Jorge Alexandre Alves
A Igreja do Brasil foi voz relevante em vários momentos na história recente da Igreja e no Mundo. Desde o Concílio Vaticano II, passando por momentos cruciais da história recente do país, não foram poucas a vezes em que o episcopado brasileiro foi “voz dos sem voz”, se colocando sempre em “diálogos pelo Reino”.
Sua conferência episcopal data dos anos 1950.A inspiração de Dom Hélder Câmara, então bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro e primeiro secretário-geral da nova entidade, foi fundamental para que esta inovação do exercício da colegialidade dos bispos se desse ainda sob o pontificado de Pio XII, antecipando uma das intuições do Concílio. E contou com apoio do então subsecretário de estado do Vaticano,Monsenhor Giovanni Batista Montini, que futuramente se tornaria o Papa Paulo VI.
Esse pioneirismo foi fundamental para que os bispos do Brasil tenham sido protagonistas na defesa do Povo de Deus e na promoção dos direitos fundamentais do ser humano em nossa terra. A CNBB foi inspiração e suporte para movimentos sociais no campo e na cidade. Esteve sempre em sintonia com o aggionarmento da Igreja, para recordar a feliz expressão do Papa João XXIII.
Mas isso não se deu sem incompreensões, dentro e fora dos ambientes eclesiais. Nos períodos mais duros dos últimos sessenta anos, ataques tentaram macular a vida ilibada de alguns de seus mais ilustres homens como Hélder Câmara e Paulo Evaristo Arns.
Em meio à repressão da Ditadura Militar, a primeira sede da CNBB foi alvo de pichações.Otitular de Nova Iguaçu, dom Adriano Hypólito sequestrado e abandonado nu com o corpo todo pintado de vermelho. O fusca do bispo foi explodido na sede da conferência, ainda no Rio de Janeiro naquele momento.
Como no passado, o colegiado dos bispos brasileiros sofre com ataques. Da mesma forma que ocorreu com dom Hélder e dom Adriano, alguns dos expoentes do episcopado brasileiro hoje também é acusada de comunismo. Ressuscitam fantasmas para mascarar autoritarismo, intolerância e fundamentalismo religioso.
Para além da intimidação física, hoje se praticam formas virtuais de violência. Pela terra sem lei da internet e das redes digitais, é perpetrado um verdadeiro massacre a partir de narrativas baseadas em difamações e mentiras veiculadas por aplicativos de mensagens. Nem mesmo a CNBB escapa de tentativas de assassinato virtual de sua reputação.
A nota triste é que grupos e movimentos que se dizem católicos fazem parte dessa guerrilha digital há algum tempo. Sites e perfis pessoais constantemente atacam a conferência episcopal e bispos que ocupam sua estrutura de organização. No anonimato da internet, contando com robusto aporte financeiro e sob a proteção velada de proeminentes figuras da Igreja do Brasil, tais grupos tiveram destacada atuação na promoção do grande medo que possibilitou a ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil.
Ao mesmo tempo, estão na linha de frente dos ataques ao Papa Francisco. Quando não atacam pessoalmente o Pontífice, são incansáveis em desqualificar seu magistério e as reformas em cursos que ele dirige. Tanto no plano ideológico quanto no plano eclesial estão articulados em nível internacional com forças que atuam da mesma forma na Europa e na América do Norte.
Trata-se de um “combo” que mistura falso apego a uma suposta tradição de matriz tridentina e neofascismo que se tornou base de sustentação de extremismo político em nosso país e pelo mundo afora.Eainda disseminam fanatismo religioso através de movimentos, canais digitais, influindo nas paróquias brasileiras.
Não é à toa que, em muitas dioceses, parcela do clero entende a conferência episcopal como um organismo meramente burocrático, quando não “político”. Nada teriam a acrescentar ao exercício de sua missão presbiteral. Ora, se isso ocorre é porque, mesmo dentro do episcopado, há essa visão a respeito da entidade. Consequentemente, de forma particular entre jovens candidatos ao ministério ordenado, não poucos “torcem o nariz” para o Bispo de Roma, sobretudo quando ele critica o clericalismo e se propõe a colocar a “Igreja em Saída”.
Trata-se de um contexto que fere de morte o futuro da ação pastoral da Igreja do Brasil. As últimas três décadas mostraram que opções centradas na catarse emocional, em modelos intimistas de espiritualidade, em liturgias centradas nas “rendas da vovó” esvaziaram as maiores inovações pastorais que se produziram após o Concílio. O resultado é percebido no esvaziamento das igrejas e no distanciamento das juventudes, sobretudo nos maiores centros urbanos.
Isso sem falar no espinhoso tema dos abusos sexuais dentro de nossos ambientes eclesiais. Estamos muito distantes da coragem da Igreja em Portugal, onde um relatório recente indicou quase cinco mil casos de abusos. Basta comparar o tamanho dos dois países e de sua população católica para imaginarmos o tamanho do estrago em potencial que pode estar em curso aqui do outro lado do Atlântico.
É em meio à essa conturbada realidade eclesial, a delicada situação política brasileira e à oposição intelectualmente desonesta ao magistério do Papa Francisco que se encontram as eleições para a CNBB. Dependendo de quem ocupe as funções-chaves da conferência, neste momento se decide o rumo desta importante instituição católica.
É provável que a presidência e a secretária-geral da entidade seja disputada por duas importantes movimentos no interior do episcopado. O primeiro seria formado por grupos que gostariam de assumir a conferência para fazer da CNBB um bastião da “volta à grande disciplina”, parafraseando o grande teólogo João Batista Libânio.
