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Pensamento crítico: a última vítima do Coronavírus –
Por Miguel Borba de Sá

Diante de uma pandemia cujo alcance global é trágico, uma vítima fatal, pouco mencionada, tem sido o pensamento crítico.

 

Por Miguel Borba de Sá*

Diante de uma pandemia cujo alcance global é trágico, uma vítima fatal, pouco mencionada, tem sido o pensamento crítico. Isto é gravíssimo, pois também pode custar vidas. Espremidos entre o consenso midiático-tecnocrático rapidamente construído, de um lado, e o ceticismo irresponsável da extrema-direita, de outro, a intelectualidade progressista parece não encontrar espaço para articular uma posição própria, capaz de interrogar a narrativa liberal dominante e, ao mesmo tempo, rechaçar as contra narrativas reacionárias. No Brasil, tal situação atinge seu ápice em meio ao complexo quadro político atual, fazendo com que toda atitude questionadora da versão midiática corra o risco de ser interpretada como simpática ao obscurantismo de Jair Bolsonaro. O resultado é que aqueles que normalmente poderiam levar a cabo a tarefa de exercitar o pensamento crítico, em um momento tão grave, terminam acanhados, temerosos ou mesmo capitulando por completo frente ao senso comum douto – notadamente neoliberal, vale dizer – contribuindo, assim, para um virtual monopólio da crítica pelos setores mais raivosamente conservadores da sociedade.

Até poucos anos atrás, uma pichação na rua com os dizeres “A GLOBO MENTE” seria certamente obra de algum grupo de esquerda. Hoje em dia, contudo, não é mais possível saber de antemão quem veicula tal mensagem, pois há um crescente movimento da direita radical que agora se apropria de críticas tradicionais dos setores anti-capitalistas, antirracistas e anti-patriarcais, dando-lhes um novo significado, é claro, de acordo com sua agenda política. A grande imprensa não representa o único caso de disputa, ou mesmo sequestro, das pautas políticas progressistas pela chamada ‘nova direita’. Alvos notórios como os organismos internacionais e os processos de globalização (alcunhados de globalismo) são agora atacados com contundência pelo flanco oposto, gerando perplexidade e certa confusão ideológica nos setores que tradicionalmente capitaneavam seu questionamento. O resultado, em muitos casos, parece ser uma defesa automática daquilo que antes era criticável, quase como um instinto automático e irrefletido, na tentativa de se contrapor aos perigos evidentes que a agenda reacionária – explicitamente autoritária e belicosa – apresenta.

Infelizmente, tal gesto não parece surtir o efeito defensivo esperado. Pior ainda, alimenta agendas políticas igualmente violentas e exploradoras (ainda que mais dissimuladas), aprofundando, assim, a regressão ideológica entre os setores progressistas. Neste processo, acaba-se privando os setores em luta e as camadas da população mais exploradas e oprimidas de uma nítida direção moral e intelectual que lhes permita distinguir adequadamente aliados de adversários. É urgente resistir a este verdadeiro eclipse do pensamento crítico instalado com rapidez fulminante em meio à crise do Coronavírus. Caso não recuperemos a nossa capacidade de articular uma posição própria, continuaremos reféns de agendas alheias e incapazes de interferir nos rumos da política durante e após o fim desta pandemia, quando possivelmente será tarde demais para recuperar aquilo que está sendo entregue com assustadora facilidade agora. Três dimensões precisam ser imediatamente enfrentadas: a aceitação acrítica das narrativas da imprensa corporativa; a condução da sociedade por ‘especialistas’ nas ciências naturais; e, por fim, a instalação progressiva de medidas cerceadoras de liberdade rumo a um verdadeiro estado de exceção global.

Os conglomerados midiáticos na crise do Coronavírus

Se algo soa estranho, não é preciso calar-se ou desviar o olhar somente porque alguém ainda mais estranho também o percebe e o denuncia em voz alta. Menos ainda tornar-se cúmplice ou correia de transmissão de práticas discursivas, no mínimo, duvidosas. A cobertura da grande imprensa é um desses casos nos quais o pensamento crítico parece ter sucumbido ao dilema anteriormente descrito. É um erro tático de grandes proporções deixar que questionamentos óbvios sejam feitos publicamente somente por figuras como Bolsonaro, ainda que todos nós em nosso íntimo nos vejamos por vezes indagando coisas similares. A mais óbvia de todas é: por que tamanha atenção não é –  nunca foi – destinada a outras causas de morte tão graves quanto a pandemia atual ou (pelo menos até o momento) severamente mais letais que o Coronavírus? Não devemos ter medo de perguntar isso. Bolsonaro o faz por motivos mesquinhos e político-pessoais. Nós devemos fazê-lo por razões mais nobres: a busca da verdade e, principalmente, daquilo que está sendo encoberto pela atual cobertura monotemática e descaradamente indutora de pânico social. Se o atual presidente é cínico, os veículos da mídia corporativa também o são. E isso não podemos esquecer.

