Mais uma vez assistimos a tentativa de pautar a questão do racismo a partir daquilo que assistimos nos Estados Unidos. A imprensa “deu nome aos bois” em relação ao trágico assassinato ocorrido na América do Norte e em qualquer caso internacional de racismo, dizendo o que foi de fato, um homicídio. Toda a agressividade contida nos protestos é colocada em perspectiva, apresentada ao público como uma reação a uma violência primeira.
Por outro lado, aqui no Brasil o jornalismo das grandes corporações de mídia omite a percepção dessas coisas. A cor da pele da pessoa morta, quem a matou, em quais circunstâncias… Tudo isso desaparece. A mensagem passada pela cobertura jornalística pega esses elementos e os jogam no plano das suposições.
E quando alguém vem à público dizer que o assassinato de gente preta no Brasil está estruturalmente instituído, surgem colunistas de opinião, políticos e figuras públicas – quase todos eles brancos, diga-se – afirmar que isso é vitimismo. Parece que só se discute mais seriamente o racismo no Brasil quando ele acontece no estrangeiro. Será essa mais uma trágica faceta daquilo que o dramaturgo Nélson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”?
Aquilo que na terra do Tio Sam é transmitido como expressão de dor e revolta de um povo que não quer ver mais a sua carne sangrar diariamente, no Brasil é chamado de “mimimi” ou convertido pelo discurso midiático em “vandalismo”… Que direito têm os que não são negros (que as vezes preferem esquecer suas origens africanas) ou a imprensa – majoritariamente branca – de querer adestrar protestos e manifestações de indignação?
É preciso também que nos indaguemos todos sobre o que é vandalismo numa sociedade de racistas e profundamente desigual como a nossa. Por acaso, quem é mais vândalo? Aqueles que assassinaram a adolescente Maria Eduarda que estava dentro de sua escola, os que mataram a menina Ágatha no colo de sua mãe, os que alvejaram com mais de 200 tiros o carro do músico Evaldo, os que invadiram e destruíram a casa de João Pedro com 72 buracos feitos por fuzil; ou os torcedores pela democracia que foram às ruas no domingo ou os que participaram do ato antirracistas de Curitiba ontem?
Quem tem autoridade moral para falar de vandalismo em atos populares quando o Estado brasileiro pratica atos barbaramente vândalos contra a maioria de sua população desde sempre? É muito fácil para quem nunca sofreu com o racismo ou com quaisquer outras formas de discriminação exigir regras pequeno-burguesas de etiqueta e civilidade – inclusive em passeatas –para quem nunca foi tratado efetivamente como cidadão de fato nesse país.
Honestamente, onde começa o vandalismo na sociedade brasileira? Certamente não naqueles que hoje protestam contra o racismo ou em quem, cansado de tanto descalabro, prefere o risco de contaminação nas ruas para defender um mínimo de democracia e civilidade neste país. Por que as polícias tratam com tanta cortesia quem está há várias semanas realmente vandalizando as ruas do Brasil, desrespeitando a quarentena, ignorando o bem comum e propondo absurdos como a reedição de um novo AI-5?
Querem maior vandalismo quanto o de nossas autoridades que negam a gravidade da pandemia? O que dizer sobre deixar o Ministério da saúde acéfalo ou forçar a aglomeração da população na porta dos bancos porque não se consegue pagar agilmente um benefício que deveria ser emergencial? Não seria um ato de vandalismo contra a população abrir a economia quando aumentam o número de casos da doença ou ao adulterar a forma como se notificam as mortes por Covid-19 para transmitir uma sensação de controle sobre a pandemia?
Diante de tantas perguntas, é perverso querer imprimir o rótulo de vandalismo a quem historicamente foi impedido de ser cidadão em um país onde ser negro quase sempre foi ter uma sentença de morte assinada no próprio corpo. Se desejamos realmente reescrever a história do Brasil em termos de justiça social, é preciso adotarmos posturas antirracistas. Brancos e mestiços conscientes dessa chaga podem não ter lugar de fala para assumir o protagonismo dessa luta, mas devem ter o dever moral e o compromisso político de apoiá-la com todas as suas forças.
Nesse momento em que nossas possibilidades democráticas são cada vez mais rarefeitas, precisamos todos admitir de fato que historicamente a “carne mais barata do mercado é a carne negra”. Ou somos capazes de reconhecer que esta democracia pela qual tantos temem fracassou em relação à nossa gente negra (e também com indígenas, LGBT’s, moradores das periferias/morros/favelas, mulheres, ribeirinhos…) para redefini-la em base mais inclusivas; ou as forças da intolerância já são vitoriosas desde já.
Finalmente, não nos basta defender genericamente a democracia nesse momento. A população afro-brasileira não pode mais viver em sua própria terra como se estivesse em solo inimigo. Ou somos capazes de construir uma alternava politica que faça o Brasil deixar de ser uma máquina de matar pessoas negras e de conferir cidadania plena a todos, ou será vã nossa luta contra as vozes do fascismo que hoje ladram cada vez mais alto em nossos ouvidos.
*Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor e atua no Movimento Fé e Política.
TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio em troca de dinheiro público
Dia 06 de junho o Estadão publicou matéria afirmando que “TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio ao governo”. A notícia repercutiu em muitos outros meios de comunicação. Dom José Ionilton, bispo de Itacoatiara, AM, publicou esta reação.
Vale destacar que das nove TVs católicas, as Redes de Televisão Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte não participaram da negociata.
Segue o artigo:
Desde que foi revelado o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, vinha sempre confrontando os pronunciamentos feitos naquela reunião com a Constituição Federal, fazendo-nos refletir como tais pronunciamentos feriam nossa Lei Maior.
Hoje, sinto-me na obrigação de comentar os pronunciamentos de outra reunião com o “presidente” do Brasil, acontecida de 21 de maio. Desta vez, não com ministros do governo, mas com padres diretores das chamadas redes de televisão de inspiração católica, com a participação de deputados federais que se dizem católicos, que foram os idealizadores desta reunião virtual.
Um dos pedidos mais explícitos foi feito pelo padre Welington Silva, da TV Pai Eterno, ligada ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, em Trindade (GO). Disse ele: “estamos precisando mesmo de um apoio maior por parte do governo para que possamos continuar comunicando a boa notícia, levando ao conhecimento da população católica, ampla maioria desse país, aquilo de bom que o governo pode estar realizando e fazendo pelo nosso povo”.
Perguntemo-nos: o que este padre chama de “aquilo de bom que o governo” realiza e faz?
O padre e cantor Reginaldo Manzotti, da Associação Evangelizar é Preciso, com rádios e TV próprias, cobrou agilidade e ampliação das outorgas e destacou o contraponto que os católicos podem fazer para frear o atual desgaste na imagem de Bolsonaro e do governo.
Perguntemo-nos: uma TV de inspiração católica deve se submeter, por dinheiro, a fazer este papel ridículo de “frear o atual desgaste da imagem” do governo?
O empresário João Monteiro de Barros Neto, da Rede Vida, afirmou que “Bolsonaro é uma grande esperança”.
Perguntemo-nos: esperança de que João Monteiro?
No Brasil, há nove emissoras de inspiração católica de TV, geradoras de conteúdo: Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte, Pai Eterno, Rede Vida, Canção Nova, Século 21 e Evangelizar – as três últimas ligadas ao movimento da Renovação Carismática Católica.
As Redes de Televisão Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte não participaram da videoconferência. Parabéns a estas TVs de inspiração católica que não aceitaram ser subornadas.
As TVs Pai Eterno, Rede Vida, Canção Nova, Século 21 e Evangelizar participaram da negociata, do toma lá, da cá.
Vou escrever aqui em letras maiúsculas a minha primeira reação ao receber a informação do que estava sendo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo “Por verbas, TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio ao governo”: VERGONHOSO! MERCENÁRIOS!
Lembrei-me das palavras de Jesus no discurso sobre o Bom Pastor. Disse Jesus que o Bom Pastor vem para que todos tenham vida (cf. Jo 10, 10b) e o Mal Pastor, o Mercenário vem para roubar, matar e destruir (cf. Jo 10, 10, 10a).
Outra cena do evangelho que me veio imediatamente à mente foi a passagem de Jesus no Templo de Jerusalém. João relata que no templo Jesus encontrou os que vendiam bois, ovelhas e pombas e os cambistas em suas bancas. João diz ainda que Jesus fez um chicote com cordas e expulsou todos do templo e disse: “Não façais da Casa de meu Pai um mercado” (cf. Jo 2, 13-22). Imaginemos Jesus entrando naquela reunião e ouvindo estes “padres” se vendendo ao governo, fazendo de nossa fé católica um mercado, pedindo dinheiro e prometendo apoiar o governo.
