando todas a efetivação do ser humano em diferentes níveis. Um exemplo claro disto é a existência na vida humana de ciências, religiões, artes, filosofias, etc. As ciências buscam a compreensão dos diferentes campos da realidade tematizando suas estruturas específicas, sua maneira de ser e de se comportar, uma atividade de grande importância para o agir do ser humano no mundo, o que fica muito visível sobretudo neste momento de crise. Mas o ser humano tem outras questões que são também centrais em sua vida. Em última análise, ele se defronta com as assim chamadas “questões últimas” que dizem respeito à compreensão do todo da realidade, seu lugar neste todo, o sentido de seu existir e estas são as questões que são enfrentadas, cada vez de uma forma diferente, pela arte, pela religião e pela filosofia. Como diz V. Frankl, o ser humano, além de procurar sentido para coisas determinadas, deseja um sentido último, total, ponto de confluência de todos os sentidos particulares, capaz de dar unidade, nexo e desenvolvimento pleno à totalidade de sua vida e à existência do mundo como um todo. Este é constitui para ele o sentido por excelência. Na minha compreensão do fenômeno religioso na vida humana, seu objetivo é oferecer aos seres humanos respostas a esta questão fundamental que constitui o horizonte radical de orientação da vida.
A Covid-19 diferencia-se de inúmeras outras doenças tão graves e fatais quanto ela por não se restringir ou afetar especificamente determinadas classes sociais ou regiões, tal como acontece com a dengue, a cólera, etc. O senhor acredita que a fato de ser uma doença que afetou profundamente países desenvolvidos e, a exemplo do que aconteceu no Brasil, atingiu primeiro classes sociais mais privilegiadas, influenciou na mobilização mundial? Como o senhor avalia o comportamento ético das lideranças mundiais diante da pandemia?
Experimentamos na crise o espetáculo terrível de um retorno explícito a um nacionalismo extremado de defesa única dos próprios interesses nacionais a tal ponto de se querer, com dinheiro, garantir para o próprio país, com exclusão dos outros, os meios necessários para o cuidado dos doentes. Perde-se com isto uma oportunidade importante para se dar conta de que um mundo globalizado (e a crise também é globalizada) exige que as grandes questões que dizem respeito a todos sejam pensadas em perspectiva global. Há, contudo, alguns testemunhos que vão na direção oposta a este nacionalismo exacerbado. Primeiro uma carta assinada por 165 personalidades globais que pedem uma ação imediata e conjunta ao G20 e um apoio bilionário aos países mais frágeis. Afirma-se nesta carta que todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e bem financiados, estão fraquejando sob a pressão do vírus. Depois, o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, apontou em sua mensagem de Páscoa à nação a questão central da crise: a crise não é uma guerra, é antes um teste de nossa natureza humana. Aqui a solidariedade se revela não simplesmente como um convite, mas como uma obrigação, tese retomada nesse domingo pelo Papa Francisco em sua mensagem pascal ao mundo.
As bolhas de conforto e negação estouraram. A vida não está protegida por cápsulas: a casa, o carro, o shopping. Espalham-se riscos: mudanças climáticas, fome, bactérias resistentes. Enfrentá-las exige desafiar as cegueiras do capital
Por George Monbiot – OUTRASPALAVRAS – Publicado 09/04/2020 – Tradução: Antonio Martins | Imagem: Alessandro Gottardo
Vivemos por muito tempo numa bolha de falso conforto e negação. Nos países ricos, os cidadãos começaram a acreditar que haviam transcendido o mundo material. A riqueza acumulada – com frequência, às custas de outros – blindou-os da realidade. Viver por trás de telas, passando entre cápsulas – as casas, os carros, os escritórios e os shoppings – persuadiu-os de que as contingências haviam recuado, de que eles próprios haviam alcançado o ponto almejado por todas as civilizações: o isolamento dos riscos naturais.
Agora, a membrana se rompeu, e nos encontramos nus e ultrajados. A biologia, que pensávamos ter banido, irrompe em nossas vidas. A tentação, quando a pandemia tiver passado, será encontrar uma nova bolha. Não podemos sucumbir a isso. De agora em diante, deveríamos expor nossa mente às dolorosas realidades que negamos por tempo demais.
O planeta tem múltiplas morbidades, muitas das quais farão o coronavírus parecer, em comparação, fácil de tratar. Uma, mais que as outras, tornou-se minha obsessão nos últimos anos: como nos alimentamos? As disputas por papel higiênico, nos supermercados, já são horríveis demais. Espero nunca ter de testemunhar uma luta por comida. Mas está se tornando difícil descobrir como poderemos evitá-las.
Um vasto conjunto de provas está se acumulando, para mostrar como o colapso climático vai, provavelmente, afetar o abastecimento de comida. A agricultura, em muitas partes do planeta, está sendo afetada por secas, inundações, incêndios e gafanhotos (cujo ressurgimento, nas últimas semanas, parece ser o resultado de ciclones tropicais anômalos). Quando chamamos estas ocorrências de “bíblicas”, nos referimos ao tipo de fenômenos que ocorreu num passado remoto, a pessoas cujas vidas quase não podemos imaginar. Agora, com frequência crescente, eles ocorrem para nós.
Num livro a ser lançado em breve, Our Final Warning [“O alerta final”], Mark Lynas explica o que ocorrerá provavelmente ao abastecimento de comida, com cada grau a mais de aquecimento da atmosfera. Ele aponta que o perigo extremo virá quando as temperaturas subirem 3ºC ou 4ºC acima dos níveis pré-industriais. Neste ponto, uma série de impactos inter-relacionados ameaçará projetar a produção de alimentos numa espiral ao abismo. As temperaturas ambientes serão mais altas do que o ser humano é capaz de suportar, o que tornará a agricultura de subsistência impossível, na África e no sul da Ásia. O gado morrerá, por estresse de calor. As temperaturas começarão a superar os limites letais para as plantas cultivadas em muitas partes do planeta. As grandes regiões produtoras de alimentos vão se converter em bacias de poeira. Perdas simultâneas de colheitas, em todo o mundo– algo que nunca ocorreu em tempos modernos – vão se tornar prováveis.
Combinadas com o crescimento da população humana, a perda de água para irrigação, a erosão dos solos e a morte dos insetos polinizadores, poderão projetar o mundo em fome estrutural. Mesmo hoje, quando o planeta produz alimentos para todos os seus habitantes, centenas de milhões estão mal nutridos, devido às desigualdades de riqueza e poder. Um déficit na produção de alimentos pode resultar na fome de bilhões. O sequestro de alimentos, que sempre ocorre nestas condições, terá dimensões globais, com os poderosos desviando comida dos pobres. Ainda que todos os países cumpram as promessas que fizeram nos Acordos de Paris – o que hoje parece improvável –, o aquecimento global ficará entre 3ºC e 4ºC.
Devido a nossa ilusão de segurança, não estamos fazendo quase nada para nos precaver desta catástrofe – muito menos, para evitá-la. Este tema essencial pouco parece penetrar em nossa consciência. Todos os setores ligados à produção de alimentos alardeiam que suas práticas são sustentáveis e não precisam ser mudadas. Quando desafio estas afirmações, sou recebido com ira e insultos, e com ameaças do tipo que não havia vivido desde que me opus à guerra do Iraque. Vacas sagradas e cordeiros de deus estão em toda parte, e o pensamento necessário para desenvolver os novos sistemas alimentares de que precisamos é escasso em toda parte.
Mas esta é apenas uma das crises iminentes. A resistência aos antibióticos é, potencialmente, tão mortal quanto qualquer doença nova. Uma das causas é o modo espantosamente irresponsável com que estes medicamentos preciosos são usados na criação de gado. Quando enormes contingentes de animais são amontoados, os antibióticos são administrados profilaticamente, para prever eclosões de doenças que de outro modo seriam inevitáveis. Em muitas regiões do mundo, são usados não apenas para prevenir doenças, mas também para promover o crescimento. Doses baixas são rotineiramente adicionadas às rações. Seria difícil conceber uma estratégia melhor para promover a resistência das bactérias.
Nos EUA, onde 27 milhões de pessoas não têm cobertura médica alguma, milhões estão agora se tratando com antibióticos veterinários – inclusive aqueles vendidos, sem receitas, para peixes de aquário. As corporações farmacêuticas deixaram de investir de modo adequado na pesquisa de novas drogas. Se os antibióticos deixarem de ser efetivos, as cirurgias vão se tornar quase impossíveis. Os partos serão novamente um risco à vida das mães. A quimioterapia não poderá ser praticada com segurança. As doenças infecciosas, de que confortavelmente nos esquecemos, serão ameaças fatais. Deveríamos debater estes temas tão frequentemente quanto falamos de futebol. Mas quase nunca o fazemos.
Nossas múltiplas ameaças de crise, das quais vimos apenas duas, têm uma raiz comum. O problema pode ser visto na resposta dos organizadores da Meia Maratona de Bath, realizada no Reino Unido em 15 de março. Às milhares de pessoas que pediram cancelá-la ou adiá-la, a resposta foi: “É muito tarde. O local está pronto; a infraestrutura, montada; os patrocinadores, mobilizados”. Em outras palavras, os custos ocultos do evento pesaram mais que seus impactos futuros – a transmissão potencial da doença e as possíveis mortes que poderiam resultar.
O longo tempo transcorrido até que o Comitê Olímpico Internacional adiasse os jogos do Japão reflete processos similares – mas ao menos, a decisão correta foi tomada. Os custos ocultos em setores como os de combustíveis fósseis, pecuária, bancos, planos de saúde e outros impedem as transformações rápidas de que necessitamos. O dinheiro torna-se mais importante que a vida.
Há duas saídas. Podemos, como fazem algumas pessoas, dobrar a aposta negacionista. Alguns dos que desprezaram outras ameaças, com o colapso climático, tentam minimizar os riscos da covid-19. Comprova-o o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, para quem o coronavírus não é mais que “uma gripezinha”. A mídia e os políticos de oposição que pedem a quarentena são, para ele, parte de uma conspiração.
Outra saída é uma virada em que começamos a nos enxergar, de novo, como seres governados pela biologia e pela física, dependentes de um planeta habitável. Nunca mais deveríamos ouvir os mentirosos e negacionistas. Nunca mais devemos permitir que uma falsidade reconfortante oculte uma verdade dolorosa. Não podemos mais correr o risco de ser dominados por aqueles que colocam o dinheiro acima das vidas. O coronavírus nos lembra de que pertencemos ao mundo material.
Diante de uma pandemia cujo alcance global é trágico, uma vítima fatal, pouco mencionada, tem sido o pensamento crítico. Isto é gravíssimo, pois também pode custar vidas. Espremidos entre o consenso midiático-tecnocrático rapidamente construído, de um lado, e o ceticismo irresponsável da extrema-direita, de outro, a intelectualidade progressista parece não encontrar espaço para articular uma posição própria, capaz de interrogar a narrativa liberal dominante e, ao mesmo tempo, rechaçar as contra narrativas reacionárias. No Brasil, tal situação atinge seu ápice em meio ao complexo quadro político atual, fazendo com que toda atitude questionadora da versão midiática corra o risco de ser interpretada como simpática ao obscurantismo de Jair Bolsonaro. O resultado é que aqueles que normalmente poderiam levar a cabo a tarefa de exercitar o pensamento crítico, em um momento tão grave, terminam acanhados, temerosos ou mesmo capitulando por completo frente ao senso comum douto – notadamente neoliberal, vale dizer – contribuindo, assim, para um virtual monopólio da crítica pelos setores mais raivosamente conservadores da sociedade.
Até poucos anos atrás, uma pichação na rua com os dizeres “A GLOBO MENTE” seria certamente obra de algum grupo de esquerda. Hoje em dia, contudo, não é mais possível saber de antemão quem veicula tal mensagem, pois há um crescente movimento da direita radical que agora se apropria de críticas tradicionais dos setores anti-capitalistas, antirracistas e anti-patriarcais, dando-lhes um novo significado, é claro, de acordo com sua agenda política. A grande imprensa não representa o único caso de disputa, ou mesmo sequestro, das pautas políticas progressistas pela chamada ‘nova direita’. Alvos notórios como os organismos internacionais e os processos de globalização (alcunhados de globalismo) são agora atacados com contundência pelo flanco oposto, gerando perplexidade e certa confusão ideológica nos setores que tradicionalmente capitaneavam seu questionamento. O resultado, em muitos casos, parece ser uma defesa automática daquilo que antes era criticável, quase como um instinto automático e irrefletido, na tentativa de se contrapor aos perigos evidentes que a agenda reacionária – explicitamente autoritária e belicosa – apresenta.
Infelizmente, tal gesto não parece surtir o efeito defensivo esperado. Pior ainda, alimenta agendas políticas igualmente violentas e exploradoras (ainda que mais dissimuladas), aprofundando, assim, a regressão ideológica entre os setores progressistas. Neste processo, acaba-se privando os setores em luta e as camadas da população mais exploradas e oprimidas de uma nítida direção moral e intelectual que lhes permita distinguir adequadamente aliados de adversários. É urgente resistir a este verdadeiro eclipse do pensamento crítico instalado com rapidez fulminante em meio à crise do Coronavírus. Caso não recuperemos a nossa capacidade de articular uma posição própria, continuaremos reféns de agendas alheias e incapazes de interferir nos rumos da política durante e após o fim desta pandemia, quando possivelmente será tarde demais para recuperar aquilo que está sendo entregue com assustadora facilidade agora. Três dimensões precisam ser imediatamente enfrentadas: a aceitação acrítica das narrativas da imprensa corporativa; a condução da sociedade por ‘especialistas’ nas ciências naturais; e, por fim, a instalação progressiva de medidas cerceadoras de liberdade rumo a um verdadeiro estado de exceção global.