Alguém consegue imaginar uma similar contagem de casos e mortos por alguma outra razão – digamos, fome – sendo realizada diariamente, com placares eletrônicos transmitindo sua progressão em tempo real? “Hoje o número de mortos por câncer no mundo atingiu seu recorde”; “esta semana os feminicídios no Brasil superaram os de outros países”; “estima-se que tantos milhões de venezuelanos e iranianos irão morrer nas próximas semanas em decorrência das sanções unilaterais impostas pelos EUA”… Nada disso é imaginável, pois nos levaria a colocar em questão a indústria de agrotóxicos, a violência machista e a letalidade da política imperialista, respectivamente. Em outras palavras, traria nossa atenção para relações sociais mortíferas, de classe, gênero e raça. E isso a Globo não mostra.[1]

Não se trata de subestimar os efeitos e riscos da atual pandemia. No momento atual, isto seria leviano, deveras irresponsável. Mas perguntar por que essa causa mortis tem recebido uma atenção desproporcional da grande imprensa é uma tarefa que não podemos abandonar, menos ainda deixar de graça para nosso pior adversário. No Brasil, mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano, todos os anos.[2] São seres humanos mortos por outras pessoas, por razões sociais, não por razões biológicas per se. Este número deveria chocar, assustar, alarmar e fazer com que tomemos grandes iniciativas de escala nacional para diminuí-lo drasticamente. Mas não o fazemos, em parte porque a imprensa não nos apresenta isso como deveria. Há uma subnotificação brutal dos números de assassinatos da juventude negra e periférica pelas polícias em todo o país, mas não vemos alarde midiático sobre isso. Quantas mulheres sofrem abusos sexuais e violência domestica a cada hora, ou minuto?[3] Tais temas não se tornam emergência; em grande medida passam despercebidos. Em meio à cobertura monotemática da pandemia atual há indígenas sendo assassinados e quilombolas sendo expulsos de suas terras (para dar lugar a uma base militar). Onde estão as câmeras nestes casos? Onde está a cobertura diária da grande mídia dos alertas científicos contra o aquecimento global, as vidas que já ceifou e as que seguirá inviabilizando?

Por isso, em vez de ficar espremidos entre a cobertura oficial e a narrativa oficialista, temos a obrigação de seguir colocando os números e temas em perspectiva, tanto histórica quanto em relação a outras causas de morte, principalmente aquelas ligadas a relações sociais capitalistas. No mundo, 820 milhões de pessoas passam fome diariamente, segundo a FAO[4] e entre 300 a 650 mil morrem anualmente por gripes, segundo a OMS.[5] A própria FAO parou de publicar este tipo de dados (algo que também deve ser questionado), mas da última vez que o fizeram a estimativa era que 25 mil pessoas morriam de fome por dia, em todo o planeta, contabilizando uma cifra maior do que HIV/Aids, malária e tuberculose juntas.[6] A maior causa deste verdadeiro holocausto nutricional é o preço dos alimentos: um problema de distribuição de riqueza, portanto. Façamos as contas: são 17 pessoas morrendo a cada minuto, vítima de algo para o qual existe uma ‘vacina’ bem conhecida: comida. Seria ótimo se este escândalo humanitário obtivesse a atenção que merece, pois isto provavelmente impulsionaria uma resposta eficaz e até mesmo preventiva, como vemos agora. No entanto, só os pobres morrem de fome.

Isto não significa subestimar os perigos do Coronavírus, nem endossar a estupidez que o considera uma “gripezinha”, mas colocar em evidência as relações sociais de poder que produzem subnutrição e morte, além da falência de sistemas de saúde – crescentemente privatizados – ao redor do planeta que se tornam incapazes de lidar com gripes e doenças de todos os tipos. No mínimo, deveríamos exigir dos meios de comunicação que nos informem sobre tais números e calamidades na mesma medida em que o fazem com a pandemia atual. Se não o fazem, deveríamos cobrar respostas para os motivos de tal omissão, para tamanha distorção da informação sobre o mundo em que vivemos – e os demais motivos pelos quais morremos.