Em Nota de Esclarecimento, emitida na noite do sábado, 06 de junho, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por meio de sua Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação, juntamente com a SIGNIS Brasil e a Rede Católica de Rádio (RCR), associações de caráter nacional que reúnem as TVs e rádios de inspiração católica do Brasil, informam que “não organizaram e não tiveram qualquer envolvimento com a reunião entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, representantes de algumas emissoras de TV de inspiração católica e alguns parlamentares”.
Diz, também a Nota da CNBB: “Recebemos com estranheza e indignação a notícia sobre a oferta de apoio ao governo por parte de emissoras de TV em troca de verbas e solução de problemas afeitos à comunicação. A Igreja Católica não faz barganhas. Ela estabelece relações institucionais com agentes públicos e os poderes constituídos pautada pelos valores do Evangelho e nos valores democráticos, republicanos, éticos e morais”.
Como bispo da Prelazia de Itacoatiara – Amazonas, venho solidarizar-me com a Comissão Episcopal para a Comunicação e com a Presidência da CNBB.
Os Redentoristas e os Jesuítas, também, emitiram notas, dizendo que os seus Religiosos presentes naquela reunião, não foram enviados pelas Congregações. Os Redentoristas são ligados à TV do Pai Eterno e os Jesuítas são ligados à TV Século XXI.
Espero que os Padres “desobedientes”, sejam religiosamente corrigidos, se retratem ou se tomem outras providências. O Cânon 823 diz que “para garantir a integridade das verdades da fé e dos costumes é dever e direito dos pastores da Igreja vigiar para que os escritos ou uso dos meios de comunicação social não tragam prejuízo à fé e à moral dos fiéis”.
Escrevi este texto pensando naqueles que estão no isolamento social. Talvez ajuda a alguém a sair do enfado.
LBoff
Meditação da luz: o caminho da simplicidade
A grande maioria está atendendo às recomendações oficiais de recolhimento social, impedindo desta forma a disseminação do covid-19.
Podem-se fazer muitas coisas nesse recolhimento forçado: uma revisão de vida; que lições tirar para o futuro; como mudar para melhor; ver um filme, etc.
Mas oferece-se também a oportunidade de fazer algum exercício de meditação. Não somente para as pessoas religiosas mas também para aquelas que, sem ligação à alguma religião, cultivam valores como o amor, a cooperação, a empatia e a compaixão.
Ofereço aqui um método que eu chamo “Meditação da Luz: o caminho da simplicidade”. Ele tem uma alta ancestralidade no Oriente e no Ocidente. Tem a ver com o espírito e todo o corpo humano mas em particular com o cérebro, a sede de nossa consciência e inteligência.
Não é o lugar aqui para discutirmos as três sobreposições do cérebro: o reptiliano que diz respeito ao nossos movimento instintivos; o límbico, aos sentimentos, e o neo-cortical, ao raciocínio, à lógica e à linguagem.
O cérebro humano e seus dois hemisférios
Tratemos, sucintamente, do cérebro que possui uma forma de concha com dois hemisférios:
O esquerdo que responde pela análise, pelo discurso lógico, pelos conceitos, pelos números e pelas conexões causais.
O direito responde pela síntese, pela criatividade, pela intuição, pelo lado simbólico das coisas e dos fatos e pela percepção de uma totalidade.
No meio está o corpo caloso que separa e ao mesmo tempo une os dois hemisférios.
Outro ponto importante do cérebro é o lobo frontal, sede da mente humana. Há muitas teorias sobre a relação entre cérebro e mente. Vários neurocientistas sustentam que a mente é o nome que damos à realidades intangíveis, elaboradas no cérebro, tais como a vida afetiva, o amor, a honestidade, a arte, a fé, a religião, a reverência e a experiência do numinoso e do sagrado.
A mente espiritual e o Ponto Deus no cérebro
Outro ponto a ser referido é a mente espiritual. A antropologia cultural se deu conta de que em todas as culturas surgem sempre duas constantes: a lei moral na consciência e a percepção de uma Realidade que transcende o mundo espaçotemporal e que concerne ao universo e ao sentido da vida. Repousam em alguma estrutura neuronal, mas não são neurônios. São de outra natureza até agora inexplicável. Vários neurocientistas a chamaram de mente mística (mystical mind). Prefiro uma expressão mais modesta: mente espiritual.
Aprofundando a mente espiritual outros neurocientistas e neurolinguistas chegaram a identificar o que chamaram o ponto Deus no cérebro. Constataram que sempre que o ser humano se interroga existencialmente sobre o sentido do Todo, do universo, de sua vida e pensa seriamente sobre uma Ultima Realidade, produz-se uma descomunal aceleração dos neurônios do lobo frontal. Aponta para um órgão interior de qualidade especial. Disseram que assim como temos órgãos externos, os olhos, os ouvidos, o tato temos também um órgão interno, uma vantagem de nossa evolução humana. Deram-lhe o nome de o ponto Deus no cérebro. Mediante esse órgão-ponto captamos Aquela Realidade que tudo unifica e sustenta, desde o universo estrelado, a nossa Terra e a nós mesmos: a Fonte que faz ser tudo o que é. Cada cultura dá-lhe um nome: o Grande Espírito dos indígenas, Alá, Shiva, Tao, Javé, Olorum dos nagô e nós simplesmente de Deus (que em sânscrito significa o Gerador da luz, donde vem também a palavra dia).
A natureza misteriosa da luz
Antes de nos focarmos na Meditação da Luz, cabe uma palavra sobre a natureza da luz. Ela é tida até hoje como um fenômeno tão singular para a ciência, como a física quântica e a astrofísica que preferiu-se dizer: a entendemos melhor se a consideramos uma partícula material (que pode ser barrada por uma placa de chumbo) e simultaneamente uma onda energética que percorre o universo à velocidade de 300 mil km por segundo. Biólogos chegaram a discernir que todos os organismos vivos emitem luz, os biofótons, invisíveis a nós mas captáveis por aparelhos sofisticados. A sede desta bioluz estaria nas células de nosso DNA. Portanto, somos seres de luz Ademais a luz é um dos maiores símbolos humanos e o nome que se dá à Divindade ou a Deus como Luz infinita e eterna.
Meditação da luz: caminho oriental e ocidental
Vamos finalmente ao tema: Como é essa meditação da luz? Fundamentalmente tanto o Oriente quanto o Ocidente comungam da mesma intuição: do Infinito nos vem um raio sagrado de Luz que incide em nossa cabeça (corpo caloso), penetra todo o nosso ser (os chacras), ativa os biofótons, sana nossas feridas, nos enleva e nos transforma também em seres de luz.
Conhecido é o método budista em três passos: diante de uma vela acesa, se concentra e diz: eu estou na luz; a luz está em mim; eu sou luz. Essa luz se expande do corpo para tudo o que está ao redor, para Terra, para as galáxias mais distantes. Permite uma experiência de não dualidade: tudo é um e eu estou no Todo.
O caminho ocidental se parece com o oriental. Era praticado pelos primeiros cristãos em Alexandria no Egito que professavam ser Deus luz, Jesus, luz do mundo e o Espírito Santo, a “Lux Beatissima”
Sigam comigo os seguintes passos: colocar-se num lugar cômodo, como ao pé da cama, ao levantar ou ao deitar ou num canto mas recolhido. Concentrar-se para abrir o corpo caloso e invocar o raio da Luz Beatíssima que provém do infinito do céu.
Esse raio de Luz sagrada, incidindo, já permite a união dos dois hemisférios do cérebro, produzindo grande equilíbrio entre razão e sentimento. Em seguida, deixe que essa Luz divina comece lentamente a penetrar todo o seu corpo: o cérebro, as vias respiratórias, os pulmões, o coração, o aparelho digestivo, os órgãos genitais, as pernas e os pés. Pare-a especialmente nas partes que estão doentes e produzem dor. Já que a Luz desceu, faça-a voltar, penetrando novamente todo o seu ser e seus órgãos.
Benefícios da meditação da luz
Antes de mais nada, começa a sentir que essa Luz divina potencia suas energias, lhe traz leveza a todo o seu ser corporal e espiritual. Dê-se um pouco de tempo, para curtir essa Energia divina que o energiza totalmente. Por fim, agradeça ao Espírito de Luz que é o Espírito Santo. Lentamente seu corpo caloso se fecha e vc sai mais espiritualizado, mais humanizado e com mais coragem para enfrentar o peso da vida.
Você pode fazer esse exercício mentalmente no ônibus, ao parar no semáforo, na fábrica, no escritório ou em qualquer tempinho que tenha no dia.
Todos os que se acostumaram a fazer esse tipo de meditação – via da simplicidade – testemunham como ficam mais resistentes na saúde, ganham mais clareza nas questões complicadas e as ideias fixas e os preconceitos os tornam mais superáveis, enfim você se torna um ser melhor e sua luz irradia sobre outros. Tente fazer essa meditação simples e verá seu valor corporal e espiritual.