Os conglomerados midiáticos na crise do Coronavírus
Se algo soa estranho, não é preciso calar-se ou desviar o olhar somente porque alguém ainda mais estranho também o percebe e o denuncia em voz alta. Menos ainda tornar-se cúmplice ou correia de transmissão de práticas discursivas, no mínimo, duvidosas. A cobertura da grande imprensa é um desses casos nos quais o pensamento crítico parece ter sucumbido ao dilema anteriormente descrito. É um erro tático de grandes proporções deixar que questionamentos óbvios sejam feitos publicamente somente por figuras como Bolsonaro, ainda que todos nós em nosso íntimo nos vejamos por vezes indagando coisas similares. A mais óbvia de todas é: por que tamanha atenção não é – nunca foi – destinada a outras causas de morte tão graves quanto a pandemia atual ou (pelo menos até o momento) severamente mais letais que o Coronavírus? Não devemos ter medo de perguntar isso. Bolsonaro o faz por motivos mesquinhos e político-pessoais. Nós devemos fazê-lo por razões mais nobres: a busca da verdade e, principalmente, daquilo que está sendo encoberto pela atual cobertura monotemática e descaradamente indutora de pânico social. Se o atual presidente é cínico, os veículos da mídia corporativa também o são. E isso não podemos esquecer.
Alguém consegue imaginar uma similar contagem de casos e mortos por alguma outra razão – digamos, fome – sendo realizada diariamente, com placares eletrônicos transmitindo sua progressão em tempo real? “Hoje o número de mortos por câncer no mundo atingiu seu recorde”; “esta semana os feminicídios no Brasil superaram os de outros países”; “estima-se que tantos milhões de venezuelanos e iranianos irão morrer nas próximas semanas em decorrência das sanções unilaterais impostas pelos EUA”… Nada disso é imaginável, pois nos levaria a colocar em questão a indústria de agrotóxicos, a violência machista e a letalidade da política imperialista, respectivamente. Em outras palavras, traria nossa atenção para relações sociais mortíferas, de classe, gênero e raça. E isso a Globo não mostra.[1]
Não se trata de subestimar os efeitos e riscos da atual pandemia. No momento atual, isto seria leviano, deveras irresponsável. Mas perguntar por que essa causa mortis tem recebido uma atenção desproporcional da grande imprensa é uma tarefa que não podemos abandonar, menos ainda deixar de graça para nosso pior adversário. No Brasil, mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano, todos os anos.[2] São seres humanos mortos por outras pessoas, por razões sociais, não por razões biológicas per se. Este número deveria chocar, assustar, alarmar e fazer com que tomemos grandes iniciativas de escala nacional para diminuí-lo drasticamente. Mas não o fazemos, em parte porque a imprensa não nos apresenta isso como deveria. Há uma subnotificação brutal dos números de assassinatos da juventude negra e periférica pelas polícias em todo o país, mas não vemos alarde midiático sobre isso. Quantas mulheres sofrem abusos sexuais e violência domestica a cada hora, ou minuto?[3] Tais temas não se tornam emergência; em grande medida passam despercebidos. Em meio à cobertura monotemática da pandemia atual há indígenas sendo assassinados e quilombolas sendo expulsos de suas terras (para dar lugar a uma base militar). Onde estão as câmeras nestes casos? Onde está a cobertura diária da grande mídia dos alertas científicos contra o aquecimento global, as vidas que já ceifou e as que seguirá inviabilizando?
Por isso, em vez de ficar espremidos entre a cobertura oficial e a narrativa oficialista, temos a obrigação de seguir colocando os números e temas em perspectiva, tanto histórica quanto em relação a outras causas de morte, principalmente aquelas ligadas a relações sociais capitalistas. No mundo, 820 milhões de pessoas passam fome diariamente, segundo a FAO[4] e entre 300 a 650 mil morrem anualmente por gripes, segundo a OMS.[5] A própria FAO parou de publicar este tipo de dados (algo que também deve ser questionado), mas da última vez que o fizeram a estimativa era que 25 mil pessoas morriam de fome por dia, em todo o planeta, contabilizando uma cifra maior do que HIV/Aids, malária e tuberculose juntas.[6] A maior causa deste verdadeiro holocausto nutricional é o preço dos alimentos: um problema de distribuição de riqueza, portanto. Façamos as contas: são 17 pessoas morrendo a cada minuto, vítima de algo para o qual existe uma ‘vacina’ bem conhecida: comida. Seria ótimo se este escândalo humanitário obtivesse a atenção que merece, pois isto provavelmente impulsionaria uma resposta eficaz e até mesmo preventiva, como vemos agora. No entanto, só os pobres morrem de fome.
Isto não significa subestimar os perigos do Coronavírus, nem endossar a estupidez que o considera uma “gripezinha”, mas colocar em evidência as relações sociais de poder que produzem subnutrição e morte, além da falência de sistemas de saúde – crescentemente privatizados – ao redor do planeta que se tornam incapazes de lidar com gripes e doenças de todos os tipos. No mínimo, deveríamos exigir dos meios de comunicação que nos informem sobre tais números e calamidades na mesma medida em que o fazem com a pandemia atual. Se não o fazem, deveríamos cobrar respostas para os motivos de tal omissão, para tamanha distorção da informação sobre o mundo em que vivemos – e os demais motivos pelos quais morremos.
Até o momento em que escrevo estas linhas, a epidemia do Coronavírus ceifou a vida de cerca de 30 mil pessoas ao redor do planeta, em seis meses, infectando cerca de 900 mil. Estes números são assustadoramente similares aos da epidemia de Cólera no Haiti, país de apenas 10 milhões de habitantes. Aquela doença, por sinal, foi introduzida por tropas internacionais da intervenção militar da ONU (entidade que nunca devemos parar de criticar) e liderada pelas forças armadas brasileiras durante todos os seus 13 anos de duração: alguma vez vimos uma contagem diária das vidas haitianas perdidas por uma enfermidade trazida de fora, justamente por aqueles que se diziam seus salvadores humanitários? Não. As Nações Unidas assumiram a responsabilidade pela introdução da bactéria? Não. E sabemos bem o porquê. Tais vidas – vidas negras e distantes – simplesmente importam pouco para nossa grande mídia corporativa quando não servem para legitimar uma militarização. Por outro lado, tivemos contagens em tempo real das levas de imigrantes haitianos que entravam diariamente no Brasil, com coberturas assustadoras sobre a “invasão haitiana” em curso…[7] É de se imaginar o que seria feito caso fossem estes imigrantes que tivessem trazido esta pandemia da Covid-19 para nosso país. A lição que fica, é que não podemos abandonar nossa desconfiança quanto a mídia corporativa, suas agendas políticas, sua seletividade, seu elitismo racista e patriarcal. Se a preocupação da grande imprensa fosse mesmo com vidas, estaríamos em uma situação bem melhor, inclusive para enfrentar a grave pandemia atual.
Os ‘especialistas’ de plantão e a defesa da sociedade contra um inimigo invisível
O discurso tecnocrático, que supõe haver uma solução técnica para todo problema social, sempre foi objeto de contundentes críticas por parte dos setores progressistas. Afinal, em nome do saber inquestionável de ‘especialistas’ em cada área (crescentemente compartimentadas), políticas transmitidas como inquestionáveis foram constantemente impostas à classe trabalhadora sob a rubrica do ‘necessário’ e do ‘inevitável’. Esta atitude é típica do neoliberalismo, que busca convencer-nos de que “não há alternativas”, segundo a famosa frase de Margareth Thatcher. Especialistas em previdência afirmam que é preciso cortar direitos; especialistas em segurança pública tem certeza que é preciso aprofundar a belicosidade das ações policiais; especialistas em direito constitucional, há pouco tempo, afirmavam que era preciso destituir uma presidenta por ‘pedaladas fiscais’. Não por acaso, sempre desconfiamos.
O problema é mais amplo e antigo. Em nome da ciência e de boas intenções, os impérios europeus realizaram sua colonização: o racismo científico de fins do século XIX forneceu a base ‘racional’ da missão civilizatória, ao garantir cientificamente que populações não-brancas eram biologicamente inferiores. Era preciso exterminá-las ou dominá-las, portanto. O epistemicídio de saberes tidos como ‘não-racionais’ ou ‘bárbaros’ foi política oficial, como é sabido. As mulheres sempre foram alvo do mesmo tipo de ação cientificista e racionalista, não faltando estudos de renomados ‘especialistas’ que convictamente afirmavam sua inferioridade e irracionalidade frente aos homens. Isso foi feito pela melhor ciência de cada época dos países mais ‘modernos’ e desenvolvidos! É preciso, pois, ter muito cuidado com aquilo que é feito em nome da verdade científica.
O regime político que mais colocou médicos em posições de poder para definir os rumos da sociedade foi o nazismo. Sua busca por uma raça pura levou ao genocídio e a perversos experimentos médicos nos campos de concentração. Sua preocupação com a contaminação pessoal e social traduzia-se tanto no tradicional cumprimento à distância erguendo uma das mãos (para não transmitir qualquer impureza ou doença), como na conhecida metáfora organicista de Hitler que dizia que os judeus deveriam morrer como ‘piolhos’. Isto não é uma coincidência, afinal eugenia e higienismo social sempre caminharam juntos.
É preciso ter muita cautela antes de entregar as definições do rumo de povos inteiros aos médicos. Eles simplesmente não estão preparados para isto e certamente poderão provocar um mal ainda maior. Não conseguem visualizar todas as dimensões da sociedade. Isto não significa que devemos ignorá-los, apenas que não podemos entregar o poder estatal a eles e confiar que tudo vai dar certo. No Brasil, temos um exemplo canônico de tais perigos embutidos no sanitarismo truculento com a chamada ‘Revolta da Vacina’, em 1904, que infelizmente parece estar sendo apagada da memória até mesmo de historiadores das classes populares (a História vista de baixo) neste momento. Classes dominantes e setores dirigentes sempre buscam nas ‘classes perigosas’ e ‘sujas’ um objeto de purificação pela violência. No fundo, o que buscam é reforçar uma cultura de obediência e submissão ao poder político e econômico vigente.
Todo discurso que apresenta uma humanidade desprovida de clivagens – de hierarquias e relações de poder – deve ser colocado sob suspeição. A atual retórica sobre ‘estarmos todos no mesmo barco’ porque trata-se de uma batalha de ‘todos contra o vírus’ é uma dessas armadilhas ontológicas que produz algo extra-social como o inimigo contra quem devemos defender a sociedade. O que some nesta operação são as relações sociais – capitalismo, racismo e patriarcado – que ficam isentos de qualquer responsabilidade na crise atual. Mas sabemos que neste momento a humanidade não irá superar suas diferenças, unindo-se em prol do bem comum: pelo contrário, a grave pandemia só irá aguçar as já brutais relações de opressão e exploração. Os inimigos são outros humanos: o vírus apenas torna esse triste fato mais evidente. Basta ver quem terá direito ao tratamento e quem sequer poderá fazer testes para saber se está infectado. Em nível internacional, isto já é visível, como no caso do confisco de equipamentos médicos por grandes potências levando a acusações de “pirataria” até entre aliados geopolíticos.[8]
Por fim, também por motivos de rigor científico, é preciso rever com prudência a atual defesa incondicional da ‘ciência’. Não há nada menos científico do que uma fé cega na ciência, que seria melhor descrita como cientificismo, típico de personagens machadianos como Simão Bacamarte.[9] Na realidade, esta atitude revela um profundo desconhecimento da história da ciência e do seu funcionamento até hoje. A ciência não fala com uma voz única, mediante uma verdade consensual inquestionável: os cientistas estão constantemente debatendo entre si, discordando, duvidando de estudos anteriores, questionando métodos, estimativas e conclusões. É esta atitude crítica que difere a ciência da religião por exemplo, pois a primeira não pode se basear em dogmas, em verdades absolutas inquestionáveis. Não é preciso ser ‘especialista’ em epistemologia lakatiana ou doutor em teoria do conhecimento para saber que a imagem do conhecimento científico evoluindo progressiva e linearmente já foi descartada há tempos, até por destacados positivistas. O edifício do saber científico não é construído assim, com cada cientista acrescentando seu tijolo por cima de outro e obedecendo a um projeto em comum. Pelo contrário, tal edifício é implodido de tempos em tempos sempre quando chega-se a uma crise do paradigma dominante em determinada área, abrindo uma nova fase de ‘ciência normal’, como diria Thomas Kuhn sobre a estrutura das revoluções científicas.[10] Karl Marx, por exemplo, buscou produzir seu socialismo científico, é verdade, mas o fez questionando a mais pura ciência econômica de sua época, mantendo uma atitude de ‘crítica impiedosa contra tudo o que existe’ contra as verdades disseminadas e aceitas sobre seu objeto de estudo. É este espírito que não se pode abandonar.
