Artigo

  • LEÃO OU ESFINGE?

    Por Jorge Alexandre Alves

    No momento presente, classificar pessoas ou grupos rapidamente têm sido quase uma obsessão das pessoas. Ainda mais nas redes digitais. É o que está acontecendo com Leão XIV, desde quando apareceu pela primeira vez na sacada da Basílica de São Pedro. Não é por acaso, considerando o papel geopolítico da Igreja Católica.

    Neste começo de pontificado, a direita católica está dividida. Aliás, engana-se quem pensa que o catolicismo é algo uniforme. Consequentemente, o campo conservador também.

    Nele estão extremistas pentecostais-católicos, defensores de suposto purismo ritual de séculos passados, “viúvas” da cristandade medieval ou do Concílio de Trento, fundamentalistas bíblicos, (ultra)tradicionalistas, intolerantes religiosos e grupos que entendem que o papel da religião no mundo é exclusivamente espiritual. E, não tão raro, tudo isso junto e misturado.

    Hoje, o que une quase todos esses grupos é a política. Tais laços ideológicos também os vinculam, por hora, com segmentos do campo evangélico os quais detestavam poucas décadas atrás. É o fenômeno da necrorreligião, um dos pilares de sustentação da necropolítica vigente em nosso tempo.

    Independente da fragmentação do conservadorismo católico, há certa divisão entre os também chamados ultracatólicos quanto ao Papa Leão XIV.  Segmentos norteamericanos  já chamaram Prevost de “woke” e de “marxista”. E estão escandalizados por ele já ter criticado ou corrigido publicamente Trump e seu vice, Vance.

    No Brasil, há “influencers” e grupos ultraconservadores que adotaram postura distinta. Essa fração do conservadorismo tenta convencer a opinião pública católica, pedindo um “voto de confiança” a Leão porque ele, em tese, não seria tão progressista quanto Bergoglio. Em outras palavras, “querem ganhar a narrativa” sobre os fatos.

    O atual pontificado está ainda no começo. Quem se arriscar em vaticinar algo em definitivo sobre Leão e seu ministério papal neste momento, corre sério risco de precipitação e perder credibilidade.

    A Igreja Católica é um enorme transatlântico. Alguns, mais ácidos, diriam que ela mais se parece com um gigantesco paquiderme. Seja lá qual for a analogia, trata-se de uma instituição que não costuma dar “cavalos-de-pau” ou guinadas bruscas em sua história milenar.

    Até agora, temos o passado de Prevost como religioso e bispo, que indica uma simplicidade no cotidiano e uma presença junto do Povo de Deus. Após sua eleição como Bispo de Roma, surgem aqui e ali alguns sinais sobre como será este pontificado.

    Certos analistas estão apontando contradições nestes simbolismos. Mas é preciso esperar as primeiras ações deste Papa no governo do rebanho católico para avaliar com mais propriedade e consistência. De concreto neste momento, temos o reiterado chamamento de Leão XIV à construção da paz no mundo e suas preocupações com o mundo do trabalho na era digital.

    Além disso, vale ressaltar que o nome escolhido por um pontífice revela suas intenções de governo. Desse modo, se Prevost desejasse dar uma guinada de 180 ⁰C na condução da “Barca de Pedro”, teria adotado outro nome, como Gregório XVII, Pio XIII, João Paulo III ou Bento XVII. 

    É necessário pontuar que existem uma série de elementos “ad intra” que não são perceptíveis para o grande público não católico. Questões como a configuração dos ritos litúrgicos católicos, a formação dos padres, a vida das ordens religiosas e a escolha dos bispos são temáticas que podem indicar qual caminho o novo Pontífice tomará. Entretanto, somente quem vive o cotidiano do catolicismo, os pesquisadores e conhecedores dos meandros da Igreja perceberá tais movimentos. A imprensa em geral costuma falar “groselha” (como diriam estudantes do Ensino Médio) sobre esses aspectos.

    Se Leão XIV estivesse substituindo Ratzinger ou Wojtyla, ninguém teria dúvidas em dizer que ele é progressista. Acontece que Francisco aumentou muito o “sarrafo”. Devolveu credibilidade a um catolicismo combalido e desacreditado no mundo globalizado por causa de uma sucessão de escândalos. A Igreja havia deixado de ser uma voz relevante no cenário internacional. Bergoglio não apenas devolveu à Igreja sua credibilidade, como foi considerado por muitos a única liderança global de fato nesta primeira quadra do século XXI. Um estadista.

    Francisco, dentro e fora do catolicismo, elevou demais as expectativas sobre a figura do Papa. O papado mudou de patamar e o “sarrafo” está em lugar bem mais alto. Leão XIV terá que lidar com a ingrata situação de estar sob o escrutínio público tendo Francisco como régua.

    Não apenas o Bispo de Roma será avaliado pelos parâmetros estabelecidos pelo antecessor argentino. Católicos e quem tem algum interesse no tema também estarão observando o novo pontificado tendo Bergoglio como parâmetro.

    Por outro lado, entender para onde vai o catolicismo é fundamental neste momento histórico. É uma época de ressurgimento do ultranacionalismo, de profundos antagonismos que produzem divisão política. Esse contexto permite que a religião cada vez mais ocupe espaço na esfera pública, muitas vezes atacando a laicidade do Estado.

    Em razão de todas essas particularidades, Leão XIV ainda é uma esfinge. Na era digital, marcada pela velocidade da informação, pela primazia da imagem e pela superficialidade, é preciso ter cautela.

    O tempo é o senhor da razão. Juízos precipitados e superficiais podem até ganhar visibilidade nas redes. Todavia, quem se propor a isso está sob o risco de, na pressa em decifrar Leão, ser devorado pela esfinge…

    * Jorge Alexandre Alves é Sociólogo, Professor do IFRJ e integra o Movimento Fé e Política no RJ.

  • A ESTRATÉGIA CONSERVADORA PARA O CONCLAVE

    Imagem gerada por Inteligência Artificial

    Os extremistas católicos nunca foram maioria na Igreja. Décadas atrás, era um nicho de radicais que orbitavam em torno de si mesmos. Viúvas de um passado que nunca viveram, em seus delírios de revisionismo histórico, desejavam que o catolicismo retornasse a ser aquela típica instituição total da Idade Média.

    Sonhavam com aquela Igreja que integrava a elite política, que dominava todos os aspectos da vida social, ditando o comportamento individual e vigiando moralmente todas as pessoas. Queriam voltar ao passado tridentino de um catolicismo que rezava em latim, com mentalidade religiosa triunfante, e uma liturgia que refletisse o caráter majestático de um cristianismo elitista e reacionário, descolado da vida concreta das pessoas.

    Com a chegada da internet e das redes digitais, passaram a ter mais visibilidade. Com grande volume de recursos financeiros, sua mensagem fundamentalista ecoou e, desde o começo do século XXI, realizaram sua revolução cultural às avessas, usando os meios de comunicação.

    Esse caldo de cultura conservador também serviu de cortina de fumaça, mascarando modos de vida e posturas em nada identificadas com a mensagem dos Evangelhos. Os abusos sexuais, a vida dupla de ministros ordenados, o clericalismo, o fausto da vida de membros do alto clero católico e a aproximação com segmentos políticos ligados ao extremismo e a discursos de ódio são alguns dos esqueletos no armário deste catolicismo intolerante.

    Por quase 35 anos, este modo de ser católico e uma configuração eclesial se tornou hegemônico. Não em termos numéricos. Até porque um dos efeitos do clericalismo característico desse período foi a infantilização do laicato. Desse modo, o fundamentalismo avançou no interior do catolicismo, mas no campo das mentalidades e da vida cotidiana das comunidades católicas. São poucos, mas com muitos recursos financeiros e capacidade técnica, sua agenda ganhou presença pública e força.

    Todavia, em 2013 a Igreja havia chegado a um impasse, emparedada por escândalos, constrangida pelos desvios de não poucos membros do clero, com as finanças em frangalhos. O inverno eclesial tinha exaurido o frescor do Concílio Vaticano II, dissolvido sua credibilidade pública  e diluído o protagonismo internacional da pessoa do papa. Havia sério risco do catolicismo perder relevância no cenário geopolítico global.

    Foi nesse contexto que se deu a renúncia de Bento XVI. Em gesto de grande humildade, o pontífice alemão sai de cena e sua atitude significou a falência daquele modelo de Igreja. O inverno eclesial também havia se esgotado. Vindo do fim do mundo na perspectiva dos centros de poder global, Bergoglio assume a sé de Pedro. E não se omite diante da crise em que se encontrava o catolicismo e o papado.

    Em uma pregação de final de ano, lista 15 doenças da Cúria Romana e propõe reformas na burocracia vaticana. Deseja uma Igreja pobre para os pobres, em saída, rumo às periferias existenciais. Muda protocolos para punir abusadores e predadores sexuais na Igreja.

    Rompe com poderes encastelados intramuros, sofre com uma oposição agressiva, desrespeitosa a ponto de acusá-lo de heresia e de comunismo. Recuperando o espírito do Concílio, propõe uma Igreja Sinodal, participativa, com abertura às mulheres e aos jovens.

    Com o Papa Bergoglio, a Igreja ampliou sua presença na África e na Ásia e devolveu a credibilidade da instituição católica. Universalizou o Colégio Cardinalício, aumentou o número de cardeais eleitores para o conclave que o sucederá e reduziu a influência europeia na sua sucessão.

    Extramuros, Francisco escreveu uma encíclica sobre questões ambientais com muita repercussão, elogiada por estudiosos da área. Apoiou movimentos sociais, defendeu terra, teto e trabalho para o povo. Corajosamente, afirmou que o sistema econômico mata.

    O primeiro papa do Sul Global se tornou a grande liderança mundial de nosso tempo. Restaurou a credibilidade da Igreja, devolvendo ao papado, ressignificado, sua autoridade moral e popularidade. Bergoglio entrou para a história como um pontífice humilde, próximo do povo, pastoral. Porém, ele também foi o grande estadista do planeta neste primeiro quarto de século.

    Com a Páscoa de Francisco, a Igreja se vê na iminência de um novo conclave. A escolha de um novo Pontífice sempre é um momento histórico. Neste momento específico, a importância da escolha do Bispo de Roma impacta para além do catolicismo. Hoje, a escolha do sucessor de Pedro virou questão geopolítica.

    Os debates entre os cardeais estão inseridos nesse contexto. Embora tenha criado a maioria dos eleitores no conclave de sua sucessão, não necessariamente escolheu homens alinhados com sua visão e suas reformas. Os conservadores são minoria, mas dispõem de apoio midiático, recursos financeiros e visibilidade na redes a ponto de fazer muito barulho. E formar opiniões.

    Segmentos contrários as reformas de Francisco há tempos se articulam na expectativa de um novo conclave. Em Fevereiro, se reuniram em um complexo hoteleiro de luxo, em Sintra, Portugal. Ao menos um bispo brasileiro esteve nesse encontro. Organizado por entidades ligadas à extrema-direita planetária, o evento contou com a assessoria do mago das eleições do campo conservador, responsável pela eleição de Trump em 2016.

    Na véspera se sua morte, Francisco não teve como se livrar da incômoda visita do vice-presidente americano, em pleno domingo de Páscoa. A diplomacia do Vaticano teve a presença de espírito de não permitir uma audiência privada com o pontífice convalescente, dando apenas 10 minutos de visita pública com a autoridade norte-americana.

    Não foi apenas uma audiência de um católico devoto para desejar feliz Páscoa ao seu líder religioso. Fora da agenda pública de J. D Vance, com quais segmentos católicos da Itália e da Cúria Romana o preposto de Trump se reuniu? Com qual objetivo? Estava o vice-presidente estadunidense em Roma a fim de preparar o terreno para a sucessão de Bergoglio e a partida do Papa precipitou as coisas?

    Ao longo do funeral de Francisco, dos novendiales (os nove dias de luto oficial pela morte do Pontífice Romano) e das Congregações Gerais, foi possível identificar a estratégia conservadora para um conclave tão decisivo para a Igreja e para o mundo. O que está em jogo é a continuidade da primavera na Igreja iniciada pelas reformas de Francisco ou a volta aos tempos do inverno que assolou a Barca de Pedro por tantos anos.

    O resultado de um conclave pode ser imprevisível, mas a maioria dos analistas não creem que haja grandes retrocessos na condução dos destinos da Igreja. Todavia, os tradicionalistas têm usado todos os recursos disponíveis para frear ímpetos reformistas. Na impossibilidade de tornar viável um candidato conservador, ao menos garantir a reversão da reforma da Cúria Romana e da abertura da Igreja nas pautas da diversidade e da moral.

    Para tanto, a facção anti-Francisco tem operado em três níveis diferentes. Primeiro, através de certa narrativa disseminada através da Grande Imprensa. Seja no Brasil, na Itália, na França ou na Espanha, os principais meios de comunicação têm insistido que o próximo pontífice deverá unir uma Igreja supostamente dividida.