Leonardo Boff é teólogo e escreveu Meditação da Luz: o caminho da simplicidade, Vozes, 2009; Tempo de Transcendência (Vozes 2009). Para adquirir: vendas@vozes.com.br
Um cego capta com as mãos ou com seu bastão as coisas mais relevantes que encontra pela frente. Pois assim tentaremos fazer uma leitura de cego acerca da encíclica ecológica do Papa Francisco, Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum, cujos 5 anos (24/05/2015) acabamos de celebrar. Quais são seus pontos relevantes?
Antes de tudo, não se trata de uma encíclica verde que se restringe ao ambiente, predominante nos debates atuais. Propõe uma ecologia integral que abarca o ambiental, o social, o político, o cultural, o cotidiano e o espiritual.
Quer ser uma resposta à generalizada crise ecológica mundial porque “nuncamaltratamos e ferimos a nossa Casa Comum, como nos últimos dois séculos”(n.53); fizemos da Casa Comum “um imenso depósito de lixo (n.21). Mais ainda:”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia… nosso estilo de vida insustentável só pode desembocar em catástrofes”(n.161). A exigência é de “uma conversão ecológica global”(n.5;216)) que implica “novos estilos de vida”(repete 35 vezes) e “converter o modelo de desenvolvimento global”(n.194).
Chegamos a esta emergência crítica por causa de nosso exacerbado antropocentrismo, pelo qual o ser humano”se constitui um dominador absoluto”(n.117) sobre a natureza, desgarrado dela, esquecendo que “tudo está interligado e por isso ele “não pode se declarar autônomo da realidade”(n.117;120). Utilizou a tecnociência como instrumento para forjar “um crescimento infinito…o que supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta que leva a espremê-lo até ao limite para além dele”(n.106).
Na parte teórica, a encíclica incorpora um dado da nova cosmologia e da físicaquântica: que tudo no universo é relação. Como num ritornello insiste que “todos somos interdependentes, tudo está interligado e tudo está relacionado com tudo “(cf. nn.16, 86,117,120) o que confere grande coerência ao texto.
Outra categoria que constitui um verdadeiro paradigma é o do cuidado. Este, na verdade, é o verdadeiro título da encíclica. O cuidado, por ser da essência da vida e do ser humano, segundo a fábula romana de Higino, tão bem explorada por Martin Heidegger em Ser e Tempo é recorrente em todo o texto da encíclica. Vê em São Francisco “o exemplo por excelência do cuidado”(n.10).“Coração universal…para ele qualquer criatura era uma irmã unida a ele por laços de carinho, sentindo-se chamado a cuidar de tudo o que existe”(n.11).
É interessante observar que o Papa Francisco une a inteligência intelectual, apoiado nos dados da ciência, à inteligência sensível ou cordial. Devemos ler com emoção os números e relacionarmo-nos com a natureza “com admiração e encanto (n.11)…prestar atenção à beleza e amá-la pois nos ajuda a sair do pragmatismo utilitarista”(n.215). Importa “ouvir tanto o grito da Terra quanto o grito dos pobres”(n.49).
Consideremos este texto, carregado de inteligência. emocional:”Tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos, como irmãos e irmãs, numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também com terna afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio, e à Mãe Terra”(n.92). Importa “incentivar uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade”(n.231), pois assim “podemos falar de uma fraternidade universal”(228).
Por fim, é essencial à ecologia integral a espiritualidade. Não se trata de derivá-la de ideias, mas “das motivações que dão origem “a uma espiritualidade para alimentar a paixão pelo cuidado do mundo…Não é possível empenhar-se em coisas grandes, apenas com doutrinas sem uma mística que nos anima, sem umamoção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária”(n.216). Novamente evoca aqui a espiritualidade cósmica de São Francisco (n.218).
Concluindo, releva enfatizar que com esta encíclica, ampla e detalhada, o Papa Francisco se coloca, como notáveis ecologistas o reconheceram, na vanguarda da discussão ecológica mundial. Em muitas entrevistas, referiu-se aos riscos que corre nossa Casa Comum. Mas sua mensagem é de esperança:”caminhemos cantando, que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta, não nos tirem aalegria da esperança”(n.244).
Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu:Francisco de Assis e Francisco de Roma, Mar de Ideias, Rio 2014.
Da Coluna de Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico das Organizações Globo.| Valor, 21/05/2020.
Brasília (DF), 05/07/2011, Imagens da Capital Federal – Noite no Palácio do Planalto; em Brasília. Foto: Dorivan Marinho / Parceiro / Agência O Globo
Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.
São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso.
Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam 4 votos no TSE
A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.
A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.
O inquérito é conduzido, a sete chaves, pelo ministro Alexandre de Moraes. Apesar de dispor de policiais federais para as investigações, apenas os juízes auxiliares e o delegado da Polícia Civil de São Paulo lotados em seu gabinete têm acesso ao conjunto de provas colhidas. O comando é de um ministro que, de tão obcecado por investigações, fez fama em São Paulo por chegar às 4h da manhã na sede da Secretaria de Segurança Pública, sob seu comando, para participar de operações policiais.
Com a saída da ministra Rosa Weber, na segunda-feira, Moraes assume um assento no TSE. Comporá, junto com Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, que presidirá o tribunal, a trinca de ministros do Supremo que atuarão como juízes eleitorais no restante do mandato presidencial.
A nova composição do TSE impulsionou a campanha de 100 entidades que atuam no campo da corrupção eleitoral (reformapolitica.org.br) pela agilização dos processos que hoje correm no TSE. Esta campanha pode dar amplitude ao que hoje está restrito a alguns gabinetes brasilienses. É uma articulação ora favorecida pela reaproximação de antigos adversários, como os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, ora contida por espantalhos como o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão atacando as instituições.
Ao contrário do que se passou por ocasião do julgamento da chapa Dilma/Temer, em que a cassação foi derrotada por 4×3, os carpinteiros da tese da separação da chapa, hoje estão de quarentena. Se for para cassar, que seja o presidente e seu vice. Por isso, o artigo de Mourão assustou.
Ao proteger o titular do cargo e bater em todas as demais instituições da República, o vice-presidente, na leitura dos artífices da “saída TSE”, buscou blindagem das Forças Armadas contra qualquer desfecho que o alije. A ocupação do Ministério da Saúde e a negociação com o Centrão hoje são vistos como um sinal de que, seja com Bolsonaro, seja com Mourão, os militares não pretendem arredar pé.
As dúvidas não se limitam à reação da farda em relação à cassação da chapa. Estende-se à composição do TSE. Ao contrário do tribunal que inocentou Dilma e Temer, aquele que estará empossado a partir de segunda-feira, conta com três ministros do Supremo que não são de sentar em cima de provas.
Três ex-ministros do TSE, em anonimato, concordam que o quarto voto não viria de nenhum dos dois ministros do Superior Tribunal de Justiça com assento na Corte eleitoral. O mandato do atual relator, Og Fernandes, se encerra em agosto. Como Fernandes também é o corregedor da Casa, o processo ficará com o futuro ocupante do cargo, o também ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, que passará a ter, como colega, também no TSE, Mauro Campbell.
Nenhum dos dois desfruta, em Brasília, da mesma reputação do independente Herman Benjamin, o ministro relator do processo Dilma/Temer que votou pela cassação. Sobre Salomão pesam ainda as expectativas de que ambiciona uma vaga no Supremo, situação que o deixaria em pé de igualdade com o procurador-geral Augusto Aras na condição de personagens-chave a quem o presidente poderia buscar atrair com as duas vagas que terá a preencher até julho de 2021.
Ainda que ambos venham a jogar no time anti-cassação, o quarto voto poderia ser buscado nos dois advogados do tribunal. A expectativa de recondução ao cargo, prerrogativa do presidente da República, pode vir a inibir um deles (Sergio Banhos), mas é inócua em relação ao segundo (Tarcísio Vieira), que está no último mandato na Corte. Somados os quatro votos, restaria ainda a dúvida sobre o prosseguimento do processo com um relator que venha a se mostrar desinteressado no desfecho.
Os percalços não param por aí. A lei diz que se a chapa é cassada no primeiro biênio do mandato presidencial, faz-se nova eleição. Se for no segundo, convoca-se eleição indireta, em até 90 dias. “Na forma da lei”, diz a Constituição. Lei esta que não existe. Teria que ser formatada e votada em pontos sensíveis, como desincompatibilização e filiação partidária, em meio ao caos de uma pandemia que, além de vidas, também vitima o bom combate da política.
E, finalmente, o processo de escolha de um presidente-tampão seria conduzido pelas futuras mesas da Câmara e do Senado, a serem escolhidas num Centrão repaginado pelo bolsonarismo, visto que os mandatos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se encerram em fevereiro. A pergunta de um ex-ministro do TSE resume o drama: “Quanto custaria esta eleição”?
