Da Coluna de Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico das Organizações Globo.| Valor, 21/05/2020.
Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.
São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso.
Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam 4 votos no TSE
A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.
A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.
O inquérito é conduzido, a sete chaves, pelo ministro Alexandre de Moraes. Apesar de dispor de policiais federais para as investigações, apenas os juízes auxiliares e o delegado da Polícia Civil de São Paulo lotados em seu gabinete têm acesso ao conjunto de provas colhidas. O comando é de um ministro que, de tão obcecado por investigações, fez fama em São Paulo por chegar às 4h da manhã na sede da Secretaria de Segurança Pública, sob seu comando, para participar de operações policiais.
Com a saída da ministra Rosa Weber, na segunda-feira, Moraes assume um assento no TSE. Comporá, junto com Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, que presidirá o tribunal, a trinca de ministros do Supremo que atuarão como juízes eleitorais no restante do mandato presidencial.
A nova composição do TSE impulsionou a campanha de 100 entidades que atuam no campo da corrupção eleitoral (reformapolitica.org.br) pela agilização dos processos que hoje correm no TSE. Esta campanha pode dar amplitude ao que hoje está restrito a alguns gabinetes brasilienses. É uma articulação ora favorecida pela reaproximação de antigos adversários, como os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, ora contida por espantalhos como o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão atacando as instituições.
Ao contrário do que se passou por ocasião do julgamento da chapa Dilma/Temer, em que a cassação foi derrotada por 4×3, os carpinteiros da tese da separação da chapa, hoje estão de quarentena. Se for para cassar, que seja o presidente e seu vice. Por isso, o artigo de Mourão assustou.
Ao proteger o titular do cargo e bater em todas as demais instituições da República, o vice-presidente, na leitura dos artífices da “saída TSE”, buscou blindagem das Forças Armadas contra qualquer desfecho que o alije. A ocupação do Ministério da Saúde e a negociação com o Centrão hoje são vistos como um sinal de que, seja com Bolsonaro, seja com Mourão, os militares não pretendem arredar pé.
As dúvidas não se limitam à reação da farda em relação à cassação da chapa. Estende-se à composição do TSE. Ao contrário do tribunal que inocentou Dilma e Temer, aquele que estará empossado a partir de segunda-feira, conta com três ministros do Supremo que não são de sentar em cima de provas.
Três ex-ministros do TSE, em anonimato, concordam que o quarto voto não viria de nenhum dos dois ministros do Superior Tribunal de Justiça com assento na Corte eleitoral. O mandato do atual relator, Og Fernandes, se encerra em agosto. Como Fernandes também é o corregedor da Casa, o processo ficará com o futuro ocupante do cargo, o também ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, que passará a ter, como colega, também no TSE, Mauro Campbell.
Nenhum dos dois desfruta, em Brasília, da mesma reputação do independente Herman Benjamin, o ministro relator do processo Dilma/Temer que votou pela cassação. Sobre Salomão pesam ainda as expectativas de que ambiciona uma vaga no Supremo, situação que o deixaria em pé de igualdade com o procurador-geral Augusto Aras na condição de personagens-chave a quem o presidente poderia buscar atrair com as duas vagas que terá a preencher até julho de 2021.
Ainda que ambos venham a jogar no time anti-cassação, o quarto voto poderia ser buscado nos dois advogados do tribunal. A expectativa de recondução ao cargo, prerrogativa do presidente da República, pode vir a inibir um deles (Sergio Banhos), mas é inócua em relação ao segundo (Tarcísio Vieira), que está no último mandato na Corte. Somados os quatro votos, restaria ainda a dúvida sobre o prosseguimento do processo com um relator que venha a se mostrar desinteressado no desfecho.
Os percalços não param por aí. A lei diz que se a chapa é cassada no primeiro biênio do mandato presidencial, faz-se nova eleição. Se for no segundo, convoca-se eleição indireta, em até 90 dias. “Na forma da lei”, diz a Constituição. Lei esta que não existe. Teria que ser formatada e votada em pontos sensíveis, como desincompatibilização e filiação partidária, em meio ao caos de uma pandemia que, além de vidas, também vitima o bom combate da política.
E, finalmente, o processo de escolha de um presidente-tampão seria conduzido pelas futuras mesas da Câmara e do Senado, a serem escolhidas num Centrão repaginado pelo bolsonarismo, visto que os mandatos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se encerram em fevereiro. A pergunta de um ex-ministro do TSE resume o drama: “Quanto custaria esta eleição”?
Se a pedreira é tão grande, por que a “opção TSE” continua sobre a mesa? Porque todas as demais saídas parecem tão ou mais difíceis. A ver, porém, se os percalços permanecerão em pé se o país, no balanço dos milhares de mortos e milhões de desempregados, decidir que não dá para seguir adiante sem afastar o principal culpado.
Por Ricardo Abramovay
Publicado no Valor Econômico, 11 de maio de 2020
“Eu sabia que havia cem casos de coronavírus na França e estava para viajar àquele país. Eu sabia também que a evolução da doença era exponencial. Eu nem considerei o fato de que se a taxa de infecção estivesse dobrando a cada três dias; em um mês, o número inicial de infectados seria multiplicado por mil. Tudo isso está além de nossa compreensão intuitiva. Inclusive da minha.”
O depoimento à revista New Yorker seria trivial, não fosse o fato de que ele vem de ninguém menos que Daniel Kahneman, psicólogo, autor de Rápido e devagar e contemplado com o Nobel de Economia em 2002, por mostrar o quanto nossos comportamentos distanciam-se da imagem canônica do homem econômico racional. Seu trabalho inspirou as pesquisas de importante vertente do pensamento social contemporâneo, voltada ao estudo da maneira como as pessoas se comportam diante do risco.
Um de seus mais importantes discípulos, Paul Slovic, abriu caminho a estudos que buscam explicar as bases psicológicas a partir das quais nos relacionamos com os riscos e, sobretudo, com os riscos resultantes de tecnologias industriais. No que se refere ao coronavírus, Slovic ilustra o crescimento exponencial mostrando que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o tempo entre o primeiro caso da doença e a marca de cem mil atingidos foi de 67 dias. Outros cem mil casos foram registrados onze dias depois. E levou apenas quatro dias para que mais uma leva de cem mil pessoas adoecessem.
A análise de risco é fundamental sobretudo para eventos de baixa probabilidade, cuja ocorrência, no entanto, é de grande impacto. Sabemos lidar com eventos relativamente habituais como os acidentes de trânsito ou diferentes tipos de doenças. Mas faz parte dos mecanismos cognitivos básicos com base nos quais organizamos nosso dia a dia guiarmo-nos pelo que já sabemos e a partir de referenciais que nos são fornecidos pelos grupos a que pertencemos.
Tendemos a focar nossas decisões no curto prazo, a ignorar lições de desastres passados, a imaginar que nunca seremos atingidos por males que afetam os outros, a aderir a explicações simples diante de fenômenos complexos e a fazer escolhas apoiados na conduta e no universo cultural dos que nos são próximos. Estas características cognitivas, resultantes de nossa própria evolução, constituem obstáculos à percepção de fenômenos que têm trajetória contrária ao que nos ensina nossa experiência cotidiana, como mostraram outros dois especialistas em análise de risco, Robert Meyr e Howard Kunreuhther, em The Ostrich Paradox [O paradoxo do avestruz].
A experiência acumulada no estudo sobre percepção de riscos é que explica o fato de Paul Slovic e Howard Kunreuther fazerem exatamente agora um alerta fundamental. Há outro fenômeno que traz a marca do crescimento exponencial e diante do qual, igualmente, se espalha a ilusão perceptiva de que seu poder destrutivo é menor e muito mais distante do que o anunciado pelos que o estudam: as mudanças climáticas.
Não poderia ser maior o contraste entre a mobilização massiva (ainda que, em tantos casos, tardia e hesitante) contra o coronavírus e a complacência diante da emissão de gases de efeito estufa, venha ela dos combustíveis fósseis, dos fertilizantes nitrogenados, do rebanho bovino ou da destruição florestal. Os gases de efeito estufa acumulam-se na atmosfera em magnitude tal que vai esgotando a capacidade de serem neutralizados por seus sorvedouros naturais, as florestas (que continuam sendo destruídas) e os oceanos.
O derretimento das geleiras no Ártico (que, há apenas quarenta anos, cobriam o dobro da superfície que ocupam atualmente) faz com que o calor antes refletido passe a ser absorvido pelos oceanos, criando um feedback altamente destrutivo. O resultado é que o volume de CO2 na atmosfera que era de 315 partes por milhão em 1958 já está em 414 partes por milhão.
Só que nada disso é visível a olho nu, contrariamente ao que ocorre com as tristes imagens dos efeitos da pandemia no sistema hospitalar e até no sistema funerário. A pandemia é uma espécie de aceleração vertiginosa do filme a que estamos, quase imperceptivelmente, assistindo, como se fosse em câmara lenta, com as mudanças climáticas. É verdade que as mortes por covid-19 são atestadas por exames clínicos.
O mesmo não ocorre com as enchentes que desabrigaram mais de cinquenta mil pessoas em Minas Gerais, no Espírito Santo e em São Paulo em fevereiro, com a ampliação em 163% da população suscetível de ser atingida por furacões na Flórida entre 1980 e 2018 (muito mais que o aumento demográfico no período) e com a estimativa de que as perdas globais com o aumento do nível do mar devem passar de US$ 52 bilhões em 2005 para US$ 1,2 trilhão em 2050. O vínculo entre estes eventos e as mudanças climáticas foge de nossa intuição imediata.
No caso da pandemia, soluções nacionais construtivas são possíveis, ao menos durante certo tempo. Mas, contrariamente ao coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras. A conclusão é que o combate à pandemia, tem que ser acompanhado de um planejamento em cujo centro esteja a urgência climática.
A criação de empregos, a redução das desigualdades e o crescimento econômico têm que girar em torno da necessidade de se evitar a grande ameaça representada pelo aumento exponencial a que assistimos até aqui das emissões de gases de efeito estufa. A urgência da pandemia é imediata, mas não é razoável que ela ofusque a urgência de se enfrentar a crise climática.
Ricardo Abramovay é autor de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza(Elefante, Outras Palavras, Terceira Via, 2019).
Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de “Amazônia: Por uma economia do Conhecimento da Natureza”
O mundo tinha reservas estratégicas de petróleo, mas não de máscaras. Isso diz tudo sobre a nossa cegueira.
A entrevista é de Catherine André, publicada por Alternatives Économiques, 09-05-2020. A tradução é de André Langer para o IHU, 12 Mai 2020.
Segue a entrevista
É difícil saber se esta crise será uma chance para o clima ou não. Podemos, no entanto, tirar lições da crise da saúde?
Certamente, há lições muito importantes que podemos aprender para o futuro, especialmente na luta contra as mudanças climáticas. Eu vejo duas. A primeira é que ainda é possível, apesar do que costuma ser reivindicado, tomar medidas drásticas e extraordinariamente caras quando estamos em perigo iminente. Durante muito tempo, repetimos que tínhamos que fazer as coisas de maneira gradual, não apressar as pessoas, para que não fosse muito caro. E, de repente, evaporamos anos de esforços de austeridade! Evidentemente, isso implica que nos perguntemos por que estamos prontos para implementar medidas drásticas contra o coronavírus e por que parecemos incapazes disso contra as mudanças climáticas.
A resposta me parece muito simples: todos nós temos medo de pegar o vírus, enquanto pensamos que as mudanças climáticas afetarão os outros antes de nos afetar. E acredito que nós, pesquisadores, temos uma parte de responsabilidade nisso: ao calibrar nossos modelos em prazos longos, as políticas públicas estabeleceram os mesmos horizontes: neutralidade de carbono em 2050, dois graus em 2100… Ao passo que para o coronavírus, nós monitoramos diariamente as curvas de mortes e hospitalizações, acompanhamos esses dados como o leite no fogo!
Em 2050, muitos dos que leem essas linhas hoje já estarão mortos; portanto, isso necessariamente nos parece muito distante. Se tivéssemos uma previsão de carbono diária, que nos indicaria, por exemplo, a taxa de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, a mudança climática nos pareceria mais perto. Segue-se dessa constatação uma grande lição de comunicação.
A segunda grande lição diz respeito à questão da solidariedade. Nossas sociedades se mostraram solidárias como nunca antes. Durante anos, fomos informados de que colocamos o lucro na frente do humano, e agora, o que fazemos? Exatamente o contrário! Desencadeamos uma crise econômica monumental, que fez tombar vertiginosamente todas as Bolsas de Valores do mundo, para proteger os mais vulneráveis. É uma ótima lição que estamos dando a nós mesmos. O sacrifício dos jovens, que são muito menos vulneráveis à Covid-19 e que serão os primeiros a serem afetados pela crise econômica e pelo desemprego em massa que isso causará, parece-me particularmente marcante.