Sabemos que remédios que antes eram recomendados para toda a população – como a cocaína foi amplamente prescrita, até para crianças – de repente são considerados nocivos e chegam a ser proibidos. Pessoas da minha idade costumavam passar mercúrio cromo nos machucados da pele, mas “produtos que eram considerados a última palavra em tecnologia provaram ser perigosos para humanos e o meio ambiente”, conforme palavras de especialistas em química da UFRJ.[11] O mais saudável, portanto, é ter cautela e, sobretudo, manter a atitude crítica diante de verdades inquestionáveis que ainda precisam ser comprovadas com o tempo. Não estou falando para ninguém duvidar da lei da gravidade ou defender que a terra é plana, apenas sugerindo não capitular frente ao que é transmitido como imune a questionamentos, especialmente em momentos de pânico social. Se até na física isto é necessário, na economia ou epidemiologia, que trabalham com projeções e estimativas, seria ainda mais.
Na crise do Coronavírus, há uma grande e compreensível tentação de se afastar das sandices bolsonaristas mediante o apelo a alguma ‘verdade’ científica. O problema é que existem várias delas, como fica expresso na plural oferta de estimativas de mortos feitas para cada região ou país: no Brasil, fala-se de 50 mil a 1,5 milhão. Em qual acreditar? São todas científicas. Em qual delas basear políticas públicas? Como combinar tais políticas com outras preocupações cruciais? É uma tarefa difícil que não pode ser entregue à imprensa e políticos de plantão, sempre preocupados com a próxima eleição, mesmo quando dizem que não. Na situação atual, é preciso repetir: duvidar da rede Globo ou de um ‘especialista’ qualquer na TV com ares de cientista não faz de você – de mim, de nenhum de nós – um terraplanista automaticamente. Faz apenas um bem ao exercício da crítica responsável.
Temos o direito de nos perguntar: será que as recomendações (muitas vezes contraditórias) que estão nos passando são realmente as melhores, as mais eficazes e cuidadosas? Como tudo está sendo baseado em contra-factuais, é impossível saber como seria o resultado caso a conduta fosse outra. Então segue legítimo indagar se medidas repressivas e que olham apenas para um aspecto da questão, à moda ceteris paribus, são realmente as mais seguras. Há recentes pesquisas ‘científicas’ que indicam a possível relação entre deficiência de vitamina D e vulnerabilidade ao Coronavírus. Ora, caso isso seja confirmado, no futuro, nos daremos conta que confinar totalmente as pessoas não foi a estratégia mais inteligente, pois ter-se-ia salvado mais vidas caso o distanciamento social fosse acompanhado de recomendações para que as pessoas saíssem de casa para pegar sol por alguns minutos diários, desde que não se aglomerassem. Mais ainda, neste caso, teríamos perdido um grande aliado – o sol de verão – justamente nas regiões sul e sudeste, que apresentam o maior número de casos no Brasil. É cedo para dizer, trata-se de um estudo preliminar, como todos o são a esta altura.[12] Mas não deve ser cedo demais para manter aceso o espírito crítico em busca de melhores soluções. Um ceticismo ponderado não aproxima ninguém de Bolsonaro, pois a tão-celebrada Suécia, por exemplo, é um dos países que se recusou a adotar medidas extremas e manteve até as aulas nas escolas. Decerto, é um país que investiu em bem-estar social por décadas, incluindo o sistema de saúde.[13] Haveria uma correlação entre a precariedade (fabricada por políticas de desmonte ou focadas no lucro) dos sistemas de saúde e o nível de truculência, ou desespero, estatal-midiático durante a crise atual? Será preciso investigar.[14] O que já se pode saber é que o risco de cruzar a linha tênue entre aquilo que é necessário e – na falta de uma melhor palavra – aquilo que se torna totalitário é grande, tornando urgente o resgate do pensamento crítico sobre a pandemia do quase-monopólio entregue à direita radical.
Estados de exceção, vigilância e caminhos sem volta
Felizmente, já existe um crescente número de vozes críticas que vêm alertando para uma escalada autoritária em escala mundial sob o pretexto de ‘combate’ à pandemia. É preciso reforçar este alerta, uma vez que tais medidas de exceção já estão custando vidas e, via de regra, são caminhos sem volta. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte avisou que as forças de repressão irão atirar para matar quem desobedecer ao toque de recolher.[15] Na Índia, um grupo de migrantes foi irrigado com cloro e o governo local disse que foi “excesso de zelo” dos agentes de saúde e que o incidente (gravado em vídeo) foi “devido ao seu entusiasmo excessivo”.[16] Serviços de espionagem israelenses começaram a monitorar seus cidadãos pelo rastreamento de celulares, sem seu consentimento, no que foram seguidos por governos de outros países, estados e cidades.[17] No Brasil, a prefeitura de Recife já está monitorando celulares de 700 mil pessoas, em parceria com uma empresa privada.[18] Aproveitando-se do momento, até medidas que a princípio não possuem relação com a pandemia são implementadas. O governo de Santa Catarina lançou um aplicativo da Polícia Militar supostamente para ajudar no “combate ao novo cornavírus”, mas que inclui ferramentas como a Rede de Vizinhos, uma espécie de dispositivo de vigilância público-privada comum em bairros de classe média, “que será útil na comunicação de risco”: não de infeções, mas da presença de pessoas indesejadas na vizinhança.
Há inúmeros casos ao redor do país e do mundo. A preocupação que devemos ter deve-se ao fato de que Estados de Exceção são sempre seletivos. No mundo em que vivemos, o poder sem limites será sempre exercido contra alguém mais vulnerável, pobre ou fraco. Quando o número de mortes aumentar em concomitância ao empobrecimento agudo provocado pela suspensão das atividades econômicas, qual será a atitude das polícias e forças armadas frente a uma população cada vez mais desesperada? Sem direitos constitucionais ou garantias civis plenamente vigentes, é de se esperar um cenário de massacres ‘em defesa da ordem’, no Brasil e em outras partes. É por isto que se deve evitar a todo custo a linguagem da ‘guerra’ contra o Corona, ou ‘combate’ a epidemia pois, assim como a ‘guerra às drogas’ e o ‘combate à pobreza’, esta securitização de um problema de saúde abre espaço para a violência estatal sem limites. A notícia de que o Ministro da Justiça irá autorizar o emprego da Força Nacional “no combate ao coronavírus” foi recebida com ironia por algumas vozes perspicazes, que questionaram se os soldados iriam atirar no vírus. Na verdade, sabemos para quem suas armas irão apontar para “garantir a segurança pública em determinadas situações”, propositalmente deixadas no ar, sem especificação sobre quais seriam.[19]
Outro precedente perigoso é o fato de atualmente toda atividade política estar suspensa ou acontecer online. A dificuldade para os setores populares é óbvia, sem contar a maior exposição à vigilância e à censura. Se hoje o judiciário está proibindo manifestações de rua (hipócritas, por sinal) da extrema-direita e se o Twitter está apagando arbitrariamente mensagens de um presidente da república (asqueroso, decerto) ou de um poderoso pastor evangélico (charlatão, sem dúvidas), o que irão fazer contra partidos de esquerda, sindicatos, grêmios estudantis e movimentos sociais? A rápida legitimação que temos dado a tais ações, que prima facie nos parecem favoráveis, está empoderando castas militares e judiciais para fazerem o mesmo contra nós num futuro próximo. É um “erro colossal”, como alerta a historiadora lusa Raquel Varela, celebrar tais medidas ou seguir pedindo por mais decretos de sítio, emergência, calamidade e demais atos excepcionais, pois a extrema direita pode sair vencedora desta crise caso medidas assim sigam sendo implementadas.[20]
Além disto, o clima induzido de vigilância entre as pessoas é nefasto para a tentativa de redemocratização pós-corona. Uma guerra de todos contra todos foi instaurada e estimulada por governos e mídia, gerando desde lutas em supermercados por papel higiênico até linchamentos nas ruas a alguém que tossiu, passando por ataques a profissionais de saúde.[21] Em meio a este tipo de agressão e desconfiança mútua entre toda a cidadania, os verdadeiros responsáveis ficam imunes: a expansão capitalista sem limites para dentro do mundo natural e as burguesias que empurram incessantemente esta fronteira em busca de lucros. Longe de ser fruto de uma culinária exótica, conforme propagado sem confirmação pela versão orientalista (racista) que atribuía o Coronavírus a uma excêntrica sopa de morcegos, agora sabemos que é a industrialização ad infinutum da produção agropecuária e sua penetração em habitats novos que nos trouxe esta pandemia.[22] Fica nítido que as diferentes narrativas das elites globais servem apenas para ocultar sua responsabilidade na origem da crise e na precariedade de suas soluções, em especial na falta de equipamentos de saúde adequados. Em suma, não precisamos optar entre o Estado de Exceção imposto pelos meios de comunicação como a única saída, de um lado, e o ‘darwinismo sanitário’, de outro, proposto pela extrema-direita genocida, seja no Brasil ou no Texas.[23] Podemos exercitar o bom senso, o pensamento crítico e, assim, construir coletivamente um conjunto de alternativas e práticas concretas que nenhuma mente sozinha será capaz de encontrar. Mais do que nunca, é hora de o intelectual coletivo contra-hegemônico entrar em ação com mais vigor.
Conclusão
Os três alertas descritos acima não são os únicos desafios da conjuntura atual, apesar de apontarem para importantes facetas do dilema que o pensamento crítico vive em tempos de Corona, em paralelo à ascensão da extrema-direita. No entanto, deve-se agregar um último alerta – à guisa de conclusão – às dimensões ideológicas (mídia), epistemológicas (fé na ciência) e políticas (estados de exceção) abordadas até aqui – e que engloba todas as três. Trata-se da economia, em sentido amplo, ou seja, da oikosnomia, a arte de administrar a casa, de prover o sustento da vida. Não podemos deixar para Bolsonaro e outros da mesma estirpe a defesa da economia, dos empregos, das condições materiais de existência. É um erro tático e um favor que estamos fazendo a nossos inimigos. Não existe oposição entre a vida e a economia: tal dicotomia é falsa e implica numa derrota prévia para o campo popular no embate político.
Precisamos encarar este dilema de frente: a palavra de ordem ‘fica em casa’ não pode ser a única coisa que temos a dizer. Afinal, como recente pesquisa do Datafolha mostrou, a maioria da população gostaria de ficar em casa para evitar a propagação do vírus. Mas o motivo pelo qual a maioria não fica é o fato de não terem sido autorizadas pelos empregadores.[24] Deste modo, é uma ficção a ideia de que jovens irresponsáveis seriam a amostra típica do grupo de pessoas que não atendeu ao distanciamento social. A grande parcela pertence à população proletarizada. Portanto, direcionar o discurso para as pessoas (‘fica em casa’) e não para os patrões e para o Estado (‘permitam que fiquemos em casa’) significa reproduzir o conhecido gesto neoliberal de culpar os indivíduos por sua própria desgraça.[25] Há algo de similar entre este mantra que viralizou junto com o Coronavírus, por um lado, e a conhecida perversidade embutida na defesa da meritocracia capitalista, de outro: ambas atribuem, injustamente, aos indivíduos as responsabilidades por resultados que estão aquém de suas escolhas, por serem de natureza social, estrutural. E não podemos compactuar com isso. É urgente redirecionar o alvo do discurso e construir estratégias de reprodução das condições materiais de existência que a cada dia se veem deterioradas pelo confinamento. E por mais que a caridade e solidariedade ativa sejam fundamentais neste momento, elas também têm um limite: não podem ser a única resposta frente ao tamanho do desafio. Agir como se todos pudessem ficar em casa, como se fosse um problema unicamente de teimosia ou egoísmo, é adotar uma posição de classe deveras elitista, mesmo que inadvertidamente.
Não apenas economicamente, mas por outras razões o simples mantra do ‘fique em casa’ é insustentável, na melhor das hipóteses, ou cruel, na pior. Apenas uma pequena minoria da população é composta por homens, brancos, com renda fixa confortável, casa própria, internet para trabalho remoto e Netflix para passar o tempo, sem filhos para cuidar. Além do fato de muita gente não ter casa, para diversas outras pessoas e segmentos sociais a casa pode significar um lugar de violência, opressão e humilhação cotidiana. Isto não pode ser ignorado. Temos que ser capazes de transcender o slogan televisivo e apresentar propostas que não sejam nem a da direita liberal, nem a da direita fascistóide, que habilmente tem jogado com a necessidade (e o desejo, que é legítimo, por sinal) que as pessoas têm de sair de casa, seja para trabalhar ou para qualquer outra atividade, incluindo o lazer. Além de outro erro tático e submissão ideológica, isto também é perverso em mais um sentido: quem sofre de depressão não pode ser condenado ao isolamento. Nós que sempre defendemos o direito à saúde mental não podemos ignorar este fato agora. É algo sério, importante e que, novamente, pode custar vidas. É uma lástima que Bolsonaro esteja se apropriando de mais essa bandeira nossa e que não tenhamos capacidade de reagir, reivindicando o que é nosso. Assim como no aspecto econômico – que é gritante – a ‘solução’ dos especialistas não pode se dar às custas de um sofrimento possivelmente maior ao que o Corona já causa e certamente irá causar.
Por tudo isso, devemos renunciar à infame escolha, como diz a canção de Caetano, de “optar entre o inseto e o inseticida”.[26] Esse dilema é real e de difícil enfrentamento. Sabemos apenas que a “fé cega”na mídia, nos ‘especialistas’ de plantão e nas medidas de força revelar-se-á uma “faca amolada” para nós mesmos, conforme diz outra canção, de Milton.[27] Nessa avalanche de narrativas que não nos servem, é preciso manter, esta sim, a “estranha mania de ter fé na vida”[28], conforme foi cantada pelo mesmo trovador das Gerais. E não sucumbir jamais ao imobilismo que nos resta caso aceitemos passivamente a postura acrítica frente a ideologia liberal-capitalista-autoritária que, no fundo, informa a ambas as direitas temporariamente em luta. Diversas vozes já se empenham em sair da armadilha aqui descrita; é preciso que muitas outras se somem. A ameaça do Corona é real, seríssima e desafiadora. Não pode de modo algum ser subestimada. Será preciso muita perspicácia para não nos rendermos aos perigos que se sobrepõem ao vírus, numa mescla agoniante de terror.
Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia
Como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida
***
*Miguel Borba de Sá é professor de Relações Internacionais da UFSC e membro da rede Jubileu Sul. As opiniões expressas aqui, no entanto, não representam a posição dessas instituições.
AVISO: Como não se trata de artigo acadêmico, certas referências bibliográficas de fundo, não foram explicitadas ou discutidas. A leitora versada nos debates das ciências sociais perceberá, no entanto, que é grande o meu débito para com autores como Gramsci, Foucault e, sobretudo, Horkheimer.
[1] Estimativas modestas apontam que três mulheres são assassinadas por dia no Brasil por razões de gênero e a América Latina, como um todo, é a região com mais feminicídios per capta no mundo. Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/24/actualidad/1543075049_751281.html [2] http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019 [3] São registrados 180 estupros por dia no Brasil, metade deles vitimando a meninas menores de 13 anos, fora os casos não registrados. Ver, a respeito,: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-mais-de-180-estupros-por-dia-numero-e-o-maior-desde-2009.shtml [4] http://www.fao.org/3/ca5162es/ca5162es.pdf [5] https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/influenza-(seasonal) [6] https://unchronicle.un.org/article/losing-25000-hunger-every-day [7]https://oglobo.globo.com/brasil/invasao-de-haitianos-em-brasileia-comecou-em-2010-3593903 https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381 [8] https://www.rt.com/news/484935-us-takes-masks-germany/ [9] Assis, M. “O alienista”. In: 50 contos de Machados de Assis. São Paulo: Cia das Letras, 2007. [10] Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectivas, 2003 [original em inglês de 1962]. [11]Ver artigo dos cientistas do Instituto de Química da UFRJ, em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422006000500040 [12] https://veja.abril.com.br/saude/coronavirus-vitamina-d/ [13] https://www.cnbc.com/2020/03/30/sweden-coronavirus-approach-is-very-different-from-the-rest-of-europe.html [14] O excelente estudo publicado pela FITA em 29/02/20 sugere elementos nesta direção. Ver: Coletivo Chuang, “China, capitalismo tardio e o ‘mundo natural’”. Outras fitas: Contágio Social – coronavírus. [15]https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/02/presidente-das-filipinas-diz-que-mandou-atirar-para-matar-quem-descumprir-regras-de-isolamento.ghtml [16]https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-03/covid-19-migrantes-sao-pulverizados-com-desinfetante-na-india [17] https://veja.abril.com.br/mundo/coronavirus-israel-aciona-medida-de-espionagem-de-emergencia/ [18]https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/24/recife-rastreia-700-mil-celulares-para-monitorar-isolamento-social-e-direcionar-acoes-contra-coronavirus.ghtml [19]https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/31/moro-autoriza-uso-da-forca-nacional-nas-acoes-de-combate-ao-coronavirus.ghtml [20] https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2020/03/16/estado-de-emergencia-um-erro-colossal/ [21] https://www.mirror.co.uk/news/uk-news/coronavirus-nurse-racially-attacked-couple-21701031 [22] https://grain.org/e/6439 [23]https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/03/24/vice-governador-do-texas-sugere-que-idosos-arrisquem-a-vida-pela-economia.htm [24]https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/maioria-tem-medo-de-coronavirus-e-apoia-medidas-de-contencao-diz-datafolha.shtml [25] Esta ideia é exposta, dentre outros, por David Harvey na sua Breve História do Neoliberalismo (2005). [26] Veloso, C. “Eclipse Oculto”. Álbum: Uns. Gravadora: Philips,1983. [27] Nascimento, M. “Fé Cega, Faca Amolada”. Álbum: Minas. Gravadora: EMI-Odeon, 1975. [28] Nascimento, M. “Maria Maria”. Álbum: Clube da esquina2. Gravadora: EMI-Odeon, 1978.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado por Carta Capital, 30-03-2020 e escrito em colaboração com Denis Maracci Gimenez, José Augusto Ruas, Rodrigo Sabbatini e Saulo Abouchedid. Publicado por IHU, 31.03.2020.
Segundo o artigo, “é fundamental defender os circuitos que mantém a renda circulando, a “economia girando”. Para isto, a renda das empresas, dos trabalhadores e dos Estados e Municípios deve ser garantida, excepcionalmente, pela União, através de um sistema de proteção social emergencial, do sistema de crédito público e de um sistema ampliado de transferências governamentais”. É crucial a adoção de medidas em pelo menos três frentes emergenciais: Defender a renda do trabalho; Defender a renda das empresas cujas receitas desabarão durante a quarentena e depois dela; Defender a capacidade de custeio de Estados e Municípios.
(Imagem: Fábio St Rios em A Postagem).
Segue o artigo
O Brasil caminha para uma depressão econômica. Combater a depressão econômica será tão importante para a vida dos brasileiros quanto combater o novo coronavirus. Ampliar o isolamento social e potencializar o maior sistema de saúde do mundo, o SUS, é urgente e incontornável. Os resultados desse processo exigirão também imediata ação das autoridades para minimizar os efeitos econômicos desta “parada súbita,” que tem o potencial de produzir uma depressão que somará incontáveis mortes aos já assustadores efeitos da pandemia.
As várias dimensões da crise emitem sinais inequívocos rumo à depressão. A crise sanitária vem consolidando, dia após dia, uma perspectiva de grande retração da economia mundial. O isolamento das pessoas, as interrupções forçadas no sistema produtivo, o fechamento de estabelecimentos comerciais e de serviços, e a bruta queda dos fluxos de pessoas comércio exterior expuseram as já presentes fragilidades em mercados financeiros globais.
A pandemia foi a ponta de lança que furou a bolha financeira em 2020, criando um potencial de caos semelhante à crise global de 2008, naquela ocasião a bolha foi furada nos mercados hipotecários nos EUA. Hoje, como em 2008, a crise evolui para uma depressão generalizada com iminente drama social, num contexto já terrível por conta da Covid-19. Bancos, empresas e famílias têm dificuldades no financiamento de suas obrigações junto ao Sistema Financeiro, levando a perdas sucessivas nos mercados acionários, cambiais, de dívida corporativa, dentre outros.
A destruição da riqueza se alastra ao redor do globo, considerando a atuação global dos investidores, e provoca elevação substancial do desemprego, da pobreza e da miséria. A previsão do banco americano Goldman Sachs é sombria: Nos EUA 2 milhões e 250 mil pessoas entrarão na fila do seguro desemprego nesta semana, número oito vezes maior em comparação à semana anterior.
Os sinais são ainda piores no caso brasileiro. Há poucas semanas, a divulgação do desempenho medíocre do PIB de 2019 evidenciava nossa incapacidade recuperar as perdas da recessão iniciada há meia década. Nenhuma crise em nossa história se alongou por tantos anos. A aposta liberal, de cortes e congelamento do gasto público, de flexibilização do trabalho e da seguridade social, de redução e venda de bancos públicos e de empresas estatais, vem desmontando as interações positivas entre Estado e empresas e explica nossa atual estagnação econômica. Tais políticas anacrônicas de liberalização excessiva e austeridade desnecessária estabeleceram um “teto” ao crescimento ao mesmo tempo em que incendiaram parte do colchão que nos protegia de crises econômicas como a que agora se inicia.
Essa nova vulnerabilidade é explicitada na conjuntura atual do mercado de trabalho, em que a informalidade e a precarização explodiram. Apesar da recente queda no desemprego, 11 milhões e 600 mil pessoas permanecem sem ocupação. Ao todo, segundo o IBGE, são quase 30 milhões de trabalhadores subutilizados em um país onde se necessita fazer tudo pelo seu desenvolvimento. É este exército de trabalhadores desempregados e subutilizados, além de milhões de pequenos empresários forçados a suspender suas atividades, que está na linha de frente das duas crises: a sanitária e a econômica.
São os desempregados, os empregados formais mal remunerados, os trabalhadores informais, autônomos e os donos de pequenos negócios que sofrerão de maneira mais intensa os efeitos do vírus e da crise econômica. Mesmo que tentem arriscar suas vidas e de seus familiares ao continuar nas ruas e no trabalho, é este conjunto imenso da população que sofrerá com a rápida redução de sua renda, sejam salários, seja o lucro do pequeno empresário. É para evitar este dilema – isto é escolher não isolar a população, e contar os mortos pela doença, ou garantir a máxima redução do contágio, matando as pessoas de fome e gerando caos social – que amplas medidas emergenciais devem ser tomadas.
Em recente entrevista, o professor Waldir Quadros faz uma pergunta fundamental: o que significa a pandemia na realidade social brasileira? Com razão, afirma que o coronavírus está tornando mais visível e aguda a crise que já vivemos no país, ou seja, num quadro social preocupante sem o coronavírus, o que merece destaque neste momento é que a situação social torna a questão da saúde mais grave no país.
O confinamento e o isolamento têm um significado diferente para cada camada social. Não se pode tratar de forma genérica a situação, mas entender que 80% dos trabalhadores brasileiros são pobres e vivem com renda mensal de até 1.700 reais aproximadamente, grande parte mergulhados em trabalhos instáveis e habitações precárias. Neste sentido, com toda razão, pergunta: “o que significa para os pobres ficar em casa? Além da situação de empregabilidade deles, tem que se considerar a situação habitacional: quais são as condições de habitação e moradia dos pobres e miseráveis? Eles terão que ficar em casa, mas em que casa? Na periferia desassistida, nas favelas?”
Líderes mundiais, técnicos do FMI, do Banco Mundial, operadores do mercado financeiro e analistas de todos os espectros políticos e teóricos concordam que são tempos extraordinários, que exigem medidas extremas. Neste momento, forma-se um consenso que entende que estímulos paliativos ou marginais surtirão pouco efeito na contenção da crise econômica. Todos apontam para o mesmo diagnóstico: somente o dinheiro do Estado nas mãos da população, empresas e cidadãos, pode trazer alguma esperança.
Em livro recente organizado pelo Centro de Pesquisa de Política Econômica (“Mitigando a crise econômica COVID: agir rápido e fazer o que for preciso”), diversos economistas comungam da proposta de relaxamento orçamentário e ação direta do Estado para atenuar o colapso econômico durante o isolamento. Angel Gurría, secretário-geral da OCDE, vai mais longe e conclama – evocando o espírito do pós-segunda guerra mundial – ações em conjunto dos países desenvolvidos, à altura “da ambição de um Plano Marshall e visão do New Deal”.
Diversas ações e propostas foram lançadas no mundo nos últimos dias. Os Estados Unidos anunciaram o pagamento de renda básica para a população adulta, em cerca de US$ 3000 por família. Inglaterra, Alemanha e Dinamarca proverão apoio ilimitado às empresas, inclusive por meio de pagamento de salários. A União Europeia e seus estados nacionais anunciam fundos de bilhões de euros a serem destinados à manutenção dos empregos e da renda nos países paralisados pela pandemia. Além disso, vários países anunciaram estatizações, isenções de taxas públicas para as famílias, expansão do crédito, aumento do investimento público, fornecimento de alimentação para os mais pobres.
Note-se que as tradicionais políticas anti-cíclicas que ampliam a base monetária e permitem a expansão imediata dos gastos públicos são necessárias, mas insuficientes. Estamos diante de uma crise muito mais profunda, expressa pela desvalorização abrupta dos preços dos ativos, pela crescente ruptura dos mecanismos de mercado e pelo desarranjo dos nexos empresariais de demanda e oferta das cadeias produtivas e tudo em meio a uma crise sanitária de proporções globais. É preciso, portanto, ir além do gasto público emergencial. É preciso associar esta injeção de recursos públicos ao planejamento econômico de longo prazo, reintroduzindo mecanismos democráticos de coordenação social dos investimentos e da atividade privada. Tal como foi feito na outra grande crise do capitalismo, também ela ocorrida poucos anos após uma grande pandemia.
O que a experiência da crise de 1929 pode nos ensinar? Crises dessas proporções costumam varrer do poder aqueles que não estão a altura do cargo que exercem. O Brasil foi um dos países que superou mais rapidamente os efeitos da crise de 1929. O Presidente Getúlio Vargas não hesitou, naquelas condições históricas, em fazer a “defesa do café”, na prática, uma ampla política de defesa da renda nacional a partir da coordenação do recém-criado Conselho Nacional do Café.
Em sentido oposto ao espírito da Medida Provisória 927/20, recentemente publicada pelo governo federal, que permite que contratos de trabalho e salários sejam suspensos por até quatro meses durante o período de calamidade pública, não hesitou em criar poucos dias após a Revolução de outubro de 1930 e de sua posse, em 03 de novembro, o Ministério da Educação e Saúde Pública, seguido pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Não hesitou em lançar as bases da nossa industrialização como forma de superar a crise projetando o país para um novo lugar no mundo.