Até o momento em que escrevo estas linhas, a epidemia do Coronavírus ceifou a vida de cerca de 30 mil pessoas ao redor do planeta, em seis meses, infectando cerca de 900 mil. Estes números são assustadoramente similares aos da epidemia de Cólera no Haiti, país de apenas 10 milhões de habitantes. Aquela doença, por sinal, foi introduzida por tropas internacionais da intervenção militar da ONU (entidade que nunca devemos parar de criticar) e liderada pelas forças armadas brasileiras durante todos os seus 13 anos de duração: alguma vez vimos uma contagem diária das vidas haitianas perdidas por uma enfermidade trazida de fora, justamente por aqueles que se diziam seus salvadores humanitários? Não. As Nações Unidas assumiram a responsabilidade pela introdução da bactéria? Não. E sabemos bem o porquê. Tais vidas – vidas negras e distantes – simplesmente importam pouco para nossa grande mídia corporativa quando não servem para legitimar uma militarização. Por outro lado, tivemos contagens em tempo real das levas de imigrantes haitianos que entravam diariamente no Brasil, com coberturas assustadoras sobre a “invasão haitiana” em curso…[7] É de se imaginar o que seria feito caso fossem estes imigrantes que tivessem trazido esta pandemia da Covid-19 para nosso país. A lição que fica, é que não podemos abandonar nossa desconfiança quanto a mídia corporativa, suas agendas políticas, sua seletividade, seu elitismo racista e patriarcal. Se a preocupação da grande imprensa fosse mesmo com vidas, estaríamos em uma situação bem melhor, inclusive para enfrentar a grave pandemia atual.

Os ‘especialistas’ de plantão e a defesa da sociedade contra um inimigo invisível

O discurso tecnocrático, que supõe haver uma solução técnica para todo problema social, sempre foi objeto de contundentes críticas por parte dos setores progressistas. Afinal, em nome do saber inquestionável de ‘especialistas’ em cada área (crescentemente compartimentadas), políticas transmitidas como inquestionáveis foram constantemente impostas à classe trabalhadora sob a rubrica do ‘necessário’ e do ‘inevitável’. Esta atitude é típica do neoliberalismo, que busca convencer-nos de que “não há alternativas”, segundo a famosa frase de Margareth Thatcher. Especialistas em previdência afirmam que é preciso cortar direitos; especialistas em segurança pública tem certeza que é preciso aprofundar a belicosidade das ações policiais; especialistas em direito constitucional, há pouco tempo, afirmavam que era preciso destituir uma presidenta por ‘pedaladas fiscais’. Não por acaso, sempre desconfiamos.

O problema é mais amplo e antigo. Em nome da ciência e de boas intenções, os impérios europeus realizaram sua colonização: o racismo científico de fins do século XIX forneceu a base ‘racional’ da missão civilizatória, ao garantir cientificamente que populações não-brancas eram biologicamente inferiores. Era preciso exterminá-las ou dominá-las, portanto. O epistemicídio de saberes tidos como ‘não-racionais’ ou ‘bárbaros’ foi política oficial, como é sabido. As mulheres sempre foram alvo do mesmo tipo de ação cientificista e racionalista, não faltando estudos de renomados ‘especialistas’ que convictamente afirmavam sua inferioridade e irracionalidade frente aos homens. Isso foi feito pela melhor ciência de cada época dos países mais ‘modernos’ e desenvolvidos! É preciso, pois, ter muito cuidado com aquilo que é feito em nome da verdade científica.

O regime político que mais colocou médicos em posições de poder para definir os rumos da sociedade foi o nazismo. Sua busca por uma raça pura levou ao genocídio e a perversos experimentos médicos nos campos de concentração. Sua preocupação com a contaminação pessoal e social traduzia-se tanto no tradicional cumprimento à distância erguendo uma das mãos (para não transmitir qualquer impureza ou doença), como na conhecida metáfora organicista de Hitler que dizia que os judeus deveriam morrer como ‘piolhos’.  Isto não é uma coincidência, afinal eugenia e higienismo social sempre caminharam juntos.