Certamente, isso não significa que todos terão mudado: se fazemos parte disso, é também porque tememos ser contaminados, ou contaminar as pessoas próximas a nós. O problema é que essa solidariedade, no momento, permanece em grande medida confinada às fronteiras nacionais: temos uma crise global, mas as respostas são arquinacionais, com um fechamento generalizado das fronteiras. Ora, não é fechando as fronteiras que iremos impedir a mudança climática. Portanto, a pergunta que deve ser feita é como projetar essa solidariedade, que às vezes não suspeitávamos, para além de nossas fronteiras nacionais. Porque é aí que frequentemente se encontram as vítimas da mudança climática. No caso do coronavírus, podemos esperar um benefício imediato para nós mesmos das medidas tomadas; o mesmo não vale para a mudança climática.
As consequências desta pandemia eram previsíveis e evitáveis?
Nós tínhamos reservas estratégicas de petróleo, mas não de máscaras. Isso, por si só, diz tudo sobre a nossa cegueira. Eu não quero processar ninguém. Devemos reconhecer que todos ficamos surpresos com a amplitude que essa pandemia tomou em poucas semanas. É claro que poderíamos tê-la previsto, antecipado mais, mas estávamos cegos. Foi só quando os mortos estavam às nossas portas, na Itália, que nós realmente começamos a nos preocupar. Essa crise diz muito sobre a nossa falta coletiva de antecipação.
Essa crise nos obriga a nos questionar sobre o que é o comum?
Não nos obriga a nada, mas nos incita a fazê-lo. E eu penso que é uma aspiração de muitos de nós. O que é particular no controle de uma epidemia é que ninguém está seguro até que todos estejam seguros. Uma única pessoa pode potencialmente infectar dezenas, centenas de outras. Basta um único indivíduo infectado para que a epidemia recomece – o famoso “paciente zero”.
De certa forma, a epidemia nos lembra que aqueles que colocamos à margem da sociedade – os sem-teto, migrantes e excluídos – também fazem parte dela. E que temos que cuidar deles, não apenas por eles, mas também por nós mesmos. É um princípio maravilhoso para fazer sociedade, um grande princípio de inclusão em torno de um bem comum. A grande questão para o clima é saber se conseguiremos identificar e aproveitar o que temos em comum, além de nossas fronteiras: a Terra em que habitamos.
Como, concretamente, fazer isso?
A crise oferece uma série de oportunidades para traduzir isso em realidade. A prioridade é redirecionar os investimentos e os subsídios dos combustíveis fósseis. A cada ano, mais de 6% da riqueza do mundo é investida nisso. A crise atual, combinada com o preço muito baixo do petróleo, é uma oportunidade para redirecionar esses investimentos e subsídios. É também uma oportunidade para fixar um preço mínimo para o petróleo, estabilizar o preço do carbono e desfinanciar o mercado de energia. São todas formas para nos reapropriar do comum.
Nós, na Europa, no Ocidente, temos uma visão egocêntrica?
Sim, muito profundamente. Estou muito impressionado com essa ideia, muito em voga, de que a crise atual seria um prenúncio, ou um aviso, da mudança climática. Como se fosse “vir”, quando é uma realidade há anos, mas que afeta principalmente os países do Sul. O mesmo vale para o colapso de que falam os colapsologistas: trata-se sempre de um colapso “por vir”, em nossas sociedades, ao passo que já está em curso em muitos lugares, fora de nossas fronteiras. Mas só vemos o problema quando ele virar a esquina.
Eu poderia multiplicar os exemplos. Quando se diz que estamos interessados na migração, na verdade não estamos interessados na migração, mas nas populações que chegam ao nosso território. Passa a ser uma preocupação nossa apenas quando as pessoas cruzam o Mediterrâneo. Tudo o que acontece antes, ou em outro lugar, não nos importa. Do mesmo modo, as soluções que imaginamos sempre se relacionam conosco: nossos modos de vida, nossos modelos econômicos… É obviamente importante que nos questionemos, mas a luta contra a mudança climática também passará pela cooperação, não apenas pela introspecção. Isso implica estar conscientes do impacto das nossas decisões sobre os outros, e não pensar apenas em nós mesmos. E que também precisamos aprender com o que os outros estão fazendo.
Como podemos encontrar novamente o caminho da cooperação internacional para enfrentar de maneira eficaz a mudança climática, a poluição do ar e o colapso da biodiversidade?
Esta é uma pergunta fundamental e é, talvez, a minha maior preocupação neste momento. Receio que a cooperação internacional saia esfrangalhada desta crise. Estamos diante de uma crise global, mas à qual fornecemos apenas respostas nacionais, sem nenhuma coordenação. O resultado é um fechamento generalizado das fronteiras. E sabemos como as fronteiras são tranquilizadoras no caso de uma crise. Infelizmente, os nacionalistas compreenderam perfeitamente todo o benefício que poderiam obter disso. O risco é que as medidas impostas do ponto de vista da saúde – o confinamento, o isolamento e o fechamento – acabem se tornando um projeto político de fechamento sobre si mesmo. O grande desafio será articular a relocalização – necessária – de um certo número de cadeias produtivas com a abertura ao mundo. É o caso dos alimentos, da saúde e da energia, em particular.
Vemos claramente a necessidade de uma maior descentralização; é um imperativo político e não somente econômico. Podemos discutir as vantagens do fechamento das fronteiras para limitar a propagação do vírus, mas é certo que isso não impedirá a mudança climática. Mais do que nunca, precisaremos de cooperação internacional.
Já sabemos a nova data do início do Tour de France, mas não quando será a próxima COP 26, adiada sine die. Eu realmente espero que essa COP possa ser a ocasião para uma refundação da cooperação internacional, que possa incluir outros atores além dos governos. Não uma COP 25 +1, mas uma COP 0, que consiga reconstruir o multilateralismo. Isso passará pela inclusão da sociedade civil, das empresas ou dos municípios. Os governos não têm todos os comandos para combater a mudança climática; é preciso fazer sentar outros atores à mesa de negociações.
François Gemenne
Especialista em questões de governança ambiental e migração, dirige o Observatório Hugo na Universidade de Liège e leciona no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Também é o autor principal do Grupo de Peritos Intergovernamental sobre a Evolução do Clima (Giec). Ele publicou recentemente, com o pesquisador Aleksandar Rankovic, Atlas de l’anthropocène (Éd. Presses de Science Po, 2019).
Bolsonaro disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pelo Covid-19, isto é inevitável”.Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos. Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio.
Isto se chama genocídio Por Michael Löwy*, em 28/04/2020 para A terra é redonda
O neofascista Bolsonaro diante da pandemia
Um dos fenômenos mais inquietantes dos últimos anos é a espetacular ascensão, no mundo inteiro, de governos de extrema direita, autoritários e reacionários, em alguns casos com traços neofascistas: Shinzo Abe (Japão), Modi (Índia), Trump (USA), Orban (Hungria) e Bolsonaro (Brasil) são os exemplos mais conhecidos. Não é surpreendente que vários deles reagiram à pandemia do coronavírus de forma absurda, negando ou subestimando dramaticamente o perigo.
Foi o caso de Donald Trump nas primeiras semanas, e de seu discípulo inglês, Boris Johnson, que chegou a propor que se deixasse o conjunto da população se infectar com o vírus, para assim “imunizar coletivamente” toda a nação – claro, com o custo de algumas centenas de milhares de mortes… Mas diante da crise, os dois tiveram de recuar, no caso de Boris Johnson, sendo ele mesmo gravemente atingido.
O caso do Brasil torna-se assim especial, porque o personagem do Palácio da Alvorada persiste em sua atitude “negacionista”, caracterizando o coronavírus como uma “gripezinha”, definição que merece entrar nos anais, não da medicina, mas da loucura política. Mas esta loucura tem sua lógica, que é a do “neofascismo”.
O neofascismo não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Por exemplo, não toma a forma de uma ditadura policial, respeita algumas formas democráticas: eleições, pluralismo partidário, liberdade de imprensa, existência de um Parlamento, etc. Naturalmente, trata, na medida do possível, de limitar ao máximo estas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas. Tampouco se apoia em tropas de choque armadas, como o eram as SA alemãs ou o Fascio italiano.
Isto vale também para Bolsonaro: ele não é nem Hitler nem Mussolini, e não tem nem mesmo como referência a versão brasileira do fascismo nos anos 1930, o integralismo de Plínio Salgado. Enquanto que o fascismo clássico propugnava a intervenção massiva do Estado na economia, o neofascismo de Bolsonaro é totalmente identificado com o neoliberalismo, e tem por objetivo impor uma política socioeconômica favorável à oligarquia, sem nenhuma das pretensões “sociais” do fascismo antigo.
Um dos resultados desta versão fundamentalista do neoliberalismo é o desmantelamento do sistema de saúde pública brasileira (SUS), já bastante fragilizado pelas políticas de governos anteriores. Nestas condições, a crise sanitária decorrente da disseminação do coronavírus pode ter consequências trágicas, sobretudo para as camadas mais pobres da população.
Outra característica própria ao neofascismo brasileiro é que, apesar de sua retórica ultranacionalista e patrioteira, ele é completamente subordinado ao imperialismo americano, do ponto de vista econômico, diplomático, político e militar. Isto se manifestou também na reação ao coronavírus, quando se viu Bolsonaro e seus ministros imitar Donald Trump, culpando os chineses pela epidemia.
O que Bolsonaro tem em comum com o fascismo clássico é o autoritarismo, a preferência por formas ditatoriais de governo, o culto do Chefe (“Mito”) Salvador da Pátria, o ódio a esquerda e ao movimento operário. Mas não consegue organizar um partido de massas, nem tropas de choque uniformizas. Tampouco tem condições, por enquanto, de estabelecer uma ditadura fascista, um Estado totalitário, fechando o Parlamento e colocando fora da lei sindicatos e partidos de oposição.
O autoritarismo de Bolsonaro se manifesta no seu “tratamento” da pandemia, tentando impor, contra o Congresso, os governos estaduais e seus próprios ministros uma política cega de recusa das medidas sanitárias mínimas, indispensáveis para tentar limitar as dramáticas consequências da crise (confinamento, etc). Sua atitude tem também traços de social-darwinismo (típico do fascismo): a sobrevivência dos mais fortes. Se milhares de pessoas vulneráveis – idosos, pessoas de saúde frágil – virem a falecer, é o preço a pagar, afinal, “o Brasil não pode parar!”.
Um aspecto específico do neofascismo bolsonarista é seu o obscurantismo, o desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo “evangélico”. Esta atitude, digna do terraplanismo, não tem equivalente em outros regimes autoritários, mesmo aqueles que têm como ideologia o fundamentalismo religioso como é o caso do Irã. Max Weber distinguia religião, baseada em princípios éticos, e magia, a crença nos poderes sobrenaturais do sacerdote. No caso de Bolsonaro e seus amigos pastores neopentecostais (Malafala, Edir Macedo, etc) se trata mesmo de magia ou de superstição: parar a epidemia com “orações” e “jejuns”…
Embora Bolsonaro não tenha conseguido impor o conjunto de seu programa mortífero, uma parte dele – por exemplo, um relaxamento do confinamento – talvez se imponha, por meio de imprevisíveis negociações do presidente com seus ministros, militares ou civis.
Apesar do comportamento delirante do sinistro personagem atualmente instalado no Palácio da Alvorada, e da ameaça que ele representa para a saúde publica, uma parcela importante da população brasileira ainda o apoia, em maior ou menor medida. Segundo sondagens recentes, só 17% dos eleitores que votaram nele se mostram arrependidos de seu voto.
O combate da esquerda e das forças populares brasileiras contra o neofascismo ainda esta no começo; será preciso mais do que alguns simpáticos protestos de caçarolas para derrotar esta formação política teratológica. Certo, mais cedo ou mais tarde o povo brasileiro vai se libertar deste pesadelo neofascista. Mas qual será o preço a pagar, até lá?
Post Scriptum: Em 20 de abril Bolsonaro fez uma declaração significativa. Disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pelo Covid-19, isto é inevitável”. Claro, seguindo a lógica da “imunização de grupo” (proposta inicial de Trump e Boris Johnson, depois abandonada), isto talvez pudesse acontecer. Mas só seria “inevitável” se Bolsonaro conseguisse impor sua política de recusa das medidas de confinamento: “o Brasil não pode parar”.
Quais seriam as consequências? A taxa de mortalidade do Covid 19 no Brasil atualmente é de 7% das pessoas contaminadas. Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos.
Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio. Por um crime equivalente, vários dignitários nazistas foram condenados à forca pelo Tribunal de Nuremberg.
*Michael Löwy é diretor de pesquisas, na França, do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Compartilhamos o curto e claro manifesto com o qual acadêmicos holandeses propõem uma mudança do paradigma econômico mundial depois da crise da pandemia. Muitas pessoas estão escrevendo sobre novos paradigmas para um outro mundo possível após a pandemia. Nos ajuda a pensar! A nota foi publicada por El Clarín, Chile, 27-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo, para IHU, 29 Abril 2020.
Aparentemente a Holanda é o país que com mais força está tomando o desafio de reestruturar sua economia a partir do que nos vivemos no presente. Nesse contexto, 170 acadêmicos holandeses escreveram um manifesto em cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da covid-19, baseado nos princípios do decrescimento:
Passar de uma economia focada no crescimento do PIB, a diferenciar entre setores que podem crescer e requerem investimentos (setores públicos críticos, energias limpas, educação, saúde) e setores que devem decrescer radicalmente (petróleo, gás, mineração, publicidade, etc.).
Construir uma estrutura econômica baseada na redistribuição. Que estabelece uma renda básica universal, um sistema universal de serviços públicos, um forte imposto sobre a renda, ao lucro e à riqueza, horários de trabalho reduzidos e trabalhos compartilhados, e que reconhece os trabalhos de cuidado.
Transformar a agricultura para uma regenerativa. Baseada na conservação da biodiversidade, sustentável e baseada em produção local e vegetariana, ademais de condições de emprego e salário justas.
Reduzir o consumo e as viagens. Com uma drástica mudança de viagens luxuosas e de consumo desenfreado, a um consumo e viagens básicas, necessárias, sustentáveis e satisfatórios.
Cancelamento da dívida. Especialmente de trabalhadores e donos de pequenos negócios, assim como de países do Sul Global (tanto a dívida a países como a instituições financeiras internacionais).
Por André Singer, Christian Dunker, Cicero Araújo, Felipe Loureiro, Laura Carvalho, Leda Paulani, Ruy Braga e Vladimir Safatle – Publicado em FSP – 24/04/2020.
O projeto bolsonarista e a pandemia
Nas comunidades antigas, costumava-se escolher chefes com poderes excepcionais em duas ocasiões: na guerra e na epidemia. Os romanos chamavam esse poder concentrado de “ditadura”. Na época contemporânea, ditadura passou a ser o nome, não de um instrumento de governo passível de ser implementado em contextos de crise, mas de um regime político autoritário, necessariamente resultado de uma usurpação. A coincidência do nome nos lembra uma distinção sutil que o século XX provou fazer toda a diferença, confirmando um velho adágio: “a ocasião faz o ladrão”.
A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de instrumentalizar a Polícia Federal, que ocasionou a demissão do Ministro da Justiça, é apenas o último elo de uma longa cadeia de um projeto autoritário.
Antes da explosão do coronavírus, o núcleo duro do bolsonarismo vinha lançando as bases de um regime antidemocrático assentado na submissão das práticas de governo à lógica da mobilização permanente – nas redes, nas ruas, nas igrejas e, perigosamente, nos quartéis. Tal mobilização parte do diagnóstico do esgotamento dos espaços de negociação próprios à democracia liberal, mas não no sentido de reformá-la, muito menos substituí-la por mecanismos de democracia direta. Trata-se de uma guinada autoritária que se centra em uma liderança de culto personalista, cujos atos e palavras pretendem simbolizar a verdade, sem qualquer abertura para o dissenso.
Vemos o modelo espalhar-se pelo mundo. Tendo o presidente norte-americano Donald Trump como líder, Bolsonaro e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán formam alguns dos principais integrantes dessa internacional autoritária de extrema-direita. Orbán usou a crise do coronavírus para obter poderes excepcionais, representando o experimento autoritário furtivo mais bem realizado até agora. Diz-se furtivo, nos termos de Adam Przeworski, porque não decorre de um golpe de Estado, mas implementa-se aos poucos, alicerçado na letra da lei, e conduzido por líderes democraticamente eleitos – semelhante, aliás, à maneira pela qual determinados regimes fascistas ascenderam ao poder, como o nazismo alemão.
Ainda candidato à presidência, Bolsonaro dera inúmeras provas de seu projeto autoritário, indo de declarações favoráveis à ditadura militar (1964-1985) ao encorajamento de execuções extrajudiciais pela polícia; da negativa à legitimidade de adversários políticos a ameaças de golpes de Estado. Uma vez presidente, os ataques ao Estado de Direito continuaram. No final de outubro de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, porta-voz informal do presidente, ameaçou editar, em caso de radicalização, um novo AI-5. Um mês depois, o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, repetiu a ameaça. Em janeiro deste ano, o líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (GO), afirmou que a Constituição prevê a suspensão de garantias e liberdades individuais e coletivas em caso de necessidade. Em fevereiro, o motim de policiais militares no Ceará, apoiado indiretamente pelo presidente, representou uma ameaça ainda maior à democracia, com quebra de autoridade militar, esvaziamento do poder de governadores, e demonstração da fidelidade de lideranças dos amotinados a Bolsonaro.
No Brasil pré-pandemia, o pretexto que vinha se formando para o fechamento da democracia era a missão de vencer o inimigo interno, caracterizado como antinacional e anticristão. Aqui se amalgamam um conjunto de estereótipos e preconceitos que perpassam concepções sobre família, sexualidade, gênero, raça, drogas, segurança, educação, cultura, ciência, propriedade privada, relações internacionais e, unindo tudo , o papel do Estado na sociedade e no mundo. Assentado na construção do inimigo doméstico, o projeto bolsonarista de poder impõe uma dinâmica de contínua transformação do país, visando a consolidação de uma sociedade intolerante, violenta, e voltada à preservação e aprofundamento das estruturas historicamente desiguais de poder, status e riqueza.
O horizonte maior do bolsonarismo é a mutação ideológica de setores da sociedade, que passam a operar, sem recalque algum, a partir de profunda indiferença, aversão à solidariedade, e falta de respeito ao próximo. Estamos diante de uma tentativa de revolução conservadora. Essa revolução conta com uma base altamente mobilizada – e, o mais dramático, parte dela armada –, disposta a seguir cegamente os passos do líder. Alicerçado em sindicalismo militar, culto à violência, e glorificação das Forças Armadas e das polícias, Bolsonaro mantém seguidores fiéis nas fileiras dessas corporações, além de nas milícias. Trata-se de um poder que não se pode subestimar.
De que forma a pandemia afeta esse projeto? Na Hungria, a fim de empregar a Covid-19 como pretexto para fechar ainda mais a democracia, Orbán teve que reconhecer a gravidade das ameaças à saúde pública que se abatem sobre o mundo. A adoção urgente de medidas restritivas para frear a transmissão do vírus serviu para que o primeiro-ministro húngaro disfarçasse as ambições ditatoriais. No contexto pandêmico, o parlamento do país, controlado pelo partido de Orbán, aprovou a possibilidade de o primeiro-ministro governar por decreto, cancelar eleições e punir disseminadores daquilo que o próprio Executivo considerasse como informações falsas que pusessem em risco a saúde da população. Ficou claro, ali, que a pandemia pode se transformar em grande ameaça à democracia, por tratar-se de um álibi perfeito para a necessidade de estabelecer um regime de exceção.
Mas a posição de Jair Bolsonaro tem sido, ao contrário, a de negar e esconder os enormes riscos trazidos pela doença. Em um primeiro momento, até mesmo a profundidade do colapso econômico causado pela pandemia foi minimizada: em 16 de março, o ministro da Economia Paulo Guedes ainda declarava que a economia brasileira “poderia perfeitamente crescer 2,5% neste ano”. Num segundo momento, o Planalto passou a reconhecer o perigo econômico, porém apenas para atribuí-lo às medidas restritivas tomadas por prefeitos e governadores. Nesse sentido, ao minimizar a pandemia, Jair Bolsonaro abriu mão da possibilidade de tomar ele próprio as rédeas da situação, acumulando poderes excepcionais como Orbán; ao contrário, vem se apresentando como paladino das liberdades individuais, do direito de trabalhar, de ir e vir e, até mesmo, da privacidade dos dados.
Para a perplexidade geral, porém, os sinais de que o horizonte continuava a ser a concretização do projeto autoritário não cessaram em meio ao negacionismo. Em 15 de março, suspeito de portar o vírus, Bolsonaro decidiu misturar-se a manifestantes em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns dias depois, declarou que decretar tanto o estado de sítio quanto o estado de defesa seria algo “relativamente fácil”, coisa de “poucas horas”, por meio de “medida legislativa para o Congresso.” Se aprovadas pelo Congresso, isso permitiria restringir direitos de reunião, sigilo telefônico e liberdade de imprensa, além de viabilizar busca e apreensão em domicílio sem mandato judicial e até mesmo prisão por “crime contra o Estado”. Em 19 de abril, Dia do Exército, Bolsonaro discursou diante de manifestantes pró-intervenção militar em Brasília na frente do QG do Exército, dizendo que não haveria mais “negociação” possível com os patifes (leia-se: Rodrigo Maia e STF, principais alvos da manifestação), e que “agora é o povo no poder”.
A escalada contra o Estado de Direito, o negacionismo e a tática de esgarçamento das instituições vêm inflando a oposição ao presidente no Legislativo, no STF e dentro de seu próprio ministério, além de ter provocado perda de apoio ao governo em parte das elites econômicas do país. A garantia por parte do STF da autonomia de estados e municípios para determinarem políticas de isolamento social e as dificuldades para demitir o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cujas políticas opunham-se diametralmente à retórica presidencial, sinalizam um contexto menos favorável ao projeto bolsonarista. Do mesmo modo, a saída do ministro Sérgio Moro representa um duro movimento de desconstituição da rede de apoios institucionais que sustentavam o presidente.
Ocorre que o isolamento político e institucional de Bolsonaro funciona para reforçar o mito do “salvador acorrentado”, refém de instituições corruptas e antinacionais, permitindo-lhe manter a prática de jogar nas costas de supostos inimigos internos – agora representados especialmente pelos governadores e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia – a culpa por uma potencial perturbação da ordem pública, enquanto o presidente seria o único preocupado com a defesa do emprego e da renda da população. Com isso, Bolsonaro visa ampliar apoio junto às camadas populares desprotegidas e consolidar sua relação com setores empresariais – como o varejo, por exemplo –, que sofrerão impactos profundos do que deve ser a maior queda anual de PIB de nossa história.
Apesar de ser uma aposta de altíssimo risco, ela poderá prosperar a depender da longevidade e gravidade da crise. Somando-se o culto quase religioso à personalidade de Bolsonaro com o fato de parte significativa dos apoiadores estar armada, concentrando-se nas fileiras inferiores do Exército (cabos, sargentos, tenentes e capitães), nas polícias e nas milícias, temos uma combinação explosiva para contextos de instabilidade e incerteza, ainda mais em se tratando de uma figura cujo projeto é exatamente o de destruir a democracia. Trata-se, em suma, de um projeto de revolução conservadora que é capaz de colocar Jesus Cristo atrás de uma arma e de militarizar nossas escolas.
As contradições do bolsonarismo
Mas a pandemia também cria uma oportunidade para os opositores do presidente. Por constituir um inimigo literalmente invisível, o combate ao vírus precisa ser coletivo para ser eficaz. Agir em coletividade, no entanto, representa diluir as divisões com as quais o bolsonarismo opera, com sua desumanização de inimigos internos e sua permanente polarização do bem contra o mal. Daí também o porquê de Bolsonaro negar a existência de uma ameaça à saúde pública, recriando dicotomias que mantenham os adeptos permanentemente mobilizados.
O ponto crucial de seu argumento é: como comparar a morte física de alguns à morte econômica do país, impedido de produzir, trabalhar e sustentar os filhos, que resultaria em número infinitamente maior de mortes? O Brasil está sendo colocado diante de uma escolha falsa: ou a morte física provável ou a morte econômica certa. A terceira e óbvia saída, que recusa o dilema entre a morte econômica e a morte física, envolve minimizar o quanto possível a letalidade do vírus, via isolamento social – este último coordenado com estados e municípios e amparado por amplo apoio emergencial ao sistema público de saúde –; e atenuar também, na magnitude e no tempo necessários, a perda de renda e emprego, a partir da aprovação de medidas de proteção e de apoio a setores econômicos em colapso.