    Pela voz dos jornalistas, as “fontes” do campo conservador ventilam que o futuro Papa deverá ter um perfil conciliador. Ele deveria estender a mão para setores da Igreja contrariados pelo pontificado de Bergoglio. Trata-se do mesmo discurso dos meios de comunicação no Brasil sobre o perfil do sucessor de Francisco.

    Acontece que exatamente esses setores foram, sob Bento XVI, parte diretamente envolvida nos problemas e na crise da Igreja. Agora se precisa negociar e dialogar justamente com quem causou tanto sofrimento em nome de interesses pouco evangélicos?

    Ao reproduzir essa lógica, de forma consciente ou não, a imprensa colabora com a estratégia conservadora de produzir um fato político. Dessa forma, se tenta convencer a opinião pública e o laicato católico acerca da necessidade, para o bem da Igreja, que o próximo Papa deve ter um perfil moderado. No caso brasileiro, esse discurso ainda é reforçados pela visibilidade dada a prelados locais de viés conservador, que são apresentados como moderados ou progressistas

    A segundo eixo da estratégia conservadora reside nos chamados Kingmakers (fazedores de reis) ou Popemakers. São cardeais muito respeitados entre seus pares ideológicos. Geralmente ou não são eleitores ou sabem que dificilmente terão força política suficiente para alcançar os 2/3 dos votos necessários no conclave para eles próprios serem eleitos. Mas por sua influência, podem indicar nomes a serem seguidos pelos demais cardeais.

    No campo conservador, dois desses nomes se mostraram bastante ativos na imprensa. Um deles é o Cardeal alemão Gerard Müller. Opositor dos mais ferrenhos ao papado de Bergoglio, deu duas declarações em momentos diferentes neste pré-Conclave. Disse que o conclave marcaria “o fim de uma era”, a de Francisco. Posteriormente, afirmara que o grande conflito neste conclave não seria entre conservadores e progressistas, mas sim entre ortodoxia e heresia.

    O Outro é um veterano representante do inverno eclesial. Trata-se de Camilo Ruini, Cardeal Vigário Emérito da Diocese de Roma. Muito identificado com João Paulo II, Ruini foi os olhos em defesa da ortodoxia e do magistério do papa polonês na Cidade Eterna. Na semana passada declarou. que Francisco foi até às fronteiras, fez um papado para o público externo, mas era hora da Igreja voltar a pertencer aos católicos…

    Ambos são representantes do Ancient Regime. Porta-vozes dos arautos do retrocesso. Dão um tom mais crítico e ácido às suas falas porque sabem que é bem difícil que saia um papa dentre os opositores públicos de Francisco. Mas em tempos de crise de identidade, sabem bem que o discurso de defesa da “Sã Doutrina da Fé” podem atrair cardeais moderados.

    Ao apelarem para a Tradição (muito mais tridentina que evangélica, diga-se), esperam “furar a própria bolha”. Pretendem emplacar um nome que, mesmo não fazendo uma contrarrevolução anti-Francisco, ao menos congele as mudanças ocorridas até aqui. Atrairão moderados, mas será em número suficiente para fazer um novo Bispo de Roma?

    É fácil identificar os cardeais desse campo tradicionalista porque a maioria deles se sentam em torno de Müller nas audiências das Congregações Gerais. Em imagem de alguns dias atrás, um prelado brasileiro até apontado como progressista por sites ultraconservadores estava nesse grupo. E talvez não seja à toa.

    Nas listas de papabili publicadas pela imprensa italiana aparece um cardeal húngaro vinculado a esse campo conservador. Próximo ao governo autocrata de seu país, seria uma surpresa se eleito fosse. Mais nenhum cardeal desse campo tomou para si a condição de papabile.

    Fora os popemakers, mais ninguém deste grupo dá declarações polêmicas ou se manifesta de forma veemente para a imprensa. A disciplina e o espírito de corpo fazem parte da tática dos ultracatólicos no conclave, como têm sido em processos eleitorais mundo afora. Mas não só.

    Possivelmente, avaliaram que dificilmente emplacarão um pontífice que seja a antítese completa de Francisco. Tentarão de tudo até o final, mas se movimentam em torno de uma alternativa que, mesmo identificada com o pontífice argentino para fora dos muros católicos, seja teologicamente conservador.

    É um movimento que pode ser bem sucedido, desde que consigam plantar um Cavalo-de-Tróia. Um nome que, possa alcançar 2/3 dos votos, angariando apoios de parcela dos cardeais conservadores o suficiente para sua eleição. Alguém de discurso humanitário forte, com entrada no mundo oriental e respeitado pelos ortodoxos. Mas, ao mesmo tempo, alguém conservador no campo da moral, que não fosse mexer mais com a Cúria Romana. Um purpurado que, por exemplo, desfizesse as restrições da missa em Latim decretadas no pontificado que se encerrou..

    Considerando a universalização do colégio de cardeais, agora presentes em lugares remotos como a Mongólia ou ilhas da Oceania, é difícil acreditar que eles se conheçam bem. A menos que boa parcelas destes prelados tivessem alguma comunicação por aplicativos de mensagens ou por chamadas de vídeo, articulados sob alguém muito identificado com Francisco. Não é o que parece até agora.

    Isso torna mais plausível a possibilidade de um Cavalo-de-Tróia. Não seria novidade. Karol Wojtyla foi, de certa forma, uma virada em relação a João Paulo I. E os cardeais latinoamericanos caíram nessa mesma narrativa. Em 1978, diziam que o polonês apoiaria a Igreja Latinoamericana porque tinha conhecimento de causa (a versão antiga do hoje “lugar de fala”) sobre como lidar com regimes autoritários. Foi eleito, a primavera conciliar foi congelada e o resto virou história.

    Finalmente, a estratégia conservadora também fala por finanças e comunicação nas rede e na internet. Um grupo católico ultraconservador criou um site com os perfis de cada cardeal. Aqueles considerados mais progressistas têm sempre algo que coloca em dúvida sua fidelidade a doutrina cristã. Os do campo conservador são mais bem detalhados, sendo retratados como campões da fé católica.

    No último final de semana, a imprensa repercutiu a informação dada por um jornal italiano sobre um dossiê secreto sobre 20 cardeais que circulava entre os prelados nas Congregações Gerais. Um outro jornal de Roma, com perfil conservador noticiou que um forte candidato ligado a Francisco havia desmaiado na semana passada e se encontrava doente. Há desinformação se tornou arma dos conservadores para influenciar o Conclave.

    Para além do colégio cardinalício, há uma mudança de algoritmo nas redes digitais. Leigos católicos começaram a ser mais bombardeados de informações sobre o conclave geradas perfis de grupos ultraconservadores. Isso tem acontecido mesmo com pessoas identificadas com a Teologia da Libertação.

    Esse esquema de convencimento quer atingir o fiéis para que estes sejam mais dóceis caso tenhamos um papa comprometido com uma agenda menos progressista. Aqui vale também a tática de plantar um Cavalo-de-Tróia na opinião pública. Afinal, nem mesmo todos os cardeais conhecem o perfil teológico dos principais candidatos ao sólio pontifício.

    Sob o disfarce da “Semana da América”, um grupo empresários muito ricos estiveram em Roma na semana anterior, para uma peregrinação religiosa anual, organizada por uma entidade católica norteamericana. Em meio aos dias de luto pela morte de Francisco, promoveram jantares em palacetes da cidade, com vinhos caros e comida sofisticada.

    Além disso, houve reuniões secretas no melhor estilo lobby de corporações na capital do país. Um dos presentes afirmou que, de uma reunião como aquela, seria possível arrecadar mais de U$ 750 milhões “desde que tenhamos o papa certo”. Tentador, se considerarmos verdadeiras as notícias sobre o Vaticano estar com problemas financeiros.

    A estratégia conservadora para a eleição do próximo sucessor de Pedro está lançada. Mesmo que haja mais barulho, desinformação e tentativa que possibilidades concretas, a imprevisibilidade de um conclave não nos podem fazer descartar nenhuma hipótese. Se sairão vitoriosos ou não, somente saberemos uma hora após a fumaça branca sair da chaminé…

    *Jorge Alexandre Alves é Sociólogo, Professor do IFRJ e integra o Movimento Fé e Política no estado do Rio de Janeiro.

  • A OPOSIÇÃO A FRANCISCO E A ESCOLHA DOS BISPOS NO BRASIL.

    Por Jorge Alexandre Alves*

    Imagem gerada por inteligência artifical em https://www.shakker.ai/aigenerator
    Imagem gerada por inteligência artifical em https://www.shakker.ai/aigenerator

    Com mais de três mil dioceses em todo mundo e cinco mil bispos, esperar que o Bispo de Roma pessoalmente nomeie os bispos de todo mundo seria ingenuidade. É preciso delegar essa tarefa. Essa percepção exige  que se discutam as últimas nomeações episcopais no Brasil. Sobretudo quando feitas nesse contexto de internação do Papa.

    Embora seja ele quem formalmente nomeia os bispos, é de se estranhar que tantas escolhas para a Igreja do Brasil sejam feitas quando os boletins médicos indicam que seu estado de saúde é crítico. As indicações desta semana, em seu conjunto, indicam mais claramente a ação de um determinado segmento do episcopado brasileiro.

    No grande xadrez que as nomeações episcopais representam para a Igreja Universal, a escolha de um bispo indica a linha pastoral a ser seguida em uma diocese. Um conjunto de bispos com o mesmo perfil indicam uma diretriz, no que diz respeito aos grandes temas do catolicismo.

    Portanto, a escolha de um determinado candidato ao episcopado sinaliza o quanto esse processo está alinhado com o magistério de um Papa. Trocando em miúdos, o perfil de um bispo pode mudar o rosto do catolicismo de um país como o Brasil.

    Essa foi uma das estratégias usada nos tempos de João Paulo II para reconfigurar o catolicismo brasileiro há 40 anos. Bispos próximos das posições mais progressistas no Concílio Vaticano II e das grandes intuições teológico-pastorais da Igreja Latinoamericana daquele período foram sendo substituídos por figuras mais conservadoras e menos afeitas as inovações conciliares no campo pastoral, na formação do clero e na Liturgia.

    Consequentemente, candidatos ao episcopado sobre os quais surgissem quaisquer suspeitas de adesão ou simpatia à Teologia da Libertação eram descartados, na maioria dos casos. Em muitas dioceses, tal estratégia causou cisões, dores, traumas e contribuiu significativamente para o esvaziamento do catolicismo, sua perda de capilaridade social e para o quadro religioso atual, onde a sangria de fiéis católicos para outras confissões não cessou.

    O estímulo ao tradicionalismo e adesão desmedida ao pentecostalismo católico foram, desde os anos 1990, justificadas como estratégias mais “modernas” para “trazer de volta as pessoas para a Igreja”. Os resultados demográficos indicam o contrário, porque atualmente o catolicismo brasileiro representa parcelas cada vez menores da população.

    Mais, esses grupos que se afirmaram no lugar do modelo pastoral das Comunidades Eclesiais de Base foram solo fértil para o fundamentalismo católico que assola a Igreja do Brasil. Sua face visível revela o pior do cristianismo, com vínculos íntimos com a extrema-direita, o golpismo inveterado, a produção/disseminação de fakes news e as escandalosas manifestações de segmentos católicos desejando a morte do Papa Francisco nas redes digitais.

    Portanto, a escolha dos bispos também deveria ser um indicativo da implementação de uma linha teológico-pastoral advinda do Bispo de Roma, como foi nos papados que antecederam ao atual, certo? Nem tanto… Francisco talvez seja o Pontífice mais reformista da história recente da Igreja. Em muitos aspectos, sua coragem nos remete ao grande João XXIII que, ao convocar o Vaticano II, colocou a Barca de Pedro em diálogo com a modernidade.

    Mas, já com Paulo VI – que foi fiel ao espírito do Concílio – uma oposição inicialmente dissimulada começa a pôr freios no que foi decidido pelos padres conciliares. A partir de Wojtyla, muito do que se propôs no Concílio foi ressignificado, reinterpretado na direção oposta das aspirações conciliares, a ponto de Bento XVI defender publicamente tal posição, já no ocaso de seu pontificado.

    Bergoglio, eleito Bispo de Roma a partir de certo clamor por mudanças, iniciou uma série de reformas na Igreja e no exercício do papado que rapidamente passaram do encantamento para uma oposição que era inicialmente velada, mas hoje é cada vez mais explícita. O projeto eclesial deste Pontífice atingiu em cheio os curiais romanos, os tradicionalistas de diferentes matrizes e aqueles que se sentiam herdeiros do legado dos dois pontificados anteriores. Por isso, Francisco talvez tenha sido o papa mais atacado da era da comunicação em massa por parcela da própria comunidade católica, em níveis de desrespeito poucas vezes vistas para com um líder religioso.

    A oposição a Francisco e a resistência às suas reformas ficaram raízes na Cúria Romana, a despeito dos esforços do Papa em reduzir seu poder e sua influência. Dentre os dicastérios romanos  (equivalentes a um ministério de um governo civil), aquele que se encarrega da escolha dos bispos tem um papel crucial em qualquer reforma eclesial.