Se a pedreira é tão grande, por que a “opção TSE” continua sobre a mesa? Porque todas as demais saídas parecem tão ou mais difíceis. A ver, porém, se os percalços permanecerão em pé se o país, no balanço dos milhares de mortos e milhões de desempregados, decidir que não dá para seguir adiante sem afastar o principal culpado.
Por Ricardo Abramovay
Publicado no Valor Econômico, 11 de maio de 2020
“Eu sabia que havia cem casos de coronavírus na França e estava para viajar àquele país. Eu sabia também que a evolução da doença era exponencial. Eu nem considerei o fato de que se a taxa de infecção estivesse dobrando a cada três dias; em um mês, o número inicial de infectados seria multiplicado por mil. Tudo isso está além de nossa compreensão intuitiva. Inclusive da minha.”
O depoimento à revista New Yorker seria trivial, não fosse o fato de que ele vem de ninguém menos que Daniel Kahneman, psicólogo, autor de Rápido e devagar e contemplado com o Nobel de Economia em 2002, por mostrar o quanto nossos comportamentos distanciam-se da imagem canônica do homem econômico racional. Seu trabalho inspirou as pesquisas de importante vertente do pensamento social contemporâneo, voltada ao estudo da maneira como as pessoas se comportam diante do risco.
Um de seus mais importantes discípulos, Paul Slovic, abriu caminho a estudos que buscam explicar as bases psicológicas a partir das quais nos relacionamos com os riscos e, sobretudo, com os riscos resultantes de tecnologias industriais. No que se refere ao coronavírus, Slovic ilustra o crescimento exponencial mostrando que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o tempo entre o primeiro caso da doença e a marca de cem mil atingidos foi de 67 dias. Outros cem mil casos foram registrados onze dias depois. E levou apenas quatro dias para que mais uma leva de cem mil pessoas adoecessem.
A análise de risco é fundamental sobretudo para eventos de baixa probabilidade, cuja ocorrência, no entanto, é de grande impacto. Sabemos lidar com eventos relativamente habituais como os acidentes de trânsito ou diferentes tipos de doenças. Mas faz parte dos mecanismos cognitivos básicos com base nos quais organizamos nosso dia a dia guiarmo-nos pelo que já sabemos e a partir de referenciais que nos são fornecidos pelos grupos a que pertencemos.
Tendemos a focar nossas decisões no curto prazo, a ignorar lições de desastres passados, a imaginar que nunca seremos atingidos por males que afetam os outros, a aderir a explicações simples diante de fenômenos complexos e a fazer escolhas apoiados na conduta e no universo cultural dos que nos são próximos. Estas características cognitivas, resultantes de nossa própria evolução, constituem obstáculos à percepção de fenômenos que têm trajetória contrária ao que nos ensina nossa experiência cotidiana, como mostraram outros dois especialistas em análise de risco, Robert Meyr e Howard Kunreuhther, em The Ostrich Paradox [O paradoxo do avestruz].
A experiência acumulada no estudo sobre percepção de riscos é que explica o fato de Paul Slovic e Howard Kunreuther fazerem exatamente agora um alerta fundamental. Há outro fenômeno que traz a marca do crescimento exponencial e diante do qual, igualmente, se espalha a ilusão perceptiva de que seu poder destrutivo é menor e muito mais distante do que o anunciado pelos que o estudam: as mudanças climáticas.
Não poderia ser maior o contraste entre a mobilização massiva (ainda que, em tantos casos, tardia e hesitante) contra o coronavírus e a complacência diante da emissão de gases de efeito estufa, venha ela dos combustíveis fósseis, dos fertilizantes nitrogenados, do rebanho bovino ou da destruição florestal. Os gases de efeito estufa acumulam-se na atmosfera em magnitude tal que vai esgotando a capacidade de serem neutralizados por seus sorvedouros naturais, as florestas (que continuam sendo destruídas) e os oceanos.
O derretimento das geleiras no Ártico (que, há apenas quarenta anos, cobriam o dobro da superfície que ocupam atualmente) faz com que o calor antes refletido passe a ser absorvido pelos oceanos, criando um feedback altamente destrutivo. O resultado é que o volume de CO2 na atmosfera que era de 315 partes por milhão em 1958 já está em 414 partes por milhão.
Só que nada disso é visível a olho nu, contrariamente ao que ocorre com as tristes imagens dos efeitos da pandemia no sistema hospitalar e até no sistema funerário. A pandemia é uma espécie de aceleração vertiginosa do filme a que estamos, quase imperceptivelmente, assistindo, como se fosse em câmara lenta, com as mudanças climáticas. É verdade que as mortes por covid-19 são atestadas por exames clínicos.
O mesmo não ocorre com as enchentes que desabrigaram mais de cinquenta mil pessoas em Minas Gerais, no Espírito Santo e em São Paulo em fevereiro, com a ampliação em 163% da população suscetível de ser atingida por furacões na Flórida entre 1980 e 2018 (muito mais que o aumento demográfico no período) e com a estimativa de que as perdas globais com o aumento do nível do mar devem passar de US$ 52 bilhões em 2005 para US$ 1,2 trilhão em 2050. O vínculo entre estes eventos e as mudanças climáticas foge de nossa intuição imediata.
No caso da pandemia, soluções nacionais construtivas são possíveis, ao menos durante certo tempo. Mas, contrariamente ao coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras. A conclusão é que o combate à pandemia, tem que ser acompanhado de um planejamento em cujo centro esteja a urgência climática.
A criação de empregos, a redução das desigualdades e o crescimento econômico têm que girar em torno da necessidade de se evitar a grande ameaça representada pelo aumento exponencial a que assistimos até aqui das emissões de gases de efeito estufa. A urgência da pandemia é imediata, mas não é razoável que ela ofusque a urgência de se enfrentar a crise climática.
Ricardo Abramovay é autor de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza(Elefante, Outras Palavras, Terceira Via, 2019).
Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de “Amazônia: Por uma economia do Conhecimento da Natureza”
O mundo tinha reservas estratégicas de petróleo, mas não de máscaras. Isso diz tudo sobre a nossa cegueira.
A entrevista é de Catherine André, publicada por Alternatives Économiques, 09-05-2020. A tradução é de André Langer para o IHU, 12 Mai 2020.
Segue a entrevista
É difícil saber se esta crise será uma chance para o clima ou não. Podemos, no entanto, tirar lições da crise da saúde?
Certamente, há lições muito importantes que podemos aprender para o futuro, especialmente na luta contra as mudanças climáticas. Eu vejo duas. A primeira é que ainda é possível, apesar do que costuma ser reivindicado, tomar medidas drásticas e extraordinariamente caras quando estamos em perigo iminente. Durante muito tempo, repetimos que tínhamos que fazer as coisas de maneira gradual, não apressar as pessoas, para que não fosse muito caro. E, de repente, evaporamos anos de esforços de austeridade! Evidentemente, isso implica que nos perguntemos por que estamos prontos para implementar medidas drásticas contra o coronavírus e por que parecemos incapazes disso contra as mudanças climáticas.
A resposta me parece muito simples: todos nós temos medo de pegar o vírus, enquanto pensamos que as mudanças climáticas afetarão os outros antes de nos afetar. E acredito que nós, pesquisadores, temos uma parte de responsabilidade nisso: ao calibrar nossos modelos em prazos longos, as políticas públicas estabeleceram os mesmos horizontes: neutralidade de carbono em 2050, dois graus em 2100… Ao passo que para o coronavírus, nós monitoramos diariamente as curvas de mortes e hospitalizações, acompanhamos esses dados como o leite no fogo!
Em 2050, muitos dos que leem essas linhas hoje já estarão mortos; portanto, isso necessariamente nos parece muito distante. Se tivéssemos uma previsão de carbono diária, que nos indicaria, por exemplo, a taxa de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, a mudança climática nos pareceria mais perto. Segue-se dessa constatação uma grande lição de comunicação.
A segunda grande lição diz respeito à questão da solidariedade. Nossas sociedades se mostraram solidárias como nunca antes. Durante anos, fomos informados de que colocamos o lucro na frente do humano, e agora, o que fazemos? Exatamente o contrário! Desencadeamos uma crise econômica monumental, que fez tombar vertiginosamente todas as Bolsas de Valores do mundo, para proteger os mais vulneráveis. É uma ótima lição que estamos dando a nós mesmos. O sacrifício dos jovens, que são muito menos vulneráveis à Covid-19 e que serão os primeiros a serem afetados pela crise econômica e pelo desemprego em massa que isso causará, parece-me particularmente marcante.