Tamanha força da posição brasileira frente a crise levou o Presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, dizer em resposta ao discurso do Presidente do Brasil, por ocasião de evento em homenagem ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 1936, que “duas pessoas inventaram o New Deal: O presidente do Brasil e o Presidente dos Estados Unidos”. Schlesinger mostra que a política de recuperação nos Estados Unidos, a partir de 1933, partiu de pontos comuns: de que o livre mercado não podia mais ser usado para proteger interesses sociais e que a fórmula para a estabilidade na nova sociedade deveria ser a combinação e cooperação de instituições públicas e privadas sob o planejamento de uma autoridade federal ampliada. Isso significava a criação de novas instituições que, ao invés de coibir as atividades privadas, permitiram sua forte, e ordenada, expansão.
Os Estados Unidos tinham que administrar seus recursos e organizar sua vida econômica e o crescimento somente poderia acontecer como resultado de uma administração nacional inteligente. Isso levou Roosevelt a criar uma nova vida institucional nos Estados Unidos. Não somente uma nova legislação trabalhista com a Lei Wagner, o Seguro Desemprego (1935) ou as estruturas dinâmicas de comando no campo financeiro pelo Glass Steagal Act, como por exemplo, mas a National Recovery Administration (NRA). Tratava-se de uma agência nacional investida de poderes especiais para obrigar a indústria, através de sua sub-agência, a National Industrial Recovery Administration (NIRA), a reorganizar-se.
Seus amplos poderes contemplavam a fixação de preços, a distribuição de quotas de produção, entre outras medidas. Para a agricultura, novas diretrizes governamentais foram delimitadas e novos métodos utilizados a partir da criação da Agricultural Adjustament Administration (AAA) uma sub-agência da NRA. A atividade da AAA envolvia controles completos sobre a produção de cada agricultor e sobre os preços dos vários produtos. O Estado passou a intervir como sócio ativo, comprando estoques para manter os preços em níveis desejados e passou a dirigir o sistema agrícola em todos os segmentos.
O General Hugh Johnson, seu diretor-geral, afirmou que a NRA constituiu-se como um instrumento para a conjugação, sob um controle coordenado, do trabalho de todos os departamentos e órgãos de caráter econômico do governo federal. A autoridade pública falaria através de uma só voz, amparada diretamente no poder presidencial.
No momento presente, o sucesso das medidas de coordenação e planejamento nacional depende crucialmente de uma reforma estrutural radical dos métodos e das instituições brasileiras. Primeiro, a criação junto ao gabinete da Presidência da República dos Grupos Executivos, à semelhança do governo Juscelino Kubitschek durante o Plano de Metas. Por exemplo, um Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde seria extremamente necessário. Nesta crise, é recomendável a criação de comitês com participação de trabalhadores, empresários e profissionais.
Pouca gente, muito qualificada, administrando um sistema de coordenação público-privada. Segundo, os programas de financiamento e de incentivos ao investimento devem, sim, contemplar cláusulas de conteúdo nacional, com metas e contrapartidas rigorosamente cobradas dos beneficiários privados. Terceiro, a eliminação do imbróglio administrativo, não apenas com a redução do número de Ministérios e Secretarias, mas também com a supressão, à moda chinesa, de procedimentos e interdições.
Portanto, não é o momento de meias palavras ou de meias medidas. A verdadeira responsabilidade fiscal é com os brasileiros e com suas vidas. Somente a rápida expansão do gasto público, coordenando outras ações centralizadas pelo planejamento nacional, pode evitar que a crise econômica se transforme em uma depressão, numa crise social mais grave com potencial imprevisível sobre a ordem social e política no país.
Contra o espírito da MP 927/20, é necessário dizer claramente aos economistas defuntos e a sociedade brasileira: a boa teoria econômica nos ensina desde a década de 1930 que cortar salários agrava a crise, piora a situação dos empresários, dos trabalhadores e do próprio governo, fortalecendo a espiral de contração geral da renda.
Em suma, é fundamental defender os circuitos que mantém a renda circulando, a “economia girando”. Para isto, a renda das empresas, dos trabalhadores e dos Estados e Municípios deve ser garantida, excepcionalmente, pela União, através de um sistema de proteção social emergencial, do sistema de crédito público e de um sistema ampliado de transferências governamentais. É crucial a adoção de medidas em pelo menos três frentes emergenciais:
Defender a renda do trabalho
A necessidade de quarentena implica ações imediatas para a manutenção da renda do trabalho, que irá despencar nos próximos meses, seja no emprego formal, seja nas atividades informais. Do ponto de vista do mercado informal, a proposta do benefício de R$ 200 (meia cesta básica) não garante as mínimas condições para a sobrevivência. Neste contexto, é fundamental o pagamento de ao menos um salário mínimo durante a crise aos trabalhadores informais, rurais e autônomos por meio da estrutura do BPC, do seguro-desemprego e do Cadastro Nacional de Informações Sociais. Em relação ao trabalho formal, a cobertura parcial das perdas salariais decorrentes da redução da jornada de trabalho (prática autorizada pelo governo) poderá aprofundar a recessão. Além da cobertura integral da redução salarial, o governo deve garantir o seguro desemprego e o auxílio doença a todos os pedidos efetuados a partir de março. Até mesmo o pagamento direto de salários poderia ser considerado, como estão propondo os governos da Inglaterra ou Dinamarca, por exemplo. Outras medidas são importantes para o aumento da renda disponível e redução do endividamento, tais como a renúncia de contribuição previdenciária para trabalhadores formais e autônomos por 3 meses ou a carência de 3 meses no pagamento de juros de crédito pessoal e de cartão de crédito. A maior permanência das pessoas em casa aumentará os custos de serviços públicos. É importante permitir a suspensão do pagamento de serviços de utilidade pública por 3 meses (água, luz, comunicação etc) sem multas ou interrupções por inadimplência como um mecanismo de ampliação da renda disponível.
Defender a renda das empresas cujas receitas desabarão durante a quarentena e depois dela
Nas empresas filiadas aos sistemas MEI e Simples, deve-se implementar por três meses a renúncia de todos os impostos, incluindo contribuição sobre folha de pagamentos. Para as empresas de maior porte deveria ser considerado a renúncia de IPI, PIS/Cofins, CSLL, IRPJ, e da Contribuição Previdenciária por três meses. Também deve ser criada no Banco do Brasil e na CEF uma ampla linha de crédito especial para capital de giro, com prazos estendidos, carência de 6 meses e juros Selic. Evidentemente, tais incentivos fiscais seriam destinados apenas às empresas que não demitirem seus funcionários e não reduzirem salário.
Defender a capacidade de custeio de Estados e Municípios, impossibilitados de emitir dívida e moeda
Estados e Municípios já têm sofrido violentamente com a redução das transferências constitucionais, graças à terrível PEC do Teto dos Gastos e, durante os próximos meses observarão uma queda abrupta de suas receitas próprias, uma vez que a maior parte de sua arrecadação tributária depende dos níveis de venda de bens e serviços. Portanto, será imperativo ampliar emergencialmente a transferência a Estados e Municípios, seja com recursos orçamentários da União ou através de crédito facilitado do Tesouro ou do BNDES. É fundamental que o governo federal destine recursos nas mãos de governadores e prefeitos para dar capilaridade e velocidade aos mecanismos de defesa da renda das empresas e dos trabalhadores.
Por fim, é importante reafirmar que a crise toma contornos evidentes de uma implosão financeira e bancária, a partir da espiral de contração da renda e consequentemente da incapacidade de empresas e famílias pagarem suas dívidas. É necessário, portanto impedir que os bancos, empresas e trabalhadores sejam contaminados pelo vírus mortal da depressão econômica. Apenas a ação decisiva do estado, através de todos os seus mecanismos econômicos, pode impedir que sucumbamos à esta dupla crise. Nesse momento, a questão humanitária ultrapassa ideologias, regras fiscais e vaidades. Dissemos que crises dessas proporções costumam varrer do poder aqueles que não estão à altura do cargo que exercem. Não importam as pessoas com seus cargos, mas o papel que devem cumprir na história e a responsabilidade que tem a frente do país. Não podemos hesitar em salvar a sociedade brasileira.
*Colaboraram na elaboração deste texto: Adriana Marques da Cunha, Beatriz Freire Bertasso, Bento Maia, Camila Veneo Campos Fonseca, Fernanda Pim Nascimento Serralha, Nathan Caixeta, Thiago Dallaverde.
Ao mesmo tempo em que grupos bolsonaristas estão indo às ruas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, as principais entidades da sociedade civil, que tiveram importante papel na redemocratização do país nos anos 1980, voltam a se unir novamente, pela primeira vez, para alertar a nação de que “é urgente neutralizar as ameaças às instituições”.
Leia a Nota
Movimento “Diretas Já” em 1984: milhares de pessoas nas ruas em defesa das eleições diretas
Em defesa da Democracia
Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, “construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Isto está escrito com todas as letras na nossa Constituição Federal de 1988 e é aspiração do povo brasileiro. É preciso reafirmar, no momento atual do país, com todas as nossas forças, que a democracia é o único regime político capaz de implementar a sociedade prevista na Carta Cidadã.
A democracia, considerados seus próprios limites, é um dom a ser desdobrado em valores e dinâmicas que garantam a participação, a liberdade e o incondicional respeito aos princípios de defesa da vida e da dignidade de toda pessoa humana. Por isso, é incontestável e merece defesa a democracia no Brasil, fruto sofrido e amadurecido da redemocratização inspirada na ação de destacados atores políticos, aos quais reverenciamos; entre eles, um povo que soube reconquistar a liberdade e os direitos confiscados.
Foi esse povo que também legitimou, por lutas sociais, os direitos cidadãos registrados na Carta Magna de 1988, comprometendo a todos na sua obediência irrestrita e práticas transformadoras, pelo dever cidadão da edificação de nossa sociedade sobre os alicerces da igualdade e da solidariedade, garantindo o tratamento de todos como iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
O Brasil, por seus Três Poderes, segmentos e cidadãos todos, no horizonte e nos parâmetros sacramentados pela Constituição Federal, sobre os alicerces do Estado democrático de Direito, não pode permitir o enfraquecimento de suas instituições democráticas de poder-serviço, garantindo equilíbrio entre os Poderes da República, considerados, especialmente, o papel institucional do Poder Executivo, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, sem os quais a democracia mergulhará na escuridão e se pagará um preço ainda mais alto. Os Poderes exercem funções diferentes, mas nenhum é maior que outro. Sem eles, não há democracia.
É necessário e urgente, por uma lúcida compreensão e práticas democráticas, neutralizar e vencer as ameaças a essas instituições, pela obrigação moral de todos de defendê-las e fortalecê-las. Não se pode, absolutamente, fomentar o risco de levar os brasileiros ao caos do enfraquecimento e até à destruição da nossa democracia.
É no Estado democrático de Direito que se vai avançar na urgente busca do indispensável equilíbrio para a sociedade brasileira, detentora de todos os recursos para a superação dos vergonhosos cenários de misérias, com tanta pobreza, corrupção, privilégios, milhões de desempregados, com situações de crises humanitárias, exigindo velocidade e lucidez em respostas novas na economia, na educação e na saúde; avançar por meio de posturas adequadas no tratamento do meio ambiente, já tão pressionado pelos interesses econômicos; e avançar no cuidado prioritário dos pobres e pela exemplaridade responsável no exercício da política.
Por isso, preocupados com os riscos do clima de afrontas e de fomento à intolerância, juntamos forças em nossas entidades para levar esta mensagem ao povo brasileiro.
Marcados pelo sentido da solidariedade, sintam-se todos convocados a gestos e compromissos com a vida, superando bravamente as crises humanitárias, efetivando ações que façam o conjunto da sociedade brasileira trilhar os caminhos da Justiça, com lógicas e dinâmicas novas, na verdade e pela paz!
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Felipe Santa Cruz
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
José Carlos Dias
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns ()
Paulo Jeronimo de Souza
Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)
Nem chegamos ainda na metade do mês, e março de 2020 tem sido turbulento no Brasil. Parece que as “águas que fecham o verão” cantadas em verso e prosa por Elis Regina estão mais agitadas do que foram ao longo desse começo de século. O cenário é preocupante e faz muita gente lembrar um outro março agitadíssimo em nossa história, o de 1964. Naquela trágica ocasião, o desfecho nos causou uma dor que durou 21 anos.
Mas olhando para nossos dias, será que as coisas se precipitarão na mesma direção e velocidade dos eventos que nos conduziram aquela “página infeliz da nossa história”? Março realmente costuma ser o mês das conspirações de direita? Temos uma em andamento? De fato, não há como negar que há um horizonte autoritário sim. Mas como uma espécie de plano “B”.
Cotidianamente estamos assistindo os pilares da República derreterem. Todas essas polêmicas criadas por Bolsonaro não constituem uma cortina de fumaça como alguns precipitadamente afirmam, nem uma forma de escamotear coisas mais escusas. É sim uma maneira de manter um núcleo de militância – que é sobretudo virtual – ativa nas redes; e uma forma de ameaçar os outros poderes (ainda) constituídos.
Nesse ambiente pouco democrático, os arroubos autoritários do presidente parecem cada vez mais desenfreados. É como se ele apostasse nossas instituições em um cassino, dobrando a aposta cada vez que joga com os destinos do país. Não há freio em sua sanha autoritária.
Primeiro, convocou marchas contra o Congresso. Voltando atrás, fez pactos por estabilidade política com o Poder Legislativo. Mas logo em seguida, traiu os acordos com as lideranças do mais conservador Congresso Nacional da história, reiterando apoio ao ato do próximo domingo. Ao que parece, as lideranças do parlamento brasileiro, que conduziram as reformas econômicas defendidas por Paulo Guedes, foram feitas de bobas pelo capitão-presidente.