    Nas condições normais de temperatura e pressão, seria de se esperar que um corpo burocrático como a Cúria Romana fosse totalmente alinhado ao ministério petrino do Papa. Logo, o departamento responsável em nomear aqueles que seriam, no atual modelo eclesial, responsáveis pela implantação das reformas da Igreja, deveria escolher dentre os candidatos ao episcopado exatamente os que se identificam com a linha do atual Pontífice.

    Contudo, são muitas as resistências que Francisco encontra entre os curiais do Vaticano. E isso se reflete em boa parte das escolhas dos bispos e na seleção de cardeais, particularmente para a Igreja do Brasil. Ao mesmo tempo, Bergoglio enfrenta uma resistência que se tornou muito tenaz no país. Diferente do enfrentamento público que  bispos fizeram nos Estados Unidos ou na Itália, a oposição ao Sucessor de Pedro no território brasileiro não é pública. São remotas as chances de vermos um bispo brasileiro – mesmo emérito – atacar o sucessor de Pedro.

    Suas orientações pastorais, suas exortações e encíclicas são formalmente acolhidas, mas “empurradas com a barriga” no dia-a-dia das comunidades católicas. Basta ir a uma matriz paroquial qualquer de uma grande arquidiocese brasileira e verificar se catequistas e agentes de pastoral conhecem, de fato, os documentos finais da série de sínodos realizados por Francisco ao longo de seu pontificado.

    Ora, na Igreja do Brasil, as disputas pelas nomeações episcopais fazem parte da estratégia de oposição ao Papa em território nacional. Em que pese os muitos bons bispos nomeados por Francisco em seu papado, são muitas as insatisfações de toda ordem por certas nomeações. Muitas indicações causam estranheza  pelo perfil do indicado. Como esse processo de escolha ocorre em sigilo, é difícil saber os reais critérios que apontaram pela escolha de um e a não indicação de outro.

    Aqui entra a estratégia de oposição ao Papa no que se refere à escolha dos bispos. Entre 2013 e 2019 foi mais nítido que o perfil dos escolhidos para bispo se aproximava mais do magistério de Francisco. Porém, na medida em que os anos passaram e a resistência a Bergoglio cresceu, aumentaram as nomeações de prelados oriundos de grupos e dioceses muito distantes das intuições teológicas e das reformas propostas pelo pontífice.

    Como ninguém assume publicamente fazer oposição ao Papa, salvo grupos mais sectários, a respeito dos quais alguns bispos afirmam nada poder fazer por serem associações civis de fiéis. Dessa forma, fica mais complicado identificar as verdadeiras lideranças da oposição a Bergoglio na Igreja do Brasil.

    Todavia, olhando o perfil das nomeações episcopais para determinadas regiões do Brasil, é possível detectar de onde vêm as articulações que promovem candidatos com determinado perfil, bem como as transferências de bispos de uma diocese para outra. Mesmo quando o escolhido é identificado com a agenda de Bergoglio, não são poucas as vezes em que o nomeado é retirado de uma determinada realidade sócio eclesial para ser bispo em uma região com a qual nunca teve o menor contato.

    Foi o que aconteceu há algum tempo com um religioso com destacada atuação junto à periferia de uma megalópole brasileira, em área profundamente urbanizada de uma diocese marcada pela violência urbana. Foi feito bispo, mas para atuar em outra região, em outro bioma em uma realidade bem distinta daquela onde atuava até sua nomeação.

    No jogo de poder que envolve as indicações de bispos, a sucessão episcopal nas maiores dioceses se torna elemento chave para a afirmação ou não da força da oposição a Francisco. No caso brasileiro, as duas maiores arquidioceses do país estão em vias de ter mudanças em sua direção.

    A burocracia referente à nomeação de um bispo passa pela diplomacia do Vaticano, através de um embaixador papal, o núncio. A Nunciatura Apostólica é quem recebe as indicações, faz escutas e fornece as informações necessárias para que o Dicastério dos Bispos elabore uma lista tríplice, da qual sairá o escolhido para uma diocese.

    Para o Brasil já vieram núncios que deram grande contribuição à Igreja. Armando Lombardi e Sebastiano Baggio foram dois núncios notáveis, porque tiveram participação direta na formação de uma geração luminosa de bispos brasileiros nos anos 1960 e 1970.

    Atualmente, constata-se que, após a chegada do atual representante diplomático papal no Brasil, tornaram-se mais frequentes nomeações episcopais que não estavam em sintonia com a linha de Francisco. Soma-se a isso o fato do secretário do Dicastério dos Bispos ser brasileiro. Nesse contexto, não seria tão complicado que os novos bispos fossem, não apenas da boca para fora, mais alinhados pastoralmente com Bergoglio.

    Contudo, se isso não está acontecendo, podemos inferir que a oposição a Francisco atua para que a escolha dos bispos e as transferências episcopais dificulte a implementação do magistério petrino no Brasil. Se considerarmos algumas nomeações e transferências ocorridas nos últimos anos, não podemos descartar que a resistência a Francisco no Brasil se tornou mais forte, capaz de se articular com a diplomacia papal e setores do Dicastério dos Bispos que não são tão entusiasmados com o papa, a fim de operar uma máquina muito bem azeitada, de fazer bispos conservadores.

    Essa articulação, mais do que apenas fazer bispos wojtylianos e ratzingerianos, está de olho  na sucessão das duas maiores arquidioceses do Brasil. Estamos falando das maiores metrópoles brasileiras, de cidades cuja população ultrapassa 19 milhões de pessoas, das quais aproximadamente 10 milhões são católicas.

    A importância aumenta mais ainda quando se constata a perda atual da capilaridade social de outrora do catolicismo, efeito de uma pastoral urbana que não oferece respostas aos desafios da evangelização, que optou por ações de massa de cunho devocional. Em uma dessas metrópoles, a Igreja tem se omitido nas graves questões sociais – como a chaga da violência urbana – e parece mais preocupada com as sacristias do que com a vida concreta do Povo de Deus, tornando-se uma das capitais com menor percentual de católicos do Brasil.

    Todavia, o futuro da Igreja do Brasil passa por essas duas metrópoles. Para o bem ou para o mal, o que o catolicismo produzir nessas grandes cidades ditará os rumos do rebanho católico em escala nacional.

    Se a Igreja for capaz de ser novamente voz relevante nesses ambientes urbanos, dará enorme contribuição à sociedade brasileira e ao Cristianismo. Mas se optar pela sacristia, sua face visível será a do fundamentalismo, da intolerância e do conluio com forças políticas que desprezam a democracia, os direitos e a dignidade humana.

    Por isso, os próximos arcebispos dessas cidades, além de prováveis cardeais da Igreja, terão papel fundamental e estratégico nos rumos do catolicismo brasileiro. A oposição a Francisco, no Brasil e em Roma, sabe disso. E tem se movido.

    O magistério de Francisco representa o futuro da Igreja. Ainda que esteja em seu ocaso, o pontificado do Papa Bergoglio foi a única lufada de ar fresco na Igreja capaz de tirá-la do atraso de 200 anos, como dizia o saudoso arcebispo de Milão, Carlo Maria Martini. Jesuíta como o atual Pontífice, o Cardeal Martini foi uma das vozes mais lúcidas em um tempo de inverno eclesial.

    A oposição a Francisco representa o retorno a esse inverno, a um passado clerical e triunfalista, sem ao menos ter se completado a primavera deste pontificado. E, no Brasil, sua tenaz  articulação passa pela Nunciatura e pelo Dicastério dos bispos.

    As recentes mudanças no episcopado brasileiro – inclusive as que ocorrem quando o Papa convalesce na cama de um hospital – são parte da estratégia dos segmentos anti-Francisco. Quando se analisa as possibilidades de sucessão das maiores arquidioceses brasileiras, fica nítido o desenho tático da resistência ao magistério do Bispo de Roma.

    Nos últimos dois anos, prelados de destaque por suas posições a favor de Francisco, na perspectiva de uma Igreja sinodal e em saída foram transferidos de suas dioceses de origem para outras circunscrições eclesiásticas. Todos eles passaram boa parte de suas trajetórias em grandes metrópoles, nas regiões metropolitanas ou nas periferias. Tiveram presença destacada junto aos mais pobres, na defesa dos direitos humanos e no mundo da educação, além de publicamente manifestaram seu entusiasmo com as reformas de Francisco.

    Ou seja, reuniam todas as condições necessárias para assumirem o desafio de conduzir o catolicismo em uma grande metrópole. Por que foram transferidos recentemente para o interior ou regiões demograficamente pequenas? Evidentemente, as igrejas locais para onde eles foram ganharam muito com seus novos bispos. E eles mesmos continuam a serviço do Reino de Deus, sem ambições maiores, caminhando com o cheiro de suas ovelhas como pastores que são.

    Só que as suas transferências, por serem muito recentes, os retiram das listas de sucessão nos grandes centros urbanos. Nisso reside a estratégia dos opositores do Papa nas transferências episcopais: Afastar das grandes metrópoles quem poderia ser a voz de Francisco na realidade urbano brasileiro. A máquina de fazer bispos não alinhados com Francisco opera mesmo quando não se trata de um novo bispo. E age articuladamente com segmentos da nunciatura e do Dicastério dos bispos.

    Roraima, Livramento, Petrolina e, mais recentemente, Santos e Itapetininga ganharam e ganham muito com suas nomeações recentes. Mas e a Igreja do Brasil? Além de Brasília e Roma, quais outros centros do poder católico no país constituem o eixo da articulação anti-Francisco em território brasileiro?

    *Jorge Alexandre Alves é sociólogo católico, professor do IFRJ e integrante do Movimento Fé e Política no Rio de Janeiro.

  • TEMPOS DIFÍCEIS EM UMA CONJUNTURA DELICADA

    Por Jorge Alexandre Alves

    O primeiro semestre de 2024 apresenta uma conjuntura desfavorável aos interesses da população mais empobrecida, daqueles e daquelas que vivem de sua força de trabalho e das esquerdas em geral. No Brasil e no mundo somos impactados pelo crescimento e fortalecimento da extrema-direita e pelas alterações climáticas causadas por séculos de descaso com as questões ambientais.

    As previsões ambientais viraram realidade. A emergência climática agora é rotina:

    Fato é que a catástrofe climática é uma realidade e pouco parece ser feito para reverter seus efeitos – se é que isso e possível – em curto prazo. A crise do sistema-mundo reconfigurou o clima do planeta e sentimos seus efeitos desastrosos. Estamos na terceira década do século XXI. Encurtamos distâncias com as tecnologias da informação e do mundo digital, a inteligência artificial é uma realidade e os telefones celulares viraram computadores de mão. Mas em termos ambientais, parece que a civilização humana se voltou contra seu próprio lar maior.

    O ser humano virou inimigo de Gaia (Terra). Sua ação causa impactos em escala planetária, impactando mais que o espaço geográfico, modificando biomas e alterando o clima. Deixamos o holoceno, época geológica marcada pelos principais eventos da cultura humana: agricultura, escrita, surgimento do estado, da filosofia e da ciência.

    Hoje, tamanha é a interferência humana em Gaia, que Paul Crutzen – Prêmio Nobel de Química em 1995, defendeu o surgimento, com a Revolução Industrial, de uma nova época geológica: o Antropoceno, intensificado ao longo do século XX. A humanidade impacta o planeta e o adoece, da mesma forma que faz um vírus em um organismo vivo.

    Mas há quem diga que, na verdade, a globalização do capitalismo fez com que a forças do grande capital inaugurassem o Capitaloceno. Os interesses econômicos e a mercantilização de todas as formas de vida, na selvagem busca da reprodução de capital, esgotaram a capacidade do planeta em repor o que havia sido rapinado em termos de recursos naturais não renováveis.  

    Independente do nome do culpado, fato é que nos encaminhamos para o colapso global da experiência humana que fundou a modernidade. O eventos climáticos extremos viraram realidade em toda parte. É a catástrofe do Rio Grande Sul, as grandes tempestades de verão no Sudeste brasileiro e os incêndios do Pantanal que se somam a grandes chuvas no Texas, a quase ausência de outono no Brasil e as temperaturas acima de 50°C na primavera da Índia.

    Ainda assim, a ação política de governantes e o zelo de gestores sociais poderiam ter prevenido que o pior acontecesse, salvando vidas e mitigando prejuízos. Mas não foi o que ocorreu até agora. Aliás, medidas de prevenção raramente acontecem cada vez que uma grande emergência climática atinge o Brasil. Que a população do sul do país saiba identificar os responsáveis pelo tamanho da desgraça que os abateu com seu voto nas próximas eleições.

    A Extrema-Direita avança no mundo:

    Neste mesmo quadrante histórico presenciamos o esgarçamento da noção de Democracia, na sua forma representativa. Os sistemas de governos, os organismos de justiça e os partidos políticos criaram um ambiente apartado do conjunto da população. Os Estados-Nação se tornaram incapazes de garantir direitos básicos, fazer justiça social e preservar o patrimônio ambiental do planeta.