Certamente, isso não significa que todos terão mudado: se fazemos parte disso, é também porque tememos ser contaminados, ou contaminar as pessoas próximas a nós. O problema é que essa solidariedade, no momento, permanece em grande medida confinada às fronteiras nacionais: temos uma crise global, mas as respostas são arquinacionais, com um fechamento generalizado das fronteiras. Ora, não é fechando as fronteiras que iremos impedir a mudança climática. Portanto, a pergunta que deve ser feita é como projetar essa solidariedade, que às vezes não suspeitávamos, para além de nossas fronteiras nacionais. Porque é aí que frequentemente se encontram as vítimas da mudança climática. No caso do coronavírus, podemos esperar um benefício imediato para nós mesmos das medidas tomadas; o mesmo não vale para a mudança climática.
As consequências desta pandemia eram previsíveis e evitáveis?
Nós tínhamos reservas estratégicas de petróleo, mas não de máscaras. Isso, por si só, diz tudo sobre a nossa cegueira. Eu não quero processar ninguém. Devemos reconhecer que todos ficamos surpresos com a amplitude que essa pandemia tomou em poucas semanas. É claro que poderíamos tê-la previsto, antecipado mais, mas estávamos cegos. Foi só quando os mortos estavam às nossas portas, na Itália, que nós realmente começamos a nos preocupar. Essa crise diz muito sobre a nossa falta coletiva de antecipação.
Essa crise nos obriga a nos questionar sobre o que é o comum?
Não nos obriga a nada, mas nos incita a fazê-lo. E eu penso que é uma aspiração de muitos de nós. O que é particular no controle de uma epidemia é que ninguém está seguro até que todos estejam seguros. Uma única pessoa pode potencialmente infectar dezenas, centenas de outras. Basta um único indivíduo infectado para que a epidemia recomece – o famoso “paciente zero”.
De certa forma, a epidemia nos lembra que aqueles que colocamos à margem da sociedade – os sem-teto, migrantes e excluídos – também fazem parte dela. E que temos que cuidar deles, não apenas por eles, mas também por nós mesmos. É um princípio maravilhoso para fazer sociedade, um grande princípio de inclusão em torno de um bem comum. A grande questão para o clima é saber se conseguiremos identificar e aproveitar o que temos em comum, além de nossas fronteiras: a Terra em que habitamos.
Como, concretamente, fazer isso?
A crise oferece uma série de oportunidades para traduzir isso em realidade. A prioridade é redirecionar os investimentos e os subsídios dos combustíveis fósseis. A cada ano, mais de 6% da riqueza do mundo é investida nisso. A crise atual, combinada com o preço muito baixo do petróleo, é uma oportunidade para redirecionar esses investimentos e subsídios. É também uma oportunidade para fixar um preço mínimo para o petróleo, estabilizar o preço do carbono e desfinanciar o mercado de energia. São todas formas para nos reapropriar do comum.
Nós, na Europa, no Ocidente, temos uma visão egocêntrica?
Sim, muito profundamente. Estou muito impressionado com essa ideia, muito em voga, de que a crise atual seria um prenúncio, ou um aviso, da mudança climática. Como se fosse “vir”, quando é uma realidade há anos, mas que afeta principalmente os países do Sul. O mesmo vale para o colapso de que falam os colapsologistas: trata-se sempre de um colapso “por vir”, em nossas sociedades, ao passo que já está em curso em muitos lugares, fora de nossas fronteiras. Mas só vemos o problema quando ele virar a esquina.
Eu poderia multiplicar os exemplos. Quando se diz que estamos interessados na migração, na verdade não estamos interessados na migração, mas nas populações que chegam ao nosso território. Passa a ser uma preocupação nossa apenas quando as pessoas cruzam o Mediterrâneo. Tudo o que acontece antes, ou em outro lugar, não nos importa. Do mesmo modo, as soluções que imaginamos sempre se relacionam conosco: nossos modos de vida, nossos modelos econômicos… É obviamente importante que nos questionemos, mas a luta contra a mudança climática também passará pela cooperação, não apenas pela introspecção. Isso implica estar conscientes do impacto das nossas decisões sobre os outros, e não pensar apenas em nós mesmos. E que também precisamos aprender com o que os outros estão fazendo.
Como podemos encontrar novamente o caminho da cooperação internacional para enfrentar de maneira eficaz a mudança climática, a poluição do ar e o colapso da biodiversidade?
Esta é uma pergunta fundamental e é, talvez, a minha maior preocupação neste momento. Receio que a cooperação internacional saia esfrangalhada desta crise. Estamos diante de uma crise global, mas à qual fornecemos apenas respostas nacionais, sem nenhuma coordenação. O resultado é um fechamento generalizado das fronteiras. E sabemos como as fronteiras são tranquilizadoras no caso de uma crise. Infelizmente, os nacionalistas compreenderam perfeitamente todo o benefício que poderiam obter disso. O risco é que as medidas impostas do ponto de vista da saúde – o confinamento, o isolamento e o fechamento – acabem se tornando um projeto político de fechamento sobre si mesmo. O grande desafio será articular a relocalização – necessária – de um certo número de cadeias produtivas com a abertura ao mundo. É o caso dos alimentos, da saúde e da energia, em particular.
Vemos claramente a necessidade de uma maior descentralização; é um imperativo político e não somente econômico. Podemos discutir as vantagens do fechamento das fronteiras para limitar a propagação do vírus, mas é certo que isso não impedirá a mudança climática. Mais do que nunca, precisaremos de cooperação internacional.
Já sabemos a nova data do início do Tour de France, mas não quando será a próxima COP 26, adiada sine die. Eu realmente espero que essa COP possa ser a ocasião para uma refundação da cooperação internacional, que possa incluir outros atores além dos governos. Não uma COP 25 +1, mas uma COP 0, que consiga reconstruir o multilateralismo. Isso passará pela inclusão da sociedade civil, das empresas ou dos municípios. Os governos não têm todos os comandos para combater a mudança climática; é preciso fazer sentar outros atores à mesa de negociações.
François Gemenne
Especialista em questões de governança ambiental e migração, dirige o Observatório Hugo na Universidade de Liège e leciona no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Também é o autor principal do Grupo de Peritos Intergovernamental sobre a Evolução do Clima (Giec). Ele publicou recentemente, com o pesquisador Aleksandar Rankovic, Atlas de l’anthropocène (Éd. Presses de Science Po, 2019).
– – – CEMITERIO DA VILA FORMOSA COVID 19 – Vista das covas do cemitério da Vila Formosa na zona leste de .
Bolsonaro disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pelo Covid-19, isto é inevitável”.Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos. Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio.
Isto se chama genocídio Por Michael Löwy*, em 28/04/2020 para A terra é redonda
O neofascista Bolsonaro diante da pandemia
Um dos fenômenos mais inquietantes dos últimos anos é a espetacular ascensão, no mundo inteiro, de governos de extrema direita, autoritários e reacionários, em alguns casos com traços neofascistas: Shinzo Abe (Japão), Modi (Índia), Trump (USA), Orban (Hungria) e Bolsonaro (Brasil) são os exemplos mais conhecidos. Não é surpreendente que vários deles reagiram à pandemia do coronavírus de forma absurda, negando ou subestimando dramaticamente o perigo.
Foi o caso de Donald Trump nas primeiras semanas, e de seu discípulo inglês, Boris Johnson, que chegou a propor que se deixasse o conjunto da população se infectar com o vírus, para assim “imunizar coletivamente” toda a nação – claro, com o custo de algumas centenas de milhares de mortes… Mas diante da crise, os dois tiveram de recuar, no caso de Boris Johnson, sendo ele mesmo gravemente atingido.
O caso do Brasil torna-se assim especial, porque o personagem do Palácio da Alvorada persiste em sua atitude “negacionista”, caracterizando o coronavírus como uma “gripezinha”, definição que merece entrar nos anais, não da medicina, mas da loucura política. Mas esta loucura tem sua lógica, que é a do “neofascismo”.
O neofascismo não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Por exemplo, não toma a forma de uma ditadura policial, respeita algumas formas democráticas: eleições, pluralismo partidário, liberdade de imprensa, existência de um Parlamento, etc. Naturalmente, trata, na medida do possível, de limitar ao máximo estas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas. Tampouco se apoia em tropas de choque armadas, como o eram as SA alemãs ou o Fascio italiano.
Isto vale também para Bolsonaro: ele não é nem Hitler nem Mussolini, e não tem nem mesmo como referência a versão brasileira do fascismo nos anos 1930, o integralismo de Plínio Salgado. Enquanto que o fascismo clássico propugnava a intervenção massiva do Estado na economia, o neofascismo de Bolsonaro é totalmente identificado com o neoliberalismo, e tem por objetivo impor uma política socioeconômica favorável à oligarquia, sem nenhuma das pretensões “sociais” do fascismo antigo.