É preciso ter muita cautela antes de entregar as definições do rumo de povos inteiros aos médicos. Eles simplesmente não estão preparados para isto e certamente poderão provocar um mal ainda maior. Não conseguem visualizar todas as dimensões da sociedade. Isto não significa que devemos ignorá-los, apenas que não podemos entregar o poder estatal a eles e confiar que tudo vai dar certo. No Brasil, temos um exemplo canônico de tais perigos embutidos no sanitarismo truculento com a chamada ‘Revolta da Vacina’, em 1904, que infelizmente parece estar sendo apagada da memória até mesmo de historiadores das classes populares (a História vista de baixo) neste momento. Classes dominantes e setores dirigentes sempre buscam nas ‘classes perigosas’ e ‘sujas’ um objeto de purificação pela violência. No fundo, o que buscam é reforçar uma cultura de obediência e submissão ao poder político e econômico vigente.

Todo discurso que apresenta uma humanidade desprovida de clivagens – de hierarquias e relações de poder – deve ser colocado sob suspeição. A atual retórica sobre ‘estarmos todos no mesmo barco’ porque trata-se de uma batalha de ‘todos contra o vírus’ é uma dessas armadilhas ontológicas que produz algo extra-social como o inimigo contra quem devemos defender a sociedade. O que some nesta operação são as relações sociais – capitalismo, racismo e patriarcado – que ficam isentos de qualquer responsabilidade na crise atual. Mas sabemos que neste momento a humanidade não irá superar suas diferenças, unindo-se em prol do bem comum: pelo contrário, a grave pandemia só irá aguçar as já brutais relações de opressão e exploração. Os inimigos são outros humanos: o vírus apenas torna esse triste fato mais evidente. Basta ver quem terá direito ao tratamento e quem sequer poderá fazer testes para saber se está infectado. Em nível internacional, isto já é visível, como no caso do confisco de equipamentos médicos por grandes potências levando a acusações de “pirataria” até entre aliados geopolíticos.[8]

Por fim, também por motivos de rigor científico, é preciso rever com prudência a atual defesa incondicional da ‘ciência’. Não há nada menos científico do que uma fé cega na ciência, que seria melhor descrita como cientificismo, típico de personagens machadianos como Simão Bacamarte.[9] Na realidade, esta atitude revela um profundo desconhecimento da história da ciência e do seu funcionamento até hoje. A ciência não fala com uma voz única, mediante uma verdade consensual inquestionável: os cientistas estão constantemente debatendo entre si, discordando, duvidando de estudos anteriores, questionando métodos, estimativas e conclusões. É esta atitude crítica que difere a ciência da religião por exemplo, pois a primeira não pode se basear em dogmas, em verdades absolutas inquestionáveis. Não é preciso ser ‘especialista’ em epistemologia lakatiana ou doutor em teoria do conhecimento para saber que a imagem do conhecimento científico evoluindo progressiva e linearmente já foi descartada há tempos, até por destacados positivistas. O edifício do saber científico não é construído assim, com cada cientista acrescentando seu tijolo por cima de outro e obedecendo a um projeto em comum. Pelo contrário, tal edifício é implodido de tempos em tempos sempre quando chega-se a uma crise do paradigma dominante em determinada área, abrindo uma nova fase de ‘ciência normal’, como diria Thomas Kuhn sobre a estrutura das revoluções científicas.[10] Karl Marx, por exemplo, buscou produzir seu socialismo científico, é verdade, mas o fez questionando a mais pura ciência econômica de sua época, mantendo uma atitude de ‘crítica impiedosa contra tudo o que existe’ contra as verdades disseminadas e aceitas sobre seu objeto de estudo. É este espírito que não se pode abandonar.

Sabemos que remédios que antes eram recomendados para toda a população – como a cocaína foi amplamente prescrita, até para crianças – de repente são considerados nocivos e chegam a ser proibidos. Pessoas da minha idade costumavam passar mercúrio cromo nos machucados da pele, mas “produtos que eram considerados a última palavra em tecnologia provaram ser perigosos para humanos e o meio ambiente”, conforme palavras de especialistas em química da UFRJ.[11] O mais saudável, portanto, é ter cautela e, sobretudo, manter a atitude crítica diante de verdades inquestionáveis que ainda precisam ser comprovadas com o tempo. Não estou falando para ninguém duvidar da lei da gravidade ou defender que a terra é plana, apenas sugerindo não capitular frente ao que é transmitido como imune a questionamentos, especialmente em momentos de pânico social. Se até na física isto é necessário, na economia ou epidemiologia, que trabalham com projeções e estimativas, seria ainda mais.

Na crise do Coronavírus, há uma grande e compreensível tentação de se afastar das sandices bolsonaristas mediante o apelo a alguma ‘verdade’ científica. O problema é que existem várias delas, como fica expresso na plural oferta de estimativas de mortos feitas para cada região ou país: no Brasil, fala-se de 50 mil a 1,5 milhão. Em qual acreditar? São todas científicas. Em qual delas basear políticas públicas? Como combinar tais políticas com outras preocupações cruciais? É uma tarefa difícil que não pode ser entregue à imprensa e políticos de plantão, sempre preocupados com a próxima eleição, mesmo quando dizem que não. Na situação atual, é preciso repetir: duvidar da rede Globo ou de um ‘especialista’ qualquer na TV com ares de cientista não faz de você – de mim, de nenhum de nós – um terraplanista automaticamente. Faz apenas um bem ao exercício da crítica responsável.

Temos o direito de nos perguntar: será que as recomendações (muitas vezes contraditórias) que estão nos passando são realmente as melhores, as mais eficazes e cuidadosas? Como tudo está sendo baseado em contra-factuais, é impossível saber como seria o resultado caso a conduta fosse outra. Então segue legítimo indagar se medidas repressivas e que olham apenas para um aspecto da questão, à moda ceteris paribus, são realmente as mais seguras. Há recentes pesquisas ‘científicas’ que indicam a possível relação entre deficiência de vitamina D e vulnerabilidade ao Coronavírus. Ora, caso isso seja confirmado, no futuro, nos daremos conta que confinar totalmente as pessoas não foi a estratégia mais inteligente, pois ter-se-ia salvado mais vidas caso o distanciamento social fosse acompanhado de recomendações para que as pessoas saíssem de casa para pegar sol por alguns minutos diários, desde que não se aglomerassem. Mais ainda, neste caso, teríamos perdido um grande aliado – o sol de verão – justamente nas regiões sul e sudeste, que apresentam o maior número de casos no Brasil. É cedo para dizer, trata-se de um estudo preliminar, como todos o são a esta altura.[12] Mas não deve ser cedo demais para manter aceso o espírito crítico em busca de melhores soluções. Um ceticismo ponderado não aproxima ninguém de Bolsonaro, pois a tão-celebrada Suécia, por exemplo, é um dos países que se recusou a adotar medidas extremas e manteve até as aulas nas escolas. Decerto, é um país que investiu em bem-estar social por décadas, incluindo o sistema de saúde.[13] Haveria uma correlação entre a precariedade (fabricada por políticas de desmonte ou focadas no lucro) dos sistemas de saúde e o nível de truculência, ou desespero, estatal-midiático durante a crise atual? Será preciso investigar.[14] O que já se pode saber é que o risco de cruzar a linha tênue entre aquilo que é necessário e – na falta de uma melhor palavra – aquilo que se torna totalitário é grande, tornando urgente o resgate do pensamento crítico sobre a pandemia do quase-monopólio entregue à direita radical.

Estados de exceção, vigilância e caminhos sem volta

Felizmente, já existe um crescente número de vozes críticas que vêm alertando para uma escalada autoritária em escala mundial sob o pretexto de ‘combate’ à pandemia. É preciso reforçar este alerta, uma vez que tais medidas de exceção já estão custando vidas e, via de regra, são caminhos sem volta.  Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte avisou que as forças de repressão irão atirar para matar quem desobedecer ao toque de recolher.[15] Na Índia, um grupo de migrantes foi irrigado com cloro e o governo local disse que foi “excesso de zelo” dos agentes de saúde e que o incidente (gravado em vídeo) foi “devido ao seu entusiasmo excessivo”.[16] Serviços de espionagem israelenses começaram a monitorar seus cidadãos pelo rastreamento de celulares, sem seu consentimento, no que foram seguidos por governos de outros países, estados e cidades.[17] No Brasil, a prefeitura de Recife já está monitorando celulares de 700 mil pessoas, em parceria com uma empresa privada.[18] Aproveitando-se do momento, até medidas que a princípio não possuem relação com a pandemia são implementadas. O governo de Santa Catarina lançou um aplicativo da Polícia Militar supostamente para ajudar no “combate ao novo cornavírus”, mas que inclui ferramentas como a Rede de Vizinhos, uma espécie de dispositivo de vigilância público-privada comum em bairros de classe média, “que será útil na comunicação de risco”: não de infeções, mas da presença de pessoas indesejadas na vizinhança.

Há inúmeros casos ao redor do país e do mundo. A preocupação que devemos ter deve-se ao fato de que Estados de Exceção são sempre seletivos. No mundo em que vivemos, o poder sem limites será sempre exercido contra alguém mais vulnerável, pobre ou fraco. Quando o número de mortes aumentar em concomitância ao empobrecimento agudo provocado pela suspensão das atividades econômicas, qual será a atitude das polícias e forças armadas frente a uma população cada vez mais desesperada? Sem direitos constitucionais ou garantias civis plenamente vigentes, é de se esperar um cenário de massacres ‘em defesa da ordem’, no Brasil e em outras partes. É por isto que se deve evitar a todo custo a linguagem da ‘guerra’ contra o Corona, ou ‘combate’ a epidemia pois, assim como a ‘guerra às drogas’ e o ‘combate à pobreza’, esta securitização de um problema de saúde abre espaço para a violência estatal sem limites. A notícia de que o Ministro da Justiça irá autorizar o emprego da Força Nacional “no combate ao coronavírus” foi recebida com ironia por algumas vozes perspicazes, que questionaram se os soldados iriam atirar no vírus. Na verdade, sabemos para quem suas armas irão apontar para “garantir a segurança pública em determinadas situações”, propositalmente deixadas no ar, sem especificação sobre quais seriam.[19]

Outro precedente perigoso é o fato de atualmente toda atividade política estar suspensa ou acontecer online. A dificuldade para os setores populares é óbvia, sem contar a maior exposição à vigilância e à censura. Se hoje o judiciário está proibindo manifestações de rua (hipócritas, por sinal) da extrema-direita e se o Twitter está apagando arbitrariamente mensagens de um presidente da república (asqueroso, decerto) ou de um poderoso pastor evangélico (charlatão, sem dúvidas), o que irão fazer contra partidos de esquerda, sindicatos, grêmios estudantis e movimentos sociais? A rápida legitimação que temos dado a tais ações, que prima facie nos parecem favoráveis, está empoderando castas militares e judiciais para fazerem o mesmo contra nós num futuro próximo. É um “erro colossal”, como alerta a historiadora lusa Raquel Varela, celebrar tais medidas ou seguir pedindo por mais decretos de sítio, emergência, calamidade e demais atos excepcionais, pois a extrema direita pode sair vencedora desta crise caso medidas assim sigam sendo implementadas.[20]

Além disto, o clima induzido de vigilância entre as pessoas é nefasto para a tentativa de redemocratização pós-corona. Uma guerra de todos contra todos foi instaurada e estimulada por governos e mídia, gerando desde lutas em supermercados por papel higiênico até linchamentos nas ruas a alguém que tossiu, passando por ataques a profissionais de saúde.[21] Em meio a este tipo de agressão e desconfiança mútua entre toda a cidadania, os verdadeiros responsáveis ficam imunes: a expansão capitalista sem limites para dentro do mundo natural e as burguesias que empurram incessantemente esta fronteira em busca de lucros. Longe de ser fruto de uma culinária exótica, conforme propagado sem confirmação pela versão orientalista (racista) que atribuía o Coronavírus a uma excêntrica sopa de morcegos, agora sabemos que é a industrialização ad infinutum da produção agropecuária e sua penetração em habitats novos que nos trouxe esta pandemia.[22] Fica nítido que as diferentes narrativas das elites globais servem apenas para ocultar sua responsabilidade na origem da crise e na precariedade de suas soluções, em especial na falta de equipamentos de saúde adequados. Em suma, não precisamos optar entre o Estado de Exceção imposto pelos meios de comunicação como a única saída, de um lado, e o ‘darwinismo sanitário’, de outro, proposto pela extrema-direita genocida, seja no Brasil ou no Texas.[23] Podemos exercitar o bom senso, o pensamento crítico e, assim, construir coletivamente um conjunto de alternativas e práticas concretas que nenhuma mente sozinha será capaz de encontrar. Mais do que nunca, é hora de o intelectual coletivo contra-hegemônico entrar em ação com mais vigor.

Conclusão

Os três alertas descritos acima não são os únicos desafios da conjuntura atual, apesar de apontarem para importantes facetas do dilema que o pensamento crítico vive em tempos de Corona, em paralelo à ascensão da extrema-direita. No entanto, deve-se agregar um último alerta – à guisa de conclusão – às dimensões ideológicas (mídia), epistemológicas (fé na ciência) e políticas (estados de exceção) abordadas até aqui – e que engloba todas as três. Trata-se da economia, em sentido amplo, ou seja, da oikosnomia, a arte de administrar a casa, de prover o sustento da vida. Não podemos deixar para Bolsonaro e outros da mesma estirpe a defesa da economia, dos empregos, das condições materiais de existência. É um erro tático e um favor que estamos fazendo a nossos inimigos. Não existe oposição entre a vida e a economia: tal dicotomia é falsa e implica numa derrota prévia para o campo popular no embate político.

Precisamos encarar este dilema de frente: a palavra de ordem ‘fica em casa’ não pode ser a única coisa que temos a dizer. Afinal, como recente pesquisa do Datafolha mostrou, a maioria da população gostaria de ficar em casa para evitar a propagação do vírus. Mas o motivo pelo qual a maioria não fica é o fato de não terem sido autorizadas pelos empregadores.[24] Deste modo, é uma ficção a ideia de que jovens irresponsáveis seriam a amostra típica do grupo de pessoas que não atendeu ao distanciamento social. A grande parcela pertence à população proletarizada. Portanto, direcionar o discurso para as pessoas (‘fica em casa’) e não para os patrões e para o Estado (‘permitam que fiquemos em casa’) significa reproduzir o conhecido gesto neoliberal de culpar os indivíduos por sua própria desgraça.[25] Há algo de similar entre este mantra que viralizou junto com o Coronavírus, por um lado, e a conhecida perversidade embutida na defesa da meritocracia capitalista, de outro: ambas atribuem, injustamente, aos indivíduos as responsabilidades por resultados que estão aquém de suas escolhas, por serem de natureza social, estrutural. E não podemos compactuar com isso. É urgente redirecionar o alvo do discurso e construir estratégias de reprodução das condições materiais de existência que a cada dia se veem deterioradas pelo confinamento. E por mais que a caridade e solidariedade ativa sejam fundamentais neste momento, elas também têm um limite: não podem ser a única resposta frente ao tamanho do desafio. Agir como se todos pudessem ficar em casa, como se fosse um problema unicamente de teimosia ou egoísmo, é adotar uma posição de classe deveras elitista, mesmo que inadvertidamente.

Não apenas economicamente, mas por outras razões o simples mantra do ‘fique em casa’ é insustentável, na melhor das hipóteses, ou cruel, na pior. Apenas uma pequena minoria da população é composta por homens, brancos, com renda fixa confortável, casa própria, internet para trabalho remoto e Netflix para passar o tempo, sem filhos para cuidar. Além do fato de muita gente não ter casa, para diversas outras pessoas e segmentos sociais a casa pode significar um lugar de violência, opressão e humilhação cotidiana. Isto não pode ser ignorado. Temos que ser capazes de transcender o slogan televisivo e apresentar propostas que não sejam nem a da direita liberal, nem a da direita fascistóide, que habilmente tem jogado com a necessidade (e o desejo, que é legítimo, por sinal) que as pessoas têm de sair de casa, seja para trabalhar ou para qualquer outra atividade, incluindo o lazer. Além de outro erro tático e submissão ideológica, isto também é perverso em mais um sentido: quem sofre de depressão não pode ser condenado ao isolamento. Nós que sempre defendemos o direito à saúde mental não podemos ignorar este fato agora. É algo sério, importante e que, novamente, pode custar vidas. É uma lástima que Bolsonaro esteja se apropriando de mais essa bandeira nossa e que não tenhamos capacidade de reagir, reivindicando o que é nosso. Assim como no aspecto econômico – que é gritante – a ‘solução’ dos especialistas não pode se dar às custas de um sofrimento possivelmente maior ao que o Corona já causa e certamente irá causar.

Por tudo isso, devemos renunciar à infame escolha, como diz a canção de Caetano, de “optar entre o inseto e o inseticida”.[26] Esse dilema é real e de difícil enfrentamento. Sabemos apenas que a “fé cega”na mídia, nos ‘especialistas’ de plantão e nas medidas de força revelar-se-á uma “faca amolada” para nós mesmos, conforme diz outra canção, de Milton.[27] Nessa avalanche de narrativas que não nos servem, é preciso manter, esta sim, a “estranha mania de ter fé na vida”[28], conforme foi cantada pelo mesmo trovador das Gerais. E não sucumbir jamais ao imobilismo que nos resta caso aceitemos passivamente a postura acrítica frente a ideologia liberal-capitalista-autoritária que, no fundo, informa a ambas as direitas temporariamente em luta. Diversas vozes já se empenham em sair da armadilha aqui descrita; é preciso que muitas outras se somem. A ameaça do Corona é real, seríssima e desafiadora. Não pode de modo algum ser subestimada. Será preciso muita perspicácia para não nos rendermos aos perigos que se sobrepõem ao vírus, numa mescla agoniante de terror.

Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia
Como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida

***

*Miguel Borba de Sá é professor de Relações Internacionais da UFSC e membro da rede Jubileu Sul. As opiniões expressas aqui, no entanto, não representam a posição dessas instituições.

AVISO: Como não se trata de artigo acadêmico, certas referências bibliográficas de fundo, não foram explicitadas ou discutidas. A leitora versada nos debates das ciências sociais perceberá, no entanto, que é grande o meu débito para com autores como Gramsci, Foucault e, sobretudo, Horkheimer.

Publicado em 

Notas

[1] Estimativas modestas apontam que três mulheres são assassinadas por dia no Brasil por razões de gênero e a América Latina, como um todo, é a região com mais feminicídios per capta no mundo. Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/24/actualidad/1543075049_751281.html
[2] http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
[3] São registrados 180 estupros por dia no Brasil, metade deles vitimando a meninas menores de 13 anos, fora os casos não registrados. Ver, a respeito,: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-mais-de-180-estupros-por-dia-numero-e-o-maior-desde-2009.shtml
[4] http://www.fao.org/3/ca5162es/ca5162es.pdf
[5] https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/influenza-(seasonal)
[6]  https://unchronicle.un.org/article/losing-25000-hunger-every-day
[7] https://oglobo.globo.com/brasil/invasao-de-haitianos-em-brasileia-comecou-em-2010-3593903
https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381
[8] https://www.rt.com/news/484935-us-takes-masks-germany/
[9] Assis, M. “O alienista”. In: 50 contos de Machados de Assis. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
[10] Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectivas, 2003 [original em inglês de 1962].
[11]Ver artigo dos cientistas do Instituto de Química da UFRJ, em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422006000500040
[12] https://veja.abril.com.br/saude/coronavirus-vitamina-d/
[13] https://www.cnbc.com/2020/03/30/sweden-coronavirus-approach-is-very-different-from-the-rest-of-europe.html
[14] O excelente estudo publicado pela FITA em 29/02/20 sugere elementos nesta direção. Ver: Coletivo Chuang, “China, capitalismo tardio e o ‘mundo natural’”. Outras fitas: Contágio Social – coronavírus.
[15]https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/02/presidente-das-filipinas-diz-que-mandou-atirar-para-matar-quem-descumprir-regras-de-isolamento.ghtml
[16]https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-03/covid-19-migrantes-sao-pulverizados-com-desinfetante-na-india
[17] https://veja.abril.com.br/mundo/coronavirus-israel-aciona-medida-de-espionagem-de-emergencia/
[18]https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/24/recife-rastreia-700-mil-celulares-para-monitorar-isolamento-social-e-direcionar-acoes-contra-coronavirus.ghtml
[19]https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/31/moro-autoriza-uso-da-forca-nacional-nas-acoes-de-combate-ao-coronavirus.ghtml
[20] https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2020/03/16/estado-de-emergencia-um-erro-colossal/
[21] https://www.mirror.co.uk/news/uk-news/coronavirus-nurse-racially-attacked-couple-21701031
[22] https://grain.org/e/6439
[23]https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/03/24/vice-governador-do-texas-sugere-que-idosos-arrisquem-a-vida-pela-economia.htm
[24]https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/maioria-tem-medo-de-coronavirus-e-apoia-medidas-de-contencao-diz-datafolha.shtml
[25] Esta ideia é exposta, dentre outros, por David Harvey na sua Breve História do Neoliberalismo (2005).
[26] Veloso, C. “Eclipse Oculto”. Álbum: Uns. Gravadora: Philips,1983.
[27] Nascimento, M. “Fé Cega, Faca Amolada”. Álbum: Minas. Gravadora: EMI-Odeon, 1975.
[28] Nascimento, M. “Maria Maria”. Álbum: Clube da esquina 2. Gravadora: EMI-Odeon, 1978.

 

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