A adoção do terceiro caminho exigiria o abandono de dois dos principais pilares do bolsonarismo. Para frear o contágio do vírus e evitar o colapso do sistema hospitalar, é necessário valorizar mais do que nunca a ciência e a universidade, deixando de lado o antiintelectualismo que está na essência, sobretudo, da ala olavista. Para preservar ao máximo a renda da população durante a fase de isolamento e impedir uma depressão da economia após o controle da pandemia, é preciso pôr fim ao fundamentalismo de mercado que ajudou a eleger Bolsonaro. Essa questão não precisou ser enfrentada, por exemplo, por Viktor Orbán na Hungria, que une à plataforma autoritária uma forte oposição ao neoliberalismo e à globalização.
Para eleger-se presidente em 2018, ao invés de culpar estrangeiros pela perda de empregos, como fizeram líderes de extrema direita em países do Norte global, Bolsonaro aproveitou-se da frustração crescente da população com a piora das condições de vida desde 2014-16 para reforçar o senso comum de que a corrupção do establishment político – e da esquerda, em particular – teria sido a responsável pela recessão econômica. Para a economia voltar a crescer, seria necessário, portanto, livrar-se do próprio Estado em suas diversas esferas de atuação, exceto a da segurança e encarceramento.
Em meio à crise atual, que requer mais do que nunca a atuação do Estado, o governo se vê em uma encruzilhada. De um lado, se não abandonar o fundamentalismo de mercado, terá de lidar com a perda de popularidade entre os mais afetados pela crise. De outro, ao mudar radicalmente o discurso na economia, expõe contradições intestinas. Assim, o que estamos vendo são tentativas de fazer um pouco de cada.
Em uma mudança improvisada, mas substantiva, ao ser pressionado por projetos aprovados a toque de caixa pelo Congresso, o governo acabou implementando medidas radicalmente contrárias ao DNA neoliberal, entre as quais a concessão de vultosos recursos para o programa de renda básica emergencial, o pagamento de parte do seguro-desemprego para trabalhadores com redução de jornada, a desoneração de diversos setores econômicos, e a oferta de linhas de crédito subsidiado para empresas em dificuldade. No último dia 22 de abril, sem a presença de nenhum representante do Ministério da Economia, o Ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, anunciou um plano de recuperação econômica de R$ 30 bilhões em investimentos em infraestrutura até 2022. De outro lado, apesar das importantes mudanças, a equipe econômica mantém o discurso neoliberal de que serão necessárias reformas estruturais, cortes agressivos de despesas e privatizações no contexto pós-pandemia.
No caso do pilar antiintelectual, a resposta foi menos ambígua. O presidente recusou-se por completo a valorizar a ciência e a apoiar as medidas de isolamento, optando, em sua qualidade de chefe de Estado e de governo, por uma verdadeira sentença de morte aos grupos de risco. Ao mostrar-se indiferente à tarefa de proteger os cidadãos contra a ameaça da morte, Bolsonaro rompe com o princípio basilar do pacto social e com a justificativa da existência do próprio Estado: a garantia do direito à vida.
As informações que surgem a cada dia sobre a dinâmica de espraiamento da pandemia, a natureza da doença produzida pelo coronavírus e as terapias eficazes para tratá-la ou preveni-la ainda precisam ser submetidas ao método científico de verificação e refutação empíricas – algo que requer tempo e cautela. Entretanto, com base no que já aconteceu em outros países, acumulam-se evidências sobre o grau de letalidade da Covid-19 e a grande variedade dos grupos de risco. No contexto em que a realidade tende a se impor sobre teorias conspiratórias com a força persuasiva do número de mortos e doentes, o modus operandi típico do bolsonarismo arrisca-se a perder força.
Há também fortes evidências de que os mais pobres serão muito mais afetados, não só pelo maior número de contaminações (transporte público, número de pessoas no domicílio, falta de acesso a saneamento, dificuldade de manter o isolamento sem perda excessiva de renda ou emprego), mas também pela maior gravidade dos casos pela incidência de comorbidades. A desigualdade no acesso à saúde é abissal: quase cinco vezes mais leitos de UTI por 10 mil habitantes na rede privada do que no SUS. Ou seja, os mais vulneráveis à morte econômica também são os mais vulneráveis à morte física, o que pode fazer das pressões por menos desigualdade uma questão de sobrevivência.
Nesse sentido, é na profunda indiferença do bolsonarismo ao direito à vida que jaz seu calcanhar de Aquiles em contexto de pandemia. Esta fraqueza merece toda a atenção dos setores democráticos, uma vez que pode ser convertida em fator poderoso para barrar o projeto autoritário e retirar seu chefe da presidência. A solidariedade e o espírito de comunidade que se formam em torno da experiência coletiva do adoecimento representam a antítese dos afetos típicos da onda neofascista.
A pandemia vem desencadeando uma coordenação de esforços de solidariedade que confronta diretamente o profundo descaso social do governo. Um caleidoscópio de movimentos com foco na assistência de áreas periféricas das grandes cidades ganhou força, especialmente na região metropolitana de São Paulo, a maior do país e a mais afetada pelo vírus até aqui em termos absolutos. Alguns desses grupos são antigos, outros nasceram do próprio acontecimento ou da união de movimentos populares pré-existentes. Todos, porém, do G10 Favelas ao UNAS Heliópolis e Região, do Movimentos Populares Contra o Covid-19 à Campanha Jd. Ângela Contra o Covid 19, articulam-se pelas redes sociais, com a ajuda de voluntários – religiosos e laicos – que atuam in loco nas periferias, formando uma linha de frente tão importante contra a crise quanto aquela constituída por profissionais de saúde em hospitais.
A constituição das experiências vinculadas à dependência mútua e à vulnerabilidade tem o potencial não somente de quebrar a polarização entre patriotas e inimigos da nação, mas também contêm, em seu germe, a própria negação da lógica de esvaziamento da capacidade estatal de atuação e de mobilização de recursos, indo ao encontro, a partir da base da sociedade, das políticas de cunho social recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional e das novas formas de “governar” suscitadas pela pandemia. As iniciativas de solidariedade podem se constituir no embrião de uma nova agenda de combate político.
É fácil perceber o potencial de mobilização que há aí para tornar permanentes as medidas de proteção social adotadas durante a fase de combate à pandemia e para a criação de sistemas efetivos de tributação da renda e do patrimônio dos mais ricos, a fim de distribuir melhor os custos da crise e impedir o retorno das políticas de austeridade. A garantia de recursos para a saúde pública, pesquisa científica, saneamento básico e outras áreas que a pandemia torna prioritárias exigirá também a mobilização intensa da sociedade civil em torno da revisão do teto de gastos. Certamente essas demandas enfrentarão forte resistência dos adeptos do Estado mínimo, mas o contexto engendrado pela agressividade do novo coronavírus abriu espaço para a construção de uma agenda efetiva de transformação social, que deve servir como pilar na luta da sociedade contra o autoritarismo.
III. A hora da decisão
O problema é que ao provocar o que pode se tornar a maior crise econômica da história do capitalismo, em meio ao grande número de óbitos derivados diretamente do vírus, o coronavírus ameaça, também, produzir um ambiente turbulento e propício aos ataques contra a democracia. Uma liderança autoritária, como a do atual presidente, vai se lançar a todo o tipo de aventuras, usando os piores estratagemas – desde doses cavalares de desinformação e cortinas de fumaça até a instigação de violência contra “inimigos”. Bolsonaro é o tipo de figura que não economiza no hábito de apontar o dedo e linchar “culpados”, insuflando seguidores a destruir os obstáculos que estariam mantendo o “mito” acorrentado e que o impediriam de governar para o bem da nação. Tudo em meio a uma malta armada e fanática. Alguém duvida de quão trágica poderá ser essa história se nada for feito para barrá-lo?
Dado que a pandemia abriu janelas de oportunidades para os setores democráticos, expondo as contradições desse projeto nefasto, é esta a hora de agir. Nunca estivemos tão próximos do precipício, como deixa evidente o discurso de Bolsonaro no Dia do Exército, quando nem se deu ao trabalho de disfarçar sua disposição para golpear mortalmente as instituições democráticas. Não há como imaginar que os fanáticos que o seguem se restringirão ao plano da retórica, furtando-se de sacar as armas caso sejam convocados a salvar aquele que cegamente idolatram. Editoriais de jornal, admoestações, “broncas”, sermões edificantes, mesmo as resoluções de contenção dos demais poderes constitucionais, nada disso terá o dom de os dissuadir. Aliás, quanto mais essas manifestações se repetem sem trazer consequências, mais perdem autoridade.
Só um gesto contundente e decisivo poderá alcançar aquilo que as palavras apenas não são mais capazes de obter. Sabemos que setores conservadores e liberais, predominantes no Congresso Nacional, e importantes em vários setores da sociedade civil, hesitam em dar esse passo e ainda buscam modos de evitar o confronto incontornável. A eles, lembremos o que disse o então parlamentar Winston Churchill sobre a estratégia dos governantes de seu país, à época liderados pelo também conservador Neville Chamberlain, a fim de apaziguar Hitler no contexto imediatamente anterior à eclosão da 2ª Guerra Mundial: “Preferem perder a honra a ter a guerra. No fim, perderão a honra e terão a guerra”. Só que com uma diferença: terão a guerra em condições piores.
Quando a pandemia mostra de modo cru a face desumana e violenta do bolsonarismo, é urgente que todas as forças democráticas do Brasil unam-se de vez para dar um basta à escalada do projeto autoritário, colocando o afastamento de Bolsonaro do poder como prioridade número um da agenda. Antes que seja tarde demais.
André Singer, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
Christian Dunker, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP
Cicero Araújo, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
Felipe Loureiro, Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da USP
Laura Carvalho, Professora Associada do Departamento de Economia da USP
Leda Paulani, Professora Titular do Departamento de Economia da USP
Ruy Braga, Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP
Vladimir Safatle, Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP
Está virando moda, em certos grupos, pedir a volta da ditadura militar e a reedição do AI 5, para resolver os problemas nacionais. Eu me pergunto se isto é para se levar a sério ou é uma brincadeira de mau gosto, ou se há outros interesses escusos por trás. A democracia possibilita estas manifestações contra a ordem estabelecida, mas preocupa ver pessoas que são o que são por causa dos processos democráticos de chegada ao poder agindo contra a ordem democrática. O povo brasileiro tomou a taça amarga da ditadura durante vinte anos, no século passado. Vivemos o drama dos desaparecidos, da tortura por parte do Estado, toda uma geração perdida em termos de formação de lideranças. Isto tudo aconteceu e foi a duras penas que voltamos a ordem democrática.
Continuamos, no entanto, sendo um país de corruptos que se apossam da política, fazendo dela um balcão de negócios. Somos uma nação injusta. Uma parte da população está excluída da economia, quando o país tem potencial para integrar a todos. Enquanto uma elite tem acesso à tecnologia de ponta, boa parte dos cidadãos está excluída. A crise do coronavírus expôs ao mundo como é perverso o nosso sistema de saúde, apesar do SUS ser admirado no mundo como exemplo de organização. Estes problemas são históricos e são eles efeito e causa do mal estar da sociedade brasileira.
Uma ditadura militar ou civil só agravaria o quadro das injustiças, mesmo porque o tipo de gente que quer esta solução é o mesmo que é contra as terras indígenas, contra a ecologia, contra o sistema de quotas nas universidades, contra a maioridade penal aos dezoito anos, a favor do porte de armas. Apesar dos problemas, a democracia ainda tem os melhores caminhos para a superação dos nossos problemas, que serão resolvidos quando gente diferente chegar ao poder. Na democracia há duas formas de alguém chegar ao poder: por eleição ou por concurso público. As regras têm que ser claras e valer para todos. Quem ganha a eleição não ganha um poder absoluto, mas tem que obedecer a ordem constitucional que é o conjunto das leis. Quem passa num concurso ou é nomeado por quem de direito, segundo regras, precisas tem que agir dentro da lei.
O jogo democrático tem suas regras que devem ser observadas por todos. A democracia supõem um Estado que está a serviço de todos e que tem o dever de proteger aqueles que são mais fracos. Todo poder é temporário, e deve ser exercido com transparência e dentro dos limites do mandato recebido. Os diferentes grupos se organizam em partidos políticos que tentam convencer a população que suas propostas são as melhores e o voto da maioria decide os rumos da nação. O caminho democrático é organizar partidos que se empenhem a buscar, junto ao povo, o melhor e depois representar os interesses da nação no exercício do poder.
Por isso, para os males da democracia precisamos de mais democracia, mais participação popular. Quanto mais participação direta nos negócios do Estado, mais controle social e aí se tem garantia contra a corrupção. A tentação de entregar o poder absoluto a alguém ou a um grupo de iluminados sempre existiu e sempre vai existir, mas nunca será uma boa solução.
DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO DE MANAUS
JORNAL: EM TEMPO, Data de Publicação: 25 e 26.4.2020
Em meio às incertezas trazidas pela pandemia de coronavírus, repensar sobre as formas de existir, viver e conviver é a chance de sairmos mais humanos disso tudo. É o que aponta o padre e filósofo Manfredo Oliveira.
Entrevista publicada por Entrevista Nota 10, Universidade de Fortaleza – www.unifor.br em 14.04.2020
Onde só se enxerga caos, há também a possibilidade de um recomeço. Para o filósofo e padre Manfredo Araújo de Oliveira, professor de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC), os momentos de incertezas trazidos à humanidade pela pandemia de Covid-19 oferecem a grande chance de refletirmos sobre as formas de configurarmos nossas vidas em nível individual e coletivo. “É uma ocasião que nos oferece a grande chance de reconhecer a dignidade de cada ser”, disse o professor.
Reconhecido como um dos principais filósofos do Brasil, Manfredo pontuou ainda que, antes mesmo da Covid-19, a humanidade já estava ameaçada em sua sobrevivência. Segundo ele, os modelos econômicos de acúmulo de riqueza e os padrões de consumo adotados estão levando ao colapso tanto social quanto ecológico. Por último, ele enfatizou a necessidade de se criar uma grande rede de solidariedade global para proteger os países mais frágeis do vírus globalizado. “Aqui a solidariedade se revela não simplesmente como um convite, mas como uma obrigação”.
Confira a entrevista.
Quais os paradigmas que a pandemia de Covid-19 já quebrou e quais paradigmas novos começam a surgir?
Talvez seja ainda cedo para afirmar que paradigmas foram quebrados, mas podemos experimentar certos paradoxos que abrem perspectivas de transformação dos modelos de configuração de nossas vidas. O primeiro e fundamental é o da absolutização do mercado como mecanismo básico de regulação do sistema econômico. Suas regras são consideradas como um mecanismo semelhante às leis da natureza, algo objetivo que o ser humano não tem condições de modificar. Por isto se situam fora do campo das interrogações éticas. Cria-se, assim, uma dicotomia radical entre economia e ética. A única questão aqui é a da eficiência na acumulação de riqueza, o que tem produzido o espetáculo tremendo de milhões de pessoas em condições de fome e miséria ao mesmo tempo em que o desenvolvimento tecnológico se faz cada vez mais capaz de produzir em abundância os bens necessários à vida. Na atual crise são justamente os mais pobres os mais vulneráveis e esse fato é uma oportunidade para se compreender a natureza do sistema que nos marca e suas consequências desastrosas. Uma das consequências mais graves deste sistema é a crise ecológica. Por esta razão, a crise atual abre possibilidades para uma verdadeira “transição ecológica”. Por exemplo, a crise poderá ter efeitos benéficos sobre o aquecimento global e, consequentemente, sobre a saúde pública. Na China, as mortes associadas à poluição do ar são estimadas em um ou dois milhões de pessoas a cada ano e a poluição diminuiu em 20% a 30% durante a crise. Estas coisas nos levam a refletir seriamente sobre o mundo que construímos abrindo perspectivas de estruturação de uma economia sustentável que respeite e cuide da comunidade dos seres vivos e melhore a qualidade da vida humana.
O que a pandemia de Covid-19 pode trazer de positivo para a sociedade? Sairemos desta pandemia pessoas melhores?
Não se pode ter certeza disto, pois, levando em consideração que somos seres livres, sabemos que não temos condições de saber de antemão como as pessoas vão orientar suas vidas no futuro, que elementos sociais, políticos, econômicos e culturais serão condicionantes das decisões humanas no futuro. Mas um acontecimento como o do Covid-19, enquanto ameaça à humanidade, pode conduzir a uma reflexão fundamental sobre aquilo que verdadeiramente importa na vida humana, sobre os verdadeiros valores que devem orientar nossas vidas. É uma oportunidade extraordinária para tomarmos consciência de nossa fragilidade fundamental, por um lado e, por outro, de nossa grandeza enquanto seres vocacionados à fraternidade, à justiça e ao amor. É uma ocasião que nos oferece a grande chance de reconhecer a dignidade de cada ser, de sua alteridade e, de forma muito especial, da dignidade de todo ser humano o que nos deve conduzir à busca de mecanismos para efetivar o reconhecimento universal do valor intrínseco de cada ser, superando toda forma de violência e discriminação, portanto, de refletir sobre a forma de configurar nossas vidas em nível individual e coletivo.
Este momento de estresse coletivo tem despertado inúmeras experiências altruístas, ações de amor ao próximo. São atitudes e sentimentos que tendem a se perpetuar mesmo após a pandemia ser controlada ou cairão no esquecimento quando tudo se acalmar?
É uma possibilidade, mas certamente é uma boa oportunidade para nos lembrarmos de que, antes do Covid-19, a humanidade já estava ameaçada em sua sobrevivência. O Covid-19 visualizou o que muitos não conseguem enxergar ou até tentam negar. Já se sabia que a universalização dos padrões de crescimento e de consumo do mundo rico conduziria a um apocalipse social e ecológico. A imposição pura e simples do ser humano sobre a natureza, em sua fúria de apropriação, conduz, em última instância, à destruição de toda vida no planeta. Somos convidados a pensar num mundo que seja capaz de superar todo tipo de humilhação do ser humano tanto da fome e da miséria quanto do que hoje se chama de “questões da identidade”, ou seja, por exemplo, o fato de ser negro, índio, mulher, drogado, homossexual etc. Por trás destas questões, há posturas que negam a dignidade inviolável do ser humano. A crise é uma grande oportunidade de sairmos dela mais humanos.
Vivemos em uma sociedade cada mais técnico-científica, mas estamos passando por um momento em que a ciência ainda não conseguiu dar respostas às inúmeras incertezas que permeiam a pandemia de Covid-19. Neste momento de incertezas e grandes perdas humanas, qual o papel da religião na vida das pessoas? Como o homem pode equilibrar-se entre razão e fé neste momento?
As respostas da religião não podem substituir as respostas das ciências como também o contrário, pois se põem em níveis diferentes, com objetivos diferentes. O ser humano é um ser extremamente complexo, constituído de inúmeras dimensões. Assim, também, são suas atividades que se realizam em diferentes óticas buscando todas a efetivação do ser humano em diferentes níveis. Um exemplo claro disto é a existência na vida humana de ciências, religiões, artes, filosofias, etc. As ciências buscam a compreensão dos diferentes campos da realidade tematizando suas estruturas específicas, sua maneira de ser e de se comportar, uma atividade de grande importância para o agir do ser humano no mundo, o que fica muito visível sobretudo neste momento de crise. Mas o ser humano tem outras questões que são também centrais em sua vida. Em última análise, ele se defronta com as assim chamadas “questões últimas” que dizem respeito à compreensão do todo da realidade, seu lugar neste todo, o sentido de seu existir e estas são as questões que são enfrentadas, cada vez de uma forma diferente, pela arte, pela religião e pela filosofia. Como diz V. Frankl, o ser humano, além de procurar sentido para coisas determinadas, deseja um sentido último, total, ponto de confluência de todos os sentidos particulares, capaz de dar unidade, nexo e desenvolvimento pleno à totalidade de sua vida e à existência do mundo como um todo. Este é constitui para ele o sentido por excelência. Na minha compreensão do fenômeno religioso na vida humana, seu objetivo é oferecer aos seres humanos respostas a esta questão fundamental que constitui o horizonte radical de orientação da vida.
A Covid-19 diferencia-se de inúmeras outras doenças tão graves e fatais quanto ela por não se restringir ou afetar especificamente determinadas classes sociais ou regiões, tal como acontece com a dengue, a cólera, etc. O senhor acredita que a fato de ser uma doença que afetou profundamente países desenvolvidos e, a exemplo do que aconteceu no Brasil, atingiu primeiro classes sociais mais privilegiadas, influenciou na mobilização mundial? Como o senhor avalia o comportamento ético das lideranças mundiais diante da pandemia?
Experimentamos na crise o espetáculo terrível de um retorno explícito a um nacionalismo extremado de defesa única dos próprios interesses nacionais a tal ponto de se querer, com dinheiro, garantir para o próprio país, com exclusão dos outros, os meios necessários para o cuidado dos doentes. Perde-se com isto uma oportunidade importante para se dar conta de que um mundo globalizado (e a crise também é globalizada) exige que as grandes questões que dizem respeito a todos sejam pensadas em perspectiva global. Há, contudo, alguns testemunhos que vão na direção oposta a este nacionalismo exacerbado. Primeiro uma carta assinada por 165 personalidades globais que pedem uma ação imediata e conjunta ao G20 e um apoio bilionário aos países mais frágeis. Afirma-se nesta carta que todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e bem financiados, estão fraquejando sob a pressão do vírus. Depois, o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, apontou em sua mensagem de Páscoa à nação a questão central da crise: a crise não é uma guerra, é antes um teste de nossa natureza humana. Aqui a solidariedade se revela não simplesmente como um convite, mas como uma obrigação, tese retomada nesse domingo pelo Papa Francisco em sua mensagem pascal ao mundo.
As bolhas de conforto e negação estouraram. A vida não está protegida por cápsulas: a casa, o carro, o shopping. Espalham-se riscos: mudanças climáticas, fome, bactérias resistentes. Enfrentá-las exige desafiar as cegueiras do capital
Por George Monbiot – OUTRASPALAVRAS – Publicado 09/04/2020 – Tradução: Antonio Martins | Imagem: Alessandro Gottardo
Vivemos por muito tempo numa bolha de falso conforto e negação. Nos países ricos, os cidadãos começaram a acreditar que haviam transcendido o mundo material. A riqueza acumulada – com frequência, às custas de outros – blindou-os da realidade. Viver por trás de telas, passando entre cápsulas – as casas, os carros, os escritórios e os shoppings – persuadiu-os de que as contingências haviam recuado, de que eles próprios haviam alcançado o ponto almejado por todas as civilizações: o isolamento dos riscos naturais.
Agora, a membrana se rompeu, e nos encontramos nus e ultrajados. A biologia, que pensávamos ter banido, irrompe em nossas vidas. A tentação, quando a pandemia tiver passado, será encontrar uma nova bolha. Não podemos sucumbir a isso. De agora em diante, deveríamos expor nossa mente às dolorosas realidades que negamos por tempo demais.
O planeta tem múltiplas morbidades, muitas das quais farão o coronavírus parecer, em comparação, fácil de tratar. Uma, mais que as outras, tornou-se minha obsessão nos últimos anos: como nos alimentamos? As disputas por papel higiênico, nos supermercados, já são horríveis demais. Espero nunca ter de testemunhar uma luta por comida. Mas está se tornando difícil descobrir como poderemos evitá-las.
Um vasto conjunto de provas está se acumulando, para mostrar como o colapso climático vai, provavelmente, afetar o abastecimento de comida. A agricultura, em muitas partes do planeta, está sendo afetada por secas, inundações, incêndios e gafanhotos (cujo ressurgimento, nas últimas semanas, parece ser o resultado de ciclones tropicais anômalos). Quando chamamos estas ocorrências de “bíblicas”, nos referimos ao tipo de fenômenos que ocorreu num passado remoto, a pessoas cujas vidas quase não podemos imaginar. Agora, com frequência crescente, eles ocorrem para nós.
Num livro a ser lançado em breve, Our Final Warning [“O alerta final”], Mark Lynas explica o que ocorrerá provavelmente ao abastecimento de comida, com cada grau a mais de aquecimento da atmosfera. Ele aponta que o perigo extremo virá quando as temperaturas subirem 3ºC ou 4ºC acima dos níveis pré-industriais. Neste ponto, uma série de impactos inter-relacionados ameaçará projetar a produção de alimentos numa espiral ao abismo. As temperaturas ambientes serão mais altas do que o ser humano é capaz de suportar, o que tornará a agricultura de subsistência impossível, na África e no sul da Ásia. O gado morrerá, por estresse de calor. As temperaturas começarão a superar os limites letais para as plantas cultivadas em muitas partes do planeta. As grandes regiões produtoras de alimentos vão se converter em bacias de poeira. Perdas simultâneas de colheitas, em todo o mundo– algo que nunca ocorreu em tempos modernos – vão se tornar prováveis.
Combinadas com o crescimento da população humana, a perda de água para irrigação, a erosão dos solos e a morte dos insetos polinizadores, poderão projetar o mundo em fome estrutural. Mesmo hoje, quando o planeta produz alimentos para todos os seus habitantes, centenas de milhões estão mal nutridos, devido às desigualdades de riqueza e poder. Um déficit na produção de alimentos pode resultar na fome de bilhões. O sequestro de alimentos, que sempre ocorre nestas condições, terá dimensões globais, com os poderosos desviando comida dos pobres. Ainda que todos os países cumpram as promessas que fizeram nos Acordos de Paris – o que hoje parece improvável –, o aquecimento global ficará entre 3ºC e 4ºC.