    Exatamente em meio da descrença generalizada que emergem as forças extremistas de direita. A reinvenção de ideias que se acreditavam derrotadas e relegadas ao lixo da História desde o final da Segunda Guerra Mundial parecem ter conquistado corações e mentes em diversas partes do mundo.

    Em outras palavras, as contradições sociais do capitalismo produziram o caldo de cultura oportuno para que a xenofobia, o racismo, a aversão a toda forma de diferença e o fundamentalismo religioso ganhassem força. A velhas ideias fascistas voltaram a ser defendidas sem qualquer constrangimento da parte dos seus apoiadores.

    As tecnologias da informação se tornaram poderosos meios de disseminação dessas ideias, permitindo a articulação mundial da extrema-direita, através das redes digitais, canais de vídeos e dos aplicativos de mensagens. A luta política saiu de seu lugar tradicional e se instaurou no ambiente virtual da internet, conquistando um número cada vez maior de adeptos.

    Os últimos anos são marcados por um ambiente social de incertezas econômicas, de catástrofes climáticas e de desgaste da democracia representativa. Neste cenário, parcela dos que perderam parte dos seus privilégios históricos de gênero, raça e classe – as vezes em nome de avanços relativos como no caso brasileiro – viram no extremismo político e no fanatismo religioso (de matriz cristã em nosso caso) suas únicas alternativas para existirem em um mundo cada vez mais ameaçador.

    Os culpados de sua derrocada eram exatamente aqueles historicamente invisibilizados. Simplesmente porque tiveram uma pequena parte de suas demandas atendidas, e passaram a ter maior liberdade na esfera pública e visibilidade midiática. Mesmo assim, essa presença se tornou insuportável em diversas partes do mundo. Para eles, a extrema-direita foi uma tábua de salvação. Os neofascistas do século XXI usam eficientemente a internet como meio de canalizar insatisfações e medos, gerando engajamento e articulando seus apoiadores.

    Mobilizando poderosos algoritmos matemáticos usados inicialmente no mercado financeiro, desenvolveram técnicas capazes de identificar nas redes virtuais perfis psicológicos de pessoas que poderiam se identificar com sua ideologia. Com efeito, a  ultradireita se tornou popular, e eleitoralmente forte.

    Em alguns países como Hungria, Turquia, Ucrânia, Itália e Polônia se tornou hegemônica. Em outros está ou esteve recentemente no poder e se mantém ativa e influente, como no Brasil, na Índia e nos Estados Unidos. Ela cresce de forma consistente como demonstraram as eleições recentes para o Parlamento Europeu em países como Espanha, França e Alemanha. Ou começa se tornar politicamente relevante, como em Portugal.

    A vitória da extrema-direita nas eleições para o parlamento europeu acendeu o sinal de alerta no mundo. Do Outro lado do Atlântico, o primeiro dos debates entre os candidatos a presidente dos Estados Unidos mostrou  fraqueza de Joe Biden e sua enorme dificuldade em enfrentar a enxurrada de mentiras de seu adversário.

    O mandatário norteamericano não representa as esquerdas em plano internacional. Historicamente, o que é bom para os americanos quase nunca foi bom para o Brasil. Ao longo do século XX, o Partido Democrata foi mais intervencionista na América Latina, como aconteceu na instalação da ditadura brasileira. Mais recentemente, foi no governo do democrata Obama, tão celebrado pela questão racial, que agentes da CIA roubaram HD’s da Petrobrás, grampearam o telefone presidencial de Dilma Roussef. 

    A situação mudou a partir de 2016 quando o Partido Republicano passou a ser liderado por uma figura identificada com a extrema-direita, influindo em eleições por toda parte e mobilizando seus pares a redor do planeta. Ao tentar retornar à Casa Branca, o candidato republicano é o principal articulador internacional da explosiva aliança entre fundamentalistas, extremistas políticos e protofascistas.

    Uma eventual vitória de Trump no final do ano teria efeitos deletérios sobre a democracia, dentro e fora de seu país. Por isso, os democratas se vêm obrigados a apoiar candidatos à esquerda que vençam democraticamente as eleições e renunciam, por hora, a sua política externa intervencionista, sobretudo na América Latina. Continuar a fazer o que se fazia nos tempos da Guerra Fria fortaleceria Trump e a extrema-direita.

    Todavia, as vitórias do Partido Trabalhista no Reino Unido e da grande coalização de esquerda no segundo turno das eleições para a Assembleia Nacional Francesa (equivalente no Brasil à Câmara dos Deputados) indicam uma luz em meio a escuridão destes tempos difíceis. O Reino Unido, anos de neoliberalismo desgastaram o capital eleitoral da direita conservadora britânica. Agora, os trabalhistas foram eleitos com grande maioria para pôr ordem na casa, restabelecendo as políticas de bem estar social.

    A vitória as esquerdas na França foi uma enorme surpresa. Pela primeira vez, a rede de fake news e o uso de algoritmos em processos eleitorais pela ultra direita foram derrotadas. Uma ampla aliança contra os fascistas franceses, contando com o decisivo engajamento de artistas, intelectuais e até os principais jogadores da seleção francesa de futebol, conseguiu furar a bolha das esquerdas e conseguiu falar à população. Ainda assim, a extrema-direita francesa aumentou sua representação parlamentar na Assembleia Nacional.

    Ainda não sabemos como ficará a política na França e no Reino Unido, mas os resultados eleitorais destes dias acendem sinais de esperança. A questão é saber se, no Brasil e em outras partes do mundo, conseguiremos tirar lições valiosas, sobretudo com a experiência francesa.

    O complexo cenário político no Brasil:

    Apesar das boas novas vindas da Europa, tanto a temática ambiental quanto o extremismo político compõem um cenário bastante complicado para as forças democráticas em geral. No Brasil, vivemos uma conjuntura adversa para o mais empobrecidos, os movimentos sociais e as esquerdas em particular. Soma-se a esses fatores o fanatismo religioso e uma direita fisiológica – também conhecida por Centrão – que, mesmo não sendo radical, busca ocupar espaços na estrutura do Estado para se locupletar financeiramente.

    O atual governo recebeu um cenário de terra arrasada ao ocupar o Planalto. A transição de governo foi muito complicada, totalmente diferente daquela ocorrida em 2002, quando Lula venceu sua primeira eleição presidencial. Na Educação, as sinalizações já não eram muito promissoras, havia a pressão do Centrão e na área da Defesa sequer houve equipe de transição.

    A candidatura Lula se formou no espectro de uma frente ampla, com a perspectiva de vencer ainda no primeiro turno. Mas, além de ter que encarar um segundo turno, as esquerdas foram derrotadas nas eleições parlamentares, o que poderia dificultar e muito um eventual governo de centro-esquerda. A nova legislatura não seria apenas a mais conservadora a ser eleita desde o final da ditadura militar, mas também pouco republicana e a mais incivilizada da história da República.

    A situação inicial deste novo governo foi marcada pela sensação de terra arrasada na administração pública federal, sobretudo no campo das políticas sociais, e na área ambiental. Lula assumiu o governo após anos de desmonte da máquina estatal, fruto das políticas de Estado Mínimo praticada pelos governos anteriores.

    Havia ainda uma forte presença de militares na estrutura de alguns ministérios. Se após as eleições de 2018, o vencedor dizia que era necessário “despetizar” o Estado, em 2023 caberia a um governo mais progressista, mesmo de frente ampla, “desbolsonarizar” o aparato de governo.

    Com menos de 10 dias tivemos a invasão das sedes dos poderes da República. Após 17 meses da tentativa de golpe de Estado, os mentores daquela ação tresloucada continuam soltos, sejam civis ou militares. Muita gente foi presa e condenada com justiça. Porém, os verdadeiros inimigos da democracia continuam soltos.

    A força simbólica do retorno ao poder do maior líder popular dos últimos 50 anos, à frente de um extenso leque de alianças para defender a democracia conferiu a Lula um capital político inicial que rapidamente sofreu erosão. A fatura do apoio dado por setores historicamente antagônicos aos movimentos sociais e às esquerdas logo começou a ser cobrada, sobretudo daqueles segmentos da alta burguesia, do capital financeiro e da grande mídia.

    Em poucos meses, a oposição extremista, juntamente com o Centrão, produziram uma rápida deterioração das relações do governo com o Parlamento. Os primeiros tentam instabilizar o governos e acuá-lo. A bancada fisiológica chantageia o governo, liderados pelo presidente da Câmara dos Deputados, ávidos por ministérios, sobretudo os de orçamento, como Educação e Saúde.

    Pouco a pouco se processa certa degradação do patrimônio político de Lula. As soluções encontradas nos dois primeiro mandatos petistas, em conjuntura histórico-social muito diferente da atual, não poderiam ser adotadas novamente. Os desafios são outros.

    Parece que o Poder Executivo tem certa dificuldade em entender com precisão os tempos presentes. Aposta-se demais no carisma pessoal do Presidente da República. Falta coordenação política em uma “Frente Ampla” que se corrói a cada dia. Este não é um governo politicamente forte. Ao contrário, falta às boas inciativas do governo federal articulação entre si para ajudar a sociedade perceber a diferença qualitativa quando comparadas aos dois governos anteriores.

    As contradições de um governo de reconstrução democrática:

    Há entraves na política ambiental. A situação no Vale do Javari e o avanço dos garimpo ilegal em áreas indígenas não foi reduzido a contento. A reforma agrária não anda. João Pedro Stédile classificou como “uma vergonha” as ações do governo neste campo. A agenda da Educação é pautada pelos interesses as fundações do empresariado na área.

    O Brasil não possui uma política de defesa nacional. Não houve sequer transição na área. A linha de ação dos militares brasileiros segue ainda os pressupostos da Doutrina de Segurança Nacional, constituída nos anos 1930, potencializada pela Guerra Fria, que se encerrou há 35 anos.

    Há uma enorme demora na restauração das políticas públicas fundamentais para a população no campo da assistência social e do combate á fome. O preço dos alimentos ainda sangram o bolso dos mais pobres e de frações da classe média. Ainda que se possa responsabilizar certa herança maldita e perversa advinda do bolsonarismo no poder, falta celeridade ao Executivo Federal em recuperar medidas de bem-estar social naquilo que ele pode fazer.

    Muitas vezes se tem a impressão de que o governo está sequestrado pelas pautas do grande capital, pela agenda das corporações da mídia brasileira ou pela voracidade do Centrão sobre verbas públicas federais. Isso é reforçada por medidas de ajuste fiscal anunciadas pelo Ministérios da Fazenda.

    Vendo-se obrigado a ceder às chantagens praticadas pelos  financistas do capitalismo de rapina que se pratica no Brasil e pelo presidente do Banco Central, impõe-se mais uma vez um custo social insuportável à classe trabalhadora brasileira. Os mais vulneráveis pagam a conta de uma fatura que permite ao governo se sustentar precariamente em uma situação profundamente adversa.

    Estes 19 meses são fortemente marcados pela dificuldade em concretizar promessas de campanha. O anúncio de medidas de bem estar social e de aprofundamento da democracia perdeu o simbolismo inicial a força dos primeiros meses de governo. Isso reforça a sensação de redução das políticas públicas a uma agenda de eventos e anúncios de políticas públicas que possuem dificuldades em sair do papel.

    A capacidade dos ministros palacianos em dar conta das articulações políticas do governo e das relações com o Congresso Nacional tem se mostrado discutível. Diferentemente dos mandatos anteriores de Lula, os atuais ministros passaram a maior parte de sua vida política em cargo de gestão no Poder Executivo em estados e municípios. Ou na burocracia partidária.

    Isso explicaria em parte a falta de traquejo político nas relações com a sociedade civil. Nomes como José Dirceu, Luiz Gushiken e Gilberto Carvalho acumularam anos de militância nos movimentos sociais, nos sindicatos e na luta contra o Regime Militar. Lula possuía mais interlocutores que possuíam coragem para interpelá-lo. Hoje, quem faz esse papel?

    Não é por acaso que se acumulam uma sucessão de equívocos no governo federal. A maneira como o Ministério da Educação e o Ministério da Gestão se portou durante a greve dos servidores das universidades e institutos federais é um deles. Há entre professores, após quase três meses de greve, grande sensação de ingratidão com um governo que ajudamos a eleger pelo tratamento dispensado a uma categoria profissional que foi vítima de toda sorte de ataques e mentiras durante quase uma década.

    Há ainda o pequeno orçamento dado a ministérios da área social, vitais para descontruir as narrativas da extrema-direita como Mulheres, Cultura e Direitos Humanos. A comunicação social do governo continua patinando, incapaz de disputar corações e mentes nas redes digitais. Fala apenas aos convertidos.

    No que diz respeito à organização popular, repete-se como mantra a necessidade de voltar às bases. Todavia, a iniciativa petista mais inovadora que se produziu em 2022 nessa direção, os Comitês Populares de Luta, foram quase todos desmobilizados após as eleições.

    Inimigos do governo ou do povo brasileiro?

    Stédile afirmou a necessidade de se defender o governo Lula contra seus grandes inimigos, capital burguês e o grande latifúndio e seus prepostos, como a mídia empresarial. Esta deseja “retucanizar”  o país, e já pensa em alternativas para tal. Mesmo que estas sejam uma versão com bons modos do neofascismo bolsonarista, como Zema ou Tarcísio de Freitas.