Assim, agora que estamos na iminência de uma catástrofe econômica e de uma tragédia na saúde pública, cria-se um ambiente de “salve-se quem puder” político. De um lado, um Executivo que deseja governar discricionariamente, sem os contrapesos e tensões das relações entre os três poderes, e ao arrepio da lei. Do outro, passamos a assistir a um monte de madalenas arrependidas “neodemocratas” e “neoprogressistas” (principalmente analistas ligados à grande mídia corporativa) que, após terem incendiado o país e colocado o Brasil de joelhos no campo social e econômico, agora se lembraram de defender uma democracia já morta, que eles mesmos ajudaram a sepultar.
O STF e boa parte de nossos parlamentares criaram um monstro que eles achavam que poderiam manter sob tutela. Mas o fato é que nunca foram capazes de o controlar. No estágio atual em que estamos, eles perderam de vez algum poder que pudessem ter sobre a besta-fera.
Diante disso, Bolsonaro testa as instituições daquilo que outrora foi a nossa frágil democracia liberal da Nova República. É evidente que o presidente possui um horizonte autoritário, mas uma solução de força como um autogolpe seria uma espécie de última cartada. Esta opção seria usada se realmente o bolsonarismo entender que está seriamente ameaçado de perder o poder, seja por uma eleição, seja por um processo de impeachment.
No caso das eleições, escrevi anteriormente (http://iserassessoria.org.br/dez-pontos-para-se-entender-a-conjuntura-do-brasil/) que a tese de fraude na urna eletrônica seria um recurso a ser usado caso Bolsonaro venha a ser derrotado eleitoralmente. O próprio já havia se manifestado nesse sentido nas eleições de 2018. Pois bem, o presidente voltou a esse tema alguns dias atrás, ao afirmar ter provas de que teria vencido já no 1º turno o pleito do ano passado.
Ou seja, já sabemos que mais à frente o chefe do Poder Executivo criará uma nova aresta com o Judiciário, e tentará desacreditar a votação eletrônica. Em suma, elegeu-se um presidente que explicitamente vai implodindo qualquer institucionalidade republicana. A manutenção do poder bolsonarista somente é possível com a destruição da República e com a construção de mecanismos que impossibilitem uma retomada rápida da democracia e da plenitude do Estado Democrático de Direito.
Mas seus movimentos políticos são calculados, embora sua gramática seja extremamente agressiva, alimentada por um discurso que mistura ódio em doses cavalares e bizarrices das mais estapafúrdias. Assim vai minando as resistências, superando os mecanismos institucionais de pesos e contrapesos dos poderes constituídos. Isso vem neutralizando as oposições, que ficam a reboque de sua narrativa. Por hora, tal estratégia tem sido efetiva.
Entretanto, a dinâmica política vem se movendo rapidamente no Brasil, tornando qualquer análise de conjuntura muito volátil. Não parece que estamos na iminência de um golpe de Estado como aconteceu na Bolívia, com direito a barricadas e tudo mais. Mas as instituições republicanas estão sob ataque de forma inédita neste século.
Os acontecimentos poderão precipitar iniciativas discricionárias e repressão política sim. Mas ainda é preciso aguardar os desenrolar dos acontecimentos. As manifestações de domingo, de extrema-direita; e as dos movimentos sociais organizados (sábado e no dia 18/03) serão indicativas do quanto subirá ou não a temperatura política no país, e como Brasília reagirá aos atos.
Em síntese, ainda não se pode afirmar seguramente que o bolsonarismo está prestes a tentar “um golpe dentro do golpe”, mas também não se pode “tapar o sol com a peneira” a respeito de um certo “cheiro” de conspiração no ar. Além da conjuntura ser extremamente dinâmica, qualquer análise pode rapidamente perder sentido.
E para agravar o quadro, estamos em meio a uma séria crise econômica e com uma pandemia em expansão no território nacional. Como diria Chico Buarque:
“Aqui na terra ‘tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho” (Chico Buarque. Meu caro amigo)
Enfim, em termos políticos, as coisas no Brasil nunca foram democraticamente muito sólidas. Será que o pouco de solidez republicana que ainda resta está se desmanchando no ar? A conferir…
Sempre fui um grande apaixonado pela Mangueira, desde meus tempos de menino. Nunca estive num desfile da escola na avenida, que imagino deve ser algo de arrepiar o coração. Neste ano de 2020 o interesse era ainda maior em razão do enredo escolhido, com destaque para o “Jesus da gente”. Estava realmente empolgado para assistir ao desfile, o que fiz pela televisão, ficando atento e desperto para uma explosão de alegria.
A Escola veio, como sempre imponente, com seus mais de 4.000 componentes, um número bem maior do que as outras Escolas que desfilaram na Sapucaí, em 19 alas e cinco carros alegóricos. O espetáculo se anunciava com a presença de uma imponente comissão de frente, comandada por Priscila Mota e Rodrigo Negri, retratando a realidade humana de Jesus, agora aproximado do excluído, do favelado, que participa da vida cotidiana daqueles que são marcados pela desconfiança da polícia e que tomam rotineiramente uma “dura” da polícia ao longo de sua jornada. Como mostrou com pertinência Anderson França em seu artigo na Folha de São Paulo (25/02/20),
“foi na Sapucaí, um lugar onde a igreja afirma existir apenas para festas e sacanagem, foi nesse lugar, numa escola de samba, do mesmo povo negro, oprimido, pobre e do morro, um povo irmão e filho de Jesus, com Maria negra, com José negro, com doze discípulos negros, foi preciso a Sapucaí gritar a mensagem de amor das Boas Novas de Jesus, pois a igreja evangélica decidiu se calar e, em alguns casos, dar voz a Satanás, e destruir um país inteiro”.
A Escola se colocou em favor da luta do povo oprimido, como outras escolas igualmente fizeram, daquele povo que “numa noite, samba debaixo de holofotes e câmeras e, no dia seguinte, volta a ser alvo das miras das 762 da Polícia Militar do Rio de Janeiro ou de São Paulo ou de Sobral no Recife”. A escolha foi importante, particularmente nesse momento sombrio em que vive o Brasil. A Escola optou por apresentar “um Jesus não identificado com nenhuma instituição religiosa: um “Jesus da gente”, como canta o samba enredo de Manu Costa e Luiz Carlos Máximo. Como mostrou o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, em artigo no IHU-Notícias (26/02/2020), a Escola trouxe “uma forma inovadora de evangelização, que apresenta Jesus encarnado no mundo dos excluídos para salvar-nos e alegrar-nos sem pedir a aprovação ou autorização de alguma instituição religiosa”. E a proposta era bem clara, também indicada no samba enredo: “Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem messias de arma na mão”.
O que vinha com vigor na avenida era uma “Estação Primeira de Nazaré”, de “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, do “moleque pelintra no buraco quente”. O que o carnavalesco Leandro Vieira queria mostrar para o público era um Jesus diferente, traduzindo e denunciando cenas corriqueiras presenciadas por ele desde 2016, quando passa pela comunidade que buscou retratar:
“São incontáveis cenas de jovens pretos com a mão na cabeça, a revista no muro, a abordagem nos carros. Muitos reconheço como integrantes de algum segmento da Escola e isso embrulha o sentimento da gente. Nos últimos anos, subi o morro da Mangueira três vezes. Se eu contar pra vocês a pobreza que assola logo os primeiros becos de quem sobe o morro, vocês certamente não acreditariam. Saber que a Mangueira canta, assusta e emociona”.
Foi movido por todo esse sentimento que Leandro criou esse extraordinário roteiro, inspirado também por um canto de Cartola: “Habitada por gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre, como pode Mangueira cantar?”. Como indicou o carnavalesco, esse verso “revira ao avesso”. Quis então colocar o verso em cena no projeto singular que marcou o roteiro da Escola.
Havia a marca infusa da Teologia da Libertação, com o privilégio dado aos pobres, à paixão dos pobres. E isso se viu retratado em várias alas, mas particularmente na ala “Bandido bom é bandido morto”, com aquela pletora de cruzes, de figuras ensanguentadas, relembrando o cenário vivo da dor dos pobres. Impressionante o monumento do Cristo negro, de altura imensa, com um jovem crucificado, com tatuagem e cabelo platinado. O foco centrava-se nesse personagem excluído, que retrata bem as principais vítimas da violência no Brasil: jovens, pobres e negros. Faltou a representação de Jesus como uma pessoa trans, como apontou Cris Serra em sua rede social, lembrada pelo teólogo André Musskopf (Revista Senso – 25/02/2020).
O Jesus que desfilou na Mangueira era o “Jesus dolorido”, numa representação comportada, com o claro intuito de não escandalizar tanto os padrões estabelecidos da religiosidade. Escandalizou, sim, pela dimensão do protesto social, presente não só na Comissão de Frente, mas também no Jesus revoltoso, representado por Humberto Carrão, que expulsa os vendilhões do templo.
Faltou, porém, mostrar um outro lado da figura de Jesus, tão bem anunciada pelo mestre-sala Matheus Oliveira, com seu sorriso aberto, seus passos impecáveis, sua delicadeza e leveza. Era um Jesus negro, mas tomado de generosidade. Talvez tenha sido para mim o momento mais forte do desfile da escola, apesar do casal de Mestre Sala e Porta Bandeira não ter alcançado a nota máxima no desfile. Mas estava ali em germe o lado de Jesus que me encanta; do Jesus que desperta uma vontade de viver, que sinaliza a resiliência de um povo que não se deixa dominar pela apatia e resignação. De um povo, que como diz o samba canção, sabe “que a esperança brilha mais na escuridão”. É o Jesus que nós teólogos apreciamos tanto, e que foi magistralmente descrito no clássico livro de José Antonio Pagola (Jesus, aproximação histórica). Trata-se do Jesus curador e mestre da vida, do amigo das mulheres e das crianças, o poeta da compaixão. Não foi, porém, esse Jesus que predominou no desfile. Teria sido maravilhoso dar um destaque ao Jesus rodeado de crianças e mulheres, celebrando a vida, esse mínimo que é o máximo dom de Deus. Como assinala Pagola em seu livro, Jesus é alguém que provoca entusiasmo. Ao contrário do estilo austero de João Batista, Jesus nos traz um “estilo de vida festivo”, que é o estilo querido por Deus, de plenitude de vida.
Seria bonito ver o Jesus dialetizado, que reconcilia o Cristo sofredor e o Dionísio. O lado dionisíaco ficou mais na sombra, e ele poderia trazer com mais força o elemento luz de Jesus, que provoca a efusão e esperança. Do Jesus que vem anunciado pelo anjo no evangelho de Lucas como germe de “uma grande alegria” (Lc 2,10). O desfile da Mangueira podia pontuar com energia o “segredo” que se esconde nesse fascinante galileu que estremece o mundo há mais de dois mil anos, trazendo no peito o anuncio essencial: “Para que todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo, 10,10). Na minha opinião, esse deveria ser o grande lema do desfile, e não o que foi escolhido: “A verdade vos fará livre” (Jo 8,32 – “a verdade vos libertará”).
Leandro Vieira foi tocado pelo verso de Cartola que fala da dor da Mangueira que não pode cantar. Mas poderia igualmente ser tocado por outro verso do mesmo compositor da comunidade, na linda canção “O sol nascerá”, que canta: “A sorrir eu pretendo levar a vida”. Seria privilegiar o roteiro da resiliência e não simplesmente o da dor, enfatizando o passo do samba enredo que aponta a esperança “que brilha mais na escuridão”. Seria seguir a indicação da jovem poeta portuguesa, Matilde Campilho, que nos convida a dançar sobre os escombros. Essa alegria conseguimos perceber na linda ala das baianas, que destoava daquele ritmo ensombrecido. Elas estiveram lindas na avenida, num figurino magnífico.
Nessa linha de reflexão, teríamos elementos mais fantásticos para fazer explodir de alegria a arquibancada na avenida, que não reagiu com tanto entusiasmo à passagem da Escola. Foi um desfile que poderia ter trazido muito mais emoção. A própria melodia da linda composição do samba enredo não contribuiu para esse contágio popular. Foi uma melodia que não empolgou o público, e era difícil de ser cantada. O elemento dolorista da paixão predominou sobre a ressurreição, que ficou relegada a um segundo plano, e que apareceu discretamente no final do desfile, mas carente de força simbólica.
Não consegui entender a razão daquela sombria ala da bateria, tomada pela cor escura, com seus componentes dessaranjados com baclavas negras e caveiras na face. O figurino era sombrio, que tensionava com o espírito de uma fantástica bateria. E isso para poder aludir ao exército romano e sua postura brutal e truculenta. Teria escolhido algo bem diverso, pois a bateria é a alma de uma escola. Ela deveria transparecer o espírito de alegria do Mestre Sala, com sua exuberância e alegria.
A ala que trazia o bom pastor com sua ovelhas pecava pela pobreza estética. Nos evangelhos, a cena do bom pastor é maravilhosa: daquele que dá sua vida pelas ovelhas, que as conhece muito bem, e por elas dedica um carinho tão especial. Elas o reconhecem pelo seu suave assovio. O que vimos na avenida foi uma apresentação estética empobrecida, com as ovelhas caídas ou dependuradas nos ombros dos passistas, com uma expressão de mortandade. Tudo podia ser bem diferente, quem sabe com os passistas trazendo as ovelhas no colo, sendo acariciadas com ternura.