Devido a nossa ilusão de segurança, não estamos fazendo quase nada para nos precaver desta catástrofe – muito menos, para evitá-la. Este tema essencial pouco parece penetrar em nossa consciência. Todos os setores ligados à produção de alimentos alardeiam que suas práticas são sustentáveis e não precisam ser mudadas. Quando desafio estas afirmações, sou recebido com ira e insultos, e com ameaças do tipo que não havia vivido desde que me opus à guerra do Iraque. Vacas sagradas e cordeiros de deus estão em toda parte, e o pensamento necessário para desenvolver os novos sistemas alimentares de que precisamos é escasso em toda parte.
Mas esta é apenas uma das crises iminentes. A resistência aos antibióticos é, potencialmente, tão mortal quanto qualquer doença nova. Uma das causas é o modo espantosamente irresponsável com que estes medicamentos preciosos são usados na criação de gado. Quando enormes contingentes de animais são amontoados, os antibióticos são administrados profilaticamente, para prever eclosões de doenças que de outro modo seriam inevitáveis. Em muitas regiões do mundo, são usados não apenas para prevenir doenças, mas também para promover o crescimento. Doses baixas são rotineiramente adicionadas às rações. Seria difícil conceber uma estratégia melhor para promover a resistência das bactérias.
Nos EUA, onde 27 milhões de pessoas não têm cobertura médica alguma, milhões estão agora se tratando com antibióticos veterinários – inclusive aqueles vendidos, sem receitas, para peixes de aquário. As corporações farmacêuticas deixaram de investir de modo adequado na pesquisa de novas drogas. Se os antibióticos deixarem de ser efetivos, as cirurgias vão se tornar quase impossíveis. Os partos serão novamente um risco à vida das mães. A quimioterapia não poderá ser praticada com segurança. As doenças infecciosas, de que confortavelmente nos esquecemos, serão ameaças fatais. Deveríamos debater estes temas tão frequentemente quanto falamos de futebol. Mas quase nunca o fazemos.
Nossas múltiplas ameaças de crise, das quais vimos apenas duas, têm uma raiz comum. O problema pode ser visto na resposta dos organizadores da Meia Maratona de Bath, realizada no Reino Unido em 15 de março. Às milhares de pessoas que pediram cancelá-la ou adiá-la, a resposta foi: “É muito tarde. O local está pronto; a infraestrutura, montada; os patrocinadores, mobilizados”. Em outras palavras, os custos ocultos do evento pesaram mais que seus impactos futuros – a transmissão potencial da doença e as possíveis mortes que poderiam resultar.
O longo tempo transcorrido até que o Comitê Olímpico Internacional adiasse os jogos do Japão reflete processos similares – mas ao menos, a decisão correta foi tomada. Os custos ocultos em setores como os de combustíveis fósseis, pecuária, bancos, planos de saúde e outros impedem as transformações rápidas de que necessitamos. O dinheiro torna-se mais importante que a vida.
Há duas saídas. Podemos, como fazem algumas pessoas, dobrar a aposta negacionista. Alguns dos que desprezaram outras ameaças, com o colapso climático, tentam minimizar os riscos da covid-19. Comprova-o o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, para quem o coronavírus não é mais que “uma gripezinha”. A mídia e os políticos de oposição que pedem a quarentena são, para ele, parte de uma conspiração.
Outra saída é uma virada em que começamos a nos enxergar, de novo, como seres governados pela biologia e pela física, dependentes de um planeta habitável. Nunca mais deveríamos ouvir os mentirosos e negacionistas. Nunca mais devemos permitir que uma falsidade reconfortante oculte uma verdade dolorosa. Não podemos mais correr o risco de ser dominados por aqueles que colocam o dinheiro acima das vidas. O coronavírus nos lembra de que pertencemos ao mundo material.
Diante de uma pandemia cujo alcance global é trágico, uma vítima fatal, pouco mencionada, tem sido o pensamento crítico. Isto é gravíssimo, pois também pode custar vidas. Espremidos entre o consenso midiático-tecnocrático rapidamente construído, de um lado, e o ceticismo irresponsável da extrema-direita, de outro, a intelectualidade progressista parece não encontrar espaço para articular uma posição própria, capaz de interrogar a narrativa liberal dominante e, ao mesmo tempo, rechaçar as contra narrativas reacionárias. No Brasil, tal situação atinge seu ápice em meio ao complexo quadro político atual, fazendo com que toda atitude questionadora da versão midiática corra o risco de ser interpretada como simpática ao obscurantismo de Jair Bolsonaro. O resultado é que aqueles que normalmente poderiam levar a cabo a tarefa de exercitar o pensamento crítico, em um momento tão grave, terminam acanhados, temerosos ou mesmo capitulando por completo frente ao senso comum douto – notadamente neoliberal, vale dizer – contribuindo, assim, para um virtual monopólio da crítica pelos setores mais raivosamente conservadores da sociedade.
Até poucos anos atrás, uma pichação na rua com os dizeres “A GLOBO MENTE” seria certamente obra de algum grupo de esquerda. Hoje em dia, contudo, não é mais possível saber de antemão quem veicula tal mensagem, pois há um crescente movimento da direita radical que agora se apropria de críticas tradicionais dos setores anti-capitalistas, antirracistas e anti-patriarcais, dando-lhes um novo significado, é claro, de acordo com sua agenda política. A grande imprensa não representa o único caso de disputa, ou mesmo sequestro, das pautas políticas progressistas pela chamada ‘nova direita’. Alvos notórios como os organismos internacionais e os processos de globalização (alcunhados de globalismo) são agora atacados com contundência pelo flanco oposto, gerando perplexidade e certa confusão ideológica nos setores que tradicionalmente capitaneavam seu questionamento. O resultado, em muitos casos, parece ser uma defesa automática daquilo que antes era criticável, quase como um instinto automático e irrefletido, na tentativa de se contrapor aos perigos evidentes que a agenda reacionária – explicitamente autoritária e belicosa – apresenta.
Infelizmente, tal gesto não parece surtir o efeito defensivo esperado. Pior ainda, alimenta agendas políticas igualmente violentas e exploradoras (ainda que mais dissimuladas), aprofundando, assim, a regressão ideológica entre os setores progressistas. Neste processo, acaba-se privando os setores em luta e as camadas da população mais exploradas e oprimidas de uma nítida direção moral e intelectual que lhes permita distinguir adequadamente aliados de adversários. É urgente resistir a este verdadeiro eclipse do pensamento crítico instalado com rapidez fulminante em meio à crise do Coronavírus. Caso não recuperemos a nossa capacidade de articular uma posição própria, continuaremos reféns de agendas alheias e incapazes de interferir nos rumos da política durante e após o fim desta pandemia, quando possivelmente será tarde demais para recuperar aquilo que está sendo entregue com assustadora facilidade agora. Três dimensões precisam ser imediatamente enfrentadas: a aceitação acrítica das narrativas da imprensa corporativa; a condução da sociedade por ‘especialistas’ nas ciências naturais; e, por fim, a instalação progressiva de medidas cerceadoras de liberdade rumo a um verdadeiro estado de exceção global.
Os conglomerados midiáticos na crise do Coronavírus
Se algo soa estranho, não é preciso calar-se ou desviar o olhar somente porque alguém ainda mais estranho também o percebe e o denuncia em voz alta. Menos ainda tornar-se cúmplice ou correia de transmissão de práticas discursivas, no mínimo, duvidosas. A cobertura da grande imprensa é um desses casos nos quais o pensamento crítico parece ter sucumbido ao dilema anteriormente descrito. É um erro tático de grandes proporções deixar que questionamentos óbvios sejam feitos publicamente somente por figuras como Bolsonaro, ainda que todos nós em nosso íntimo nos vejamos por vezes indagando coisas similares. A mais óbvia de todas é: por que tamanha atenção não é – nunca foi – destinada a outras causas de morte tão graves quanto a pandemia atual ou (pelo menos até o momento) severamente mais letais que o Coronavírus? Não devemos ter medo de perguntar isso. Bolsonaro o faz por motivos mesquinhos e político-pessoais. Nós devemos fazê-lo por razões mais nobres: a busca da verdade e, principalmente, daquilo que está sendo encoberto pela atual cobertura monotemática e descaradamente indutora de pânico social. Se o atual presidente é cínico, os veículos da mídia corporativa também o são. E isso não podemos esquecer.
Alguém consegue imaginar uma similar contagem de casos e mortos por alguma outra razão – digamos, fome – sendo realizada diariamente, com placares eletrônicos transmitindo sua progressão em tempo real? “Hoje o número de mortos por câncer no mundo atingiu seu recorde”; “esta semana os feminicídios no Brasil superaram os de outros países”; “estima-se que tantos milhões de venezuelanos e iranianos irão morrer nas próximas semanas em decorrência das sanções unilaterais impostas pelos EUA”… Nada disso é imaginável, pois nos levaria a colocar em questão a indústria de agrotóxicos, a violência machista e a letalidade da política imperialista, respectivamente. Em outras palavras, traria nossa atenção para relações sociais mortíferas, de classe, gênero e raça. E isso a Globo não mostra.[1]
Não se trata de subestimar os efeitos e riscos da atual pandemia. No momento atual, isto seria leviano, deveras irresponsável. Mas perguntar por que essa causa mortis tem recebido uma atenção desproporcional da grande imprensa é uma tarefa que não podemos abandonar, menos ainda deixar de graça para nosso pior adversário. No Brasil, mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano, todos os anos.[2] São seres humanos mortos por outras pessoas, por razões sociais, não por razões biológicas per se. Este número deveria chocar, assustar, alarmar e fazer com que tomemos grandes iniciativas de escala nacional para diminuí-lo drasticamente. Mas não o fazemos, em parte porque a imprensa não nos apresenta isso como deveria. Há uma subnotificação brutal dos números de assassinatos da juventude negra e periférica pelas polícias em todo o país, mas não vemos alarde midiático sobre isso. Quantas mulheres sofrem abusos sexuais e violência domestica a cada hora, ou minuto?[3] Tais temas não se tornam emergência; em grande medida passam despercebidos. Em meio à cobertura monotemática da pandemia atual há indígenas sendo assassinados e quilombolas sendo expulsos de suas terras (para dar lugar a uma base militar). Onde estão as câmeras nestes casos? Onde está a cobertura diária da grande mídia dos alertas científicos contra o aquecimento global, as vidas que já ceifou e as que seguirá inviabilizando?
Por isso, em vez de ficar espremidos entre a cobertura oficial e a narrativa oficialista, temos a obrigação de seguir colocando os números e temas em perspectiva, tanto histórica quanto em relação a outras causas de morte, principalmente aquelas ligadas a relações sociais capitalistas. No mundo, 820 milhões de pessoas passam fome diariamente, segundo a FAO[4] e entre 300 a 650 mil morrem anualmente por gripes, segundo a OMS.[5] A própria FAO parou de publicar este tipo de dados (algo que também deve ser questionado), mas da última vez que o fizeram a estimativa era que 25 mil pessoas morriam de fome por dia, em todo o planeta, contabilizando uma cifra maior do que HIV/Aids, malária e tuberculose juntas.[6] A maior causa deste verdadeiro holocausto nutricional é o preço dos alimentos: um problema de distribuição de riqueza, portanto. Façamos as contas: são 17 pessoas morrendo a cada minuto, vítima de algo para o qual existe uma ‘vacina’ bem conhecida: comida. Seria ótimo se este escândalo humanitário obtivesse a atenção que merece, pois isto provavelmente impulsionaria uma resposta eficaz e até mesmo preventiva, como vemos agora. No entanto, só os pobres morrem de fome.
Isto não significa subestimar os perigos do Coronavírus, nem endossar a estupidez que o considera uma “gripezinha”, mas colocar em evidência as relações sociais de poder que produzem subnutrição e morte, além da falência de sistemas de saúde – crescentemente privatizados – ao redor do planeta que se tornam incapazes de lidar com gripes e doenças de todos os tipos. No mínimo, deveríamos exigir dos meios de comunicação que nos informem sobre tais números e calamidades na mesma medida em que o fazem com a pandemia atual. Se não o fazem, deveríamos cobrar respostas para os motivos de tal omissão, para tamanha distorção da informação sobre o mundo em que vivemos – e os demais motivos pelos quais morremos.