    A estes grupos poderíamos acrescentar a maioria no Congresso Nacional que parece disposta a inviabilizar a todo custo o governo federal. Atuam nesse sentido através do orçamento, da intimidação violenta e da incivilidade no trato institucional. Trata-se da necropolítica em estado puro.

    A ainda temos o fundamentalismo cristão, católico e evangélico, promovendo sua intolerância religiosa. Distorcem temas caros à moral cristã, como neste malfadado projeto de lei que pune com mais rigor mulheres vítimas de estupro que estupradores. É a quintessência da necrorreligião com o objetivo imediato de colocar esse tema na agenda das eleições municipais deste ano.

    Foi da necrorreligião que saiu a última tentativa desestabilizar o governo, o Projeto de Lei 1904/24, que pretendia punir as vítimas de estupro com mais rigor que os autores de abusos sexuais. O autor, um pastor de extrema-direita do Rio de Janeiro, foi explícito em dizer que pretendia testar Lula. O presidente da câmara, Arthur Lira colocou esse projeto em regime de urgência para ter mais uma carta na manga para continuar a chantagear o Poder Executivo e obter mais nacos do orçamento federal em nome do Centrão.

    Debaixo da hipocrisia presente na questão está uma tentativa de pautar as eleições municipais de outubro com um tema da agenda moral. Mas a corajosa e decidida reação das mulheres em todo o país foi decisiva para que Lira retirasse o projeto de pauta e o engavetasse.

    A estratégia usada, combinando ações nas redes digitais e protestos de rua, assustou muitos políticos de direita. Foi a primeira vez que se conseguiu furar a bolha e reagir à máquina de desinformação da direita religiosa fundamentalista. Será possível produzir reação semelhante de maneira sistêmica em processos eleitorais?

    Cabe refletir sobre o que significa, em meio há tantas contradições, defender o governo Lula, usando a palavra de Stédile. Não se pode ter apenas a postura de torcida organizada em estádio de futebol. A melhor defesa consiste em ser intelectualmente honesto com os fatos.

    Finalmente…

    Trata-se de uma conjuntura adversa, com uma correlação de forças muito desfavorável aos movimentos sociais e às esquerdas. Por isso mesmo, a melhor defesa é insistir em uma agenda de direitos básicos. É preciso fazer pressão sobre o governo, como lembra Frei Betto ao dizer que política é como feijão, só funciona na pressão.

    Por isso, é urgente e necessário ter a coragem para apontar as contradições de um governo eleito em nome da democracia e dos direitos sociais da população brasileira. Não se pode renunciar a essa dimensão, sob pena de pagarmos todos um preço muito caro nas próximas eleições.

    Boa parte da população brasileira se encontra muito vulnerável pela fome, pela falta de trabalho e pela desesperança de dias melhores. São vitimados pelo racismo das instituições e pelo sexismo das relações sociais. Nos maiores centros urbanos, como no Rio de Janeiro, os mais empobrecidos são reféns do fanatismo religioso, da violência policial, das milícias e do tráfico varejista de drogas.

    É preciso que o Presidente da República saia da redoma em que está. Que escute interlocutores da sociedade civil. É necessário que Lula saia do Planalto para ver de perto como estão os que vivem na planície.

    * Jorge Alexandre Alves é sociólogo,  professor do IFRJ e do Movimento Fé e Política

  • ELEIÇÕES NA CNBB: UMA ENCRUZILHADA ENTRE O PASSADO E O FUTURO

    Jorge Alexandre Alves

    A Igreja do Brasil foi voz relevante em vários momentos na história recente da Igreja e no Mundo. Desde o Concílio Vaticano II, passando por momentos cruciais da história recente do país, não foram poucas a vezes em que o episcopado brasileiro foi “voz dos sem voz”, se colocando sempre em “diálogos pelo Reino”.

    Sua conferência episcopal data dos anos 1950.A inspiração de Dom Hélder Câmara, então bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro e primeiro secretário-geral da nova entidade, foi fundamental para que esta inovação do exercício da colegialidade dos bispos se desse ainda sob o pontificado de Pio XII, antecipando uma das intuições do Concílio. E contou com apoio do então subsecretário de estado do Vaticano,Monsenhor Giovanni Batista Montini, que futuramente se tornaria o Papa Paulo VI.

    Esse pioneirismo foi fundamental para que os bispos do Brasil tenham sido protagonistas na defesa do Povo de Deus e na promoção dos direitos fundamentais do ser humano em nossa terra. A CNBB foi inspiração e suporte para movimentos sociais no campo e na cidade. Esteve sempre em sintonia com o aggionarmento da Igreja, para recordar a feliz expressão do Papa João XXIII.

    Mas isso não se deu sem incompreensões, dentro e fora dos ambientes eclesiais. Nos períodos mais duros dos últimos sessenta anos, ataques tentaram macular  a vida ilibada de alguns de seus mais ilustres homens como Hélder Câmara e Paulo Evaristo Arns.

    Em meio à repressão da Ditadura Militar, a primeira sede da CNBB foi alvo de pichações.Otitular de Nova Iguaçu, dom Adriano Hypólito sequestrado e abandonado nu com o corpo todo pintado de vermelho. O fusca do bispo foi explodido na sede da conferência, ainda no Rio de Janeiro naquele momento.

    Como no passado, o colegiado dos bispos brasileiros sofre com ataques. Da mesma forma que ocorreu com dom Hélder e dom Adriano, alguns dos expoentes do episcopado brasileiro hoje também é acusada de comunismo. Ressuscitam fantasmas para mascarar autoritarismo, intolerância e fundamentalismo religioso.

    Para além da intimidação física, hoje se praticam formas virtuais de violência. Pela terra sem lei da internet e das redes digitais, é perpetrado um verdadeiro massacre a partir de narrativas baseadas em difamações e mentiras veiculadas por aplicativos de mensagens. Nem mesmo a CNBB escapa de tentativas de assassinato virtual de sua reputação.

    A nota triste é que grupos e movimentos que se dizem católicos fazem parte dessa guerrilha digital há algum tempo. Sites e perfis pessoais constantemente atacam a conferência episcopal e bispos que ocupam sua estrutura de organização. No anonimato da internet, contando com robusto aporte financeiro e sob a proteção velada de proeminentes figuras da Igreja do Brasil, tais grupos tiveram destacada atuação na promoção do grande medo que possibilitou a ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil.

    Ao mesmo tempo, estão na linha de frente dos ataques ao Papa Francisco. Quando não atacam pessoalmente o Pontífice, são incansáveis em desqualificar seu magistério e as reformas em cursos que ele dirige. Tanto no plano ideológico quanto no plano eclesial estão articulados em nível internacional com forças que atuam da mesma forma na Europa e na América do Norte.

    Trata-se de um “combo” que mistura falso apego a uma suposta tradição de matriz tridentina e neofascismo que se tornou base de sustentação de extremismo político em nosso país e pelo mundo afora.Eainda disseminam fanatismo religioso através de movimentos, canais digitais, influindo nas paróquias brasileiras.

    Não é à toa que, em muitas dioceses, parcela do clero entende a conferência episcopal como um organismo meramente burocrático, quando não “político”. Nada teriam a acrescentar ao exercício de sua missão presbiteral. Ora, se isso ocorre é porque, mesmo dentro do episcopado, há essa visão a respeito da entidade. Consequentemente, de forma particular entre jovens candidatos ao ministério ordenado, não poucos “torcem o nariz” para o Bispo de Roma, sobretudo quando ele critica o clericalismo e se propõe a colocar a “Igreja em Saída”.

    Trata-se de um contexto que fere de morte o futuro da ação pastoral da Igreja do Brasil. As últimas três décadas mostraram que opções centradas na catarse emocional, em modelos intimistas de espiritualidade, em liturgias centradas nas “rendas da vovó” esvaziaram as maiores inovações pastorais que se produziram após o Concílio. O resultado é percebido no esvaziamento das igrejas e no distanciamento das juventudes, sobretudo nos maiores centros urbanos.

    Isso sem falar no espinhoso tema dos abusos sexuais dentro de nossos ambientes eclesiais. Estamos muito distantes da coragem da Igreja em Portugal, onde um relatório recente indicou quase cinco mil casos de abusos. Basta comparar o tamanho dos dois países e de sua população católica para imaginarmos o tamanho do estrago em potencial que pode estar em curso aqui do outro lado do Atlântico.

    É em meio à essa conturbada realidade eclesial, a delicada situação política brasileira e à oposição intelectualmente desonesta ao magistério do Papa Francisco que se encontram as eleições para a CNBB. Dependendo de quem ocupe as funções-chaves da conferência, neste momento se decide o rumo desta importante instituição católica.

    É provável que a presidência e a secretária-geral da entidade seja disputada por duas importantes movimentos no interior do episcopado. O primeiro seria formado por grupos que gostariam de assumir a conferência para fazer da CNBB um bastião da “volta à grande disciplina”, parafraseando o grande teólogo João Batista Libânio.

    No Brasil não há membro do episcopado que faça oposição pública e explícita ao Papa Francisco, como acontece na Alemanha, na Itália ou nos Estados Unidos. Entretanto, sabe-se que há uma “relutante aceitação” das principais inspirações de seu magistério pontifício. Basta verificar a repercussão dada em nível diocesano aos documentos pontifícios e à questão da sinodalidade da Igreja.

    Se não constituem abertamente um movimento “contra Francisco”, estariam muito mais próximos de uma visão ratzingeriana ou wojtyliana da Igreja. Esses pontificados tiveram seu papel histórico, mas os tempos são outros. Ficar preso ao passado pode fazer a Igreja do Brasil perder o trem da História. São tempos que exigem aprofundar inspirações do Concílio Vaticano II que ainda não ecoaram junto ao Povo de Deus.

    Ao mesmo tempo, fariam da conferência episcopal espaço de oposição ao atual governo federal. Um ensaio já foi feito quando um grupo de prelados fez gestões para que a CNBB emitisse a nota cobrando pela revogação de normativa sobre direitos reprodutivos instituída pelo governo anterior.

    Aqui se misturam o processo eleitoral na entidade dos bispos com ou outros elementos. Um deles reside na cosmovisão de uma rica e poderosa organização católica. Surgida no tenebroso ambiente do fascismo europeu, deu suporte a regimes autoritários que perduraram por décadas na Europa, bem como a golpes de estado na América do Sul. Já teve mais espaço e gozou de status privilegiado em pontificados anteriores. Recentemente perdeu espaço em outra conferência nacional ligada à Igreja.

    Outro elemento reside nas sucessões episcopais de importantíssimas dioceses brasileiras que avizinham nos próximos anos. Alguns prelados têm procurado maior protagonismo nos ambientes episcopais, assumindo a bandeira dos “valores inegociáveis”, pressionando a CNBB nesse sentido. Dessa forma, se tornariam fortes candidatos para as futuras sedes vacantes que virão.

    Há uma candidatura em pleno vapor deste movimento “mais wojtyliano e menos franciscano”. Inclusive, há informes afirmando que o candidato faz o chamado “corpo a corpo” com outros bispos. Sua trajetória, embora marcada por uma ascensão meteórica na hierarquia católica, é marcada por fatos obscuros neste percurso, como uma acusação de racismo religioso quando ainda era bispo-auxiliar.

    Por outro lado, há um outro movimento que entende que é necessário resgatar elementos do Vaticano II que ainda não foram totalmente implementados na Igreja. Tem a mesma urgência histórica em desencadear reformas na Igreja e estão totalmente em sintonia com o magistério de Francisco sua proposta de uma “Igreja em Saída” a partir de uma perspectiva sinodal.

    É constituída por um grupo de bispos que tenta manter a chama acesa da profecia. Dom Hélder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga são exemplos de bispos que lhe servem de inspiração. Procuram se manter longe de afetações e clericalismos, procurando construir uma Igreja pobre para os pobres.

    Seria simbolicamente significativo que uma figura como Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus pudesse estar à frente da CNBB pelo próximo quadriênio. Mas há um impedimento por causa da idade do cardeal da Amazônia, que faria 75 anos no meio do seu mandato. Isso poderia ser contornado, mas ao que parece, forças contrárias atuaram no “tapetão” para que Roma não autorizasse uma exceção.

    A secretaria geral é uma função estratégica na estrutura da CNBB, porque a conduz em seu cotidiano. Há um bispo experiente nessa função, porque já a executou com propriedade em Moçambique. Foi bispo no norte do país, na região mais pobre daquela nação.

    Desempenhou seu ministério entre a solidariedade e a promoção aos marginalizados e aos excluídos. Com coragem e profecia, não se intimidou diante das ameaças dos extremistas islâmicos do Boko Haram e suas ações terroristas, colocando a própria vida em risco. Francisco, temendo por sua vida, o transferiu para uma diocese brasileira.