O desfile podia mostrar com muito mais vigor o que expressou Leandro Vieira, ao falar dos bastidores da criação: “É preciso ver heroísmo nessa gente”. O fato de tratar um tema central dos evangelhos, a presença do Jesus da Gente, não poderia ser motivo de acanhamento ou moderação. Não há nenhuma contradição entre samba e evangelho. Aliás, o samba é uma forma de oração: “Teu samba é uma reza”. Daí não entender os motivos que levaram o carnavalesco a “bloquear” o samba vivo e aberto da rainha da bateria, que desfilou comportadamente, sem nem mesmo sambar. Ela deveria estar ali na frente com toda a sua alegria e samba no pé, com as marcas de uma verdadeira passista. Por que cobrir o seu corpo, como se ele fosse algo contraditório ao mote evangélico ? Ela deveria vir como toda rainha da bateria, com a naturalidade que lhe pertence.
Em seu texto sobre o desfile da Mangueira, o teólogo André Musskopf assinalou que havia no ar um “cheiro de naftalina”. Talvez seja forte a expressão, mas ela provoca reflexões importantes para nós. Ele queria dizer que o influxo de certo ritmo da teologia da libertação provocou esse acento na “paixão” e, quem sabe, na compostura presenciada. Como ele disse, “a mangueira fez um carnaval decente e comportado”. E isto se manifestou de forma mais clara “no corpo de mulheres”, cuja decência foi garantida na sua respeitabilidade. Ele sublinha: “Nunca se viu um desfile com tanto pano cobrindo os corpos e impedindo os movimentos de quem desfilava na avenida”. Talvez tenha sido outro fator que provocou menos empolgação. Curiosa também a decisão da cantora Alcione, que representou Maria, em cortar as unhas e pintá-las com descrição. Ao final do desfile ela justificou a decisão como passo de “respeito ao sagrado”. O recato era o mote do desfile. Citando a teóloga feminista, Marcella Althaus-Reid, André assinalou que faltou “levantar a saia de Deus”. Isso me fez lembrar um trecho do fabuloso poema de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), o Guardador de Rebanhos, que fala do Jesus-Menino que habita em nossa aldeia, da “criança nova” que nos dá uma mão e a outra abraça “tudo o que existe”. É a “eterna Criança, o deus que faltava”, é o “humano que é natural”. Uma criança irreverente, o “divino que sorri e que brinca”. A criança que é o “Menino Jesus verdadeiro”. É essa criança, divertida, “bonita de riso e natural”, “que atira pedra aos burros, rouba a fruta dos pomares” e “corre atrás das raparigas”. É a criança que nos ensinou a olhar com carinho todas as coisas. Esse poema poderia também ter inspirado a Escola na sua designação do “Jesus da Gente”.
O desfile da Mangueira me fez lembrar a cerimônia da ECO-92, no aterro do Flamengo, onde a tenda do cristianismo era a mais triste de todas as outras. Ali reinava um clima “sombrio” de dor e lamento. Nas outras tendas, como na Afro, dos Ananda Marga, Hare Krishna e Santo Daime, o clima era outro, de muita alegria. Isso provocou um êxodo de muitos católicos para os lugares da festa. O contraste era imenso. Foi o mesmo contraste que percebi, comparando o desfile da Mangueira com o da Viradouro ou Grande Rio, vibrantes e exuberantes.
O tema inter-religioso, fundamental no enredo, que celebra as malhas do respeito e a recusa da intolerância, poderia ganhar uma força mais decisiva. Os líderes das várias religiões, que desfilaram antes da Comissão de Frente – com amigos queridos desfilando – poderiam estar inseridos em outro setor do desfile. Eles sequer apareceram nas transmissões televisivas, como se fosse algo “à parte” do desfile. O lema que traziam era essencial: “Independente da sua fé, o respeito deve prevalecer”. Na minha opinião, a temática inter religiosa não podia ser essa “mônada” isolada, mas permear todas as alas, ou ganhar um destaque maior numa das alas.
Eu vi o desfile da Mangueira pela televisão, o que já é um limite. Outra coisa seria ver ao vivo e a cores na avenida. Revi depois mais uma vez antes de escrever esse breve e limitado texto. Não sou um especialista de carnaval, nem escrevo sobre o tema. O que fiz foi trazer algumas pontuações que acompanharam meu olhar particular sobre o desfile. O intuito foi simplesmente acentuar o traço da alegria, que para mim guarda o que há de mais essencial na trajetória do Jesus, portador da vida. Essa dimensão festiva de Jesus, de seu cuidado e carinho para com os excluídos, poderia ter ganho uma ênfase mais decisiva, favorecendo um desfile de maior potencialidade, explodindo a arquibancada com um entusiasmo novidadeiro.
Postado por flteixeira em https://fteixeira-dialogos.blogspot.com/
Série de pequenos textos que visam colaborar com o grupo de jovens brasileiros que vão a Assis para o Encontro Mundial Economia de Francisco.
SENTIDO ECONÔMICO DA PROPOSTA DE UMA ECONOMIA DE FRANCISCO E CLARA
As figuras de São Francisco de Assis e Santa Clara servem de guias para a visão de uma Economia da Vida, como pretende o Papa Francisco. Quais são as principais lições que emergem dessas figuras?
A primeira lição é a da simplicidade voluntária, ou da sobriedade feliz. Trata-se de dois desafios simultâneos. Um, em relação ao padrão de consumo das pessoas: a escolha de um modo de vida e de consumo simples e sóbrio, reduzindo as necessidades de bens materiais a um mínimo. A emoção envolvida nesta escolha é a do Uma das melhores consequências dela é a redução da demanda de energia e, portanto, das emissões de gases de efeito estufa (GEE). A escolha do uso de energia de fontes renováveis e limpas; de meios públicos de transporte em vez do automóvel; o uso da bicicleta em vez dos veículos de combustão interna sempre que possível, a substituição de chuveiro elétrico por chuveiros esquentados por energia solar; a economia no uso da água e a prática de recolha da água da chuva; a reutilização e a reciclagem de produtos descartados, o cuidado com a saúde das árvores e das florestas são alguns exemplos.
O outro desafio é de cunho social ou coletivo. A população pobre do Brasil não tem acesso a nutrição regular e de qualidade, muito menos a água morna para se banhar. Seu padrão de consumo não cobre suas necessidades básicas. Libertá-la destas carências deve ser a primeira prioridade para os fazedores de políticas públicas. As práticas de economias centradas na vida (biocêntricas) visam criar e manter as condições propícias para que cada pessoa, e o conjunto da sociedade, possa desenvolver seus potenciais humanos e sociais em harmonia com o meio natural. Incidir nos governos em todos os níveis em favor de políticas que revertam os fatores antrópicos (causados pela espécie humana) do aquecimento global e reconheçam por lei os direitos da Natureza. Organizar a cidadania planetária em torno destas políticas, eis o grande desafio de uma Economia da Vida neste momento.
A segunda lição de Francisco e Clara é a da solidariedade. Francisco e Clara vinham de famílias abastadas. Rejeitaram a vida no luxo para dedicar-se ao serviço divino na forma de oração e de cuidado com os oprimidos. Também dedicaram energias e tempo para promoverem a Paz e o respeito à diferença. Só economias humanizadas e realmadas, responsáveis, plurais e solidárias podem nos dias de hoje levar à prática o espírito destes dois santos. Mas entre a visão de economias do Bem Viver e sua concretização há grande distância. Definir a visão que sirva de guia das nossas ações e, ao mesmo tempo, definir os passos do nosso cotidiano que nos levem do caos social atual, e do colapso climático que se avizinha, até a realização daquela visão, este é o desafio metodológico, que trataremos em breve.
A terceira lição é a da busca de coerência entre a espiritualidade e a luta pela paz com justiça. Toda economia competitiva é, por natureza, uma economia de guerra. Francisco e Clara foram veículos da mensagem divina da Paz. Uma economia de guerra jamais pode levar a uma economia e uma cultura da Paz. Foram as práticas cooperativas e solidárias dos grupos de hominídeos e de humanos que ofereceram as condições para a subsistência e a evolução destes seres com o cérebro em processo de complexificação. Desde cedo esses nossos antepassados perceberam a dimensão invisível da realidade do mundo e a incorporaram no seu viver cotidiano. O entendimento humano foi alcançando fatos que estão na base de uma Economia da Vida e de uma Ecologia Integral, como a riqueza da biodiversidade (da qual fazemos parte também), a consciência de que somos todos interconectados, entre nós e com todas as outras formas de vida; e a compreensão de que as diferenças de gênero, de talentos e atributos, são fontes de maior riqueza enquanto família humana, em vez de serem motivo de maus sentimentos como a inveja, a cobiça e o espírito de competição. As emoções que alimentam estas atitudes e práticas são a paz interior, a compaixão, a empatia e a não-violência (expressão positiva em sânscrito – persistência na verdade, resistência passiva.)
Um desdobramento desta terceira lição é o trabalho pela paz, justiça e equidade em escala planetária. Em busca de um acordo pacífico entre Cruzados e Muçulmanos, Francisco e Illuminato navegaram até o Egito. Se horrorizaram diante da carnificina e da postura antievangélica dos Cruzados. Essa guerra levou Francisco a tentar persuadir os Cruzados a negociar a paz. O Sultão al-Khamil chegou a oferecer Jerusalém aos Cruzados em troca da paz, mas eles rejeitaram sua oferta. Francisco e Illuminato decidiram ir ao campo muçulmano com surpreendente audácia, e criaram com o Sultão e seus sábios sufis um diálogo de vários dias sobre a espiritualidade das duas religiões. Daí emergiu um laço de amizade entre o Sultão e Francisco. Francisco nos ensina que a Política da Amizade é a matriz da Paz com Justiça.
As disputas políticas e econômicas tendem à demonização do “inimigo” e a busca de soluções violentas. Hoje em dia, o sistema do capital joga empresário contra empresário, trabalhador contra trabalhador, país contra país, povo contra povo. A ganância e a voracidade visando acumular dinheiro e riquezas materiais é a marca dos que praticam o capitalismo como sua religião.
Que audácia, que profundo compromisso de Francisco e seus irmãos com os valores fundantes do Cristianismo!
O desafio do Encontro de Assis é encontrar modos de fazer a Economia coerentes com essas virtudes de Francisco e Clara.
As lições de Clara
Além da escolha por abandonar a riqueza e o luxo da família para abraçar com alegria a simplicidade e a pobreza voluntárias como modo de vida, Clara enfrentou o patriarcalismo de sua época e, ainda muito jovem, abriu sua própria trilha e seguiu o apelo do seu coração a despeito da oposição do pai. Foi uma mulher que encarnou as virtudes do Sagrado Feminino. No Mosteiro de São Damião, onde ela se instalou, logo acompanhada por sua irmã Agnes e outras devotas, ninguém tinha posses privadas, a alimentação excluía toda carne, e a pegada ecológica era exemplar.
Aprendendo de seu exemplo, a Economia de Francisco e Clara deve ser uma economia do suficiente em termos materiais, rejeitando a ideologia do crescimento econômico ilimitado, e com ele o excesso de consumo e de produção sem consideração com as gerações futuras e os limites dos ecossistemas. A partilha da posse dos bens produtivos e o acesso responsável de todas e todos aos bens comuns que a Terra oferece; o cuidado e o respeito a cada outra pessoa, colaborando para que os direitos de todo ser sejam respeitados; o trabalho pelo reconhecimento legal dos direitos da Natureza; a promoção das comunidades autogestionárias como unidades de produção e reprodução da vida e, portanto, protagonistas do seu próprio desenvolvimento econômico, social e humano, são apenas alguns elementos que devem marcar a Economia de Francisco e Clara.
* * *
Fonte da foto: https://www.facebook.com/EconomiaDeFrancisco/
[1] Economista e educador do Instituto PACS, Rio de Janeiro, colaborador da rede Solidarius, do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS), da Rede Global Diálogos em Humanidade – Brasil, e da Ágora das e dos Habitantes da Terra – Brasil. Marcos também é associado ao Instituto Transnacional, Amsterdam.
Mark Weisbrot: Departamento de Justiça dos EUA fez uso criminoso da Lava-Jato no Brasil
Os EUA queriam demolir a mudança institucional que ocorreu no século XXI e deu à América Latina uma voz independente, diz economista e pesquisador.
CINTIA ALVES, Jornal GGN, Brasília (DF) (Brasil) 2 de mar de 2020.
Recebido por www.dialogosdosul.operamundi.uol.com.br
Os Estados Unidos usaram a Lava Jato para atingir um “objetivo da política externa, que era se livrar de Lula e Dilma Rousseff e avançar um pouco mais no processo de “demolir” a independência dos países latino-americanos que não estão alinhados com o governo norte-americano. É o que avalia o economista e pesquisador norte-americano Mark Weisbrot.
Em entrevista a André Neves Sampaio, colaborador do GGN nos Estados Unidos, Weisbrot falou sobre as relações do Departamento de Justiça norte-americano com a Lava Jato, os interesses geopolíticos por trás da operação, a participação de Sergio Moro no processo e do alinhamento de Jair Bolsonaro ao governo Trump.
Segundo ele, há evidências claras de que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos está “envolvido nesse crime” [uso da Lava Jato para fins geopolíticos], inclusive convergindo com os interesses políticos “do seu amigo [Sergio] Moro”.
De acordo com Weisbrot, a meta principal dos EUA na América Latina sempre foi a de ter países alinhados à sua política externa. “É com isso que eles mais se preocupam agora.”