Um dos resultados desta versão fundamentalista do neoliberalismo é o desmantelamento do sistema de saúde pública brasileira (SUS), já bastante fragilizado pelas políticas de governos anteriores. Nestas condições, a crise sanitária decorrente da disseminação do coronavírus pode ter consequências trágicas, sobretudo para as camadas mais pobres da população.
Outra característica própria ao neofascismo brasileiro é que, apesar de sua retórica ultranacionalista e patrioteira, ele é completamente subordinado ao imperialismo americano, do ponto de vista econômico, diplomático, político e militar. Isto se manifestou também na reação ao coronavírus, quando se viu Bolsonaro e seus ministros imitar Donald Trump, culpando os chineses pela epidemia.
O que Bolsonaro tem em comum com o fascismo clássico é o autoritarismo, a preferência por formas ditatoriais de governo, o culto do Chefe (“Mito”) Salvador da Pátria, o ódio a esquerda e ao movimento operário. Mas não consegue organizar um partido de massas, nem tropas de choque uniformizas. Tampouco tem condições, por enquanto, de estabelecer uma ditadura fascista, um Estado totalitário, fechando o Parlamento e colocando fora da lei sindicatos e partidos de oposição.
O autoritarismo de Bolsonaro se manifesta no seu “tratamento” da pandemia, tentando impor, contra o Congresso, os governos estaduais e seus próprios ministros uma política cega de recusa das medidas sanitárias mínimas, indispensáveis para tentar limitar as dramáticas consequências da crise (confinamento, etc). Sua atitude tem também traços de social-darwinismo (típico do fascismo): a sobrevivência dos mais fortes. Se milhares de pessoas vulneráveis – idosos, pessoas de saúde frágil – virem a falecer, é o preço a pagar, afinal, “o Brasil não pode parar!”.
Um aspecto específico do neofascismo bolsonarista é seu o obscurantismo, o desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo “evangélico”. Esta atitude, digna do terraplanismo, não tem equivalente em outros regimes autoritários, mesmo aqueles que têm como ideologia o fundamentalismo religioso como é o caso do Irã. Max Weber distinguia religião, baseada em princípios éticos, e magia, a crença nos poderes sobrenaturais do sacerdote. No caso de Bolsonaro e seus amigos pastores neopentecostais (Malafala, Edir Macedo, etc) se trata mesmo de magia ou de superstição: parar a epidemia com “orações” e “jejuns”…
Embora Bolsonaro não tenha conseguido impor o conjunto de seu programa mortífero, uma parte dele – por exemplo, um relaxamento do confinamento – talvez se imponha, por meio de imprevisíveis negociações do presidente com seus ministros, militares ou civis.
Apesar do comportamento delirante do sinistro personagem atualmente instalado no Palácio da Alvorada, e da ameaça que ele representa para a saúde publica, uma parcela importante da população brasileira ainda o apoia, em maior ou menor medida. Segundo sondagens recentes, só 17% dos eleitores que votaram nele se mostram arrependidos de seu voto.
O combate da esquerda e das forças populares brasileiras contra o neofascismo ainda esta no começo; será preciso mais do que alguns simpáticos protestos de caçarolas para derrotar esta formação política teratológica. Certo, mais cedo ou mais tarde o povo brasileiro vai se libertar deste pesadelo neofascista. Mas qual será o preço a pagar, até lá?
Post Scriptum: Em 20 de abril Bolsonaro fez uma declaração significativa. Disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pelo Covid-19, isto é inevitável”. Claro, seguindo a lógica da “imunização de grupo” (proposta inicial de Trump e Boris Johnson, depois abandonada), isto talvez pudesse acontecer. Mas só seria “inevitável” se Bolsonaro conseguisse impor sua política de recusa das medidas de confinamento: “o Brasil não pode parar”.
Quais seriam as consequências? A taxa de mortalidade do Covid 19 no Brasil atualmente é de 7% das pessoas contaminadas. Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos.
Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio. Por um crime equivalente, vários dignitários nazistas foram condenados à forca pelo Tribunal de Nuremberg.
*Michael Löwy é diretor de pesquisas, na França, do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Compartilhamos o curto e claro manifesto com o qual acadêmicos holandeses propõem uma mudança do paradigma econômico mundial depois da crise da pandemia. Muitas pessoas estão escrevendo sobre novos paradigmas para um outro mundo possível após a pandemia. Nos ajuda a pensar! A nota foi publicada por El Clarín, Chile, 27-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo, para IHU, 29 Abril 2020.
Aparentemente a Holanda é o país que com mais força está tomando o desafio de reestruturar sua economia a partir do que nos vivemos no presente. Nesse contexto, 170 acadêmicos holandeses escreveram um manifesto em cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da covid-19, baseado nos princípios do decrescimento:
Passar de uma economia focada no crescimento do PIB, a diferenciar entre setores que podem crescer e requerem investimentos (setores públicos críticos, energias limpas, educação, saúde) e setores que devem decrescer radicalmente (petróleo, gás, mineração, publicidade, etc.).
Construir uma estrutura econômica baseada na redistribuição. Que estabelece uma renda básica universal, um sistema universal de serviços públicos, um forte imposto sobre a renda, ao lucro e à riqueza, horários de trabalho reduzidos e trabalhos compartilhados, e que reconhece os trabalhos de cuidado.
Transformar a agricultura para uma regenerativa. Baseada na conservação da biodiversidade, sustentável e baseada em produção local e vegetariana, ademais de condições de emprego e salário justas.
Reduzir o consumo e as viagens. Com uma drástica mudança de viagens luxuosas e de consumo desenfreado, a um consumo e viagens básicas, necessárias, sustentáveis e satisfatórios.
Cancelamento da dívida. Especialmente de trabalhadores e donos de pequenos negócios, assim como de países do Sul Global (tanto a dívida a países como a instituições financeiras internacionais).
Por André Singer, Christian Dunker, Cicero Araújo, Felipe Loureiro, Laura Carvalho, Leda Paulani, Ruy Braga e Vladimir Safatle – Publicado em FSP – 24/04/2020.
O projeto bolsonarista e a pandemia
Nas comunidades antigas, costumava-se escolher chefes com poderes excepcionais em duas ocasiões: na guerra e na epidemia. Os romanos chamavam esse poder concentrado de “ditadura”. Na época contemporânea, ditadura passou a ser o nome, não de um instrumento de governo passível de ser implementado em contextos de crise, mas de um regime político autoritário, necessariamente resultado de uma usurpação. A coincidência do nome nos lembra uma distinção sutil que o século XX provou fazer toda a diferença, confirmando um velho adágio: “a ocasião faz o ladrão”.
A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de instrumentalizar a Polícia Federal, que ocasionou a demissão do Ministro da Justiça, é apenas o último elo de uma longa cadeia de um projeto autoritário.
Antes da explosão do coronavírus, o núcleo duro do bolsonarismo vinha lançando as bases de um regime antidemocrático assentado na submissão das práticas de governo à lógica da mobilização permanente – nas redes, nas ruas, nas igrejas e, perigosamente, nos quartéis. Tal mobilização parte do diagnóstico do esgotamento dos espaços de negociação próprios à democracia liberal, mas não no sentido de reformá-la, muito menos substituí-la por mecanismos de democracia direta. Trata-se de uma guinada autoritária que se centra em uma liderança de culto personalista, cujos atos e palavras pretendem simbolizar a verdade, sem qualquer abertura para o dissenso.
Vemos o modelo espalhar-se pelo mundo. Tendo o presidente norte-americano Donald Trump como líder, Bolsonaro e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán formam alguns dos principais integrantes dessa internacional autoritária de extrema-direita. Orbán usou a crise do coronavírus para obter poderes excepcionais, representando o experimento autoritário furtivo mais bem realizado até agora. Diz-se furtivo, nos termos de Adam Przeworski, porque não decorre de um golpe de Estado, mas implementa-se aos poucos, alicerçado na letra da lei, e conduzido por líderes democraticamente eleitos – semelhante, aliás, à maneira pela qual determinados regimes fascistas ascenderam ao poder, como o nazismo alemão.
Ainda candidato à presidência, Bolsonaro dera inúmeras provas de seu projeto autoritário, indo de declarações favoráveis à ditadura militar (1964-1985) ao encorajamento de execuções extrajudiciais pela polícia; da negativa à legitimidade de adversários políticos a ameaças de golpes de Estado. Uma vez presidente, os ataques ao Estado de Direito continuaram. No final de outubro de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, porta-voz informal do presidente, ameaçou editar, em caso de radicalização, um novo AI-5. Um mês depois, o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, repetiu a ameaça. Em janeiro deste ano, o líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (GO), afirmou que a Constituição prevê a suspensão de garantias e liberdades individuais e coletivas em caso de necessidade. Em fevereiro, o motim de policiais militares no Ceará, apoiado indiretamente pelo presidente, representou uma ameaça ainda maior à democracia, com quebra de autoridade militar, esvaziamento do poder de governadores, e demonstração da fidelidade de lideranças dos amotinados a Bolsonaro.