Até o momento em que escrevo estas linhas, a epidemia do Coronavírus ceifou a vida de cerca de 30 mil pessoas ao redor do planeta, em seis meses, infectando cerca de 900 mil. Estes números são assustadoramente similares aos da epidemia de Cólera no Haiti, país de apenas 10 milhões de habitantes. Aquela doença, por sinal, foi introduzida por tropas internacionais da intervenção militar da ONU (entidade que nunca devemos parar de criticar) e liderada pelas forças armadas brasileiras durante todos os seus 13 anos de duração: alguma vez vimos uma contagem diária das vidas haitianas perdidas por uma enfermidade trazida de fora, justamente por aqueles que se diziam seus salvadores humanitários? Não. As Nações Unidas assumiram a responsabilidade pela introdução da bactéria? Não. E sabemos bem o porquê. Tais vidas – vidas negras e distantes – simplesmente importam pouco para nossa grande mídia corporativa quando não servem para legitimar uma militarização. Por outro lado, tivemos contagens em tempo real das levas de imigrantes haitianos que entravam diariamente no Brasil, com coberturas assustadoras sobre a “invasão haitiana” em curso…[7] É de se imaginar o que seria feito caso fossem estes imigrantes que tivessem trazido esta pandemia da Covid-19 para nosso país. A lição que fica, é que não podemos abandonar nossa desconfiança quanto a mídia corporativa, suas agendas políticas, sua seletividade, seu elitismo racista e patriarcal. Se a preocupação da grande imprensa fosse mesmo com vidas, estaríamos em uma situação bem melhor, inclusive para enfrentar a grave pandemia atual.
Os ‘especialistas’ de plantão e a defesa da sociedade contra um inimigo invisível
O discurso tecnocrático, que supõe haver uma solução técnica para todo problema social, sempre foi objeto de contundentes críticas por parte dos setores progressistas. Afinal, em nome do saber inquestionável de ‘especialistas’ em cada área (crescentemente compartimentadas), políticas transmitidas como inquestionáveis foram constantemente impostas à classe trabalhadora sob a rubrica do ‘necessário’ e do ‘inevitável’. Esta atitude é típica do neoliberalismo, que busca convencer-nos de que “não há alternativas”, segundo a famosa frase de Margareth Thatcher. Especialistas em previdência afirmam que é preciso cortar direitos; especialistas em segurança pública tem certeza que é preciso aprofundar a belicosidade das ações policiais; especialistas em direito constitucional, há pouco tempo, afirmavam que era preciso destituir uma presidenta por ‘pedaladas fiscais’. Não por acaso, sempre desconfiamos.
O problema é mais amplo e antigo. Em nome da ciência e de boas intenções, os impérios europeus realizaram sua colonização: o racismo científico de fins do século XIX forneceu a base ‘racional’ da missão civilizatória, ao garantir cientificamente que populações não-brancas eram biologicamente inferiores. Era preciso exterminá-las ou dominá-las, portanto. O epistemicídio de saberes tidos como ‘não-racionais’ ou ‘bárbaros’ foi política oficial, como é sabido. As mulheres sempre foram alvo do mesmo tipo de ação cientificista e racionalista, não faltando estudos de renomados ‘especialistas’ que convictamente afirmavam sua inferioridade e irracionalidade frente aos homens. Isso foi feito pela melhor ciência de cada época dos países mais ‘modernos’ e desenvolvidos! É preciso, pois, ter muito cuidado com aquilo que é feito em nome da verdade científica.
O regime político que mais colocou médicos em posições de poder para definir os rumos da sociedade foi o nazismo. Sua busca por uma raça pura levou ao genocídio e a perversos experimentos médicos nos campos de concentração. Sua preocupação com a contaminação pessoal e social traduzia-se tanto no tradicional cumprimento à distância erguendo uma das mãos (para não transmitir qualquer impureza ou doença), como na conhecida metáfora organicista de Hitler que dizia que os judeus deveriam morrer como ‘piolhos’. Isto não é uma coincidência, afinal eugenia e higienismo social sempre caminharam juntos.
É preciso ter muita cautela antes de entregar as definições do rumo de povos inteiros aos médicos. Eles simplesmente não estão preparados para isto e certamente poderão provocar um mal ainda maior. Não conseguem visualizar todas as dimensões da sociedade. Isto não significa que devemos ignorá-los, apenas que não podemos entregar o poder estatal a eles e confiar que tudo vai dar certo. No Brasil, temos um exemplo canônico de tais perigos embutidos no sanitarismo truculento com a chamada ‘Revolta da Vacina’, em 1904, que infelizmente parece estar sendo apagada da memória até mesmo de historiadores das classes populares (a História vista de baixo) neste momento. Classes dominantes e setores dirigentes sempre buscam nas ‘classes perigosas’ e ‘sujas’ um objeto de purificação pela violência. No fundo, o que buscam é reforçar uma cultura de obediência e submissão ao poder político e econômico vigente.
Todo discurso que apresenta uma humanidade desprovida de clivagens – de hierarquias e relações de poder – deve ser colocado sob suspeição. A atual retórica sobre ‘estarmos todos no mesmo barco’ porque trata-se de uma batalha de ‘todos contra o vírus’ é uma dessas armadilhas ontológicas que produz algo extra-social como o inimigo contra quem devemos defender a sociedade. O que some nesta operação são as relações sociais – capitalismo, racismo e patriarcado – que ficam isentos de qualquer responsabilidade na crise atual. Mas sabemos que neste momento a humanidade não irá superar suas diferenças, unindo-se em prol do bem comum: pelo contrário, a grave pandemia só irá aguçar as já brutais relações de opressão e exploração. Os inimigos são outros humanos: o vírus apenas torna esse triste fato mais evidente. Basta ver quem terá direito ao tratamento e quem sequer poderá fazer testes para saber se está infectado. Em nível internacional, isto já é visível, como no caso do confisco de equipamentos médicos por grandes potências levando a acusações de “pirataria” até entre aliados geopolíticos.[8]
Por fim, também por motivos de rigor científico, é preciso rever com prudência a atual defesa incondicional da ‘ciência’. Não há nada menos científico do que uma fé cega na ciência, que seria melhor descrita como cientificismo, típico de personagens machadianos como Simão Bacamarte.[9] Na realidade, esta atitude revela um profundo desconhecimento da história da ciência e do seu funcionamento até hoje. A ciência não fala com uma voz única, mediante uma verdade consensual inquestionável: os cientistas estão constantemente debatendo entre si, discordando, duvidando de estudos anteriores, questionando métodos, estimativas e conclusões. É esta atitude crítica que difere a ciência da religião por exemplo, pois a primeira não pode se basear em dogmas, em verdades absolutas inquestionáveis. Não é preciso ser ‘especialista’ em epistemologia lakatiana ou doutor em teoria do conhecimento para saber que a imagem do conhecimento científico evoluindo progressiva e linearmente já foi descartada há tempos, até por destacados positivistas. O edifício do saber científico não é construído assim, com cada cientista acrescentando seu tijolo por cima de outro e obedecendo a um projeto em comum. Pelo contrário, tal edifício é implodido de tempos em tempos sempre quando chega-se a uma crise do paradigma dominante em determinada área, abrindo uma nova fase de ‘ciência normal’, como diria Thomas Kuhn sobre a estrutura das revoluções científicas.[10] Karl Marx, por exemplo, buscou produzir seu socialismo científico, é verdade, mas o fez questionando a mais pura ciência econômica de sua época, mantendo uma atitude de ‘crítica impiedosa contra tudo o que existe’ contra as verdades disseminadas e aceitas sobre seu objeto de estudo. É este espírito que não se pode abandonar.
Sabemos que remédios que antes eram recomendados para toda a população – como a cocaína foi amplamente prescrita, até para crianças – de repente são considerados nocivos e chegam a ser proibidos. Pessoas da minha idade costumavam passar mercúrio cromo nos machucados da pele, mas “produtos que eram considerados a última palavra em tecnologia provaram ser perigosos para humanos e o meio ambiente”, conforme palavras de especialistas em química da UFRJ.[11] O mais saudável, portanto, é ter cautela e, sobretudo, manter a atitude crítica diante de verdades inquestionáveis que ainda precisam ser comprovadas com o tempo. Não estou falando para ninguém duvidar da lei da gravidade ou defender que a terra é plana, apenas sugerindo não capitular frente ao que é transmitido como imune a questionamentos, especialmente em momentos de pânico social. Se até na física isto é necessário, na economia ou epidemiologia, que trabalham com projeções e estimativas, seria ainda mais.
Na crise do Coronavírus, há uma grande e compreensível tentação de se afastar das sandices bolsonaristas mediante o apelo a alguma ‘verdade’ científica. O problema é que existem várias delas, como fica expresso na plural oferta de estimativas de mortos feitas para cada região ou país: no Brasil, fala-se de 50 mil a 1,5 milhão. Em qual acreditar? São todas científicas. Em qual delas basear políticas públicas? Como combinar tais políticas com outras preocupações cruciais? É uma tarefa difícil que não pode ser entregue à imprensa e políticos de plantão, sempre preocupados com a próxima eleição, mesmo quando dizem que não. Na situação atual, é preciso repetir: duvidar da rede Globo ou de um ‘especialista’ qualquer na TV com ares de cientista não faz de você – de mim, de nenhum de nós – um terraplanista automaticamente. Faz apenas um bem ao exercício da crítica responsável.
Temos o direito de nos perguntar: será que as recomendações (muitas vezes contraditórias) que estão nos passando são realmente as melhores, as mais eficazes e cuidadosas? Como tudo está sendo baseado em contra-factuais, é impossível saber como seria o resultado caso a conduta fosse outra. Então segue legítimo indagar se medidas repressivas e que olham apenas para um aspecto da questão, à moda ceteris paribus, são realmente as mais seguras. Há recentes pesquisas ‘científicas’ que indicam a possível relação entre deficiência de vitamina D e vulnerabilidade ao Coronavírus. Ora, caso isso seja confirmado, no futuro, nos daremos conta que confinar totalmente as pessoas não foi a estratégia mais inteligente, pois ter-se-ia salvado mais vidas caso o distanciamento social fosse acompanhado de recomendações para que as pessoas saíssem de casa para pegar sol por alguns minutos diários, desde que não se aglomerassem. Mais ainda, neste caso, teríamos perdido um grande aliado – o sol de verão – justamente nas regiões sul e sudeste, que apresentam o maior número de casos no Brasil. É cedo para dizer, trata-se de um estudo preliminar, como todos o são a esta altura.[12] Mas não deve ser cedo demais para manter aceso o espírito crítico em busca de melhores soluções. Um ceticismo ponderado não aproxima ninguém de Bolsonaro, pois a tão-celebrada Suécia, por exemplo, é um dos países que se recusou a adotar medidas extremas e manteve até as aulas nas escolas. Decerto, é um país que investiu em bem-estar social por décadas, incluindo o sistema de saúde.[13] Haveria uma correlação entre a precariedade (fabricada por políticas de desmonte ou focadas no lucro) dos sistemas de saúde e o nível de truculência, ou desespero, estatal-midiático durante a crise atual? Será preciso investigar.[14] O que já se pode saber é que o risco de cruzar a linha tênue entre aquilo que é necessário e – na falta de uma melhor palavra – aquilo que se torna totalitário é grande, tornando urgente o resgate do pensamento crítico sobre a pandemia do quase-monopólio entregue à direita radical.
Estados de exceção, vigilância e caminhos sem volta
Felizmente, já existe um crescente número de vozes críticas que vêm alertando para uma escalada autoritária em escala mundial sob o pretexto de ‘combate’ à pandemia. É preciso reforçar este alerta, uma vez que tais medidas de exceção já estão custando vidas e, via de regra, são caminhos sem volta. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte avisou que as forças de repressão irão atirar para matar quem desobedecer ao toque de recolher.[15] Na Índia, um grupo de migrantes foi irrigado com cloro e o governo local disse que foi “excesso de zelo” dos agentes de saúde e que o incidente (gravado em vídeo) foi “devido ao seu entusiasmo excessivo”.[16] Serviços de espionagem israelenses começaram a monitorar seus cidadãos pelo rastreamento de celulares, sem seu consentimento, no que foram seguidos por governos de outros países, estados e cidades.[17] No Brasil, a prefeitura de Recife já está monitorando celulares de 700 mil pessoas, em parceria com uma empresa privada.[18] Aproveitando-se do momento, até medidas que a princípio não possuem relação com a pandemia são implementadas. O governo de Santa Catarina lançou um aplicativo da Polícia Militar supostamente para ajudar no “combate ao novo cornavírus”, mas que inclui ferramentas como a Rede de Vizinhos, uma espécie de dispositivo de vigilância público-privada comum em bairros de classe média, “que será útil na comunicação de risco”: não de infeções, mas da presença de pessoas indesejadas na vizinhança.
Há inúmeros casos ao redor do país e do mundo. A preocupação que devemos ter deve-se ao fato de que Estados de Exceção são sempre seletivos. No mundo em que vivemos, o poder sem limites será sempre exercido contra alguém mais vulnerável, pobre ou fraco. Quando o número de mortes aumentar em concomitância ao empobrecimento agudo provocado pela suspensão das atividades econômicas, qual será a atitude das polícias e forças armadas frente a uma população cada vez mais desesperada? Sem direitos constitucionais ou garantias civis plenamente vigentes, é de se esperar um cenário de massacres ‘em defesa da ordem’, no Brasil e em outras partes. É por isto que se deve evitar a todo custo a linguagem da ‘guerra’ contra o Corona, ou ‘combate’ a epidemia pois, assim como a ‘guerra às drogas’ e o ‘combate à pobreza’, esta securitização de um problema de saúde abre espaço para a violência estatal sem limites. A notícia de que o Ministro da Justiça irá autorizar o emprego da Força Nacional “no combate ao coronavírus” foi recebida com ironia por algumas vozes perspicazes, que questionaram se os soldados iriam atirar no vírus. Na verdade, sabemos para quem suas armas irão apontar para “garantir a segurança pública em determinadas situações”, propositalmente deixadas no ar, sem especificação sobre quais seriam.[19]
Outro precedente perigoso é o fato de atualmente toda atividade política estar suspensa ou acontecer online. A dificuldade para os setores populares é óbvia, sem contar a maior exposição à vigilância e à censura. Se hoje o judiciário está proibindo manifestações de rua (hipócritas, por sinal) da extrema-direita e se o Twitter está apagando arbitrariamente mensagens de um presidente da república (asqueroso, decerto) ou de um poderoso pastor evangélico (charlatão, sem dúvidas), o que irão fazer contra partidos de esquerda, sindicatos, grêmios estudantis e movimentos sociais? A rápida legitimação que temos dado a tais ações, que prima facie nos parecem favoráveis, está empoderando castas militares e judiciais para fazerem o mesmo contra nós num futuro próximo. É um “erro colossal”, como alerta a historiadora lusa Raquel Varela, celebrar tais medidas ou seguir pedindo por mais decretos de sítio, emergência, calamidade e demais atos excepcionais, pois a extrema direita pode sair vencedora desta crise caso medidas assim sigam sendo implementadas.[20]
Além disto, o clima induzido de vigilância entre as pessoas é nefasto para a tentativa de redemocratização pós-corona. Uma guerra de todos contra todos foi instaurada e estimulada por governos e mídia, gerando desde lutas em supermercados por papel higiênico até linchamentos nas ruas a alguém que tossiu, passando por ataques a profissionais de saúde.[21] Em meio a este tipo de agressão e desconfiança mútua entre toda a cidadania, os verdadeiros responsáveis ficam imunes: a expansão capitalista sem limites para dentro do mundo natural e as burguesias que empurram incessantemente esta fronteira em busca de lucros. Longe de ser fruto de uma culinária exótica, conforme propagado sem confirmação pela versão orientalista (racista) que atribuía o Coronavírus a uma excêntrica sopa de morcegos, agora sabemos que é a industrialização ad infinutum da produção agropecuária e sua penetração em habitats novos que nos trouxe esta pandemia.[22] Fica nítido que as diferentes narrativas das elites globais servem apenas para ocultar sua responsabilidade na origem da crise e na precariedade de suas soluções, em especial na falta de equipamentos de saúde adequados. Em suma, não precisamos optar entre o Estado de Exceção imposto pelos meios de comunicação como a única saída, de um lado, e o ‘darwinismo sanitário’, de outro, proposto pela extrema-direita genocida, seja no Brasil ou no Texas.[23] Podemos exercitar o bom senso, o pensamento crítico e, assim, construir coletivamente um conjunto de alternativas e práticas concretas que nenhuma mente sozinha será capaz de encontrar. Mais do que nunca, é hora de o intelectual coletivo contra-hegemônico entrar em ação com mais vigor.
Conclusão
Os três alertas descritos acima não são os únicos desafios da conjuntura atual, apesar de apontarem para importantes facetas do dilema que o pensamento crítico vive em tempos de Corona, em paralelo à ascensão da extrema-direita. No entanto, deve-se agregar um último alerta – à guisa de conclusão – às dimensões ideológicas (mídia), epistemológicas (fé na ciência) e políticas (estados de exceção) abordadas até aqui – e que engloba todas as três. Trata-se da economia, em sentido amplo, ou seja, da oikosnomia, a arte de administrar a casa, de prover o sustento da vida. Não podemos deixar para Bolsonaro e outros da mesma estirpe a defesa da economia, dos empregos, das condições materiais de existência. É um erro tático e um favor que estamos fazendo a nossos inimigos. Não existe oposição entre a vida e a economia: tal dicotomia é falsa e implica numa derrota prévia para o campo popular no embate político.
Precisamos encarar este dilema de frente: a palavra de ordem ‘fica em casa’ não pode ser a única coisa que temos a dizer. Afinal, como recente pesquisa do Datafolha mostrou, a maioria da população gostaria de ficar em casa para evitar a propagação do vírus. Mas o motivo pelo qual a maioria não fica é o fato de não terem sido autorizadas pelos empregadores.[24] Deste modo, é uma ficção a ideia de que jovens irresponsáveis seriam a amostra típica do grupo de pessoas que não atendeu ao distanciamento social. A grande parcela pertence à população proletarizada. Portanto, direcionar o discurso para as pessoas (‘fica em casa’) e não para os patrões e para o Estado (‘permitam que fiquemos em casa’) significa reproduzir o conhecido gesto neoliberal de culpar os indivíduos por sua própria desgraça.[25] Há algo de similar entre este mantra que viralizou junto com o Coronavírus, por um lado, e a conhecida perversidade embutida na defesa da meritocracia capitalista, de outro: ambas atribuem, injustamente, aos indivíduos as responsabilidades por resultados que estão aquém de suas escolhas, por serem de natureza social, estrutural. E não podemos compactuar com isso. É urgente redirecionar o alvo do discurso e construir estratégias de reprodução das condições materiais de existência que a cada dia se veem deterioradas pelo confinamento. E por mais que a caridade e solidariedade ativa sejam fundamentais neste momento, elas também têm um limite: não podem ser a única resposta frente ao tamanho do desafio. Agir como se todos pudessem ficar em casa, como se fosse um problema unicamente de teimosia ou egoísmo, é adotar uma posição de classe deveras elitista, mesmo que inadvertidamente.
Não apenas economicamente, mas por outras razões o simples mantra do ‘fique em casa’ é insustentável, na melhor das hipóteses, ou cruel, na pior. Apenas uma pequena minoria da população é composta por homens, brancos, com renda fixa confortável, casa própria, internet para trabalho remoto e Netflix para passar o tempo, sem filhos para cuidar. Além do fato de muita gente não ter casa, para diversas outras pessoas e segmentos sociais a casa pode significar um lugar de violência, opressão e humilhação cotidiana. Isto não pode ser ignorado. Temos que ser capazes de transcender o slogan televisivo e apresentar propostas que não sejam nem a da direita liberal, nem a da direita fascistóide, que habilmente tem jogado com a necessidade (e o desejo, que é legítimo, por sinal) que as pessoas têm de sair de casa, seja para trabalhar ou para qualquer outra atividade, incluindo o lazer. Além de outro erro tático e submissão ideológica, isto também é perverso em mais um sentido: quem sofre de depressão não pode ser condenado ao isolamento. Nós que sempre defendemos o direito à saúde mental não podemos ignorar este fato agora. É algo sério, importante e que, novamente, pode custar vidas. É uma lástima que Bolsonaro esteja se apropriando de mais essa bandeira nossa e que não tenhamos capacidade de reagir, reivindicando o que é nosso. Assim como no aspecto econômico – que é gritante – a ‘solução’ dos especialistas não pode se dar às custas de um sofrimento possivelmente maior ao que o Corona já causa e certamente irá causar.
Por tudo isso, devemos renunciar à infame escolha, como diz a canção de Caetano, de “optar entre o inseto e o inseticida”.[26] Esse dilema é real e de difícil enfrentamento. Sabemos apenas que a “fé cega”na mídia, nos ‘especialistas’ de plantão e nas medidas de força revelar-se-á uma “faca amolada” para nós mesmos, conforme diz outra canção, de Milton.[27] Nessa avalanche de narrativas que não nos servem, é preciso manter, esta sim, a “estranha mania de ter fé na vida”[28], conforme foi cantada pelo mesmo trovador das Gerais. E não sucumbir jamais ao imobilismo que nos resta caso aceitemos passivamente a postura acrítica frente a ideologia liberal-capitalista-autoritária que, no fundo, informa a ambas as direitas temporariamente em luta. Diversas vozes já se empenham em sair da armadilha aqui descrita; é preciso que muitas outras se somem. A ameaça do Corona é real, seríssima e desafiadora. Não pode de modo algum ser subestimada. Será preciso muita perspicácia para não nos rendermos aos perigos que se sobrepõem ao vírus, numa mescla agoniante de terror.
Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia
Como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida
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*Miguel Borba de Sá é professor de Relações Internacionais da UFSC e membro da rede Jubileu Sul. As opiniões expressas aqui, no entanto, não representam a posição dessas instituições.
AVISO: Como não se trata de artigo acadêmico, certas referências bibliográficas de fundo, não foram explicitadas ou discutidas. A leitora versada nos debates das ciências sociais perceberá, no entanto, que é grande o meu débito para com autores como Gramsci, Foucault e, sobretudo, Horkheimer.
[1] Estimativas modestas apontam que três mulheres são assassinadas por dia no Brasil por razões de gênero e a América Latina, como um todo, é a região com mais feminicídios per capta no mundo. Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/24/actualidad/1543075049_751281.html [2] http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019 [3] São registrados 180 estupros por dia no Brasil, metade deles vitimando a meninas menores de 13 anos, fora os casos não registrados. Ver, a respeito,: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-mais-de-180-estupros-por-dia-numero-e-o-maior-desde-2009.shtml [4] http://www.fao.org/3/ca5162es/ca5162es.pdf [5] https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/influenza-(seasonal) [6] https://unchronicle.un.org/article/losing-25000-hunger-every-day [7]https://oglobo.globo.com/brasil/invasao-de-haitianos-em-brasileia-comecou-em-2010-3593903 https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381 [8] https://www.rt.com/news/484935-us-takes-masks-germany/ [9] Assis, M. “O alienista”. In: 50 contos de Machados de Assis. São Paulo: Cia das Letras, 2007. [10] Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectivas, 2003 [original em inglês de 1962]. [11]Ver artigo dos cientistas do Instituto de Química da UFRJ, em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422006000500040 [12] https://veja.abril.com.br/saude/coronavirus-vitamina-d/ [13] https://www.cnbc.com/2020/03/30/sweden-coronavirus-approach-is-very-different-from-the-rest-of-europe.html [14] O excelente estudo publicado pela FITA em 29/02/20 sugere elementos nesta direção. Ver: Coletivo Chuang, “China, capitalismo tardio e o ‘mundo natural’”. Outras fitas: Contágio Social – coronavírus. [15]https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/02/presidente-das-filipinas-diz-que-mandou-atirar-para-matar-quem-descumprir-regras-de-isolamento.ghtml [16]https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-03/covid-19-migrantes-sao-pulverizados-com-desinfetante-na-india [17] https://veja.abril.com.br/mundo/coronavirus-israel-aciona-medida-de-espionagem-de-emergencia/ [18]https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/24/recife-rastreia-700-mil-celulares-para-monitorar-isolamento-social-e-direcionar-acoes-contra-coronavirus.ghtml [19]https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/31/moro-autoriza-uso-da-forca-nacional-nas-acoes-de-combate-ao-coronavirus.ghtml [20] https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2020/03/16/estado-de-emergencia-um-erro-colossal/ [21] https://www.mirror.co.uk/news/uk-news/coronavirus-nurse-racially-attacked-couple-21701031 [22] https://grain.org/e/6439 [23]https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/03/24/vice-governador-do-texas-sugere-que-idosos-arrisquem-a-vida-pela-economia.htm [24]https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/maioria-tem-medo-de-coronavirus-e-apoia-medidas-de-contencao-diz-datafolha.shtml [25] Esta ideia é exposta, dentre outros, por David Harvey na sua Breve História do Neoliberalismo (2005). [26] Veloso, C. “Eclipse Oculto”. Álbum: Uns. Gravadora: Philips,1983. [27] Nascimento, M. “Fé Cega, Faca Amolada”. Álbum: Minas. Gravadora: EMI-Odeon, 1975. [28] Nascimento, M. “Maria Maria”. Álbum: Clube da esquina2. Gravadora: EMI-Odeon, 1978.