Com o golpe em Dilma e a condenação, e inviabilidade eleitoral de Lula – ações patrocinadas por Moro e Lava Jato – os EUA progrediram um pouco mais com o plano de “demolir” a independência na região. “Acho que é disso que eles mais queriam se livrar.”
De acordo com Weisbrot, a meta principal dos EUA na América Latina sempre foi a de ter países alinhados à sua política externa.
Confira, abaixo, a íntegra da entrevista que faz parte da série “Lava Jato Lado B – A influência dos EUA e a indústria do compliance.”
André Sampaio: Você acha que o Departamento de Justiça dos EUA tem alguma influência na Lava Jato?
Mark Weisbrot: Sim, não há dúvida de que o Departamento de Justiça – como sabemos por seus próprios discursos e documentos – está pesadamente envolvido nessa investigação. Eu acho que pode até ter tido alguma influência política também.
Um número de membros do Congresso dos EUA e da Casa de Representantes, um mês atrás, escreveu ao Departamento de Justiça e fez várias perguntas, e expressou preocupação. Eles escreveram uma carta, liderados por Hank Johnson, que é membro do Comitê Judiciário, que tem papel de supervisionar o Departamento de Justiça, que terá de responder essas perguntas.
Eles dizem na carta que estão muito preocupados com as notícias de ações em conluio entre o ex-juiz Moro e os procuradores do caso, que se basearam em evidências fracas. Que as crenças dos procuradores eram insuficientes para uma condenação, e que Lula não teve um julgamento imparcial. Isso deveria ser uma preocupação para o Departamento de Justiça.
E eles [parlamentes] perguntam o que eles [Departamento de Justiça] realmente sabem disso. Se eles [DOJ] sabiam desse conluio. Qual foi seu papel. Perguntam detalhes do que eles fizeram. Então, espero que em breve teremos mais informações sobre o que o Departamento de Justiça fez. Mas me parece que, esmagadoramente, foi politizado, exatamente como a operação em si.
Depois do impeachment de Dilma, Aloísio Nunes, na época em que ele era presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, viajou aos EUA para uma reunião com Tom Shannon. E no mesmo período, houve uma coletiva de imprensa com José Serra e John Kerry, no Brasil, durante o impeachment. E Serra disse nessa coletiva que estava buscando melhor relacionamento com os EUA. Você acha que os EUA também influenciaram o processo democrático no Brasil?
Sim, os EUA tiveram um papel muito importante em legitimar e apoiar o golpe contra Dilma. E todo o caminho até a prisão de Lula, eles estavam apoiando através do Departamento de Justiça e outras agências dos EUA. Mas o golpe, em si, foi muito apoiado.
Um dos grandes sinais foi quando, um ou dois dias depois que o Congresso votou pelo impeachment de Dilma, o senador Aloysio Nunes, que comandava a comissão de Relações Exteriores no Senado, veio para os EUA e se encontrou com Tom Shannon, que era o número 3 do Departamento de Estado na época, e alguém que se envolveu em muitas atividades terríveis ao longo de sua carreira. Ele se aposentou alguns meses atrás.
Este encontro foi um meio dos EUA demostrarem de maneira muito clara, para aqueles que estavam prestando atenção, que o País estava apoiando o golpe. Porque a votação do impeachment no domingo antes de Nunes encontrar com Shannon foi vista ao redor do mundo como um espetáculo. Na verdade, foi uma vergonha, que afetou a cobertura da imprensa aqui, que era majoritariamente a favor do processo de impeachment, mas começou a hesitar depois que viu o que os senadores estavam dizendo.
Shannon teve um papel crucial. Todo mundo sabe quem ele é. É um ex-embaixador no Brasil e, como disse, o terceiro no comando do Departamento de Estado na época. Ele se encontrar com Nunes, quando não precisava se encontrar, foi uma tentativa de mostrar o apoio dos Estados Unidos ao golpe. E foi muito inteligente, porque a maioria da mídia ignorou, mas todos no Brasil, toda a classe política no mundo, todos que entendem de diplomacia sabiam que isso era uma maneira de mostrar apoio ao golpe.
E como se não fosse suficiente, em agosto, John Kerry foi ao Brasil e falou em frente da embaixada dos Estados Unidos com José Serra – que na época era o ministro das Relações Exteriores do governo golpista, se assim quiser chamar – e deu todo o apoio ao novo governo. Disseram que iriam trabalhar juntos. Pouco antes disso, o Senado estava votando e preferiram não condenar Dilma [à perda dos direitos político]. Foi sem erro uma demonstração do apoio dos EUA não só ao impeachment, mas para se livrar de Dilma. Todo mundo que prestou atenção entendeu, embora tenha sido ignorado pela mídia.
Como você analisa o relacionamento entre Bolsonaro e Trump, considerando que durante o governo Lula, o Brasil teve outro tipo de relacionamento com os EUA, tentando estreitar o bloco econômico na América do Sul e também se posicionamento contra a guerra no Iraque, por exemplo, e agora Bolsonaro parece fazer tudo o que Trump quer. Como você vê esse relacionamento?
Não há nenhuma dúvida de que o governo Trump está muito feliz com Bolsonaro e o apoia fortemente ou vai tentar apoiá-lo de toda maneira que puder. Isto é porque eles unificaram a política externa. É por esse motivo também que os EUA quiseram se livrar do antigo governo brasileiro, assim como outros governos de esquerda que foram eleitos no século XXI. Não há diferença, e eles tiveram sucesso em se livrar de alguns deles. Mas eles contribuíram, claro, como disse, para se livrar de Dilma e Lula, e agora eles podem ter o que querem. Especialmente Trump. Porque ele é um extremista e eles [Trump e Bolsonaro] compartilham muita ideologia em comum. Você ainda tem nos Estados Unidos toda uma política externa, um establishment – que inclui arma de indução de pânico, o Departamento de Estado, Conselho de Segurança Nacional, as comissões de relações exteriores do Congresso, e o departamento de Defesa. Todos eles têm uma estratégia em comum, e essa estratégia é não ter governos independentes na América Latina. E se livrar daqueles que foram eleitos e das instituições que eles construíram para a independência regional, como, por exemplo, a Unasul [União de Nações Sul-Americanas] ou CELAC [Comunidade das Nações Latino-Americanas e Caribe]. Eles realmente não querem nenhuma dessas coisas. A transformação da América Latina no século XXI foi a primeira vez em 500 anos que a região teve tanta independência. E, desde o começo do século, a estratégia tem sido de limitar e reverter [o crescimento], mais ou menos como na Guerra Fria contra a União Soviética. Mas eles realmente querem se livrar. E agora eles têm o que querem. De novo: Trump e Bolsonaro têm uma conexão ainda mais especial por sua ideologia racista e de extrema-direita.
Qual é a importância do Brasil, como o maior País da América do Sul, para a política externa dos Estados Unidos?
O Brasil tem sido o grande prêmio para eles. Eles perderam o Brasil depois de 2002 até 2016. Não tinham o País no bolso. O Brasil é mais difícil do que estes outros países [da América do Sul] para os EUA conseguirem se aproximar, porque ele tem uma longa tradição de independência – mesmo na ditadura militar, que foi relativamente independente dos Estados Unidos, ou mais independente do que os Estados Unidos esperavam quando apoiaram o golpe.
Quando essa história for finalmente escrita, eu acho que o golpe contra Dilma, Lula e o PT será visto como um dos mais importantes apoios dos Estados Unidos, em grande escala, a um golpe na América Latina.
Como você vê o juiz Sergio Moro? Ele foi o cara que primeiro condenou Lula e agora é ministro de Justiça de Jair Bolsonaro.
Moro é claramente um líder disso. Ele tinha os olhos o tempo todo em cima do golpe. Ele teve de pedir desculpas à Suprema Corte por grampear Lula, sua esposa e Dilma, e criou esse grande espetáculo prendendo Lula com todos esses policiais, quando Lula se voluntariou para responder perguntas. Então ele fez todas essas coisas, e claro, fez coisas que descobrimos depois, como colaborar com os procuradores, que é antiético e ilegal.
E ele era muito próximo dos Estados Unidos. Ele já veio aqui, ele tinha contatos aqui. Na verdade, esteve aqui recentemente com Jair Bolsonaro e teve encontros em uma desses centros de fusão dos Estados Unidos.
Então acho que ele teve um papel chave. Ele fez tudo ser tão óbvio ao se tornar ministro da Justiça depois de ter entregado a eleição para Bolsonaro prendendo Lula, que teria vencido a eleição de acordo com todas as pesquisas. Acho que esse foi o papel dele e como ele será lembrado.
Você acha que a trama principal da Lava Jato era finalmente tirar Lula da eleição? Acha que Lula na prisão era o principal objetivo dessa operação?
Sim, acho que era o que eles mais queriam: por Lula na cadeia e impedi-lo de disputar a eleição. Você pode ver isso. No julgamento em que ele foi condenado e enviado à cadeia, não havia evidência material. Tudo foi baseado no testemunho de um executivo que não só tinha um acordo de delação, mas como a Folha de S. Paulo publicou, seu acordo foi interrompido e paralisado, até que ele mudasse sua história, porque a história original não implicava Lula, então ela foi cortada desse acordo que poderia salvá-lo de uma temporada na prisão, até que ele dissesse o que queriam.
Essa era praticamente a única evidência que eles tinham, porque Lula nunca comprou esse apartamento, nunca ficou nele. Não havia nada além desse cara e sua delação. Então, estava muito claro o que eles queriam fazer: tirar Lula do jogo. E eles fizeram tudo, até mesmo de maneira subsequente, para assegurar que isso aconteceria.
O que você acha que a Operação Lava Jato significa para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos?
É algo muito desagradável. E acho que por isso esses membros do Congresso escreveram essa carta. É uma carta sem precedentes. Eu não consigo lembrar de nada assim. Claro que o Congresso tem discordâncias com o Departamento de Justiça sobre direitos civis ou sobre a presidência, mas eu não acho que alguma vez [congressistas] já foram atrás deles [DOJ] por algo que fizeram no exterior, em outro país.
Isso realmente esclarece para todos que estão olhando que o Departamento de Justiça tinha um papel importante, e um papel político. Estava perseguindo um objetivo da política externa, que era se livrar do governo do Partido dos Trabalhadores. Claro, estou dizendo isso com base nas evidências que existem agora, a maioria circunstancial, mas espero que teremos evidências mais fortes.
Esse é um dos problemas da mídia aqui, é que eles tem esse padrão. Sempre que os Estados Unidos fazem algo em outro País que é imoral ou ilegal, eles usam o que chamamos de estratégia de cortina de fumaça. Sabe? No sistema judicial, no sistema criminal, nós temos esse padrão que chamamos de evidências “além da dúvida razoável”, ou nos casos civis chamamos de “preponderâncias das evidências”.
A cortina de fumaça é algo que a mídia só parece usar para coisas que os Estados Unidos fizeram, mesmo sabendo que é obvio para qualquer observador. Mesmo os depoimentos que o Departamento de Justiça, oficialmente, já fez sobre esse caso, [mostram que] havia elementos, havia motivação, havia oportunidade, e eles estavam envolvidos nesse crime de um jeito que estava diretamente voltado para os mesmos fins políticos que seu amigo Moro estava direcionado.
Por que os Estados Unidos e Departamento de Justiça quiseram se livrar de Lula e seu partido político?
Toda a operação por parte dos Estados Unidos, toda a operação contra Lula e seu partido político… A propósito, não foi a primeira vez, devo dizer. Em 2006, temos documentos, há um artigo na Folha de S. Paulo sobre isso, mostrando que os Estados Unidos intervieram para tentar enfraquecer o PT naquela época. Eles estavam pressionando por uma legislação que poderia enfraquecer o PT e o governo naquela época. Eles sempre quiseram se livrar desse governo. Por que isso?
A meta principal na América Latina, desde sempre, foi ter países alinhados completamente, ou pelo menos alinhados à política externa dos Estados Unidos. É com isso que eles mais se preocupam agora. Talvez, 30 anos atrás, eles se preocupassem mais com interesses corporativos. Mas agora, na última década ou duas, a preocupação tem sido a política externa. Eles derrubaram o governo do Haiti duas vezes desde 1991. O que o Haiti tem? Nada. Eles fizeram isso porque as pessoas elegeram alguém que não estava alinhada com a política externa. E é um país pequeno. Pense no Brasil.
Brasil quis contrariar a política externa dos Estados Unidos, quis negociar com Irã, Turquia, Rússia por um acordo de troca de combustível nuclear, por exemplo, em 2010. Isso, como vimos na mídia, foi como um ponto de virada. E outra coisa que fizeram, obviamente como líder do movimento de independência da América do Sul, do século XXI, ajudaram a estabelecer a Unasur, CELAC, todos esses outros governos de esquerda, na Bolívia, Equador, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Honduras, até o governo dos Estados Unidos vetar estes governos.
Então foi um preço alto [pago pelo Brasil] que sempre esteve presente. Obviamente, é o maior País da região e a maior economia. Eles queriam demolir essa mudança institucional que ocorreu no século XXI e deu à América Latina uma voz independente no cenário mundial. Acho que é disso que eles mais queriam se livrar.
Mark Weisbrot
Descrição
Mark Weisbrot é um economista americano, colunista e co-diretor, com Dean Baker, do Centro para Pesquisas Econômicas e de Políticas Públicas em Washington. Como comentarista, ele contribui em publicações como o New York Times, o The Guardian e a Folha de S. Paulo. Wikipédia.