No Brasil pré-pandemia, o pretexto que vinha se formando para o fechamento da democracia era a missão de vencer o inimigo interno, caracterizado como antinacional e anticristão. Aqui se amalgamam um conjunto de estereótipos e preconceitos que perpassam concepções sobre família, sexualidade, gênero, raça, drogas, segurança, educação, cultura, ciência, propriedade privada, relações internacionais e, unindo tudo , o papel do Estado na sociedade e no mundo. Assentado na construção do inimigo doméstico, o projeto bolsonarista de poder impõe uma dinâmica de contínua transformação do país, visando a consolidação de uma sociedade intolerante, violenta, e voltada à preservação e aprofundamento das estruturas historicamente desiguais de poder, status e riqueza.
O horizonte maior do bolsonarismo é a mutação ideológica de setores da sociedade, que passam a operar, sem recalque algum, a partir de profunda indiferença, aversão à solidariedade, e falta de respeito ao próximo. Estamos diante de uma tentativa de revolução conservadora. Essa revolução conta com uma base altamente mobilizada – e, o mais dramático, parte dela armada –, disposta a seguir cegamente os passos do líder. Alicerçado em sindicalismo militar, culto à violência, e glorificação das Forças Armadas e das polícias, Bolsonaro mantém seguidores fiéis nas fileiras dessas corporações, além de nas milícias. Trata-se de um poder que não se pode subestimar.
De que forma a pandemia afeta esse projeto? Na Hungria, a fim de empregar a Covid-19 como pretexto para fechar ainda mais a democracia, Orbán teve que reconhecer a gravidade das ameaças à saúde pública que se abatem sobre o mundo. A adoção urgente de medidas restritivas para frear a transmissão do vírus serviu para que o primeiro-ministro húngaro disfarçasse as ambições ditatoriais. No contexto pandêmico, o parlamento do país, controlado pelo partido de Orbán, aprovou a possibilidade de o primeiro-ministro governar por decreto, cancelar eleições e punir disseminadores daquilo que o próprio Executivo considerasse como informações falsas que pusessem em risco a saúde da população. Ficou claro, ali, que a pandemia pode se transformar em grande ameaça à democracia, por tratar-se de um álibi perfeito para a necessidade de estabelecer um regime de exceção.
Mas a posição de Jair Bolsonaro tem sido, ao contrário, a de negar e esconder os enormes riscos trazidos pela doença. Em um primeiro momento, até mesmo a profundidade do colapso econômico causado pela pandemia foi minimizada: em 16 de março, o ministro da Economia Paulo Guedes ainda declarava que a economia brasileira “poderia perfeitamente crescer 2,5% neste ano”. Num segundo momento, o Planalto passou a reconhecer o perigo econômico, porém apenas para atribuí-lo às medidas restritivas tomadas por prefeitos e governadores. Nesse sentido, ao minimizar a pandemia, Jair Bolsonaro abriu mão da possibilidade de tomar ele próprio as rédeas da situação, acumulando poderes excepcionais como Orbán; ao contrário, vem se apresentando como paladino das liberdades individuais, do direito de trabalhar, de ir e vir e, até mesmo, da privacidade dos dados.
Para a perplexidade geral, porém, os sinais de que o horizonte continuava a ser a concretização do projeto autoritário não cessaram em meio ao negacionismo. Em 15 de março, suspeito de portar o vírus, Bolsonaro decidiu misturar-se a manifestantes em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns dias depois, declarou que decretar tanto o estado de sítio quanto o estado de defesa seria algo “relativamente fácil”, coisa de “poucas horas”, por meio de “medida legislativa para o Congresso.” Se aprovadas pelo Congresso, isso permitiria restringir direitos de reunião, sigilo telefônico e liberdade de imprensa, além de viabilizar busca e apreensão em domicílio sem mandato judicial e até mesmo prisão por “crime contra o Estado”. Em 19 de abril, Dia do Exército, Bolsonaro discursou diante de manifestantes pró-intervenção militar em Brasília na frente do QG do Exército, dizendo que não haveria mais “negociação” possível com os patifes (leia-se: Rodrigo Maia e STF, principais alvos da manifestação), e que “agora é o povo no poder”.
A escalada contra o Estado de Direito, o negacionismo e a tática de esgarçamento das instituições vêm inflando a oposição ao presidente no Legislativo, no STF e dentro de seu próprio ministério, além de ter provocado perda de apoio ao governo em parte das elites econômicas do país. A garantia por parte do STF da autonomia de estados e municípios para determinarem políticas de isolamento social e as dificuldades para demitir o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cujas políticas opunham-se diametralmente à retórica presidencial, sinalizam um contexto menos favorável ao projeto bolsonarista. Do mesmo modo, a saída do ministro Sérgio Moro representa um duro movimento de desconstituição da rede de apoios institucionais que sustentavam o presidente.
Ocorre que o isolamento político e institucional de Bolsonaro funciona para reforçar o mito do “salvador acorrentado”, refém de instituições corruptas e antinacionais, permitindo-lhe manter a prática de jogar nas costas de supostos inimigos internos – agora representados especialmente pelos governadores e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia – a culpa por uma potencial perturbação da ordem pública, enquanto o presidente seria o único preocupado com a defesa do emprego e da renda da população. Com isso, Bolsonaro visa ampliar apoio junto às camadas populares desprotegidas e consolidar sua relação com setores empresariais – como o varejo, por exemplo –, que sofrerão impactos profundos do que deve ser a maior queda anual de PIB de nossa história.
Apesar de ser uma aposta de altíssimo risco, ela poderá prosperar a depender da longevidade e gravidade da crise. Somando-se o culto quase religioso à personalidade de Bolsonaro com o fato de parte significativa dos apoiadores estar armada, concentrando-se nas fileiras inferiores do Exército (cabos, sargentos, tenentes e capitães), nas polícias e nas milícias, temos uma combinação explosiva para contextos de instabilidade e incerteza, ainda mais em se tratando de uma figura cujo projeto é exatamente o de destruir a democracia. Trata-se, em suma, de um projeto de revolução conservadora que é capaz de colocar Jesus Cristo atrás de uma arma e de militarizar nossas escolas.
As contradições do bolsonarismo
Mas a pandemia também cria uma oportunidade para os opositores do presidente. Por constituir um inimigo literalmente invisível, o combate ao vírus precisa ser coletivo para ser eficaz. Agir em coletividade, no entanto, representa diluir as divisões com as quais o bolsonarismo opera, com sua desumanização de inimigos internos e sua permanente polarização do bem contra o mal. Daí também o porquê de Bolsonaro negar a existência de uma ameaça à saúde pública, recriando dicotomias que mantenham os adeptos permanentemente mobilizados.
O ponto crucial de seu argumento é: como comparar a morte física de alguns à morte econômica do país, impedido de produzir, trabalhar e sustentar os filhos, que resultaria em número infinitamente maior de mortes? O Brasil está sendo colocado diante de uma escolha falsa: ou a morte física provável ou a morte econômica certa. A terceira e óbvia saída, que recusa o dilema entre a morte econômica e a morte física, envolve minimizar o quanto possível a letalidade do vírus, via isolamento social – este último coordenado com estados e municípios e amparado por amplo apoio emergencial ao sistema público de saúde –; e atenuar também, na magnitude e no tempo necessários, a perda de renda e emprego, a partir da aprovação de medidas de proteção e de apoio a setores econômicos em colapso.
A adoção do terceiro caminho exigiria o abandono de dois dos principais pilares do bolsonarismo. Para frear o contágio do vírus e evitar o colapso do sistema hospitalar, é necessário valorizar mais do que nunca a ciência e a universidade, deixando de lado o antiintelectualismo que está na essência, sobretudo, da ala olavista. Para preservar ao máximo a renda da população durante a fase de isolamento e impedir uma depressão da economia após o controle da pandemia, é preciso pôr fim ao fundamentalismo de mercado que ajudou a eleger Bolsonaro. Essa questão não precisou ser enfrentada, por exemplo, por Viktor Orbán na Hungria, que une à plataforma autoritária uma forte oposição ao neoliberalismo e à globalização.
Para eleger-se presidente em 2018, ao invés de culpar estrangeiros pela perda de empregos, como fizeram líderes de extrema direita em países do Norte global, Bolsonaro aproveitou-se da frustração crescente da população com a piora das condições de vida desde 2014-16 para reforçar o senso comum de que a corrupção do establishment político – e da esquerda, em particular – teria sido a responsável pela recessão econômica. Para a economia voltar a crescer, seria necessário, portanto, livrar-se do próprio Estado em suas diversas esferas de atuação, exceto a da segurança e encarceramento.