    Talvez seja o nome certo para a hora. A CNBB precisaria de um secretário geral com essa coragem. Para quem já lidou com jihadistas, não seria tão complicado para ele lidar com “catolibãs” em território nacional. Neste quadrante da história, a experiência de quem foi missionário e bispo na África acrescentaria muito a conferência episcopal brasileira.

    Contudo, as eleições na CNBB será, como sempre foi, decidida por uma maioria de bispos que poderíamos chamar de moderados. Em décadas passadas, a vida de verdadeiros pastores(como Luciano Mendes de Almeida, Fernado Gomes, José Gomes, Mauro Morelli, AngélicoBernardino, Waldir Calheiros, Vital Wilderink, Antônio Fragoso, Ivo Lorscheiter, José Maria Pires, Jayme Chemello, Marcelo Pinto Carvalheira, Aloísio Lorscheider, Moacyr Grechi, Adriano Hypólito, Paulo Evaristo Arns, Cláudio Hummes, Tomás Balduíno, ErwinKräutler entre tantos outros) foi decisivo para a bela trajetória que a CNBB construiu.

    Hoje, neste imbricado xadrez episcopal, se começa a decidir o futuro da Igreja do Brasil. Que o testemunho destes verdadeiros homens de igreja do passado seja inspiração na hora de eleger os futuros responsáveis pela CNBB. E que seu legado conduza a assembleia episcopal reunida em Aparecida nos caminhos do diálogo pelo Reino de Deus.

    *Jorge Alexandre Alves é sociólogo católico e membro no Movimento Nacional Fé e Política.

  • Pedro A. Ribeiro de Oliveira
    A Igreja Católica do Brasil está rachando.

    “No quadro de perda de importância da Igreja na sociedade, muitos clérigos aderem ao ideário neofascista e assumem uma postura reacionária tanto nas questões da sociedade quanto da religião. Embora essa adesão seja mais visível entre os padres e mais discreta entre os bispos, aí reside o risco de ruptura da comunidade católica: quando um lado não reconhece o outro como legitimamente católico. Não há mais como costurar o tecido religioso rasgado. Tudo que se consegue fazer hoje é colocar remendos, que cedo ou tarde esgarçarão mais ainda o tecido”, analisa Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, publicado originalmente em IHU, 11 nov. 2022. .

    Eis o artigo.

    Entre os muitos estragos causados pelo recente processo eleitoral está o agravamento do dissenso no interior da Igreja Católica. É como se os remendos que já há algum tempo vinham sendo colocados sobre um tecido esgarçado revelassem de uma hora para outra sua inutilidade. Não há mais como esconder: a Igreja Católica está dividida e essa divisão não pode mais ser disfarçada.

    Quero aqui sugerir uma explicação sociológica para esse fato e apontar um caminho para quem quer se manter dentro da Igreja sem precisar fazer de conta que está num ambiente de irmãs e irmãos na fé.

    Bem sabemos bem que a Igreja Católica se distingue entre as Igrejas cristãs por sua enorme capacidade de conviver com as diferenças religiosas. Desde que tenha sido batizada e não renegue publicamente a fé ou a igreja, a pessoa é católica – pouco importando o que crê ou sua maneira de relacionar-se com o sagrado. O fato novo, agora, é que o avanço neofascista na Igreja trouxe divergências de ordem moral e política incompatíveis entre si, tornando praticamente impossível uma verdadeira comunhão eclesial. Sinal disso é a crescente disseminação de rituais do tempo de Pio XII, como se o concílio Vaticano II não tivesse existido.

    Mais do que uma afinidade afetiva entre a postura política neofascista e os ritos anteriores à reforma litúrgica, existe uma afinidade estrutural entre eles. O que os une estruturalmente é a rejeição à última inovação da modernidade: o ascenso social das mulheres minando o sistema familiar fundado no patriarcado. É o próprio sistema de poder masculino – chefe de família ou chefe de igreja – que se esvai, obrigando todos os demais componentes a redefinirem seu papel.

    Como se isso fosse pouco, vem à tona toda a questão da sexualidade, agora vista sob o prisma das teorias de gênero e assumida pela bioética que não se deixa reger por normas religiosas. O ideário patriarcal, que sustentou tanto a organização familiar quanto a principal Igreja do Ocidente, encontra-se agora sob ataque não só do feminismo, mas também de outros movimentos libertários, decoloniais e contra o supremacismo.

    Diante desse ataque, o elo entre o neofascismo e o enrijecimento da liturgia tridentina cria um movimento propriamente reacionário: ambos se colocam em defesa de um sistema de poder cujas bases estão irremediavelmente abaladas. Aí reside sua afinidade estrutural. Nem um nem outro apresenta algum projeto de futuro: ambos idealizam um passado que nunca existiu e infundem o medo ao futuro assombrado por um fantasma comunista. O período eleitoral e os movimentos golpistas posteriores ao resultado do 2º turno mostraram o quanto esse medo foi difundido em diferentes segmentos da população brasileira, entre os quais destaco os católicos que migraram do movimento carismático para o tradicionalismo.

    No campo católico, esse movimento reacionário veio aprofundar o dissenso que já estava em curso numa Igreja em processo de encolhimento, como mostram as celebrações dominicais cada vez mais esvaziadas de fiéis. O censo demográfico certamente mostrará o decréscimo da população católica com menos de 40 anos de idade, seguindo a tendência apontada pelo censo de 2010.

    A Igreja Católica ainda se mantém como espaço de sociabilidade da população acima de 50 anos, mas esta diminui com o tempo. Mas, em vez de criar novos espaços de sociabilidade – como são as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais Sociais –, o clero aposta em celebrações-espetáculo, em programas religiosos na TV, em turismo religioso e em programas radiofônicos de autoajuda. Mantida essa tendência, dentro de mais algum tempo a Igreja Católica brasileira, confinada aos santuários, templos e sacristias, terá perdido a incidência na vida da população em geral.

    Nesse quadro de perda de importância da Igreja na sociedade, muitos clérigos aderem ao ideário neofascista e assumem uma postura reacionária tanto nas questões da sociedade quanto da religião. Embora essa adesão seja mais visível entre os padres e mais discreta entre os bispos, aí reside o risco de ruptura da comunidade católica: quando um lado não reconhece o outro como legitimamente católico. Não há mais como costurar o tecido religioso rasgado. Tudo que se consegue fazer hoje é colocar remendos, que cedo ou tarde esgarçarão mais ainda o tecido.

    Posso ter pintado esse quadro com tintas fortes, mas ele é real. O apoio explícito de padres ao governo agora derrotado e o silêncio da maioria do episcopado diante das barbaridades por ele cometidas só confirmam a tendência de ruptura no interior da comunidade católica. Isso não significa que estamos às vésperas de um cisma – com a institucionalização de duas igrejas de confissão católico-romana –, mas caminhamos rapidamente para um quadro de desinteresse de um lado em participar da mesma Igreja que o outro. Se o movimento tradicionalista continuar crescendo, os católicos que não o aceitam se afastarão e a Igreja Católica poderá viver o pior dos cenários: sua redução a um conjunto de seitas tradicionalistas.

    Diante desse quadro, é preciso elevar o teor profético da Igreja. Tivemos bispos como Helder CamaraPaulo EvaristoPedro CasaldáligaTomás Balduino e outros que ousaram quebrar a unanimidade de um episcopado silencioso diante de violações aos direitos humanos. Eles devem ser sempre lembrados, para que os bispos e padres que hoje seguem seu exemplo não se sintam como destoantes do conjunto, mas hoje a Igreja Católica já não se entende mais apenas como um espaço de bispos e padres. O movimento histórico de superação do patriarcado entrou também no campo católico onde, desde a segunda metade do século passado, religiosas, leigas e leigos ocupam progressivamente posição de liderança nas comunidades de base, tendo sua autoridade reconhecida pelos fiéis, independentemente de seu reconhecimento canônico. Existe aí um potencial profético que poderá em breve tornar-se a principal fonte de vitalidade pastoral na Igreja Católica brasileira.

    Não é necessário que os/as profetas sejam muitos/as. Basta que sejam pessoas admiradas e respeitadas por sua fidelidade ao Evangelho, por sua prática pastoral e por sua adesão às orientações de Francisco. Serão essas as vozes proféticas que suscitarão novas forças ao Povo de Deus que está no Brasil. Essas vozes proféticas não impedirão a inevitável redução numérica da Igreja Católica no país, mas poderão dar realidade ao antigo sonho das Comunidades Eclesiais de Base, animadas pela Teologia da Libertação e pela leitura popular da Palavra de Deus, como ensina Frei Carlos Mesters. Assim será gerado um novo jeito de ser Igreja: uma igreja libertadora que favoreça a superação do patriarcado e lance as raízes de uma sociedade justa, fraterna e respeitosa da Casa Comum.

    Se assim for, este momento doloroso de divisão eclesiástica pode tornar-se também o momento germinal de uma Igreja atualizada para assumir o projeto de Jesus na história do século XXI.

  • Um 2º turno inesperado?

    Jorge Alexandre Alves*

    Havia uma enorme expectativa em cima das eleições no último domingo. A maioria da população deu uma vitória consagradora ao Luiz Inácio Lula da Silva. Era para ter sido uma noite de festa pelos mais de 57 milhões de votos dados ao candidato do Partido dos Trabalhadores.

    Mas o que se seguiu uma espécie de depressão coletiva que tomou conta dos eleitores do ex-presidente mais popular da história. Houve uma grande frustração, causada pela inesperada quantidade de votos dados ao atual presidente. Os 51 milhões de votos dados a Jair Bolsonaro provocou um inesperado segundo turno.

    O medo se seguiu à depressão. A possibilidade de mais 4 anos deste governo representaria uma espécie de inferno na Terra. Muitas pessoas ficam apavoradas com essa possibilidade. Mas o que foi que provocou esse resultado?

    Ao analisarmos as pesquisas de intenção de voto, Lula teve a votação dentro do possível. É o jogo jogado. Na maioria dos casos, o candidato do PT esteve dentro da margem de erro ou pouca coisa abaixo dela. No caso de Ciro Gomes e Simone Tebet, o resultado correspondeu ao que apontava as pesquisas.

    As maiores disparidades ocorreram nas medições estaduais. Nos três maiores colégios eleitorais do Brasil, esperava-se uma vitória petista para presidente, o que não aconteceu.

    Em São Paulo, Bolsonaro ficou à frente de Lula. No Rio de Janeiro, a vitória do presidente foi muito expressiva. Em Minas Gerais, Lula venceu, mas com uma vantagem menor do que era.

    O candidato bolsonarista ao governo fluminense venceu em primeiro turno, inesperadamente. E no caso paulista, outra surpresa, em dose dupla: O candidato a governador apoiado por Bolsonaro chegou na frente de Fernando Haddad, que liderava as pesquisas e no senado, um ex-ministro do atual governo se elegeu senador, contrariando todas as previsões.

    Ainda assim, a disparidade foi maior no Rio de Janeiro. Se o estado fosse um país, Bolsonaro teria vencido no primeiro turno. Mas o que explica tamanha disparidade nas pesquisas estaduais?

    Preliminarmente podemos dizer algumas coisas: Primeiro, pessoas mais à direita se recusam a participar das medições e isso afeta significativamente a amostragem estatística. Neste caso, é preciso modificar o método.

    A segunda hipótese é algo puramente subjetivo e difícil de mensurar empiricamente: o voto envergonhado. A pessoa declarava voto em um candidato mais por vergonha ou medo de admitir seu candidato in pectore.

    A terceira seria uma onda conservadora que se deu após o debate na televisão. Neste caso, a direita foi muito assertiva em reduzir a quantidade de votos nulos. Ao que parece, nesta reta final houve voto útil para Bolsonaro. Será que isso não indica que o presidente alcançou o seu teto de votos?

    Ainda existe uma última possibilidade. Os eleitores bolsonaristas estariam deliberadamente se recusando a responder as pesquisas. Consequentemente, as pesquisas eleitorais não estariam conseguindo medir a real intenção de votos em Bolsonaro.

    Além disso, a eleição para os legislativos estaduais e a composição do Congresso Nacional não foi boa para o campo popular. Há uma piora ideológica no parlamento. A extrema-direita passou a ser bem representada no parlamento brasileiro.

    Também se previu o derretimento do Centrão, que aconteceu parcialmente. Mas a centro-direita fisiológica perdeu espaço para a extrema-direita. As esquerdas todas somadas têm 125 deputados. É uma bancada um pouco menor que a da atual legislatura.

    O caso do Rio de Janeiro é mais complexo. Talvez em território fluminense tenha ocorrido a tempestade perfeita para a direita. E ela pode ter sido decisiva para que a eleição para presidente não tenha se resolvido no último domingo.

    Neste caso funcionou com maestria a combinação de três elementos perversos. O primeiro deles foi o fundamentalismo religioso. Em termos sociológicos, trata-se da necrorreligião que oferece sustentação à necropolítica.

    Na prática, foi a força do púlpito nos cultos evangélicos e nas missas dominicais nas periferias do Rio de Janeiro e na Região Metropolitana. Há relatos de campanha eleitoral feita abertamente nas portas de algumas paróquias situadas na Zona Oeste da capital fluminense.

    O segundo elemento é a presença intimidadora de milícias e de traficantes evangélicos nas favelas, morros e conjuntos de residência populares. Não sabemos que “meios de conscientização” podem ter sido usados para persuadir as pessoas que vivem nestes territórios.

    Campanhas de esquerda foram praticamente banidas da Baixada Fluminense e das periferias da Região Metropolitana. Houve uma grande queda nos votos nulos e a abstenção se reduziu um pouco. Terá relação com uma possível intimidação eleitoral nestas regiões? Mais uma vez, a máquina de fakes news foi eficiente. Áudios e vídeos afirmando que Lula e as esquerdas querem acabar com o Cristianismo viralizaram pelos grupos de aplicativos de mensagens.

    Além disso, houve um vídeo que vinculava Lula a uma facção do tráfico de drogas. O TSE suspendeu o material no YouTube, mas ao que parece, o estrago foi inevitável em plataformas como Telegram e WhatsApp, mais difíceis de serem fiscalizadas pela justiça.

    Mesmo considerando que Lula será vitorioso no segundo turno, algumas coisas estão muito evidentes. Os movimentos populares e as esquerdas desenvolveram novas formas de militância nos centros urbanos (pautas identitárias, por exemplo), mas perderam capilaridade social nas periferias das periferias.

    Essas eleições reforçam a sensação de implosão dos marcos estabelecidos na CF-1988 e pela Nova República. Da chamada modernização conservadora que caracterizou a redemocratização brasileira, ficou o conservadorismo.

    A modernização liberal no campo dos costumes e no avanço dos direitos humanos sofreu grande revés, sobretudo junto aos mais pobres e nas periferias. A direita ideológica se consolida no extremismo, sobretudo no campo dos costumes. Movimentos sociais e partidos de esquerda falam aos convertidos, dentro de sua própria bolha.

    A extrema-direita atua politicamente como se estivesse em guerra. São os neocruzados do Século XXI. E eles têm clareza disso. Sentem-se soldados de uma guerra contra o mal. Por isso são capazes de tudo em nome do que defendem. Por isso são tão perigosos.

    Neste momento conseguiram provocar aquela ressaca política no eleitorado de esquerda com o resultado das eleições. Cabe refletir se isso não foi intencional. Durante o ano todo, o presidente, seus ministros, parcela da cúpula militar e os seus seguidores questionaram as urnas eletrônicas.

    Às vésperas, os questionamentos desapareceram como que por magia. O Exército não detectou nenhuma anormalidade e sequer pediu explicações ao Tribunal Superior Eleitoral. No dia da eleição, algumas redes bolsonaristas propagavam vitória no primeiro turno.

    Com os resultados, passaram a questionar as pesquisas. Mas será que todo esse quiproquó não foi proposital? Parece um movimento típico da guerra híbrida. Uma tática militar de atacar em pinça para deixar o inimigo vulnerável. Atacar as urnas para forçar as esquerdas a posicionar-se contrariamente.

    Depois, questionar as pesquisas para deixar o campo popular cambaleante e de ressaca com o resultado eleitoral. Em seguida, fazer todo mundo duvidar da efetividade das pesquisas e perder a referência em relação às estratégias de campanha. Fiquemos atentos. Esta disputa eleitoral pode ser comparada a várias coisas. Mas é também um jogo de xadrez.

    Portanto, o primeiro turno das eleições nos mostra que o fenômeno que ficou visível no processo eleitoral de 2018 não terminou. A extrema direita não desaparecerá com uma provável derrota de Bolsonaro.

    Mas, apesar da grande importância dos grandes apoios, quem decidirá essa eleição serão as pessoas comuns, como você ou o autor destas linhas. O ditado afirma que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Em tempos onde a cadela do fascismo está a solta, fiquemos vigilantes.

    *Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor do IFRJ. Faz parte do Movimento Nacional Fé e Política.

  • Jorge Alexandre Alves –
    A Guerra Híbrida do Brasil

     

    A Guerra Híbrida do Brasil
    Por Jorge Alexandre Alves*
    Na semana passada o multimilionário Elon Musk esteve no Brasil. Foi recebido pelo núcleo duro do governo brasileiro sob um pretexto qualquer. O empresário é visto como um dos expoentes da extrema-direita no mundo

    Na esdrúxula visita, sob o disfarce da conectividade de escolas rurais na Amazônia, o que mais saltou aos olhos foi a presença de membros de alto escalão das Forças Armadas do Brasil. Segundo consta, o comandante da Aeronáutica ofereceu a Base de Alcântara (Maranhão) para lançamento de foguetes de Elon Musk.

    Quase ao mesmo tempo, a imprensa noticia uma espécie de um plano estratégico que projeta uma visão de país para o ano de 2035. Os principais artífices dessa iniciativa são militares, oficiais generais que até pouco tempo foram protagonistas dos mais importantes eventos políticos do país.

    De uma maneira geral, fica evidente tanto em um quanto no outro evento os esforços de setores da inteligência militar brasileira em refundar o Estado Brasileiro sob novas bases. Para que isso ocorra, é necessário desmontar os pilares da democracia estabelecida nas origens da Nova República.

    Não há espaço para políticas de bem-estar social e tampouco para mudanças estruturais na sociedade pelas vias institucionais, através de iniciativas de governo e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito. O que esses militares projetam é um futuro com direitos reduzidos para a classe trabalhadora.

    Não é à toa que eles projetam a cobrar por serviços médicos no SUS e a instituir mensalidades nas universidades públicas. Aliás, a comunidade científica brasileira é vista como parte de um ambiente ideologicamente contaminado, que precisa ser reconquistado por estes segmentos

    Portanto, a destruição do aparato estatal brasileiro em seus padrões atuais não é fruto da sanha bolsonarista e de seus asseclas. Na verdade, trata-se de um projeto muito maior do qual o atual presidente sequer é protagonista, mas sim um mero ajudante-de-ordem, que se presta a fazer o serviço sujo diante dos olhos estarrecidos da sociedade civil.

    Em outros termos, presenciamos dia após dia um teatro de operações militares cuja a lógica é distinta das guerras convencionais de outrora. Se tal estratégia for bem-sucedida, nem os carcomidos tanques vazando óleo e fumaça dos exercícios militares de 2021 serão necessários para consolidar o tipo de dominação que este estamento deseja.

    Bolsonaro é operado por outros atores sociais – o alto oficialato das forças armadas – para os quais faz apenas o papel de espantalho. A tese aqui defendida não é uma criação pessoal, mas fruto da análise de quem talvez seja o maior pesquisador das instituições militares no Brasil, o antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Paulo.

    Mas Leiner não está só em suas análises. O coronel da reserva do Exército, Marcelo Pimentel, também aponta que há temerária promiscuidade entre um grupo de oficiais-generais e a política no Brasil.

    Feito este destaque, parte-se do pressuposto segundo o qual existe um consórcio de militares (oficiais generais) da ativa e da reserva agindo como se estivesse em um teatro de operações de guerra – que seria a web e as instituições. Eles são responsáveis por desencadear uma guerra híbrida no Brasil, contra os interesses nacionais.

    Esta iniciativa tem como fundamento elementos anacronicamente vinculados à Guerra Fria, como o anticomunismo e a suposta existência de um marxismo cultural presente sobretudo nos meios de comunicação e na educação. Por isso a enorme desconfiança em relação aos ambientes universitários brasileiros.

    Além disso, eles agem baseados na ideia de que existiria um inimigo interno agindo contra os interesses da pátria. Diante do que estamos passando atualmente, cabe questionar quem, de fato, seriam os inimigos internos do Brasil.

    Dessa forma, Bolsonaro é operado por eles desde antes de vencer as eleições. Embora o presidente tenha construído uma base social, ele se sujeitou a virar um fantoche destes generais em troca de nacos de poder e de impunidade para suas diatribes.

    Portanto, estaríamos em meio a uma tentativa de domínio do espectro total através de operações de natureza psicológica, usando e abusando de mensagens ambíguas. Por isso que neste cenário pré-eleitoral, vemos segmentos das Forças Armadas criando dificuldades para vender facilidades em troca.

    Este estado de coisas passaria pela manutenção de seus privilégios de estamento militar. Também incluiria negociações para que militares fossem mantidos na estrutura do Poder Executivo – tutelando as instituições de governo, reproduzindo certo padrão de nossa história republicana, cujo o período pós-1988 é uma exceção.

    Em termos geopolíticos, a pressão deste consórcio de generais ocorreria com a intenção de afastar o Brasil dos BRICS. Isso seria fundamental – articulado aos interesses dos Estados Unidos – para evitar nossa participação nos processos internacionais de “desdolarização” da economia internacional, capitaneados pela aliança China/Rússia e acelerados pela guerra na Ucrânia.

    Em outras palavras, seria impor o realinhamento da política externa brasileira às demandas dos norte-americanos, incluindo abrir mão de nossa soberania, como já ocorre na exploração do Petróleo. Também seria fazer o país renunciar ao seu papel de “soft power” do Sul Global e de liderança na América Latina.

    Internamente, é bastante razoável que entre na mesa de negociação a não revogação dos elementos da chamada reforma do Estado já impostos ao país (trabalhista, previdenciária e BNCC/Novo Ensino Médio). Ao mesmo tempo, certamente tentarão anistiar militares envolvidos na desastrosa gestão da pandemia, sobretudo quando o General Pazuello esteve à frente do Ministério da Saúde.

    Logo, o que temos no horizonte é uma reconfiguração das instituições republicanas de forma subliminar, sem a necessidade de governos explicitamente militares, como ocorreu na ditadura de 1964. O objetivo de longo alcance da Guerra Híbrida desencadeada por este consórcio de altos oficiais é criar uma espécie de “Deep State” Tabajara.

    Seria inspirado no que representa o Pentágono e as agências de segurança (CIA, NSA e FBI) nos Estados Unidos. Portanto, existe uma agenda de interesses do estamento militar a ser posta em prática. Alguns dos elementos desta agenda possivelmente foram listados nos parágrafos anteriores.

    Dessa forma, não é interessante para este consórcio grandes traumas na política brasileira. Já basta toda a escatologia desenvolvida pelo bolsonarismo. Este funciona na verdade como cortina de fumaça para objetivos mais profundos e como estratégia de ampliação de uma base social que dê sustentação a esse projeto de uma “Nova Ordem Nacional”.

    De imediato, o que desejam é evitar grandes mobilizações dos Movimentos Sociais e criar um clima favorável para que o atual grupo político continue no Poder. O intento é corroer por dentro as instituições. Dessa forma, se tiverem a certeza de que conseguirão manter parte desta agenda, nada farão.

    Talvez, se Lula vencer de forma contundente com uma votação consagradora, sejam obrigados a fazer um recuo tático, para tentar emparedar o futuro governo à frente. Ou pactuar em torno de alguns ítens da pauta do estamento militar. A composição da próxima legislatura no Congresso Nacional será decisiva neste sentido.

    Mas se for uma eleição apertada, tudo é possível. De toda a forma, trata-se de uma versão 2.0 da Lei de Segurança Nacional e da lógica do inimigo interno, presente paulatinamente no discurso da direita na última década, tornando-se explícita a partir da campanha de 2018.

    O mal deve ser cortado pela raiz, diz a sabedoria popular. E as instituições da República foram lenientes demais com a escalada autoritária no país. As mais altas autoridades dos três poderes vieram a público nos últimos anos dizer exaustivamente que as “Instituições estão funcionando normalmente”. Será?

    O que estamos vivendo hoje foi preparado com muita antecedência. Bolsonaro fazia discursos de viés político-partidário em formaturas de cadetes (sobretudo no Exército) há quase uma década. O comando da academia de oficiais deveria ter impedido sua entrada depois do primeiro discurso. Em não fazendo, deveria ser punido pelo comando do Exército por atacar Presidentes da República, comandantes-em-chefe das Forças Armadas.

    Diante dos fatos, é difícil crer que tenhamos oficiais-generais que façam oposição ideológica ao Presidente. Cada vez mais parece haver uma tática militar de dissuasão do inimigo. Tentativa de domínio da totalidade do espectro político.

    A suposta oposição entre uma ala militartecno-racional e uma fração radicalizada e cooptada pelo Bolsonarismo seria um grande jogo de cena, para consumo público. E com a contribuição de parcela da mídia corporativa.

    Aliás, a equação com Bolsonaro é inversa ao que se apregoa na imprensa. Oficiais-generais cooptaram Bolsonaro e não o contrário.Onde Braga Neto esteve no ano de 2018? Como interventor de segurança pública aqui no RJ.

    Antes esteve à frente do Comando Militar do Leste. É muito provável que já tivesse conhecimento do esgoto representado por parcela dos apoiadores da família presidencial. Depois ele vira Ministro de Estado e ocupa duas pastas no atual governo.

    Em seguida, é substituído pelo ex-chefe de Comunicação do Exército exatamente no período em que muitas instabilidades jurídico-políticas preparavam o terreno para 2018. Tudo isso não foi à toa…

    O consórcio militar que paulatinamente tenta tomar de assalto a República não desencadeou uma guerra híbrida contra os interesses do país à toa. Caso o presidente não se reeleja, retornarão aos quartéis ou vestirão o pijama?

    Uma derrota eleitoral será suficiente para devolver certa normalidade democrática e fazer o país retomar o aprofundamento da democracia e restituir direitos recentemente usurpados da população? Será suficiente a força das instituições, para além da destruição da máquina de governo?

    São questões cujas respostas são muito difíceis de serem dadas na atual conjuntura. Mesmo a vitória eleitoral de Lula será capaz de mudar a correlação de forças?

    Uma coisa é certa: não será por dentro das instituições que evitaremos o pior. A eleição de outubro poderá ser a parte mais fácil, talvez a primeira das grandes batalhas pela democracia brasileira no Século XXI.

    *Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor do IFRJ e faz parte do Movimento Nacional Fé e Política.

    REFERÊNCIAS:

    ALVES, Renato. Comandante da FAB oferece base para operações da SpaceX, de Elon Musk. O Tempo. Contagem, 23 Mai. 2022. Disponível em: https://www.otempo.com.br/politica/governo/comandante-da-fab-oferece-base-para-operacoes-da-spacex-de-elon-musk-1.2672592. Acesso em 23/05/2022.

    BARIFOUSE, Rafael. Militares planejam se manter no poder ‘com ou sem Bolsonaro’, diz coronel da reserva.  BBC News Brasil.  São Paulo, 12 Jun. 2021. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57447334. Acesso em 22/05/2022.

    GODOY, Marcelo. Projeto de militares prevêmanter poder até 2035 e fimda gratuidade no SUS em2025. O Estado de São Paulo, São Paulo, 23 Mai. 2022. Disponível em https://www.estadao.com.br/politica/projeto-de-militares-preve-manter-poder-ate-2035-e-fim-da-gratuidade-no-sus-em-2025/. Acesso em 23/05/2022.

    LEINER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

    SOUZA, Marcelo Pimentel Alves. A Palavra convence e o exemplo arrasta. In: Interesse Nacional. São Paulo, Ano 14, n. 54, Jul/Set 2021. pp 43-49. Disponível em: https://interessenacional.com.br/a-palavra-convence-e-o-exemplo-arrasta/, acessado em 23/05/2022.

    ____________. Os fantasmas perdidos de 1964. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/os-fantasmas-perdidos-de-1964/. Publicado em 31/03/2022. Acessado em 22/05/2022.

  • Ariovaldo Ramos: O que falta para a fé proclamada por cada religião ser praticada de fato?

    CONIC – ação global de solidariedade para proteger a Amazônia e seus habitantes

    O que falta para a fé proclamada por cada religião ser praticada de fato?

    Religiões têm conteúdo para defender a paz e a igualdade, mas frente aos imperativos do capital o discurso religioso torna-se mera retórica. Enquanto isso, o meio ambiente aguarda por ações concretas de preservação.

    Por Ariovaldo Ramos | para a RBA, redebrasilatual,  30/04/2022

    Segue o artigo

    Esses dias participei de uma reunião entre religiosos; é sempre bastante educativo e interessante. A marca constante é que todos falam bem da sua religião, que é boa, pela paz, vida e progresso de tudo e de todos, e que amam o planeta.

    É um momento interessante, porque a gente conta um do outro e conhecer é importante, porque quanto mais a gente conhece o outro mais força tem contra quaisquer preconceitos.

    Entretanto, apesar de todas as religiões serem boas, e de todo mundo ser pela paz e pela vida, nós estamos em guerra.

    Guerra militar, econômica, social, religiosa. E os operadores desta guerra são todos religiosos, de um jeito ou de outro. Qualquer colocação sobre Deus é religiosa: dizer Deus existe é religioso, dizer Deus não existe também é.

    Tudo exige a construção de ética. Contudo, isso não tem sido suficiente: as guerras estão aí, os genocídios estão aí.

    No Brasil estamos assistindo ao genocídio dos povos da floresta e a um genocídio pela destruição dos biomas.

    Estamos assistindo a uma guerra econômica, onde os trabalhadores perderam seus direitos, sua aposentadoria, sua seguridade. Os salários foram reduzidos, o trabalho foi precarizado, muito próximo do análogo à escravização.

    Estão todos sendo empobrecidos, expulsos da suas casas e indo morar na rua, e o Estado é absolutamente inoperante porque a guerra também é política, e a maioria dos estados brasileiros está na mão do capital, de uma maneira ou de outra, mesmo aqueles que dizem que não. Sem contar a ascensão do neonazismo.

    E continuamos religiosos. Tem sido assim na história do mundo, tem sido assim história brasileira, nós vivemos quatro séculos de escravização sob o manto da religião.

    A pergunta é: por que, se é verdade que as religiões são todas pela paz, pela vida, pela convivência pacífica e respeitosa, pelo direito de culto e de expressão, não concretizamos, na história, o que cremos, a despeito de todas as mudanças que fomentamos?

    No Brasil, as três festas sagradas, das três grandes religiões monoteístas coincidiram em termos de calendário: os cristãos celebraram a Páscoa; o judeus, a Passagem; e os muçulmanos, o Ramadã.

    Essa coincidência nos desafia a repensar o diálogo religioso, o que fizemos nessa reunião de que participei.

    Mas, parece que algo falta: nossas religiões têm o conteúdo necessário para priorizar a paz e a igualdade, contudo, parece que a fé proclamada não é praticada, talvez, porque os senhores do capital também se impõem às lideranças religiosas, e acabam transformando todo discurso religioso numa retórica que os preserva.

    Necessitamos de um movimento à altura da relevância da fé e da religião.

    Insisto que, juntos, deveríamos trabalhar para que a Constituição brasileira acolhesse o reconhecimento do direito da criação, do direito da natureza, transformando os nossos biomas em sujeitos de direito, determinando defensores desses sujeitos de direito frente ao Judiciário, de modo que, em nome dos biomas, ações pudessem ser levadas ao Judiciário, o que faria com que a luta pela preservação do meio ambiente e contra o genocídio dos povos tradicionais não contasse apenas com a “boa vontade” do executivo ou com anuência do legislativo, mas, também, com ação do Judiciário.

    Alguém dirá que existem leis… Sim, só que essas leis precisam ser cumpridas pelo Executivo e não o são.

    E não se tem como entrar no judiciário em nome da criação, da natureza.

    Há nações indo por esse caminho. Acabei de saber que o Chile, na sua Constituinte, está admitindo o direito da natureza, assim como a Colômbia, que transformou o rio Atrato, que corre na Cordilheira dos Andes, em sujeito de direito para evitar a sua a poluição e destruição.

    E se fosse militância comum às religiões instar o legislativo a consagrar tal direito?

    Daríamos um exemplo extremamente positivo acerca da importância da religião como consciência da sociedade.

     

  • Por um decrescimento ecossocialista

    Por Michael Löwy, Giorgos Kallis, Sabrina Fernandes e Bengi Akbulut, em texto publicado no Viento Sur, 30-04-2022. A tradução é do Cepat para IHU, 04.05.2022.

    Segue o artigo.

    O decrescimento e o ecossocialismo são dois dos movimentos – e propostas – mais importantes do lado radical do espectro ecológico. Evidentemente, nem todos os membros da comunidade do decrescimento se identificam como socialistas, e nem todos os ecossocialistas estão convencidos da conveniência do decrescimento. Mas há uma tendência crescente de respeito mútuo e de convergência. Vamos tentar mapear as grandes áreas de acordo entre nós e listar alguns dos principais argumentos a favor de um decrescimento ecossocialista:

    1. O capitalismo não pode existir sem crescimento. Necessita de uma expansão permanente da produção e do consumo, da acumulação de capital e da maximização do lucro. Esse processo de crescimento ilimitado, baseado na exploração dos combustíveis fósseis desde o século XVIII, está levando à catástrofe ecológica, às mudanças climáticas e ameaça a extinção da vida no planeta. As vinte e seis Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas dos últimos trinta anos manifestam a total falta de vontade das elites dominantes para interromper o curso em direção ao abismo.
    2. Qualquer alternativa real a essa dinâmica perversa e destrutiva deve ser radical, ou seja, deve enfrentar as raízes do problema: o sistema capitalista, sua dinâmica exploradora e extrativista e sua busca cega e obsessiva pelo crescimento. O decrescimento ecossocialista é uma dessas alternativas, em confronto direto com o capitalismo e o crescimento. O decrescimento ecossocialista exige a apropriação social dos principais meios de (re)produção e um planejamento democrático, participativo e ecológico. As principais decisões sobre as prioridades de produção e de consumo serão decididas pelas próprias pessoas, a fim de atender às reais necessidades sociais, respeitando os limites ecológicos do planeta. Isso significa que as pessoas, em diferentes escalas, exercem um poder direto de determinar democraticamente o que deve ser produzido, como e quanto; como remunerar os diferentes tipos de atividades produtivas e reprodutivas que sustentam a nós e o planeta. Garantir o bem-estar equitativo para todos não requer um crescimento econômico, mas mudar radicalmente a forma como organizamos a economia e distribuímos a riqueza social.
    3. Um decrescimento significativo na produção e no consumo é ecologicamente essencial. A primeira e urgente medida é a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, bem como o consumo conspícuo e esbanjador da elite rica do 1%. Desde uma perspectiva ecossocialista, o decrescimento deve ser entendido em termos dialéticos: muitas formas de produção (como as instalações de carvão) e serviços (como a publicidade) devem não apenas ser reduzidas, mas eliminadas; algumas, como os carros particulares ou a pecuária, devem ser substancialmente reduzidas; mas outras precisariam ser desenvolvidas, como a agricultura agroecológica, as energias renováveis, os serviços de saúde e educação, etc. Em setores como saúde e a educação, esse desenvolvimento deveria ser, acima de tudo, qualitativo. Mesmo as atividades mais úteis devem respeitar os limites do planeta; não pode haver uma produção “ilimitada” de qualquer bem.
    4. O “socialismo” produtivista praticado pela URSS é um beco sem saída. O mesmo vale para o capitalismo “verde”, defendido pelas corporações ou pelos principais “partidos verdes”. O decrescimento ecossocialista é uma tentativa de superar as limitações dos experimentos socialistas e “verdes” do passado.
    5. É do conhecimento de todos que o Norte Global é historicamente responsável pela maior parte das emissões de dióxido de carbono na atmosfera. Portanto, os países ricos devem assumir a maior parte do processo de decrescimento. Ao mesmo tempo, não acreditamos que o Sul Global deva tentar copiar o modelo produtivista e destrutivo de “desenvolvimento” do Norte, mas deve buscar uma perspectiva diferente, enfatizando as necessidades reais das populações em termos de alimentação, moradia e serviços básicos, em vez de extrair cada vez mais matérias-primas (e combustíveis fósseis) para o mercado capitalista mundial, ou produzir cada vez mais carros para minorias privilegiadas.
    6. O decrescimento ecossocialista também implica a transformação, mediante um processo de deliberação democrática, dos modelos de consumo existentes – por exemplo, o fim da obsolescência programada e dos bens não reparáveis –; dos modelos de transporte, por exemplo, reduzindo significativamente o transporte de mercadorias por navios e caminhões (graças à realocação da produção), bem como o tráfego aéreo. Em suma, é muito mais do que uma mudança nas formas de propriedade; é uma transformação civilizacional, uma nova “forma de vida” baseada nos valores da solidariedade, democracia, igualdade-liberdade e respeito pela Terra. O decrescimento ecossocialista sinaliza uma nova civilização que rompe com o produtivismo e o consumismo, em prol da redução do tempo de trabalho e, portanto, de mais tempo livre dedicado às atividades sociais, políticas, recreativas, artísticas, lúdicas e eróticas.
    7. O decrescimento ecossocialista só pode vencer através de um confronto com a oligarquia fóssil e as classes dominantes que controlam o poder político e econômico. Quem é o sujeito desta luta? Não podemos superar o sistema sem a participação ativa da classe trabalhadora urbana e rural, que compõe a maioria da população e já está sofrendo o peso das mazelas sociais e ecológicas do capitalismo. Mas também temos que ampliar a definição da classe trabalhadora para incluir aquelas parcelas da população responsáveis pela reprodução social e ecológica, as forças que estão agora na vanguarda das mobilizações ecossociais: as jovens, as mulheres, os povos indígenas e as mulheres camponesas. Uma nova consciência social e ecológica emergirá através do processo de auto-organização e resistência ativa das exploradas e oprimidas.
    8. O decrescimento ecossocialista faz parte da família mais ampla de outros movimentos ambientais radicais e antissistêmicos: o ecofeminismo, a ecologia social, o Sumak Kawsay (o “Bem Viver” indígena), o ecologismo dos pobres, a Blockadia, o Green New Deal (em suas versões mais críticas), entre muitos outros. Não buscamos nenhuma primazia, apenas pensamos que o ecossocialismo e o decrescimento têm um marco diagnóstico e prognóstico compartilhado e poderoso para oferecer a esses movimentos. O diálogo e a ação comum são tarefas urgentes na dramática conjuntura atual.
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