No Brasil não há membro do episcopado que faça oposição pública e explícita ao Papa Francisco, como acontece na Alemanha, na Itália ou nos Estados Unidos. Entretanto, sabe-se que há uma “relutante aceitação” das principais inspirações de seu magistério pontifício. Basta verificar a repercussão dada em nível diocesano aos documentos pontifícios e à questão da sinodalidade da Igreja.
Se não constituem abertamente um movimento “contra Francisco”, estariam muito mais próximos de uma visão ratzingeriana ou wojtyliana da Igreja. Esses pontificados tiveram seu papel histórico, mas os tempos são outros. Ficar preso ao passado pode fazer a Igreja do Brasil perder o trem da História. São tempos que exigem aprofundar inspirações do Concílio Vaticano II que ainda não ecoaram junto ao Povo de Deus.
Ao mesmo tempo, fariam da conferência episcopal espaço de oposição ao atual governo federal. Um ensaio já foi feito quando um grupo de prelados fez gestões para que a CNBB emitisse a nota cobrando pela revogação de normativa sobre direitos reprodutivos instituída pelo governo anterior.
Aqui se misturam o processo eleitoral na entidade dos bispos com ou outros elementos. Um deles reside na cosmovisão de uma rica e poderosa organização católica. Surgida no tenebroso ambiente do fascismo europeu, deu suporte a regimes autoritários que perduraram por décadas na Europa, bem como a golpes de estado na América do Sul. Já teve mais espaço e gozou de status privilegiado em pontificados anteriores. Recentemente perdeu espaço em outra conferência nacional ligada à Igreja.
Outro elemento reside nas sucessões episcopais de importantíssimas dioceses brasileiras que avizinham nos próximos anos. Alguns prelados têm procurado maior protagonismo nos ambientes episcopais, assumindo a bandeira dos “valores inegociáveis”, pressionando a CNBB nesse sentido. Dessa forma, se tornariam fortes candidatos para as futuras sedes vacantes que virão.
Há uma candidatura em pleno vapor deste movimento “mais wojtyliano e menos franciscano”. Inclusive, há informes afirmando que o candidato faz o chamado “corpo a corpo” com outros bispos. Sua trajetória, embora marcada por uma ascensão meteórica na hierarquia católica, é marcada por fatos obscuros neste percurso, como uma acusação de racismo religioso quando ainda era bispo-auxiliar.
Por outro lado, há um outro movimento que entende que é necessário resgatar elementos do Vaticano II que ainda não foram totalmente implementados na Igreja. Tem a mesma urgência histórica em desencadear reformas na Igreja e estão totalmente em sintonia com o magistério de Francisco sua proposta de uma “Igreja em Saída” a partir de uma perspectiva sinodal.
É constituída por um grupo de bispos que tenta manter a chama acesa da profecia. Dom Hélder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga são exemplos de bispos que lhe servem de inspiração. Procuram se manter longe de afetações e clericalismos, procurando construir uma Igreja pobre para os pobres.
Seria simbolicamente significativo que uma figura como Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus pudesse estar à frente da CNBB pelo próximo quadriênio. Mas há um impedimento por causa da idade do cardeal da Amazônia, que faria 75 anos no meio do seu mandato. Isso poderia ser contornado, mas ao que parece, forças contrárias atuaram no “tapetão” para que Roma não autorizasse uma exceção.
A secretaria geral é uma função estratégica na estrutura da CNBB, porque a conduz em seu cotidiano. Há um bispo experiente nessa função, porque já a executou com propriedade em Moçambique. Foi bispo no norte do país, na região mais pobre daquela nação.
Desempenhou seu ministério entre a solidariedade e a promoção aos marginalizados e aos excluídos. Com coragem e profecia, não se intimidou diante das ameaças dos extremistas islâmicos do Boko Haram e suas ações terroristas, colocando a própria vida em risco. Francisco, temendo por sua vida, o transferiu para uma diocese brasileira.
Talvez seja o nome certo para a hora. A CNBB precisaria de um secretário geral com essa coragem. Para quem já lidou com jihadistas, não seria tão complicado para ele lidar com “catolibãs” em território nacional. Neste quadrante da história, a experiência de quem foi missionário e bispo na África acrescentaria muito a conferência episcopal brasileira.
Contudo, as eleições na CNBB será, como sempre foi, decidida por uma maioria de bispos que poderíamos chamar de moderados. Em décadas passadas, a vida de verdadeiros pastores(como Luciano Mendes de Almeida, Fernado Gomes, José Gomes, Mauro Morelli, AngélicoBernardino, Waldir Calheiros, Vital Wilderink, Antônio Fragoso, Ivo Lorscheiter, José Maria Pires, Jayme Chemello, Marcelo Pinto Carvalheira, Aloísio Lorscheider, Moacyr Grechi, Adriano Hypólito, Paulo Evaristo Arns, Cláudio Hummes, Tomás Balduíno, ErwinKräutler entre tantos outros) foi decisivo para a bela trajetória que a CNBB construiu.
Hoje, neste imbricado xadrez episcopal, se começa a decidir o futuro da Igreja do Brasil. Que o testemunho destes verdadeiros homens de igreja do passado seja inspiração na hora de eleger os futuros responsáveis pela CNBB. E que seu legado conduza a assembleia episcopal reunida em Aparecida nos caminhos do diálogo pelo Reino de Deus.
*Jorge Alexandre Alves é sociólogo católico e membro no Movimento Nacional Fé e Política.