Em meio à crise atual, que requer mais do que nunca a atuação do Estado, o governo se vê em uma encruzilhada. De um lado, se não abandonar o fundamentalismo de mercado, terá de lidar com a perda de popularidade entre os mais afetados pela crise. De outro, ao mudar radicalmente o discurso na economia, expõe contradições intestinas. Assim, o que estamos vendo são tentativas de fazer um pouco de cada.
Em uma mudança improvisada, mas substantiva, ao ser pressionado por projetos aprovados a toque de caixa pelo Congresso, o governo acabou implementando medidas radicalmente contrárias ao DNA neoliberal, entre as quais a concessão de vultosos recursos para o programa de renda básica emergencial, o pagamento de parte do seguro-desemprego para trabalhadores com redução de jornada, a desoneração de diversos setores econômicos, e a oferta de linhas de crédito subsidiado para empresas em dificuldade. No último dia 22 de abril, sem a presença de nenhum representante do Ministério da Economia, o Ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, anunciou um plano de recuperação econômica de R$ 30 bilhões em investimentos em infraestrutura até 2022. De outro lado, apesar das importantes mudanças, a equipe econômica mantém o discurso neoliberal de que serão necessárias reformas estruturais, cortes agressivos de despesas e privatizações no contexto pós-pandemia.
No caso do pilar antiintelectual, a resposta foi menos ambígua. O presidente recusou-se por completo a valorizar a ciência e a apoiar as medidas de isolamento, optando, em sua qualidade de chefe de Estado e de governo, por uma verdadeira sentença de morte aos grupos de risco. Ao mostrar-se indiferente à tarefa de proteger os cidadãos contra a ameaça da morte, Bolsonaro rompe com o princípio basilar do pacto social e com a justificativa da existência do próprio Estado: a garantia do direito à vida.
As informações que surgem a cada dia sobre a dinâmica de espraiamento da pandemia, a natureza da doença produzida pelo coronavírus e as terapias eficazes para tratá-la ou preveni-la ainda precisam ser submetidas ao método científico de verificação e refutação empíricas – algo que requer tempo e cautela. Entretanto, com base no que já aconteceu em outros países, acumulam-se evidências sobre o grau de letalidade da Covid-19 e a grande variedade dos grupos de risco. No contexto em que a realidade tende a se impor sobre teorias conspiratórias com a força persuasiva do número de mortos e doentes, o modus operandi típico do bolsonarismo arrisca-se a perder força.
Há também fortes evidências de que os mais pobres serão muito mais afetados, não só pelo maior número de contaminações (transporte público, número de pessoas no domicílio, falta de acesso a saneamento, dificuldade de manter o isolamento sem perda excessiva de renda ou emprego), mas também pela maior gravidade dos casos pela incidência de comorbidades. A desigualdade no acesso à saúde é abissal: quase cinco vezes mais leitos de UTI por 10 mil habitantes na rede privada do que no SUS. Ou seja, os mais vulneráveis à morte econômica também são os mais vulneráveis à morte física, o que pode fazer das pressões por menos desigualdade uma questão de sobrevivência.
Nesse sentido, é na profunda indiferença do bolsonarismo ao direito à vida que jaz seu calcanhar de Aquiles em contexto de pandemia. Esta fraqueza merece toda a atenção dos setores democráticos, uma vez que pode ser convertida em fator poderoso para barrar o projeto autoritário e retirar seu chefe da presidência. A solidariedade e o espírito de comunidade que se formam em torno da experiência coletiva do adoecimento representam a antítese dos afetos típicos da onda neofascista.
A pandemia vem desencadeando uma coordenação de esforços de solidariedade que confronta diretamente o profundo descaso social do governo. Um caleidoscópio de movimentos com foco na assistência de áreas periféricas das grandes cidades ganhou força, especialmente na região metropolitana de São Paulo, a maior do país e a mais afetada pelo vírus até aqui em termos absolutos. Alguns desses grupos são antigos, outros nasceram do próprio acontecimento ou da união de movimentos populares pré-existentes. Todos, porém, do G10 Favelas ao UNAS Heliópolis e Região, do Movimentos Populares Contra o Covid-19 à Campanha Jd. Ângela Contra o Covid 19, articulam-se pelas redes sociais, com a ajuda de voluntários – religiosos e laicos – que atuam in loco nas periferias, formando uma linha de frente tão importante contra a crise quanto aquela constituída por profissionais de saúde em hospitais.
A constituição das experiências vinculadas à dependência mútua e à vulnerabilidade tem o potencial não somente de quebrar a polarização entre patriotas e inimigos da nação, mas também contêm, em seu germe, a própria negação da lógica de esvaziamento da capacidade estatal de atuação e de mobilização de recursos, indo ao encontro, a partir da base da sociedade, das políticas de cunho social recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional e das novas formas de “governar” suscitadas pela pandemia. As iniciativas de solidariedade podem se constituir no embrião de uma nova agenda de combate político.
É fácil perceber o potencial de mobilização que há aí para tornar permanentes as medidas de proteção social adotadas durante a fase de combate à pandemia e para a criação de sistemas efetivos de tributação da renda e do patrimônio dos mais ricos, a fim de distribuir melhor os custos da crise e impedir o retorno das políticas de austeridade. A garantia de recursos para a saúde pública, pesquisa científica, saneamento básico e outras áreas que a pandemia torna prioritárias exigirá também a mobilização intensa da sociedade civil em torno da revisão do teto de gastos. Certamente essas demandas enfrentarão forte resistência dos adeptos do Estado mínimo, mas o contexto engendrado pela agressividade do novo coronavírus abriu espaço para a construção de uma agenda efetiva de transformação social, que deve servir como pilar na luta da sociedade contra o autoritarismo.
III. A hora da decisão
O problema é que ao provocar o que pode se tornar a maior crise econômica da história do capitalismo, em meio ao grande número de óbitos derivados diretamente do vírus, o coronavírus ameaça, também, produzir um ambiente turbulento e propício aos ataques contra a democracia. Uma liderança autoritária, como a do atual presidente, vai se lançar a todo o tipo de aventuras, usando os piores estratagemas – desde doses cavalares de desinformação e cortinas de fumaça até a instigação de violência contra “inimigos”. Bolsonaro é o tipo de figura que não economiza no hábito de apontar o dedo e linchar “culpados”, insuflando seguidores a destruir os obstáculos que estariam mantendo o “mito” acorrentado e que o impediriam de governar para o bem da nação. Tudo em meio a uma malta armada e fanática. Alguém duvida de quão trágica poderá ser essa história se nada for feito para barrá-lo?
Dado que a pandemia abriu janelas de oportunidades para os setores democráticos, expondo as contradições desse projeto nefasto, é esta a hora de agir. Nunca estivemos tão próximos do precipício, como deixa evidente o discurso de Bolsonaro no Dia do Exército, quando nem se deu ao trabalho de disfarçar sua disposição para golpear mortalmente as instituições democráticas. Não há como imaginar que os fanáticos que o seguem se restringirão ao plano da retórica, furtando-se de sacar as armas caso sejam convocados a salvar aquele que cegamente idolatram. Editoriais de jornal, admoestações, “broncas”, sermões edificantes, mesmo as resoluções de contenção dos demais poderes constitucionais, nada disso terá o dom de os dissuadir. Aliás, quanto mais essas manifestações se repetem sem trazer consequências, mais perdem autoridade.
Só um gesto contundente e decisivo poderá alcançar aquilo que as palavras apenas não são mais capazes de obter. Sabemos que setores conservadores e liberais, predominantes no Congresso Nacional, e importantes em vários setores da sociedade civil, hesitam em dar esse passo e ainda buscam modos de evitar o confronto incontornável. A eles, lembremos o que disse o então parlamentar Winston Churchill sobre a estratégia dos governantes de seu país, à época liderados pelo também conservador Neville Chamberlain, a fim de apaziguar Hitler no contexto imediatamente anterior à eclosão da 2ª Guerra Mundial: “Preferem perder a honra a ter a guerra. No fim, perderão a honra e terão a guerra”. Só que com uma diferença: terão a guerra em condições piores.
Quando a pandemia mostra de modo cru a face desumana e violenta do bolsonarismo, é urgente que todas as forças democráticas do Brasil unam-se de vez para dar um basta à escalada do projeto autoritário, colocando o afastamento de Bolsonaro do poder como prioridade número um da agenda. Antes que seja tarde demais.
André Singer, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
Christian Dunker, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP
Cicero Araújo, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
Felipe Loureiro, Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da USP
Laura Carvalho, Professora Associada do Departamento de Economia da USP
Leda Paulani, Professora Titular do Departamento de Economia da USP
Ruy Braga, Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP
Vladimir Safatle, Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP