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Artigo

  • Transposição do São Francisco: o elefante branco nordestino? Entrevista especial com João Suassuna.

    “Estou apostando e quero que esse projeto saia e que seja oferecido para a sociedade para fins de abastecimento, pois não vai ter volume para tudo. Com todos esses usos que se quer, esse projeto se transformaria no futuro num grande elefante branco”, alerta o pesquisador

    João Suassuna é nordestino, o engenheiro agrônomo, e sobrinho do escritor Ariano Suassuna, destaca que essa relação com o nordeste o faz acompanhar há mais de 20 anos as discussões em torno das alternativas para amenizar a secura dessas terras. Para ele, a transposição do Rio São Francisco nunca deveria ser tida como prioridade. “Eles (técnicos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC) chegaram à conclusão, já em 2004, que o São Francisco tem uma séria limitação para fornecimento de volumes para um projeto de transposição”, destaca em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Segundo ele, foi por isso que o grupo pensou em alternativas. “O nordeste teria que construir uma infraestrutura hídrica no setentrional para buscar as águas que já existem na região. A região tem 70 mil represas”, aponta.

    Suassuna ainda destaca que mesmo com todo investimento, há nordestinos que não verão uma gota do São Francisco. “É a chamada população difusa, que vive nos pés de serras, são pessoas que são assistidas por frotas de caminhões pipa e que continuarão nessas condições porque não há uma adutora da transposição prevista”, explica.

    Com muito menos recurso do que a transposição, outros projetos tentam dar conta das demandas dessa população através da construção de cisternas. Para o pesquisador, aliando as duas frentes, o primeiro projeto “resolveria o problema de abastecimento em municípios de até cinco mil habitantes e esse programa de construção de cisternas resolveria o problema do abastecimento da população difusa”.

    Entretanto, fato é que – por questões políticas – venceu e está sendo implementado o projeto de transposição do Rio São Francisco. “Eu lamento muito porque estão fazendo um projeto dessa envergadura num rio que não tem a mínima condição de fornecimento desses volumes, custando mais do que o dobro do que a alternativa”, completa Suassuna. Mas o que fazer? O pesquisador entende que a saída é fiscalizar de cima as obras e apontar qualquermau uso do dinheiro público ou peripécias das empresas que realizam a obra. Hoje, segundo ele, é preciso torcer que, já que está se investindo tanto nesse projeto, se faça do São Francisco uma fonte para abastecimento humano. “Agora, estou apostando e quero que esse projeto saia e que seja oferecido para a sociedade para fins de abastecimento, pois não vai ter volume para tudo (irrigação e geração de energia)” sinaliza.

    João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e especialista em convivência com o semiárido.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – O senhor acompanha os debates sobre a transposição do Rio São Francisco há mais de 20 anos. Como avalia o projeto? Por que e como a transposição se tornou uma alternativa para combater a seca no nordeste?

    João Suassuna – Estou envolvido nos debates da transposição desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. Ele veio ao nordeste com sua comitiva, foi até a bacia do São Francisco, pegou um pouco da água e disse que o Rio era generoso e que não haverá de secar, porque o povo pegaria sua água só um pouquinho ali, outro aqui.

    Acabei pegando essa visão do ex-presidente e fiz meu primeiro artigo, em 1995, criticando tal perspectiva. É preciso entender que o São Francisco é um rio de muitos usos e ele tem uma grave limitação de fornecimento de volumes. Tem 60% de sua bacia em geologia cristalina, onde nesse tipo de geologia seus tributários (tributário, em Geografia, é um termo que designa um curso de água que deposita suas águas em outro rio ou lago) secam em determinada época do ano e deixa de mandar água para o Rio, que tem uma limitação de vazão.

    A vazão média do São Francisco é de 2,8 mil metros cúbicos por segundo. Se traçarmos um paralelo com o Rio Tocantins, por exemplo, que é da Bacia Amazônica, que tem a mesma área de bacia do São Francisco, 640 mil quilômetros quadrados, vermos que tem cinco vezes mais volume. Pois é um rio que corre no sedimentário, tem muita água e seus tributários são perenes. Ai está a diferença. O São Francisco é um rio hidrologicamente pobre.

    A ideia da transposição

    Em agosto de 2004, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC realizou uma reunião internacional no Recife, reunindo pesquisadores da Europa que mostraram para nós suas experiências de transposições de bacias. Os técnicos da SBPC, os 40 expoentes da hidrologia nacional, partiram dos exemplos apresentados e foram pesquisar os volumes, as minucias do São Francisco. Eles chegaram à conclusão, já em 2004, que o São Francisco tem uma séria limitação para fornecimento de volumes para um projeto de transposição dessa envergadura.

    Para se ter ideia, se concluiu em 2004 que o Rio, para fins consultivos (quando se retira água de um manancial e essa não retorna), só dispunha de 25 metros cúbicos por segundo. Isso para atender um projeto que vai necessitar de uma média de 65 metros cúbicos por segundo. Diante desse cenário, os técnicos destacaram que era preciso uma proposta alternativa, pois se falava no abastecimento de 12 milhões de pessoas no nordeste e mais 350 mil hectares para irrigar.

    A alternativa

    Assim, nessa reunião de 2004, os técnicos da SBPC fizeram a proposta de que o nordeste teria que construir umainfraestrutura hídrica no setentrional para buscar as águas que já existem na região. São as águas interiores do nordeste, pois a região tem 70 mil represas. Essas represas acumulam um potencial de 37 bilhões de metros cúbicos. É o maior volume de água represada em regiões semiáridas do mundo, e tudo isso está aqui no nordeste brasileiro. Foi assim que os técnicos pensaram numa proposta de buscar essa água e fornecer para população por meio de tubulações, visando o abastecimento das pessoas. Essa proposta existe e consta em relatório.

    Desenvolvendo a alternativa

    Além disso, em janeiro de 2006, a Agência Nacional de Águas – ANA, se baseando nas informações dessa reunião, fez uma proposta chamada Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. O projeto previa a elaboração de uma estrutura para buscar essas águas que já existem no interior do nordeste e distribuir em municípios de até cinco mil habitantes. Era uma proposta bem mais abrangente, pois visava o abastecimento de 34 milhões de pessoas. O projeto de Transposição do São Francisco visa apenas o abastecimento de 12 milhões de pessoas.

    E pasme: o projeto da ANA tinha menos da metade do custo previsto para a transposição em 2004, que na época era de seis bilhões de Reais. O projeto da ANA era de cerca de três bilhões de Reais. Ou seja: um projeto que custaria a metade e com uma abrangência muito maior.

    As decisões

    O curioso é que quando chegou a hora dessas propostas serem todas apresentadas ao Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, para buscar financiamento, venceu a transposição do São Francisco. Isso eu lamento muito porque estão fazendo – mais de 70% dos canais estão prontos – um projeto dessa envergadura num rio que não tem a mínima condição de fornecimento desses volumes, custando mais do que o dobro do que a alternativa. Hoje, o custo da transposição está orçada em pouco mais de 8 bilhões de Reais. Observe como esse Atlas Nordeste, no projeto da ANA, resolveria o problema de 34 milhões de pessoas em município de até cinco mil habitantes.

    Complementação à alternativa

    Entretanto, ainda existe uma população no nordeste que não vai ver uma gota de água do São Francisco. É a chamada população difusa, que vive nos pés de serras, nos sítios e pequenas propriedades, são pessoas que são assistidas por frotas de caminhões pipa e que continuarão nessas condições porque não há uma adutora da transposição prevista para levar uma só gota. Pensando nessa população difusa, existe uma instituição não-governamental, a Articulação do Semiárido – ASA Brasil, que congrega o trabalho de 600 outras Ong’s que tem sua atuação voltada para a convivência com o semiárido.

    A ASA Brasil, juntamente com o Ministério de Desenvolvimento Social, elaborou um projeto de construção decisternas rurais de placas. Essas cisternas têm 16 mil litros, são construídas nos oitões das casas para aproveitar as águas que caem das chuvas, e garantem água de boa qualidade para beber e cozinhar – não pode ser para outro uso, se não, entra em exaustão – para uma família de cinco pessoas nos oito meses sem chuva na região. Assim, está resolvido o problema para essa população que giram em torno de 12 milhões de pessoas.

    Então, veja: com o Atlas Nordeste se resolveria o problema de abastecimento em municípios de até cinco mil habitantes e essa programa de construção de cisternas da ASA Brasil resolveria o problema do abastecimento da população difusa.

    IHU On-Line – Mas nenhum dos projetos é realidade hoje?

    João Suassuna – Somente o da ASA Brasil é realidade. Hoje, da meta de um milhão de cisternas já deve haver algo em torno de 700 mil em funcionamento. E para essa população difusa, a ASA Brasil está desenvolvendo também uma segunda água. É uma cisterna produtiva, maior, volumetricamente falando, com 52 mil litros e construída no campo para irrigar as culturas.

    É construída uma espécie de grande calçada para captação da água da chuva, a chamada calçadão. No semiárido chove até 800 milímetros, volume suficiente para encher essa cisterna e aguar a horta. Assim, temos a água para o campo e também para beber, captada nos oitões de casa.

    Com essas iniciativas, o problema da seca no nordeste estaria resolvido. Mas não, foram atrás do projeto mais caro de transposição que hoje está aí com as obras atrasadas. 70% dos canais já foram construídos e temos notícias devazamentos.

    IHU On-Line – Como compreender a opção por esse projeto mais caro? Que relação política podemos estabelecer com essa opção?

    João Suassuna –
     As autoridades colocaram na cabeça que a água é um bem natural infinito, portanto pode ser usada a bel prazer. Isso não pode ser encarado assim! O Brasil é um país riquíssimos em água, 12% da água que escoa superficialmente no planeta está no Brasil, mas temlimitações sérias de distribuição dessa água. 73% dos volumes nacionais estão na Bacia Amazônica, uma região com pouca gente, menos de 7% da população nacional está lá.

    No sul e sudeste temos algo em torno de 19% e no nordeste 3%, dos quais dois terços na Bacia do Rio São Francisco. Não foi por acaso que as autoridades quiseram ir atrás dessa água. Mas, por um lado, esqueceram que o Rio São Francisco não tinha a menor condição de fornecer esses volumes que se esperava.

    Por outro lado, foi a oportunidade que o Governo Lula teve de investir no nordeste brasileiro. São 8,2 bilhões de Reais. Onde é que ia conseguir esse dinheiro? Nunca um presidente da República teve a oportunidade de empurrar 8,2 bilhões de Reais para o nordeste brasileiro. Só que o lado que ele enxergou foi o financeiro e não pode ser dessa forma. Observe que coisa maluca: empurraram 8,2 bilhões de Reais num projeto em um rio que não tem, hoje, condições sequer de gerar energia, não tem volumes para isso.

    Agora, estou apostando e quero que esse projeto saia e que seja oferecido para a sociedade para fins de abastecimento, pois não vai ter volume para tudo.

    IHU On-Line – Então, o senhor defende o uso apenas para o abastecimento da população, abandonando os usos para irrigação de culturas e geração de energia?

    João Suassuna – Sim. Seria uma incompetência muito grande do governo ao aplicar 8,2 bilhões de Reais em projeto no qual o Rio não tem volume sequer para gerar energia. Com todos esses usos que se quer, esse projeto se transformaria no futuro num grande elefante branco. Então, como aplicaram muito dinheiro nisso, estou rezando para que esse projeto saia e seja inaugurado.

    Agora, para o uso dessas águas é preciso outro trabalho muito sério. Os hidrogeólogos têm de entrar em campo para avaliar a verdadeira demanda hídrica do nordeste, mas com fins de abastecimento humano. É preciso, assim, chegar a um volume demandante para esse fim. É um trabalho que também precisa ser feito em toda a Bacia do São Francisco para se saber que volumes o Rio pode fornecer.

    Uma vez chegado a esse volume, que não sei de quanto vai ser, tem-se determinar uma instituição isenta de ingerências políticas para fazer a gestão desse uso das águas. Uma instituição como hoje está a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf para gerenciar as águas do São Francisco é colocar a raposa dentro do galinheiro. Hoje, é a instituição que cuida da irrigação das áreas cultivadas do Vale do São Francisco. E ela tem o poder de gerenciamento da água. Não pode ser assim, tem de ser uma instituição que não sofra com ingerências políticas, pois, se não, vão tirar o restinho de água do Rio, acabando de matar o São Francisco.

    IHU On-Line – Em janeiro, o tribunal de Contas da União apontou uma série de negligências no Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que podem levar ao assoreamento do Rio. Qual a importância do Programa? Por que vem sendo negligenciado?
    João Suassuna – O São Francisco é um rio de barranco e retiraram amata ciliar, que fica nesses barrancos, para usar como lenha para fazer carvão, nos vapores que cruzavam o São Francisco. Ao retirar toda essa vegetação, começou a ocorrer o desbarranqueamento do Rio e todo esse solo foi carreado para o leito. Houve o assoreamento e hoje há a necessidade de revitalizar isso tudo.

    Outro detalhe: todos os esgotos das cidades que estão margeando oSão Francisco são despejados in natura no Rio. A grande Belo Horizonte, para se ter ideia, coloca seus esgotos dentro do Rio das Velhas, que, por sua vez, é um afluente do São Francisco. Assim, essa água está chegando no leito do São Francisco em péssima qualidade. A mesma água que querem que abasteça 12 milhões de pessoas. O nordeste não tem sistemas confiáveis de tratamento de esgoto.

    Temos que partir para revitalizar tudo isso, plantando a vegetação que foi arrancada e resolvendo os problemas deesgotamento sanitário. E para isso se demanda muito dinheiro e tempo. E aí está o problema. Aonde vão pegar recursos para fazer uma obra dessa magnitude, já o Governo estando sem recursos para terminar a obra de transposição? Tudo isso tem levado o Governo a ficar omisso com relação a esse plano de revitalização.

    IHU On-Line – Recentemente, em Cabrobó, Pernambuco, houve um vazamento no canal que faz a transposição. Qual sua avaliação quanto a qualidade da obra?

    João Suassuna – Percebemos que as empreiteiras contratadas para fazer a transposição entraram de peito aberto no projeto sem ter conhecimento de causa com relação ao meio ambiente da região. Há um escudo cristalino (tipo de geologia onde as rochas, que dão origem ao solo, estão com alguns pontos aflorados na superfície, deixando o solo ralo e com escoamento muito intenso, com pouca infiltração de água) em mais de 70% da área. Praticamente não temos águas de subsolo aqui na região e as que temos, nas fraturas das rochas, são muito salinizadas. As águas da chuva, quando batem nesse tipo de substrato, se mineralizam com muita facilidade, deixando a águasalobra (aquela que apresenta mais sais dissolvidos que a água doce e menos que a água do mar).

    As empreiteiras não tinham conhecimento de causa dessa geologia e começaram a cavar os canais, quando bateu nas rochas tiveram de usar explosivos. O resultado é que essa obra foi atrasando e encarecendo ao longo do tempo. Esse projeto é muito heterogêneo em termos geológicos ao longo dos canais.

    O primeiro erro

    Quando construíram os primeiros canais, cometeram o primeiro erro grave: não colocaram água dentro dessescanais. Qualquer leigo sabe o que poderia ocorre: numa região quente como essa nossa aqui no nordeste, onde a temperatura do solo passa facilmente dos 40 graus, os canais esquentavam muito durante o dia. E durante a noite esfriavam de vez. Então, o concreto dos canais, com toda essa variação e amplitude de temperatura, acaba rachando. O que rachou de canal aqui no nordeste nesse projeto da transposição foi uma coisa de doido. O Governo Federal acabou tendo de entrar em campo para contratar gente para reparar algo que nem havia fica pronto e já estava danificado.

    O rompimento

    Agora, começaram a colocar água e inaugurar alguns trechos dos canais, os canais de aproximação (que retira água do São Francisco e leva para a primeira represa para, a partir dela, começar a bombear água para todo o sistema). É nesses canais que, há algumas semanas, houve um rompimento. Foi justamente o que falei: a geografia é heterogênea. Pegou um canal com uma certa inclinação, e com os volumes da água passando ali, acabou rompendo e a água começou a cair fora do canal.

    Foi um vexame, pois os agricultores que já esperavam por essa água há muito tempo viram aquilo acontecer e ficaram muito tristes. Um dano como esses num canal significa que para o conserto tem que haver um aporte de recursos muito grande. E esse projeto já não tem mais muito recurso nem para terminar a obra, agora, imagine para reparar um problema desses. Então, estão fazendo algo paliativo colocando areia e barro para ver se diminui o vazamento para pensar numa forma futuro de resolver o dano.

    Deveria haver uma fiscalização constante ao longo dos canais para identificar esses problemas, porque um vazamento desses, quando identificado no começo, é de fácil solução. Agora, quando já chega a desmoronar as paredes, começa a haver vazamento, que leva a desmoronamento maior daquela parede e um desperdício de água muito maior.

    IHU On-Line – A crise hídrica que assolou o sudeste nos últimos anos evidenciou que a seca no Brasil não é só um problema nordestino. O que a crise hídrica ensinou ao país? Como a falta de água em estados como São Paulo repercutiu no nordeste?
    João Suassuna – Perdemos, recentemente, um hidrogeólogo chamadoAldo Rebouças. Era uma das pessoas que mais entendiam das águas do Brasil. Em seu último livro, O Uso Inteligente da Água (São Paulo: Escrituras, 2013), fala num português muito fácil de entender: o problema do sul, do sudeste, do nordeste é de gestão. Tem-se que saber usar a água disponível. Então, o que aconteceu no sudeste, em São Paulo, deixando o Brasil todo preocupado, foi só por falta de gestão. Usaram as águas em demasia, num limite em que as represas não poderiam fornecer.

    Isso não aconteceu só em São Paulo. Acontece diariamente aqui no nordeste. Quando se constrói uma represa, é preciso entender que ela tem o poder de regularização daquele rio que foi represado. Existe um volume disponível naquele rio que tem que ser obedecido, é o volume de regularização. A gente costuma trabalhar com 10% de garantia, ou seja, quando se constrói uma represa e obedece o poder de regularização, sem tirar uma gota a mais desse limite, essa represa jamais secará.

    Mas o que ocorre? Se constrói uma represa e a primeira providência é fazer um perímetro irrigado grande, depois começa a abastecer o povo de centenas de municípios. Assim, a represa não aguenta e seca. Por isso que secou arepresa de Boqueirão, que abastece Campina Grande, Paraíba.

    É uma represa de 400 milhões de metros cúbicos e praticamente entrou em volume morto. Campina Grande, que tem 450 mil habitantes, entrou em problemas sérios de abastecimento. Imagine uma cidade desse porte ter racionamento de quatro ou cinco dias.

    Secaram o açude que abastece Caicó, no Rio Grande do Norte, o açude que abastece Acari, no Rio Grande do Norte, e centenas de açudes aqui do estado da Paraíba estão em estado crítico. Tudo porque as autoridades usaram em demasia as águas dos açudes. Se houvesse a consciência de que com o planejamento e com gestão não tem como secar esses açudes, a situação hídrica do nordeste e do Brasil era diferente.

    IHU On-Line – Em entrevista concedida à IHU On-Line em 2010 , o senhor destacou que “da Bahia para baixo” ninguém conhece ou sabe dos impactos da obra. Isso mudou?
    João Suassuna – Não mudou nada. E tem mais um detalhe: as águas do São Francisco vão para o setentrional nordestino, dos estados dePernambuco para cima. Para baixo, SergipeAlagoasBahia e Minas Gerais, que é o berço das águas do Brasil, não há concordância em absoluto com o projeto de transposição porque as águas estão saindo de seus territórios para uso em estados lá da frente.

    Quem está ao sul de Pernambuco não vai usufruir uma gota de água desse projeto. Pedem até compensação hídrica pelo que estão perdendo. E se a gente observar os estados que estão acima de Pernambuco veremos de 99,99% dessa população é favorável a transposição porque são os beneficiários diretos.

    IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

    João Suassuna – Há dois meses, o Tribunal de Contas da União – TCU encontrou um uso ilícito de recursos datransposição. Falou-se, a mídia de modo geral noticiou algo em torno de 200 milhões de Reais em superfaturamentos. Mas isso ficou abafado e ninguém fala mais. Isso deveria voltar à tona, a sociedade precisa acompanhar e descobrir para onde foi esse recurso para que isso não volte a acontecer.

    Fonte: IHU On-Line

  • O Papa aos Bispos da América Latina e Caribe: Está na hora de confiar nos leigos.

    Na quinta-feira, 19 de maio, o papa Francisco recebeu, na sua biblioteca particular, os membros da Presidência CELAM – Conferência Episcopal Latino americana, da qual faz parte dom José Belisário da Silva, arcebispo de São Luís do Maranhão, segundo vice-presidente.

     

    A implementação de Evangelii Gaudium

    Quando o cardeal Ruben Salazar, depois de apresentar a saudação em nome da Presidência, pediu ao Santo Padre o que ele espera do CELAM, o papa imediatamente respondeu: “implementar a Evangelii Gaudium”, especialmente tudo o que se refere aos leigos. Há 50 anos ou mais vem se dizendo que “está na hora dos leigos”, mas parece que o relógio parou.

    O Papa recomendou especialmente a leitura e aplicação da Carta dirigida ao Cardeal Marc Ouellet, Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, em 19 de março, dia de São José, por ocasião da recente Assembleia que a agência fez de 1 a 4 de março em Roma sobre “o compromisso indispensável dos leigos na vida pública dos países latino-americanos.”

     

    A preocupação do Papa com a América
    O papa expressou sua preocupação com os problemas sociais enfrentados pelo povo das Américas em geral. 
    O papa está preocupado com as eleições nos EUA pela pouca atenção à situação social dos mais pobres e excluídos. Está preocupado com os conflitos sociais, econômicos e políticos na Venezuela, Brasil, Bolívia e Argentina… pode estar a caminho algum “golpe de estado branco” em alguns países.
    Outra preocupação do papa Francisco são as carências do povo haitiano e a falta de diálogo entre as autoridades dos países que compartilham a ilha, Haiti e República Dominicana, para encontrar uma solução jurídica para os migrantes e refugiados. Preocupa-se com a compreensão de Estado laico e o papel da liberdade religiosa por algumas autoridades mexicanas.
    O papa está animado vendo o progresso no processo de paz na Colômbia; também está animado com a sua próxima viagem a esse país para fazer uma visita pastoral a um povo que foi tão atingido pela violência e que necessita encontrar caminhos de perdão e reconciliação.
    O Papa fica bem animado quando começa a falar sobre a Pátria Grande, que é a América Latina, e os esforços que não devem cessar para alcançar a integração de nossos povos.
    Para isto é preciso aproximar-se, restaurar o diálogo social e buscar soluções conjuntas aos desafios do mundo de hoje.
     (Névio Fiorin, baseado em artigo de Leonid L. Ortiz, vice-secretário-geral do CELAM publicada em periodistadigital.com, 20 de maio de 2016).

     

  • A grande mídia e a tentativa de golpe

    A grande mídia e a tentativa de golpe
     
    “Embora boa parte da grande mídia já tenha decidido pelo impeachment da presidente, faltam ainda provas para incriminá-la. O que temos visto nos últimos 16 meses é a busca incansável de um crime para justificar o que já foi decidido”, escreve Ivo Lesbaupin, do Iser Assessoria

    O golpe civil-militar de 1964 não surgiu do nada: ele foi preparado durante três anos, desde o momento em que João Goulart assumiu a presidência do país, após a renúncia de Jânio Quadros. A mídia teve um papel fundamental para criar o clima necessário à adesão ao golpe, inclusive para fomentar as famosas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”.

    Ficaram famosos os editoriais do jornal O Correio da Manhã às vésperas da derrubada de Jango: no dia 30 de março, o editorial, estampado na primeira página, era intitulado: “Basta!”; no dia 31 de março, o título era “Fora!”. Os editoriais eram a senha para a mobilização das tropas. E no dia 1º. de abril, os militares tomam o poder. Fato comemorado pelo O Globo, o Jornal do Brasil, a Folha de São Paulo e o Estadão nos dias seguintes.

    Os fatos destes últimos dias são muito significativos: num dia, sai a revista Isto É, com uma matéria com vazamento de trechos da delação premiada do senador Delcídio Amaral, onde é ressaltado o envolvimento de Lula e de Dilma em fatos investigados  pela Operação Lava-Jato. A revista saiu na quinta-feira, um dia antes de sua saída habitual, sexta-feira. Na mesma noite de 5ª feira, o Jornal Nacional dedica 40 minutos à matéria sobre a delação premiada de Delcídio. Um jornal que dura normalmente 30 minutos demora mais de 1 hora e 20 minutos, dos quais 40 são para reforçar a suspeição sobre o ex-presidente Lula e a presidente Dilma. Este jornal nacional “especial” não tinha justificativa: ele poderia, como muitas vezes acontece, dedicar um tempo maior para a referida matéria, dentro, porém do tempo habitual do jornal. Mas, não: foi só acusação – sob a aparência de isenção – com mínimo direito a defesa.

    No dia seguinte, às 6 horas da manhã, o ex-presidente Lula é acordado por uma tropa de policiais federais para ser levado a depoimento – “condução coercitiva” -, ao mesmo tempo em que o Instituto Lula é invadido e vários familiares do ex-presidente são interpelados. A ordem veio do juiz que dirige a Operação Lava-Jato, Sérgio Moro. A operação na casa de Lula é fartamente divulgada durante toda a manhã desta sexta-feira. O depoimento de Lula na Polícia Federal termina por volta de meio-dia.

    Não pode ser coincidência o lançamento da revista na 5ª feira, o Jornal Nacional inabitualmente estendido da noite deste dia e a operação de “condução coercitiva” do dia seguinte com farta publicidade. Parece uma “armação”, para dizer o mínimo. É inevitável pensar que tudo isso visa animar as manifestações pró-impeachment da presidente Dilma programadas para o dia 13 de março (coincidentemente, data do famoso comício de Jango na Central do Brasil, em 1964, às vésperas do golpe).

    Embora boa parte da grande mídia já tenha decidido pelo impeachment da presidente, faltam ainda provas para incriminá-la. O que temos visto nos últimos 16 meses é a busca incansável – pela oposição de direita, apoiada pela grande mídia – de um crime para justificar o que já foi decidido. O vazamento de trechos da delação premiada de Delcídio finalmente estaria oferecendo este elemento – ao menos, na opinião da grande mídia. Segundo os próprios procuradores, no entanto, até agora o que temos são depoimentos, indícios, suspeitas, ainda não se trata de provas. A oposição de direita e a grande mídia esperam que as próximas manifestações consigam “preencher” a falta de provas, daí a importância da cobertura carregada – para dizer o mínimo – dos últimos dias. As manifestações cumpririam o papel das “Marchas da Família” de 1964.

    É preciso esclarecer que sempre defendemos a apuração de todos os casos de corrupção, venham de onde vier. Eis porque denunciamos, desde a famosa “CPI do Orçamento” (1993), o papel das grandes empreiteiras junto aos governos: na época, o senador José Paulo Bisol declarou que elas eram um “governo paralelo” no país. Tentou-se criar uma “CPI das Empreiteiras”, mas ela feriria os interesses dos principais partidos, especialmente dos que estavam no poder ou tinham a pretensão de chegar lá proximamente. Resultado: tal como a mais recente “CPI do Cachoeira”, não emplacou.

    Consideramos de extrema importância o que vem ocorrendo na Operação Lava-Jato, a investigação de casos graves de corrupção, envolvendo empresas do setor privado e do setor público para obter favores do governo. No entanto, uma verdadeira investigação da corrupção não pode ser dirigida por um viés seletivo: neste caso, falta a imparcialidade característica da justiça, pois o que temos visto é que só há corruptos, perseguidos, interpelados, de um lado do espectro político. Os nomes citados do outro lado aparecem por minutos na cena e logo depois desaparecem. Sobre vários políticos do outro lado – inclusive líderes de partido – já foram levantadas suspeitas, de peso igual ou maior que as que são lançadas contra políticos do PT. Mas nada acontece contra eles. O objetivo é claro: “colar” a pecha da corrupção num único partido, para tirá-lo do caminho e abrir espaço para os outros (ou melhor, um outro).

    Não, a corrupção não começou com o PT, ela é endêmica no sistema político de nosso país: esteve presente em todos os governos, inclusive durante a ditadura, lá estão os esquemas de corrupção envolvendo grandes empresas, financiamento de campanhas e de partidos, figuras dos governos (de diferentes partidos). Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez são conhecidas publicamente pelo menos desde 1993. Não começaram agora.

    Mas agora, em razão de vários fatores, apareceu a chance de investigar a fundo. Ótimo, haja investigação, descubram-se os canais de corrupção, os envolvidos. Mas sem parcialidade.

    Do contrário, é tentativa de golpe.

  • Saneamento e a escassez qualitativa da água.

    Quando Pero Vaz de Caminha chegou ao litoral brasileiro, além da admiração pelos índios e índias, pela exuberância da floresta litorânea, ele fica deslumbrado com a quantidade de águas. Vai escrever ao rei:  “águas são muitas; infinitas. Em tal maneira graciosa (a terra) que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das aguas que tem! ”. Frase que depois, falsificada, fica reduzida a “nesse país em se plantando tudo dá”.
    Quando o Brasil elaborou seu Primeiro Plano Nacional de Recursos Hídricos, participei com poucas pessoas do Nordeste para inserir no Plano a captação da água de chuva. Juntando várias fontes o Plano concluía que temos aproximadamente 13,8% das águas doces mundiais em território brasileiro.
    Temos a maior malha de bacias hidrográficas do planeta, além do que somos o único país do mundo de dimensões continentais que tem chuva em todo território nacional. Outros países como China, Estados Unidos e Austrália tem imensos desertos em seus territórios.
    Os dois maiores aquíferos do mundo estão em grande parte em território brasileiro, como o Alter do Chão na Amazônia e Aquífero Guarani que abrange regiões do sul e sudeste, além de outros países do cone sul.
    Ainda mais, os rios voadores que saem da Amazônia chegam até Buenos Aires – para outros até à Patagônia – e são os responsáveis pelas chuvas que caem em todo esse vasto território da América Latina.
    Nem mesmo a propalada diferença de quantidade de água de região para região pode ser alegada como problema. O Semiárido, com um milhão de quilômetros quadrados, com uma média de 700 mm/ano, tem capacidade instalada para armazenar apenas 36 dos 700 bilhões de m3 que caem sobre esse território todos os anos.
    Onde está, então, nosso problema? Exatamente na abundancia, nos ensinava o já falecido Prof. Aldo Rebouças. Ela nos tornou perdulários e, junto com a cultura predadora construída desde a fundação do Brasil, passamos a maltratar as nossas águas.
    Aos poucos estamos perdendo não só a abundancia pela destruição do ciclo de nossas águas – desmatamento da Amazônia e do Cerrado -, mas transformando nossos corpos d’água em depósitos de esgotos e de lixo. São as mineradoras – vide Samarco -, dejetos industriais, domésticos, hospitalares, agrícolas e resíduos sólidos como lixo doméstico e restos de construções. Basta olhar para o rio São Francisco.
    Dessa forma, além de estarmos provocando a escassez quantitativa, estamos provocando a escassez qualitativa, isto é, os mananciais estão diante dos nossos olhos – Pinheiros e Tietê em São Paulo -, mas suas águas são imprestáveis para qualquer tipo de uso.
    Nesse sentido, mais uma vez, a importância da Campanha da Fraternidade sobre o saneamento básico. Ao coletar e tratar os esgotos, manejar adequadamente os resíduos sólidos, estaremos dando a maior contribuição para superar a escassez qualitativa de nossas águas.
    Alerta: cientistas e juristas que estiveram na elaboração do conteúdo do Texto Base da CF, nos alertam que o governo está focando a luta contra as doenças em evidência no combate ao mosquito, desviando o foco do fundamento básico do saneamento.
    Roberto Malvezzi (Gogó)
  • A obscura ameaça de privatização das águas

    Açude de Orós (CE), um dos mais tradicionais do país. Empresas concessionárias poderão deixar de abastecer populações e vender “sua” água para agronegócio

     

    Esses dias fui entrevistado pela Folha de São Paulo sobre uma nova investida da Agência Nacional de Águas para a criação do “mercado de outorga de águas”. O assunto é antigo e, vez em quando, se mexe no túmulo.
    A proposta vem do Banco Mundial e FMI para a criação do mercado de águas como a melhor forma de gerir a crescente crise hídrica global. Como no Brasil a água é um bem da União (Constituição de 1988) ou um bem público (conforme a lei 9.433/97), ela não pode ser privatizada, nem mercantilizada.
    Acontece que há tempos o grupo que representa o pensamento dessas instituições internacionais no Brasil – e das multinacionais da água — busca brechas na lei para criar o mercado de águas, pelo mecanismo de compra e venda de outorgas. Já que a água não pode ser um bem privado, então busca-se criar o mercado das outorgas (quantidades de água concedidas pelo Estado a um determinado usuário), para que possam ser vendidas de um usuário para outro.
    Hoje, o mercado de outorgas é impossível. Quando um usuário que obteve uma outorga não utiliza a água demandada, ela volta ao poder do Estado. Não pode ser transferida para outro usuário, muito menos ser vendida. A finalidade é óbvia: evitar que se crie especulação financeira em torno de um bem público e essencial, evitando a compra e venda de reservas de água.
    A lei já tem uma aberração, que é a outorga preventiva. Uma empresa pode reservar para si um determinado volume de água até que seu empreendimento possa ser implantado. Essa outorga preventiva pode ser renovada mesmo quando o prazo expirou sem que nenhuma gota d’água tenha sido utilizada.
    Onde o mercado de águas – sob todas as formas – foi criado o fracasso foi mortal, literalmente. Na Bolívia gerou a guerra da água, na França, depois de alguns anos, o serviço voltou ao controle público. Assim em tantas partes do mundo. Mas o Brasil é tardio e colonizado. Muitos de nossos agentes públicos também o são.
    Pela nossa legislação existe uma ética no uso da água, isto é, em caso de escassez a prioridade é o abastecimento humano e a dessedentação dos animais. Portanto, prioridades como essas, estabelecidas em lei, não podem ser substituídas pelo mercado. Em momentos críticos como esse, exige-se intervenção do Estado através do organismo competente para determinar a prevalência das prioridades sobre os demais usos.
    Porém, se as regras forem mudadas para que passe a prevalecer o mercado, uma empresa de abastecimento de água, para ganhar dinheiro, poderá vender sua outorga — total ou parcialmente — para outra companhia: de irrigação, por exemplo. Nesse caso, sacrificaria as pessoas em função do lucro e da empresa que pode pagar mais pela água.
    Portanto, não é só uma questão legal. É, antes de tudo, ética, humanitária e protetora dos direitos dos animais.  A proposta inverte a ordem natural e dos valores, colocando o mercado como senhor absoluto da situação, exatamente em momentos de escassez gritante.
    É sintomático que essas observações feitas à Folha de São Paulo não tenham sido publicadas. Apareceram apenas as vozes dos defensores do mercado de águas.

    Por Roberto Malvezzi (Gogó)

  • Tristeza não tem fim, biodiversidade, sim…

    Todos sabemos que o Brasil é um país de natureza exuberante, um lugar com uma enorme biodiversidade, expressa em números incomuns de espécies de plantas, animais e micro-organismos e em ambientes tão diferentes como a Amazônia e a Caatinga. O Brasil abriga cerca de 20% de todas as espécies vivas do planeta. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, nossa biodiversidade poderia concretizar a ideia de que o Brasil é o país do futuro. Um futuro diferente do presente desigual, injusto e insustentável.

    Entre as possíveis oportunidades que essa biodiversidade nos traz está o desenvolvimento de produtos derivados do vasto patrimônio genético que representa. Esses produtos não são apenas novos medicamentos ou cosméticos, mas também tintas, solventes, essências, óleos, produtos de limpeza, biotecnológicos e químicos. E para que os países megadiversos, como o Brasil, possam obter benefícios usando de forma sustentável sua natureza, a Convenção da Biodiversidade (CDB), um dos tratados internacionais assinados na Conferência Rio-92, estabeleceu um mecanismo chamado “repartição justa e equitativa” dos benefícios oriundos do acesso ao patrimônio genético. Trata-se de um nome complicado para uma ideia simples: quem usa algum componente da nossa biodiversidade e, com isso, afere algum lucro, deve dividir esse lucro conosco, o povo brasileiro. Essa divisão deve ser justa e garantir a igualdade de direito entre os envolvidos.

    Além disso, a Convenção reconhece a importante contribuição do conhecimento dos povos indígenas e das comunidades tradicionais (ribeirinhos, extrativistas, quilombolas etc) para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Por isso, também estipula que haja repartição de benefícios quando esse conhecimento é utilizado para o desenvolvimento de algum produto. Um exemplo disso são remédios desenvolvidos a partir do saber indígena sobre plantas medicinais.

    A repartição de benefícios foi uma das grandes inovações da CDB e traz em seu bojo uma excelente ideia: fomentar um uso de base científica e tecnológica dos componentes da biodiversidade, garantindo assim sua conservação. Algo como a galinha de ovos de ouro. Se usarmos um ovinho e os recursos derivados de cada ovo de cada vez, é possível manter a galinha e assegurar que ela continue botando ovos. A concretização dessa ideia, porém, é mais complexa. É difícil controlar e regular o acesso e o uso de componentes da biodiversidade e, ao mesmo tempo, criar mecanismos justos e equitativos de repartição de benefícios.

    No Brasil, esse assunto é regulado, desde 2001, por uma Medida Provisória (MP) que não agrada a ninguém. Foram feitas várias tentativas de criar um novo marco legal para o tema, mas todas fracassaram. Por fim, no ano passado, em plena Copa do Mundo, o governo federal enviou ao Congresso um projeto de lei, em regime de urgência, para substituir a MP. O que se viu, então, foi uma tramitação apressada, e nada democrática, de um assunto complexo e votações pautadas por interesses que não são os do povo brasileiro. Os detentores do conhecimento tradicional, povos indígenas e comunidades locais, os pesquisadores e os ambientalistas foram alijados do debate e o texto refletiu apenas os interesses das empresas que usam componentes da nossa biodiversidade e conhecimentos tradicionais a ela associados.

    O resultado final emergiu da Câmara dos Deputados, na semana retrasada, e agora está na mesa da presidenta da República para sanção ou veto. Trata-se de uma nova lei que confirma a dificuldade que o Brasil tem em perceber sua biodiversidade como oportunidade, como passaporte para o futuro, e não como maldição da qual quer se livrar.

    Nessa nova lei, a União, guardiã – ao menos teoricamente – da nossa biodiversidade, abre mão de quase todas as possibilidades de aferir benefícios com a exploração do nosso patrimônio genético. A repartição de benefícios passará a ser uma exceção ao invés da regra e será sempre pautada pelas escolhas de quem usa e explora a biodiversidade, ou seja, as empresas. Como parte da tristeza sem fim, fica a questão de como a União pode abrir mão de tudo isso em nosso nome, sem sequer nos consultar. Depois de quase 20 anos de debates sobre esse assunto, como podemos acabar com uma lei, aprovada apressadamente, que não trará nenhuma segurança jurídica e prejudicará a todos os envolvidos? Resta a esperança – talvez vã – de que Dilma Rousseff vete alguns dispositivos e torne a nova lei um pouco menos inaceitável, porque torná-la aceitável é agora impossível.

    por Nurit Bensusan

  • Por uma possível economia ecológica

    Publicado em Outras Palavras
    A humanidade está passando pela mudança mais vasta, mais profunda e mais imprevisível de toda sua história na face da Terra. A diferença essencial em relação a todas as outras mudanças é que essa não se dá exclusivamente no seio das relações entre os seres humanos, mas nos próprios fundamentos da relação entre a civilização humana e o planeta no qual habita. O mito da inesgotabilidade dos bens naturais ruiu, mas a força inercial do modelo predador persiste.
     
    O modelo civilizatório ocidental, alicerçado na exploração de seres humanos por outros seres humanos, e na intensa exploração da natureza por uma restrita elite mundial, já não tem mais sustentação. Dos 6,5 bilhões de pessoas que habitam o planeta Terra, apenas 1,7 bilhão pertence ao modo consumista e predador da civilização contemporânea. Para sustentar os caprichos dessa elite mundial são necessários 2,5 planetas Terra, para alguns, ou até seis planetas Terra, para outros.
     
    Essa elite não está apenas no primeiro mundo, mas também tem seus nichos no segundo, terceiro e quarto mundos. Estender esse modelo de produção e consumo a todos os seres humanos é impossível pelos próprios limites desses bens em nosso planeta. Para sustentar esse modelo, pelo maior tempo possível para uma elite restrita, é preciso restringir o acesso dos demais a esses bens. O melhor mecanismo para selecionar os incluídos do modelo é aplicar as regras do mercado a todas as dimensões da existência. Quem puder comprar, entra. Quem não puder, está fora. Aqui está posta a primeira encruzilhada entre a eco-nomia e a eco-logia.
     
    Fomos acostumados a olhar o futuro numa perspectiva de dias melhores. O próprio conceito de utopia, embora nunca realizável, sempre aponta para uma dinâmica que busca uma sociedade melhor que a do presente. Não fomos acostumados a olhar para a entropia, isto é, a decadência natural de tudo que existe. Entretanto, a física atual nos dá conta de que tudo tem seu começo, sua maturidade, seguida de sua decadência. O próprio princípio de Gaia, que compreende a Terra como um ser vivo, também entende que nosso planeta, se comparado com a vida de uma pessoa humana que vai chegar aos cem anos, já teria vivido oitenta. As ciências sociais não têm como princípio, sequer metodológico, estudar a humanidade na sua relação com um planeta já envelhecido, agora acossado pela extrema exploração humana.
     
    Um novo ramo das ciências da Terra, particularmente a climatologia, nos obriga a compor um raciocínio holístico, de interface com as ciências sociais, incluindo as ciências econômicas, já que a civilização humana não pode ser pensada e entendida fora do planeta no qual ela se dá. Porém, se a própria Terra tem sua decadência natural, também a espécie humana teria que considerar sua história na Terra como temporária, fugaz, com prazo determinado. Portanto, quando será que a humanidade entrará inevitavelmente em decadência?
     
    Do ponto de vista da suportabilidade do planeta, parece que chegamos ao limite, embora a técnica e a ciência abram novos caminhos todos os dias, particularmente agora, com o avanço da nanotecnologia. Talvez já estejamos próximos do ponto máximo suportável para Gaia, se não já estivermos em franca decadência. Em todo caso, 2050, quando nove bilhões de pessoas estiverem ocupando a face da Terra, o planeta atingirá o máximo de sua suportabilidade. Daí para frente, pelo menos em termos populacionais, não haverá mais como avançar sem comprometer a vida como um todo.
     
    Entretanto, uma parcela de ambientalistas e cientistas atuais poderá dizer que a humanidade já atingiu o ponto máximo de sua ascensão, que já estamos num processo de decadência, dado que a humanidade atual consome ao menos 2,5 vezes mais do que o planeta pode suportar. Para alguns, o limite suportável para Gaia está entre um ou dois bilhões de pessoas. A novidade é que nosso raciocínio terá que considerar, desde já, os limites da Terra e os limites da humanidade. Portanto, o mito do paraíso terrestre, do progresso infinito, da história infinita, não encontra qualquer respaldo na realidade do nosso Planeta e da humanidade enquanto espécie. O Universo é devir, a Terra é devir, a humanidade é devir, com princípio, meio e fim.
    Uma boa metáfora para compreender a sociedade mundial contemporânea é compará-la com um veículo em altíssima velocidade, com todos os seus confortos, que leva consigo apenas uma parte restrita da humanidade, deixando 70% à beira dos trilhos, porém, sem saber se à sua frente existe uma estação, uma paisagem bela ou a queda num abismo. A humanidade perdeu sua teleologia, isto é, seu rumo, seu norte, seu ponto de chegada. Os grandes sistemas que orientaram a humanidade – o sonho da “ordem e progresso” dos positivistas, o “paraíso terrestre” dos socialistas e comunistas, o “consumismo capitalista”, além da cristandade na Idade Média – já não respondem aos desafios contemporâneos. Restou o consumo imediatista de uma parcela restrita da humanidade. “Um outro Mundo é Possível”, mas não sabemos mais que mundo possível queremos.
     
    A mudança se dá na tecnologia e na ciência, na sociedade humana, na subjetividade das pessoas e na natureza. A hegemonia é do imediato sobre o sensato, do consumo veloz sobre a sustentabilidade, do indivíduo sobre o coletivo ou comunitário, do privado sobre o público e do econômico sobre o ético, o político e o ambiental. Os que ficaram de fora têm o sonho, a necessidade, a maioria, mas não a força para defender e conquistar seus interesses.
     
    A ciência e as tecnologias avançam numa velocidade estonteante, sobretudo no campo das comunicações, da informática, da genética, da nanotecnologia, fazendo com que o tempo se transforme num “breve século XX”, enquanto no mundo inteiro milhões de pessoas morrem cotidianamente de fome, de sede e de AIDs. A produção de alimentos aumenta e a fome também, mas agora competindo com a produção de agrocombustíveis. Por outro lado, como consequência, a biodiversidade se restringe, os solos se empobrecem, a disponibilidade de água em quantidade e qualidade diminui, assim como outros bens naturais. O próprio planeta reage com fúria e a gravidade de sua vingança já se tornou fato. Em tragédias como de Nova Orleans e Mianmar, os mortos são contabilizados às dezenas de milhares, ou mesmo a uma centena de milhar, como é o caso de Mianmar. A concepção de um planeta inesgotável caiu por terra diante da “consciência dos limites”. Entramos na “era dos limites”.
     
    Como verso da mesma moeda surge uma nova consciência planetária, da solidariedade global, da irmanação dos povos, de “um outro mundo possível”, a busca desesperada por alternativas que salvem o modelo civilizatório construído, ou então, construam um novo modelo de sociedade. Também se inicia a busca de uma nova economia, descarbonizada, baseada em energias limpas, baixo consumo de matérias primas renováveis e não renováveis, que inclui no raciocínio econômico as chamadas externalidades, como consumo de energia, água, danos ao ambiente, à saúde humana etc. É o novo contexto de um modelo de desenvolvimento que se qualifica de “sustentável”, com todas as implicações que essa adjetivação comporta. Nesse momento, entretanto, há quem já questione até a expressão “desenvolvimento sustentável” e proponha uma “retirada sustentáveli”. Enfim, se a economia trilhou caminhos autônomos até nossos dias, considerando como externalidades os fatores ambientais – inclusive os sociais –, hoje já não terá mais como fugir da questão.
     
    As instituições tradicionais perdem pertinência histórica, os Estados colocam-se a serviço do privado, as grandes transnacionais impõem a ditadura do mercado, os valores consagrados da humanidade são questionados, surge uma nova constelação de valores como caldo cultural que sustenta a subjetividade da sociedade do consumo imediato.
     
    Como reação ressurge o “fenômeno indígena”, sobretudo nos países andinos e no norte do Brasil, onde as nações que tiveram sua história podada estão próximas de reencontrar o fio da meada.
     
    As consequências dessas mudanças, portanto, são quase infinitas, os desdobramentos imprevisíveis, o destino da humanidade incerto. Enfim, o mundo que conhecemos está em mudança, radical, de qualidade. É o que se chama de “crise de paradigmas” (referências), “crise de sustentabilidade”, “crise civilizatória”.
     
    Nessa “esquina da humanidade” surgiu um intenso dilema entre economia e ecologia. Ambas têm a mesma etimologia, isto é, “Oikos”, do grego, casa. Mais do que casa, lar, porque incorpora a dimensão subjetiva do bom relacionamento. Porém, se a eco-logia trata do cuidado com a casa – ciência que surgiu no século XIX, 1870, criada por Ernst Haeckel, para o qual “ecologia” era a “economia da natureza” – , a eco-nomia trata do “abastecimento da casa ou da cidadeii”. O conceito vem desde Aristóteles, mas tem seus fundamentos modernos em Adam Smith, século XVIII, que modifica seu conteúdo, já que estava preocupado em determinar como o interesse de cada indivíduo leva ao bem comumiii.
     
    Na virada para o século XIX, Malthus e David Ricardo surgem como dois economistas que estabelecerão, ainda que de forma incipiente, laços indissolúveis entre economia e ecologia. Malthus vai afirmar que o crescimento populacional seria geométrico e o dos recursos seria aritmético. Ricardo vai estudar o esgotamento dos solos agrícolas – tanto em quantidade como em qualidade – diante da demanda maior por alimentos. A superprodução de alimentos com a Revolução Verde calou por determinado tempo essas teorias. Hoje a questão dos limites dos bens naturais, inclusive solos e água, é reposta em um novo patamar.
     
    Na primeira metade do século XX, um químico, Frederick Soddy, começa a discutir economia, mas a partir da produção de energia. Para ele, só as plantas produzem energia, a partir do fluxo de energia solar, que pode ser gasta, mas não pode ser acumulada. Essa, para ele, é a verdadeira origem da riqueza. Nesse sentido, debateu e dissentiu de Keynes sobre a produção de riqueza a longo prazo. A partir da década de 1980, economistas como José Manuel Naredo, Roefie Hueting e Christian Leipert vão se debruçar especificamente sobre essa relação economia e ecologia.
     
    Portanto, o abastecimento do lar depende da exploração da “casa comum”, isto é, da Terra. Esse é o conflito essencial dessa encruzilhada humana: temos como cuidar da casa comum e ao mesmo tempo explorá-la em benefício de todos os seres humanos? Qual é o limite dessa exploração? É nesse sentido que se fala em uma “economia ecológica”, ainda em construção. Ela envolve necessariamente outros paradigmas, que não estão postos nas ciências econômicas modernas.
     
    O que se pretende aqui é levantar apenas alguns ângulos dessa mudança inédita que a humanidade já enfrenta e terá necessariamente que continuar enfrentando.
     
     
    Futuro Humano na Terra: a espada do aquecimento global.
     
    As contradições do modelo civilizatório estão nos seus próprios fundamentos. O modelo civilizatório hegemônico – muitas nações indígenas vão nos dizer que o problema é do modelo, afinal, suas economias consomem pouca energia e poucos recursos naturais –, embora tenha avançado na imaterialidade, na virtualidade, não modificou a exploração insustentável dos bens naturais. Ainda consome água, solos, energia e a biodiversidade de modo devastador. Além do mais, a sociedade do sobreconsumo produz lixo em excesso, contamina a água, erode os solos, emite gases na atmosfera, modificando o clima do planeta. Por isso, pela primeira vez, a humanidade toma consciência dos limites do planeta.
     
    O divisor de águas dessa nova era da humanidade provavelmente terá sido a Rio-92. Ali se consolidou a percepção de que a mudança de paradigmas, já em gestação, era necessária, inevitável e incerta. A depredação dos bens naturais colocou a elite mundial numa encruzilhada: ou modifica os fundamentos predadores do modelo civilizatório, ou exclui grande parte da humanidade de seus benefícios, reservando para si os bens antes destinados a todos. Ainda mais, pode desequilibrar o próprio ambiente do planeta no qual habita, sendo a humanidade também vítima da mudança que provoca. Tem prevalecido a segunda opção. Entretanto, ela gera a contradição da exclusão de bilhões de pessoas do modelo, no máximo concedendo-lhes algumas migalhas para sua sobrevivência. Por isso, nada indica que as multidões excluídas irão aceitar passivamente sua condição. O mundo da violência, das migrações, do terror e a reação positiva dos movimentos sociais, indígenas, igrejas, intelectuais, humanistas, ecologistas, continuarão fazendo seu contraponto na história. As perspectivas são terríveis, os cenários dantescos, mas a história não comporta absolutos. A elite mundial não faz sua história isolada do resto da humanidade. Por isso, a luta pela terra, pela água, toda luta ambiental, vincula-se ao destino final da humanidade. Pensar os destinos do planeta é pensar os destinos da humanidade.
     
    Tornou-se impossível falar do destino do ser humano e da Terra sem a interlocução com o cientista James Lovelock, o criador da teoria de Gaia. Segundo ela, a Terra comporta-se como um ser vivo, que autorregula sua própria temperatura. Teria sido assim durante toda a existência de nosso planeta, que teria aproximadamente 4,5 bilhões de anos. Para esse cientista o futuro humano sobre a Terra, tal qual o conhecemos até hoje, está a poucos metros ou segundos da sua maior catástrofe, se compararmos a existência da Terra à vida de uma pessoa humana. O fator decisivo nesse futuro é o aquecimento global, causado pela concentração de gases que provocam o efeito estufa na atmosfera. Para ele, diante do aquecimento global, todos os demais problemas da humanidade são irrelevantes. Segundo suas afirmações, a concentração de gases que provocam o efeito estufa na atmosfera já alcança cerca de 360 ppm (parte por milhão).
     
    Entretanto, se a emissão continuar no mesmo ritmo, em 40 anos atingirá 500 ppm. Quando, em sua modelagem de computador, a concentração de gases atingiu esse nível, as algas marinhas morreram. Então a temperatura, que subia gradualmente, passou a subir exponencialmente e de forma descontrolada. O resultado que surgiu na tela de seu computador foi um planeta tórrido, com vida apenas nos polos, onde sobreviveriam cerca de um bilhão de pessoas. O resto da humanidade e de outras formas de vida seria eliminado das demais regiões do planeta. Contestado, Lovelock diz torcer para que seus adversários estejam certos. Afirma ainda que, de fato, Gaia é extremamente complexa, quase que indecifrada, e que nenhuma modelagem de computador, por mais sofisticada que seja, pode aglutinar toda a complexidade do que ela seja. Portanto, todo resultado computadorizado tem que ser considerado de forma humilde pelos cientistas.
     
    Entretanto, aqui está uma diferença crucial com relação às previsões do próprio IPCC, que embora também faça previsões trágicas, vê o aquecimento global de forma gradual. Lovelock afirma que outros cientistas, quando fizeram suas modelagens, não consideraram o fator das algas e sua importância para o sequestro de carbono e liberação de oxigênio.
     
    A teoria de Lovelock é a mais revolucionária de todas as teorias. Para Protágoras, filósofo grego anterior a Sócrates, “o homem é a medida de todas as coisas”. O filósofo foi destronado por James Lovelock, já que Gaia é o fator decisivo e a medida de todas as coisas. Lovelock ainda retira de Darwin a centralidade da teoria da evolução das espécies para afirmar que, na verdade, o mais importante é a evolução de Gaia. Portanto, se a Terra era o centro do universo medieval, primeiro perdeu seu lugar para o sol, depois se descobriu apenas como um planeta periférico de uma galáxia periférica num universo que tem bilhões de galáxias, cada uma com bilhões de estrelas, porém, agora revela que tem poder sobre todos que habitam sua face.
     
    Na Terra, o ser humano, que já foi a medida de todas as coisas, descobre-se agora como parte de um processo maior, onde ele não é a medida de todas as coisas e sequer tem o comando do mundo em que vive. É a pá de cal na arrogância humana. Os Iluministas, em suas várias matizes, inclusive marxista, veem nesse momento da história a razão humana ser destronada pela evolução do conceito de Gaia. Portanto, seguindo a lógica férrea dessa concepção, Lovelock vai questionar inclusive a relação histórica da agricultura humana com Gaia.
     
    Seguindo o raciocínio, a cobertura vegetal da Terra seria para garantir o metabolismo de Gaia, não para o ser humano destruir a vegetação e fazer da pele de Gaia apenas um espaço para produção de seus alimentos. Por isso, a humanidade já extrapolou o que lhe seria possível destruir em Gaia. Agora a produção de alimentos terá que buscar outras alternativas. Para ele, apenas uma restrita elite vai continuar consumindo alimentos naturais. O resto da humanidade terá que sobreviver de alimentos sintéticos, que dispensam o cultivo agrícola.
     
    O raciocínio de Lovelock é ácido, dourado por um discurso polido, francamente primeiro-mundista, visando garantir o melhor dos mundos para o paraíso de uma restrita elite, que sobreviverá nas áreas habitáveis do planeta e com o melhor da tecnologia já inventada pelo ser humano. O resto da humanidade, aproximadamente 4 ou 5 bilhões de pessoas, ou pelo expurgo de Gaia, ou por uma política ostensiva de antifecundidade, seria inevitavelmente eliminada. Segundo ele, um a dois bilhões de pessoas é o que Gaia suportaria sem que haja prejuízo ao seu metabolismo.
     
    Na questão energética, Lovelock é ainda mais surpreendente e enfático. Para ele aqui reside a questão decisiva, sem a qual todas as demais são inúteis. A única solução para a humanidade evitar que o CO2 atinja 500 ppm na atmosfera – então dispare o gatilho do aquecimento sem controle – é mudando radicalmente a matriz energética da civilização humana, já e agora, enquanto houver tempo. De pouco adiantam a eólica, solar e hidráulica e as outras fontes chamadas limpas, como os agrocombustíveis. Aliás, seria apenas uma forma a mais de superexplorar Gaia. A única fonte abundante é a nuclear que, segundo ele, oferece riscos mínimos. Inclusive, chega a dizer que se uma usina nuclear quiser colocar em seu quintal um tonel com resíduos radioativos, está convidada. Ele aproveitaria o calor como fonte de energia para sua casa. Segundo ele, o mito do perigo atômico se deu por conta das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Fora esses fatos, não haveria como provar que os resíduos atômicos tenham prejudicado a humanidade.
     
    Talvez esse diagnóstico energético seja verdadeiro para os países frios do Norte. Não é a realidade para países tropicais, fartos de sol, vento e biomassa. Entretanto, o avanço, em todo o mundo, dos agrocombustíveis sobre solos aráveis e utilizados para produzir alimentos, antecipou o dilema entre a fome e os carros, entre saciar as pessoas e abastecer os tanques de combustíveis.
    Lovelock tem sido criticado por militantes ambientalistas. A origem da crítica está na rebelião que ele e sua família fizeram ao descobrir que queriam pôr um moinho de vento para gerar energia perto de sua casa, no interior da Inglaterra. Ele acha feio, uma aberração, que modifica a única face original de Gaia em território inglês. Então, tornou-se um crítico da energia solar e eólica, ao menos enquanto elas não forem mais baratas e mais eficientes. Por essa razão também perdeu muitos amigos do campo ecologista. O fato concreto é que Lovelock em nenhum momento se põe como um crítico do consumo absurdo de energia, particularmente no seu primeiro mundo. Ele prefere mudar radicalmente o padrão energético, para não modificar o padrão de consumo. Para ele, modificar este último, agora, seria inútil.
     
    Enquanto debatemos o neoliberalismo, o eco-socialismo, o desenvolvimento sustentável, Lovelock simplesmente propõe a “retirada sustentável”, a mudança radical da matriz energética para a nuclear, o consumo de alimentos sintéticos e a inevitável eliminação da maior parte da humanidade como única solução para salvar Gaia, da qual somos apenas filhos humílimos. Não se trata apenas de referendar, negar, ou criticar Lovelock. Ele traz para a humanidade uma realidade assombrosa e modifica os parâmetros básicos da civilização humana, caso ela queira continuar existindo. Diante de propostas tão assombrosas, o terrível desafio está posto.
     
     
    Crise terminal do petróleo.
     
    Nosso modelo civilizatório é chamado também de “civilização do petróleo”. Esse recurso natural, formado pela decomposição de animais e vegetais, transformou-se na matéria prima essencial que sustenta o modelo civilizatório contemporâneo. O petróleo está presente em nossas vidas no combustível e em todos seus derivados, numa multiplicidade contabilizada às centenas.
     
    Entretanto, esse recurso natural, que levou alguns milhões de anos para se formar, está sendo esgotado em pouco mais de um século. Pouco importa se teremos petróleo ainda por vinte ou trinta anos. O fato é que caminhamos rapidamente para sua inviabilidade enquanto matéria prima que sustenta a civilização contemporânea. As guerras que aconteceram no último século pelo petróleo apenas confirmam sua importância no modelo em que a civilização foi construída. As últimas reservas estão sendo disputadas em todos os terrenos – o diplomático, o econômico e o militar – e a guerra do Iraque serve de ilustração. A busca de uma única matéria prima para substituir o petróleo parece impossível. Terá que haver a diversificação, principalmente das matrizes energéticas.
     
    Não há como pensar eco-nomia sem energia. A energia é o que move o mundo. Entretanto, aqui já se põe mais um dilema entre economia e ecologia. Na verdade, só as plantas, pelo processo da fotossíntese, têm o poder de captar a energia do sol e transformá-la em sua própria energia. Todos os demais seres dependem da energia gerada pelas plantas. Na verdade, os vegetais são os únicos capazes de produzir sua própria energia, seu capital. Os demais dependem de bens que já estejam disponíveis na natureza. Muitos desses bens podem ser utilizados renovadamente, como a água. Outros não se renovam, como o petróleo. Portanto, ao esgotarem-se os estoques já produzidos pela natureza, não há mais como contar com essa fonte energética. Além do mais, sua intensa utilização, extraindo do subsolo e queimando em forma de combustível, gerou uma intensa injeção de CO2 na atmosfera, contribuindo de forma decisiva para o aquecimento global agora em processo. A economia ecológica busca estabelecer a congruência entre termodinâmica, economia e ecologiaiv.
     
    É nesse sentido que o Brasil já entra no novo cenário mundial. E tenta arrastar consigo vários países da América Latina e da África. Primeiro porque o país tem ainda boas reservas de petróleo, que podem permitir uma transição mais suave de sua economia para novos modelos, embora a substituição geral do petróleo implique em centenas de outras demandas além das energias líquidas. Entretanto, assegurando nossas reservas de petróleo para os interesses dos brasileiros, ou entregando as últimas reservas para o capital internacional, o Brasil também terá que passar pelo ocaso da civilização do petróleo, para outra ainda a ser inventada. Nossos antepassados viveram sem o petróleo.
     
    Nessa reinvenção de novos fundamentos civilizatórios no campo da energia, mais uma vez o horizonte se abre para o Brasil de forma paradoxal. Já chega ao cotidiano dos trabalhadores rurais brasileiros, inclusive de pequenos agricultores do Nordeste, ou nas fazendas de cana, a produção brasileira de agrocombustíveis, seja o álcool derivado da cana, seja o diesel de origem vegetal do dendê, mamona, soja etc. Entretanto, é preciso fazer uma leitura crítica do ufanismo que vem tomando conta da nação.
     
    Em primeiro lugar há o problema ecológico. Ocupar solos, remover florestas, usar intensivamente água para produzir agrocombustíveis é uma opção que precisaria ser examinada e filtrada em seus mínimos detalhes. Em um país onde 70 milhões de pessoas vivem no limite da insegurança alimentar, levar a agricultura familiar, com seus parcos recursos e suas poucas terras – mas que põe a mesa do brasileiro – para a lógica da produção de combustíveis para os carros da elite mundial, é altamente criticável e pode descambar para uma aberração.
     
    A perspectiva posta desde o início, contudo, é de que o Brasil mais uma vez entrará na história em situação subalterna e os pequenos produtores, subordinados ao capital empresarial. Já há acordos brasileiros com outros países para exportação dos agrocombustíveis. Ao mesmo tempo, empresas europeias já se consorciaram com empresas brasileiras do ramo sucroalcooleiro para produção de açúcar e álcool. Enfim, essa transição que está apenas dando seu primeiro passo, implica em possibilidades, perigos e mudanças que exigem visão de história, audácia e criatividade. A única exigência intransponível da crise do petróleo é que teremos que passar por ela.
     
    Aqui se põe mais uma inflexão na relação economia e ecologia. Para uma economia regida pelas leis do mercado, segundo as preferências dos consumidores, o destino das terras será determinado pelo mercado, seja para produzir alimentos, seja para produzir agrocombustíveis. Porém, numa economia ecológica e humana, entra outro fator, que é abastecer a família humana com os alimentos necessários, além de preservar bens naturais como solos, água e biodiversidade. Se depender das regras do mercado, já sabemos por antecipação qual será o resultado.
     
     
    A questão dos solos.
     
    Segundo o documento WEHABv, distribuído pela ONU em Johannesburgo durante a Cúpula Mundial do Meio Ambiente em 2002, a humanidade possui hoje aproximadamente 1,5 bilhão de hectares agricultáveis para alimentar 6,5 bilhões de pessoas que habitam a face da Terra. Se essas terras fossem distribuídas equitativamente a cada habitante, haveria uma disponibilidade média de 0,23 por habitante. Como a projeção populacional para 2050 é de nove bilhões de habitantes, então a disponibilidade média por pessoa tende a cair. Se a população se estabilizar em nove bilhões, então teremos uma disponibilidade média em 2050 de 0,15 hectare por pessoa.
     
    O agravamento não se encerra aqui. Não existem mais grandes extensões de solos a serem ocupados, exceto na América Latina. Europa, África, Ásia e América do Norte já têm a maior parte de seus solos agricultáveis ocupados. O uso intenso dos solos, sem cuidados de preservação, faz com que solos já utilizados estejam passando pelo processo de esgotamento, quando não de desertificação, em grande parte de forma irreversívelvi. Segundo o documento da ONU, produzir alimentos para saciar a fome de toda a humanidade no mesmo espaço, talvez até com mais reduções, se constitui num desafio de sustentabilidade. O drama de países pequenos, superpovoados, com pouca disponibilidade de solos, a exemplo daqueles da América Central e da África, tende a se agravar.
     
    Nessa questão também se coloca um problema, não pontual, mas de fundo: o modo de usar os solos, de produzir e distribuir os alimentos em determinada população. A realidade hoje já existente, em que um bilhão de pessoas passam fome todos os dias, tenderá a crescer se esse desafio não for reequacionado. Em consequência, temáticas como da “segurança alimentar”, “direito humano à alimentação”, “soberania alimentar”, “transgenia”, se colocam em diálogo direto com a sustentabilidade dos solos, da água e da erosão da biodiversidade. É o maior dilema entre ecologia e economia já enfrentado pela humanidade. Afinal, como produzir alimentos para nove bilhões de pessoas sem ferir a Terra que habitamos? Agora, a disputa dos solos para produzir agrocombustíveis agrava a produção de alimentos.
     
    Questões como uso de solos, água, aquecimento global etc. foram até agora considerados “externalidades” pelo mundo das ciências econômicas. Não entram na contabilidade. Hoje, porém, como considerar externalidades elementos tão essenciais ao mundo da produção, inclusive de alimentos, energia da qual depende toda a humanidade? Talvez aqui, nas políticas de produção de alimentos, de preservação da água e dos solos esteja um ponto de engate absolutamente intransponível entre ecologia e economia. Hoje é necessário falar em “pegada ecológica”; “fluxo de energia”; “água virtual”, “energia embutida” etc., antes consideradas externalidades, hoje conceitos fundamentais em uma economia ecológica.
     
    O Brasil teria cerca de 360 milhões de hectares de terras cadastradas, em tese agricultáveis. Se essas terras forem mesmo agricultáveis, então a média disponível por pessoa no Brasil é de 2,11 hectares, isto é, dez a onze vezes mais que a média mundial. É óbvio que esse é um exercício matemático simples, mas suficiente para nos dar a dimensão da riqueza de solos que temos.
     
    Entretanto, o modo de usar nossos solos em nada difere daquele dos países mais predadores. A civilização brasileira nasceu escravagista e sob o signo extrativista da depredação dos bens naturais: pau-brasil, ouro, borracha, ciclo do gado, do café, da cana de açúcar, assim por diante. Até esse momento, nada indica que teremos doravante um uso qualitativamente diferente da forma como foi até hoje. Aqui se coloca nossa primeira inflexão: que força têm os excluídos e marginalizados da terra para modificar a concentração da terra e o modelo agrícola que temos?
     
     
    Erosão da biodiversidade.
     
    “Há alguns anos calculava-se que o reino animal compreendia algo entre 2 e 8 milhões de espécies, das quais apenas 1,4 milhão já haviam sido descritas pela ciência. Estudos mais recentes indicam que estes números são na realidade muito maiores, podendo variar entre 30 e 50 milhões de espécies ou mais. Para os vegetais superiores, novos cálculos também apontam um crescimento de 260 mil para algo em torno de 500 mil espécies estimadas no planeta”vii.
     
    Essa megadiversidade de formas de vida, a esmagadora maioria sequer descrita pela ciência, desaparece aceleradamente a cada minuto que passa. Esse processo biocida desencadeado pela ação humana não tem qualquer precedente nos 4,5 bilhões de anos de nosso planeta. O processo destrutivo é de tal monta que, do ponto de vista das eras geológicas, pode ser comparado a um simples estalar de dedos.
     
    Hoje a Teoria de Gaia tem grande aceitação entre os cientistas. Lançada por Lovelockviii, essa teoria propõe que o planeta se comporta como um fantástico ser vivo, onde as partes vivas (plantas, microorganismos e animais) interagem com as não vivas (rochas, oceanos e atmosfera) de forma permanente. A esfera da vida (biosfera) não existiria sem as demais esferas, isto é, litosfera, hidrosfera, atmosfera, a luz e o calor irradiados pelo sol. Os primeiros registros de vida sobre a Terra têm mais de 3,5 bilhões de anosix.
    Portanto, não se trata apenas de estabelecer os vínculos entre os seres vivos, mas também dos vivos com os não vivos. É verdade que a vida tem um poder quase que inesgotável de se refazer, mas também é de aceitação científica que a vida prossegue, mas as espécies têm seu prazo de duração, isto é, surgem e se extinguem ao longo das eras geológicas, até que todas as condições de vida na Terra se extinguam e a vida se extingua de vez.
     
    A espécie humana foi uma das últimas a chegar. O surgimento do ser humano no contexto das eras geológicas parece insignificante. O Homo habilis (dotado de habilidade) surgiu há apenas 2 milhões de anos e o Homo Sapiens Sapiens (o homem que sabe que sabe) surgiu há apenas 50 mil anosx. Foi necessário que o planeta se preparasse como um útero para agasalhar a vida humana. Entretanto, essa espécie é diferente, exatamente porque pensa. A razão posta a serviço da destruição modifica os processos da vida, sua extinção e reconstituição. É a ação humana que promove a eliminação de tantas espécies em tão curto espaço de tempo.
     
    “É recente o despertar do interesse econômico pela biodiversidade. Os avanços verificados nos últimos anos nas chamadas biotecnologias e na engenharia genética abriram vastas possibilidades para a exploração em escala industrial mundial das substâncias, princípios ativos e, principalmente, informações genéticas, contidas nas milhares de espécies existentes… Estima-se que 75% das drogas derivadas de plantas em utilização no mundo, movimentando um mercado de aproximadamente US$ 43 bilhões, foram descobertas a partir da indicação de populações tradicionais”xi.
     
    Portanto, a biodiversidade é também uma questão econômica, social e política. Ainda mais, é profundamente medicinal. Se 75% das drogas derivam da sabedoria popular, é preciso dizer também que 75% dos fármacos têm base natural. Portanto, ao destruir a biodiversidade, o ser humano está também cada vez mais indefeso diante de possíveis doenças.
     
    Destruir a biodiversidade para promover monocultivos pode ser de pouca inteligência econômica. Mais uma vez o Brasil – assim como outros países da América Latina – surge de forma privilegiada no âmbito da natureza. Possui uma das maiores biodiversidades do planeta. Fala-se que detemos cerca de 20% da biodiversidade planetária, embora esses números sejam ilações, exatamente porque pouco da biodiversidade planetária já foi descrita pelos cientistas.
     
    “Grande parte da diversidade biológica do planeta, entre 60 e 70%, encontra-se em um reduzido número de países, os denominados “territórios de megadiversidade”. São eles: Brasil, Colômbia, Equador, Peru, México, Zaire, Madagascar, Austrália, China, Índia, Indonésia e Malásia”xii.
     
    Portanto, nesse processo civilizatório insustentável, o Brasil aparece como aquele que possui simultaneamente solos, água, sol e biodiversidade em abundância. O que acontece com os biomas brasileiros – Pantanal, Pampa, Cerrado, Amazônia, Caatinga e Mata Atlântica – dispensa qualquer comentário. A reação da sociedade civil é grande e a ação dos ambientalistas está em todo o território nacional, quase sempre ligada a ações internacionais. Legislações, convenções internacionais, programas e ações governamentais para modificar a qualidade de nosso desenvolvimento também existem. A criação do Ministério do Meio Ambiente foi um salto de qualidade que vem tendo seus desdobramentos. Entretanto, se o modelo de desenvolvimento não for modificado em sua essência, nada impedirá a destruição contínua da biodiversidade. Não há modelo matemático capaz de calcular em termos econômicos – muito menos em termos de importância para a vida – o que significa toda essa riqueza. O que o povo brasileiro, e principalmente nossas elites políticas e econômicas irão fazer com esse potencial é a grande incógnita desse princípio de milênio.
     
     
    Mudança de valores.
     
    A crise civilizatória não agride apenas a natureza, mas o próprio ser humano, seja na sua subjetividade, seja em sociedade. O neoliberalismo é também uma mudança profunda de cultura e de valores. Vivemos a época da indiferença, da insensibilidade, da consciência sem culpa. Mas é o mundo onde avança também a consciência da equidade de gêneros, do respeito às diferenças sexuais, étnicas, culturais, o direito das minorias e assim por diante.
     
    Na encíclica pastoral “Caridade na Verdade”, o papa Bento XVI aborda a questão social e ecológica atuais sob a luz do “desenvolvimento integral”, retomando o conceito de Paulo VI. Para ele não existem dúvidas de que a forma como o ser humano trata a natureza é a mesma forma como trata a si mesmo (n. 51). Dessa forma, o Papa estabelece um vínculo indissolúvel entre a questão ecológica e o mais profundo da subjetividade humana. Nesse sentido, o desenvolvimento inclui “todas as pessoas e a pessoa toda”. Portanto, não está restrito ao aumento da produção de bens materiais. Não se nega essa necessidade, mas não se restringe a ela. Por isso, faz-se necessário observar como a crise ecológica é, em última instância, uma crise de valores.
     
    No âmbito do pensamento hegemônico atual, a solidariedade é permitida, mas fora da moldura maior da “justiça”, isto é, desde que não questione os mecanismos de acumulação, exclusão e depredação que tornam a sociedade contemporânea quase que biocida e maniqueísta. A multiplicação de programas assistenciais que varre o mundo, inclusive o Brasil, revela no fundo uma consciência pesada, que sabe de suas estruturas e práticas fundantes, que se recusa em mudá-las, mas busca mecanismos de compensação que aliviem o peso das injustiças que recaem sobre os pobres e também a consciência daqueles que estão incluídos no projeto dos dominantes.
     
    Não se trata de negar a boa vontade daqueles que estão empenhados nesses programas. Quem de nós não está? Mas não podemos nos contentar com essas práticas. Nessa “longa noite escura do neoliberalismo”xiii, é o que nos resta, tantas vezes. O desafio é incluir nossa boa vontade, nossa solidariedade em busca de um mundo baseado na justiça, não em mecanismos de compensação de injustiças estruturadas e institucionalizadas.
     
    Na encíclica essa questão é posta como crucial. Para Bento XVI, a caridade é ir além da justiça. A justiça nem deveria ser posta em dúvida pelos cristãos. É pressuposto. O desafio é dar de si, daquilo que é próprio, generosamente, não negar o que é do outro.
     
    Uma das características dos tempos neoliberais é a mudança na legislação. As reformas da previdência, trabalhista, a criação das agências reguladoras, a autonomia do Banco Central, além da nova legislação da água – e tantas outras – não têm outro objetivo a não ser tornar legal a ação do capital, mesmo que seja agressiva ao ser humano e ao meio ambiente. No espírito dessa legislação está a alma do capital.
    Mas essas mudanças culturais e de valores têm na grande mídia seu veículo principal. A ideologia contemporânea do individualismo permeia novelas, programas infantis, programas jornalísticos, além da mídia impressa. É um embate desigual, que entra pelas nossas casas pela tela de TV. Porém, inclusive na mídia o paradoxo acontece. Uma tela de TV, particularmente a Internet, abriu as portas e janelas do mundo para bilhões de pessoas em todo o planeta.
     
    O individualismo é extremamente caro e predador. Ele exige a multiplicação do consumo. Não é por acaso que hoje o consumidor, o cliente, são figuras sociais mais importantes que as pessoas e os cidadãos. O carro individual, o apartamento individual, o objeto eletrônico individual, exige mais espaço, mais água, mais energia, mais matéria prima. Numa viagem pela Alemanha, ao entrar em Munique, a pastora luterana que me acompanhava anunciou: “40% das pessoas de Munique moram sozinhas. Isso faz com que o preço de um apartamento nessa cidade seja absolutamente caro”. Claro, cada apartamento exige sua rede de luz, de água, de saneamento, assim por diante.
     
    Para alimentar a ciranda infinda do capital, a indústria criou a “obsolescência programada”, isto é, os bens são programados para durar apenas um determinado período e depois serem jogados no cesto do lixo. Essa prática exaure a natureza, não oferece tempo para que ela se recomponha e cria uma fabulosa montanha de lixo, que a natureza e a reciclagem não podem processar, sobretudo os não degradáveis. O resultado está nos aterros sanitários, quando não simples lixões, na contaminação dos rios e lençois freáticos, na poluição do ar e no aquecimento global.
     
    Aqui, é evidente, entram também as contradições. Nada é monolítico. De qualquer forma, o próprio fato de a mídia defender e propor valores, de debater a questão ambiental, comercial e as guerras que varrem o planeta faz com que tenhamos informações que antes não tínhamos. A rede de computadores, os Fóruns Mundiais da Sociedade Civil permitiram que se criasse uma “consciência planetária”. Sem essas invenções tecnológicas não seria possível buscar “um outro mundo possível”. A globalização que queremos é justa e solidária. A Internet é o exemplo maior nessa batalha pela formação e informação, embora a exclusão digital no Brasil continue maior que a própria exclusão da escrita. Mais uma vez estabelece-se o contraditório, embora a hegemonia seja dos valores impostos pela cultura neoliberal.
     
     
    Igrejas e religiões.
     
    Talvez seja impossível entender a humanidade sem a alma religiosa do ser humano. Mas também não é possível ler a história humana sem nos depararmos com tantas guerras promovidas em nome de Deus, mas que ocultam interesses imediatos dos envolvidos.
     
    Nessa emergência da consciência pessoal, individual, não raro individualista, também as grandes religiões sofrem suas consequências, particularmente na chamada civilização ocidental. O cristianismo, embora continue numericamente forte, passa pela dispersão dos “credos”. O Brasil é exemplar nesse contexto. A multiplicidade de Igrejas se faz cada vez com mais velocidade e facilidade. Não há mais vergonha em “ser crente”. Ao contrário, passou a ser motivo de autoafirmação. As grandes manifestações públicas dos evangélicos têm o claro objetivo de mostrar quantidade, poder e presença na sociedade brasileira. Eles controlam uma vasta rede de meios de comunicação, desde a impressa, passando pelo rádio e as TVs. Produzem CDs, livros, DVDs e montaram uma rede comercial de vulto, com produtos expostos nas redes de supermercados.
     
    A reação católica também se dá pelo movimento de massas e pela presença mais ostensiva nos grandes meios de comunicação, inclusive a TV. Há hoje vários canais de televisão brasileiros que falam em nome da Igreja Católica, embora sejam privados e nenhum deles seja oficialmente da Igreja Católica. Estabeleceu-se uma competição entre as Igrejas, em que as regras do marketing são aplicadas aos meios religiosos numa clara busca de prosélitos, sucesso, dinheiro e poder.
     
    A religião mais cotidiana, vivida nos meios populares, além de sofrer influência da religião virtual, passa por um certo desprestígio, sobretudo diante da hierarquia católica. As Comunidades Eclesiais de Base têm reclamado constantemente de “um certo abandono que vêm sofrendo por parte de seus pastores”. Mas elas existem, continuam ativas, como fermento na massa, não como massa.
     
    Deve-se considerar ainda que a mudança de valores e de cultura agride também o âmago das religiões, principalmente os valores há milênios estabelecidos. A moral sexual – relações pré-matrimoniais, o próprio matrimônio, o uso de preservativos, o aborto etc – é questionada, assim como a condição da mulher diante da dominação masculina no âmbito das Igrejas e das religiões. Valores como solidariedade, desapego, simplicidade, missionaridade, compromisso, responsabilidade, humildade, sobretudo a justiça, estão desaparecidos até do vocabulário cotidiano da liturgia. O argumento de autoridade, baseado exclusivamente na autoridade formal, é muitas vezes questionado quando não acompanhado da autoridade moral que brota da vida vivida. Por outro lado, o relativismo moral adequado às conveniências pessoais é risco real. A perda de padrões coletivos pode levar a sociedade realmente à plena anomia.
     
    Um dos fatores mais graves nas Igrejas é o “neoliberalismo religioso”. Os valores do sucesso, da fama, do individualismo agora permeiam determinados movimentos religiosos, trazendo para o âmbito da vivência pessoal e da liturgia um individualismo, um subjetivismo, um egocentrismo, quando não um aberto egoísmo, que se contrapõem a qualquer entendimento básico dos valores evangélicos da solidariedade, compromisso, desapego e, fundamentalmente, da justiça. Não raro, a mercantilização da fé levou ao que alguns biblistas chamam de “sacronegócio”xiv.
     
    Num mundo cada vez mais plural, a pluralidade religiosa é inevitável. Porém, manter fidelidade aos fundamentos do evangelho no mundo contemporâneo do consumo irresponsável, do individualismo, da devastação da natureza e da exclusão das maiorias, é irrenunciável. Por outro lado, nesse mundo caótico, por mais criativo que seja o caos, estabelecer o respeito entre Igrejas e Religiões, inclusive buscando mais o que nos une que o que nos separa, é o grande desafio.
     
     
    Perspectivas.
     
    Não há certezas sobre o futuro da civilização humana, nem sobre como será uma economia que opere nos limites do planeta. É certo que os dilemas estão postos, muitas opções terão que ser feitas e essas mudanças terão que ocorrer objetiva e subjetivamente. Se insistir em caminhar em linha reta, a humanidade enfrentará problemas ecológicos drásticos, que terão inevitavelmente consequências econômicas. Muitos deles já estão presentes e são irreversíveis. Se ousar mudar, a civilização humana terá que ser outra em termos econômicos, seja na produção, seja na distribuição, seja no consumo. Esse nó górdio começa a ser desatado, mas só o futuro dirá exatamente para onde iremos.
     
    Por Roberto Malvezzi (Gogó)
     
    Bibliografia
    MARTÍNEZ ALIER, Juan. Economia e Ecologia. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs. Acesso em 6 nov. 2009.
    _______________________ (1984). L’ecologisme i L’economia: história d’unes relacions amagades. Barcelona, ed. 62.
    _______________________ & SCHLUPMANN, Klaus. (1987). Ecological Economics. Oxford, Blackwell.
    BENTO XVI, Papa (2009). Caridade na Verdade. Roma.
    BOFF, Leonardo (2001). Saber cuidar. Petrópolis, Vozes.
    Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (2009). Mudanças Climáticas Provocadas pelo Aquecimento Global: Profecia da Terra. Brasília. Edições CNBB.
    COSTA, Ayrton (1991). Introdução à ecologia das águas doces. Recife, Imprensa Universitária da UFRPE.
    LOVELOCK, James (2006). A vingança de Gaia. Rio de Janeiro. Intrínseca.
    MÉRICO, Luiz Fernando Krieger (2002). Introdução à economia ecológica. Blumenau, Edifurb.
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    PENTEADO, Hugo. Eco-Economia. Uma mudança de paradigma. Disponível em http://www.ecodebate.com.br. Acesso em 9 nov. 2009.
    PORTO GONÇALVES, Carlos Walter (2006). Globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
    REBOUÇAS, Aldo C. et al. (1999). Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. São Paulo, Escrituras.
    i Ibidem.
    ii ALIER, Juan Martínez. Economia e Ecologia.Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs. Acesso em 6 nov. 2009.
    iii Tiago Domingos. A Unificação entre Ecologia e Economia,
    dos Conceitos Fundamentais à Aplicação Prática. Disponível http://www.administradores.com.br/artigos/economia_e_ecologia/22341/. Acesso em 6 nov. 2009.
    iv Domingos, ibidem.
    v WEHAB (Water, Energy, Health, Agricultural and Biodiversity): Grupo de Trabalho da ONU. Johannesburgo, 2002, durante a Cúpula Mundial do Meio Ambiente. http://www.johannesburgsummit.org/html/documents/wehab_papers.html
    vi MMA: PAN – Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca.
    viiJoão Paulo Capobianco: Quantas Espécies Existem? http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/meioamb/biodiv/divbio/conven/index.htm
    viii Aldo da Cunha Rebouças: Águas Doces no Brasil. Ed. Escrituras. 1999, pg. 4.
    ix Idem, pg. 4 e 5.
    x Idem, pg. 5.
    xi João Paulo Capobianco, idem.
    xii João Paulo Capobianco: Diversidade Biológica. Site idem.
    xiii Pedro Casaldáliga. Texto divulgado pela Internet.
    xiv Sandro Gallazi – Biblista do CEBI e da Comissão Pastoral da Terra. Palestra na Assembléia Nacional da CPT em Goiânia, de 13 a 17 de Abril de 2009.
  • Crise ambiental: existem propostas alternativas

    Desde o início da hegemonia neoliberal, tornou-se um hábito justificar a continuidade da situação existente ou das políticas em curso pela ideia de que “não há alternativa”. É uma ideia que não precisa de provas: é afirmada como um dogma de fé. No entanto, em nenhum período da história este fenômeno aconteceu, a falta de alternativas. O Império Romano caiu, a Idade Média acabou, o III Reich – “de mil anos” – foi derrotado, as próprias teses neoliberais ruíram com a crise mundial de 2008.

    Todos se lembram da famosa afirmação, repetida por todos os governos e ideólogos até a eclosão da crise, de que o Estado não tinha mais recursos para os gastos com saúde, educação, aposentadoria, etc. No entanto, quando os grandes bancos e multinacionais quebraram, foi o Estado que os salvou, com os recursos que, supostamente, não existiam. Descobrimos, na ocasião, que estes recursos eram muito maiores do que qualquer um de nós, leigo, poderia imaginar: trilhões de dólares públicos foram usados para salvar instituições privadas, as mesmas que haviam causado a crise.
    Traduzindo: há sempre alternativas. Os que negam sua possibilidade são aqueles que ganham com a continuidade do que já existe.
    O mesmo se pode dizer da atual crise ecológica. As pessoas comuns sabem que estamos vivendo uma situação extremamente grave, que não tínhamos antes: sabem-no através dos jornais – falados, escritos, televisados – e também por experiência própria, em razão dos eventos extremos que têm nos atingido. Desde chuvas e inundações extraordinárias, capazes de destruir cidades inteiras, até secas prolongadas, inclusive na Amazônia, assim como longos períodos de temperaturas fora do comum.
    O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC – sigla em inglês), constituído por 2.500 cientistas de todo o mundo, tem nos advertido repetidamente, com dados cada vez mais precisos, de que a humanidade está caminhando para o desastre – se não tomarmos logo providências, se não mudarmos o modelo de desenvolvimento que temos hoje. No entanto, os governos parecem viver em outro mundo: não sabem ou não querem saber de crise ecológica, de mudanças climáticas, de aquecimento global. A cada reunião internacional, as decisões tomadas são mais distantes daquelas que são necessárias.
    Mas há alternativas, são viáveis e todo governo é capaz de implementá-las. Melhor: elas são mais viáveis que as políticas atualmente em curso, elas são mais baratas do que o que se está fazendo e são mais saudáveis do que o que vivemos hoje. Elas são a solução para muitos problemas atuais. Vamos ver alguns exemplos.
    Estamos vivendo uma crise de energia elétrica, causada por insuficiência de chuvas. Para fazer face às dificuldades, o governo apela para as termelétricas, que são mais caras e mais poluentes. No entanto, haveria uma solução muito mais barata e eficaz para enfrentar a instabilidade das chuvas. Seria a utilização de uma fonte que o Brasil tem de sobra, muito mais que qualquer país do Norte: o sol. O Brasil poderia continuar usando a energia hidrelétrica que tem, mas poderia complementá-la com a energia solar, porque nós temos sol o ano inteiro, numa proporção que poucos países no mundo têm. Dados do Atlas Solarimétrico do Brasil indicam que, dada a média anual de radiação, se apenas 5% dessa energia fosse aproveitada, toda a demanda brasileira por eletricidade poderia ser atendida[1].
    O sol é uma fonte gratuita e durável (por milhões de anos). Só precisa de alguns equipamentos para gerar energia. Estes equipamentos, se produzidos em quantidade, se tornam baratos e perfeitamente acessíveis. Lester Brown, especialista na temática, revela que, na China, em 2010, cento e vinte milhões de famílias usavam aquecedores solares, que eram produzidos por cinco mil empresas e cujo custo correspondia a 150 euros (algo como 450 reais)[2]. Se o país quisesse, poderia propor às empresas que fabricam chuveiros elétricos que produzissem aquecedores solares, facilitando empréstimos e abrindo uma linha de crédito para os consumidores. Isto traria uma enorme economia de energia elétrica. Com uma vantagem: depois de instalado o equipamento, o consumidor não gasta nada, a não ser a sua manutenção. A fonte, como lembramos, é gratuita.
    Poderíamos estabelecer como norma que toda construção (e toda reforma de um prédio) exigisse a instalação de equipamentos captadores de energia solar. Assim como, em algumas estradas do país, a iluminação noturna é garantida por painéis solares, os painéis poderiam cobrir as casas e edifícios e garantir a energia de que necessitam.
    Para aqueles que moram no campo, em casas distantes da cidade, a energia solar tem a vantagem de não precisar de longas linhas de transmissão para poder funcionar: cada casa pode ter seu próprio “gerador” de energia.
    Mais: o Brasil poderia abrir uma linha de financiamento de pesquisa nas universidades federais para desenvolver a tecnologia da energia solar.
    Um segundo exemplo, bem concreto, nestes tempos de Copa do Mundo e de preocupação com a mobilidade urbana. Há grandes cidades no mundo onde, durante a semana, as pessoas não precisam usar carro: elas dispõem de um meio de transporte rápido e seguro, que é o metrô. Além do mais, dispõem de uma ampla frota de ônibus. E o sistema de transporte público é completado por bondes (tramways) na cidade e ferrovias interurbanas. Com isso, é possível deixar o transporte individual para utilização secundária ou para lazer e reduzir radicalmente os engarrafamentos e a perda de tempo nos trajetos diários para o trabalho. Não adianta construir novas vias e viadutos enquanto o número de carros nas ruas não diminuir. Temos de investir em transporte público de qualidade: prioritariamente em trilhos (linhas de metrô cobrindo toda a cidade, bondes, trens interurbanos). E, secundariamente, em ônibus.
    Para o transporte entre as cidades e regiões – tanto de pessoas como de mercadorias -, temos de começar a mudar a nossa matriz, priorizando as ferrovias – mais seguras, mais duráveis, capazes de um volume de carga muito maior.
    E, nas cidades, facilitar o uso da bicicleta, com ciclovias e normas de trânsito para garantir a segurança dos ciclistas. Há países onde a bicicleta é o meio normal de transporte da maioria das pessoas. E contribui para a sua saúde.
    Em suma, se insistirmos no modelo de desenvolvimento que temos hoje, se continuarmos produzindo e consumindo do modo como fazemos hoje, caminharemos para cenários ambientais dramáticos e mudanças climáticas desastrosas. Já estamos assistindo ao princípio destas mudanças, mas tudo se passa como se isso fosse natural e inevitável. Os “mercadores da dúvida” têm tido sucesso: eles têm conseguido manter a incerteza sobre o aquecimento global e sobre nossa responsabilidade quanto a ele[3].
    03/06/2015
    Por Direção Executiva da Abong

    [1] Greenpeace Brasil (www.greenpeace.org.br). [R]evolução energética – a serviço de um desenvolvimento limpo, dezembro de 2010.
    [2] Lester Brown, Basculement: comment éviter l’éffondrement économique et environnemental. Bernin, Souffle Court Éditions; Paris, Rue de l’Échiquier, 2011 (cf. www.earthpolicyinstitute.org).
    [3] Oreskes, Naomi e Conway, Erik M. Os mercadores da dúvida. Ou: Como um punhado de cientistas mascararam a verdade sobre problemas sociais tais como o tabagismo e o aquecimento global.
  • Boff explica a “ecologia integral” da encíclica

     
    “Laudato Si” denuncia “submissão da Política à Tecnologia e Finança”, enxerga-a como raiz da crise ambiental e social e sustenta: única alternativa é mobilização. Por isso, defensores do sistema querem silenciá-la
    Por Leonardo Boff, com apresentação de Ivo Lesbaupin
    No dia 18 de junho, o Papa Francisco deu a conhecer sua encíclica “Laudato Si – sobre o cuidado da casa comum”. Anteriormente à sua publicação, o texto tinha sofrido pressões de setores conservadores, especialmente nos Estados Unidos, para evitar certos temas. De nada adiantou, sua encíclica enfrenta a temática do cuidado da Mãe Terra sem medir palavras quanto às causas da degradação ambiental do planeta. Depois de fazer uma síntese das principais conclusões científicas sobre as condições ambientais, o aquecimento global, as mudanças climáticas, ele aborda “a raiz humana da crise ecológica” que ele designa como “o paradigma tecnocrático dominante”.
    “O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real” (n. 109). Critica a ideia de que “as forças invisíveis do mercado” sejam capazes de regular a economia assim como controlar a situação ambiental.
    A causa principal é a atividade humana, nos dois últimos séculos, “particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial” (n. 23). Enquanto mantivermos o atual modelo de produção e de consumo, não haverá solução.

     

    Face à gravidade da situação que vivemos, o Papa denuncia a fraqueza da reação política internacional. “A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cúpulas mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afetados os seus projetos” (n. 54).
    Depois de mostrar que a pobreza e degradação ambiental têm uma mesma raiz, ele afirma: “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (n. 139).
    O Papa tem uma clara postura de esperança. Ele conclama os cidadãos e cidadãs, a sociedade civil, a se mobilizar para exigir mudanças. Mostra transformações que já estão ocorrendo em diferentes lugares, experiências práticas que revelam uma outra postura.
    Para Francisco, “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos” (n. 95). Ele propõe como solução uma “ecologia integral”, ambiental, econômica e social. “Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana” (n. 189). É preciso redefinir o desenvolvimento: para que apareçam novos modelos de progresso, precisamos de “converter o modelo de desenvolvimento global”, e “isto implica refletir responsavelmente “sobre o sentido da economia e dos seus objetivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações”” (n. 194).
    Vamos publicar a seguir artigos de diferentes autores que procuram aprofundar o sentido desta obra. O primeiro é o de Leonardo Boff. Fique com ele (Ivo Lesbaupineditor da seção especial “Outro Desenvolvimento”).
    Antes de qualquer comentário vale enfatizar algumas singularidades da encíclica Laudato sido Papa Francisco.
    É a primeira vez que um Papa aborda o tema da ecologia no sentido de uma ecologia integral (portanto que vai além da ambiental) de forma tão completa. Grande surpresa: elabora o tema dentro do novo paradigma ecológico, coisa que nenhum documento oficial da ONU até hoje fez. Fundamental é seu discurso com os dados mais seguros das ciências da vida e da Terra. Lê os dados afetivamente (com a inteligência sensível ou cordial), pois discerne que por detrás deles se escondem dramas humanos e muito sofrimento também por parte da mãe Terra. A situação atual é grave, mas o Papa Francisco sempre encontra razões para a esperança e para a confiança de que o ser humano pode encontrar soluções viáveis. Honra os Papas que o antecederam, João Paulo II e Bento XVI, citando-os com frequência. E algo absolutamente novo: seu texto se inscreve dentro da colegialidade, pois valoriza as contribuições de dezenas de conferências episcopais do mundo inteiro que vão dos EUA, da Alemanha, do Brasil, da Patagonia-Camauhe até do Paraguai. Acolhe as contribuições de outros pensadores como os católicos Pierre Teilhard de Chardin, Romano Guardini, Dante Alighieri, de seu mestre argentino Juan Carlos Scannone, do protestante, Paul Ricoeur e do muçulmano sufi Ali Al-Khawwas. Por fim, os destinatários são todos os seres humanos, pois todos são habitantes da mesma casa comum (palavra muito usada pelo Papa) e padecem das mesmas ameaças.
    O Papa Francisco não escreve na qualidade de Mestre e Doutor da fé mas como um Pastor zeloso que cuida da casa comum e de todos os seres, não só dos humanos, que habitam nela.
    Um elemento merece ser ressaltado, pois revela a ”forma mentis” (a maneira de organizar seu pensamento) do Papa Francisco. Este é tributário da experiência pastoral e teológica das igrejas latino-americanas que à luz dos documentos do episcopado latinoamericano (CELAM) de Medellin (1968), de Puebla(1979) e de Aparecida (2007) fizeram uma opção pelos pobres contra a pobreza e em favor da libertação.
    O texto e o tom da encíclica são típicos do Papa Francisco e da cultura ecológica que acumulou. Mas me dou conta de que também muitas expressões e modos de falar remetem ao que vem sendo pensado e escrito principalmente na América Latina. Os temas da “casa comum”, da “mãe Terra”, do“grito da Terra e do grito dos pobres”, do “cuidado”, da “interdependência entre todos os seres, “do valor intrínseco de cada ser”, dos “pobres e vulneráveis” da “mudança de paradigma” do “ser humano como Terra” que sente, pensa, ama e venera, da “ecologia integral” entre oturos, são recorrentes entre nós
    A estrutura da encíclica obedece ao ritual metodológico usado por nossas igrejas e pela reflexão teológica ligada à prática de libertação, agora assumida e consagrada pelo Papa: ver, julgar, agir e celebrar.
    Primeiramente, revela sua fonte de inspiração maior: São Francisco de Assis, chamado por ele de “exemplo por excelência de cuidado e de uma ecologia integral e que mostrou uma atenção especial aos pobres e abandonados”(n.10; 66).
    E então começa com o ver: ”O que está acontecendo à nossa casa” (nn.17-61). Afirma o Papa :”basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma deterioração de nossa casa comum” (n.61). Nesta parte incorpora os dados mais consistentes com referência às mudanças climáticas (nn.20-22), à questão da água (n.27-31), à erosão da biodiversidade (nn.32-42), à deterioração da qualidade da vida humana e à degradação da vida social (nn.43-47), denucía a alta taxa de iniquidade planetária, afetando todos os âmbitos da vida (nn.48-52) sendo que as principais vítimas são os pobres (n. 48).
    Nesta parte, traz uma frase que nos remete à reflexão feita na América Latina: ”Hoje não podemos desconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social que deve integrar a justiça nas discussões sobre o ambiente para escutar tanto ogrito da Tera quanto o grito dos pobres” (n.49). Logo a seguir acrescenta: ”gemidos da irmã Terra se unem aos gemidos dos abandonados deste mundo” (n.53). Isso é absolutamente coerente, pois logo no início diz que “nós somos Terra” (n.2; cf. Gn 2,7), bem na linha do grande cantor e poeta indígena argentino Athaulpa Yupanqui: ”o ser humano é Terra que caminha, que sente, que pensa e que ama”.
    Condena a proposta de internacionalização da Amazônia que “apenas serviria aos interesses da multinacionais” (n.38). Há uma afirmação de grande vigor ético: ”é gravíssima iniquidade obter importantes benefícios fazendo pagar o resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental” (n.36).
    Com tristeza reconhece: ”nunca temos ofendido nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (n.53). Face a esta ofensiva humana contra a mãe Terra que muitos cientistas denunciaram como a inauguração de uma nova era geológica -o antropoceno – lamenta a debilidade dos poderes deste mundo que, iludidos, “pensam que tudo pode continuar como está” como álibi para “manter seus hábitos autodestrutivos” (n.59) com “um comportamento que parece suicida” (n.55).
    Prudente, reconhece a diversidade das opiniões (nn.60-61) e que “não há uma única via de solução (n.60). Mesmo assim “é certo que o sistema mundial é insustentável sob vários pontos de vista porque deixamos de pensar os fins do agir humano” (n.61) e nos perdemos na construção de meios destinados à acumulação ilimitada à custa da injustiça ecológica (degração dos ecossistemas) e da injustiça social (empobrecimento das populações). A humanidade simplesmente “defraudou a esperança divina” (n.61).
    O desafio urgente, então, consiste em “proteger nossa casa comum” (n.13); e para isso precisamos, citando ao Papa João Paulo II : “de uma conversão ecológica global” (n.5); “uma cultura do cuidado que impregne toda a sociedade” (n.231).
    Realizada dimensão do ver, se impõe agora a dimensão do julgar. Esse julgar é realizado por duas vertentes, uma científica e outra teológica.
    Vejamos a científica. A encíclica dedica todo o terceiro capítulo na análise “da raiz humana da crise ecológica”(nn.101-136). Aqui o Papa se propõe analisar a tecnociência, sem preconceitos, acolhendo o que ela trouxe de“coisas preciosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano”(n. 103). Mas este não é o problema. Ela se independizou, submeteu a economia, a política e a natureza em vista da acumulação de bens materiais (cf. n.109). Ela parte de um pressuposto equivocado que é a “disponibilidade infinita dos bens do planeta” (n.106), quando sabemos que já encostamos nos limites físicos da Terra e grande parte dos bens e serviços não são renováveis. A tecnociência se tornou tecnocracia, uma verdadeira ditadura com sua lógica férrea de domínio sobre tudo e sobre todos (n.108).
    A grande ilusão, hoje dominante, reside na crença de que com a tecnociência se podem resolver todos os problemas ecológicos. Essa é uma diligência enganosa porque “implica isolar as coisas que estão sempre conexas” (n.111). Na verdade, “tudo é relacionado” (n.117), “tudo está em relação”(n.120), uma afirmação que perpassa todo o texto da encíclica como um ritornelo, pois é um conceito-chave do novo paradigma contemporâneo. O grande limite da tecnocracia está no fato de “fragmentar os saberes e perder o sentido de totalidade (n.110)“. O pior é “não reconhecer o valor intrínseco de cada ser e até negar um peculiar valor do ser humano” (n.118).
    O valor intrínseco de cada ser, por minúsculo que seja, é permanentemente enfatizado pela encíclica (n.69) , como o faz a Carta da Terra. Negando esse valor intrínseco estamos impedindo que “cada ser comunique a sua mensagem e dê glória a Deus” (n.33).
    O desvio maior produzido pela tecnocracia é o antropocentrismo moderno. Seu pressuposto ilusório é que as coisas apenas possuem valor na medida em que se ordenam ao uso humano, esquecendo que sua existência vale por si mesmo (n.33). Se é verdade que tudo está em relação, então,”nós seres humanos somos unidos como irmãos e irmãs e nos unimos com terno afeto ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe Terra” (n.92). Como podemos pretender dominá-los e vê-los na ótica estreita da dominação por parte do ser humano?
    Todas estas “virtudes ecológicas” (n.88) são perdidas pela vontade de poder como dominação dos outros e da natureza. Vivemos uma angustiante “perda do sentido da vida e da vontade de viver juntos” (n.110). Cita algumas vezes o teólogo italo-alemão Romano Guardini (1885-1968), um dos mais lidos nos meados do século passado e que escreveu um livro critico contra as pretensões da modernidade (n.83:Das Ende der Neuzeit, 1959).
    A outra vertente do julgar é de cunho teológico. A encíclica reserva um bom espaço ao “Evangelho da Criação” (nn. 62-100). Parte justificando a contribuição das religiões e do cristianismo, pois sendo a crise global, cada instância deve, com o seu capital religioso, contribuir para o cuidado da Terra (n.62). Não insiste nas doutrinas mas na sabedoria presente nos vários caminhos espirituais. O cristianismo prefere falar de criação ao invés de natureza, pois “criação tem a ver com um projeto de amor de Deus” (n.76). Cita, mais de uma vez, um belo texto do livro da Sabedoria (21,24) onde aparece claro que “a criação é da ordem do amor” (n.77) e que Deus emerge como “o Senhor amante da vida” (Sab 11,26).
    O texto se abre para uma visão evolucionista do universo, sem usar a palavra, mas fazendo um circunlóquio, referindo-se ao universo “composto por sistemas abertos que entram em comunhão uns com os outros” (n.79). Utiliza os principais textos que ligam Cristo encarnado e ressuscitado com o mundo e com todo o universo, tornando sagrada a matéria e toda a Terra (n.83). É neste contexto que cita P. Teilhard de Chardin (1881-1955, n. 83 nota 53) como precursor desta visão cósmica.
    O fato de o Deus-Trindade ser relação de divinas Pessoas tem como consequência que todas as coisas em relação sejam ressonâncias da Trindade divina (n.240).
    Citando o patriarca ecumênico Bartolomeu, da Igreja ortodoxa, “reconhece que os pecados contra a criação são pecados contra Deus” (n.7). Daí a urgência de uma conversão ecológica coletiva que refaça a harmonia perdida.
    A encíclica conclui esta parte, acertadamente: ”a análise mostrou a necessidade de uma mudança de rumo… devemos sair da espiral de autodestruição em que nos estamos afundando” (n.163). Não se trata de uma reforma, mas, citando a Carta da Terra, de buscar “um novo começo” (n.207). A interdependência de todos com todos nos leva a pensar “num só mundo com um projeto comum”(n.164).
    Já que a realidade apresenta múltiplos aspectos, todos intimamente relacionados, o Papa Francisco propõe uma “ecologia integral” que vai além da costumeira ecologia ambiental (n.137). Ela recobre todos os campos, o ambiental, o econômico, o social, o cultural, o espiritual e também a vida cotidiana (n. 147-148). Nunca esquece os pobres que testemunham também sua forma de ecologia humana e social, vivendo laços de pertença e de solidariedade de uns para com os outros (n.149).
    O terceiro passo metodológico é o agir. Nesta parte, a encíclica se atém aos grandes temas da política internacional, nacional e local (nn.164-181). Sublinha a interdependência do social e do educacional com o ecológico e constata lamentavelmente os constrangimentos que o predomínio da tecnocracia traz, dificultando mudanças que refreiam a voracidade da acumulação e do consumo e que podem inaugurar o novo (n.141). Retoma o tema da economia e da política que devem servir ao bem comum e criar as condições de uma plenitude humana possível (n.189-198). Volta a insistir no diálogo entre a ciência e a religião, como vem sendo sugerido pelo grande biólogo Edward O.Wilson (cf. o livro A criação: como salvar a vida na Terra, 2008). Todas as religiões “devem buscar o cuidado da natureza e a defesa dos pobres” (n.201).
    Ainda no aspecto do agir desafia a educação no sentido de criar a “cidadania ecológica” (n.211) e um novo estilo de vida, assentado sobre o cuidado, a compaixão, a sobriedade compartida, a aliança entre humanidade e o ambiente, pois ambos estão umbilicalmente ligados e a corresponsabilidade por tudo o que existe e vive e pelo nosso destino comum (nn.203-208).
    Por fim, o momento do celebrar. A celebração se realiza num contexto de “conversão ecológica”(n.216) que implica uma “espiritualidade ecológica”(n.216). Esta deriva não tanto das doutrinas teológicas mas das motivações que a fé suscita para cuidar da casa comum e “alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo” (216). Tal vivência é antes uma mística que mobiliza as pessoas a viverem o equilíbrio ecológico, “aquele interior consigo mesmo, aquele solidário com os outros, aquele natural com todos os seres vivos e aquele espiritual com Deus” (n.210). Aí aparece como verdadeiro que “o menos é mais” e que podemos ser felizes com o pouco.
    No sentido de celebração “o mundo é mais que uma coisa a se resolver, é um mistério grandioso para ser contemplado na alegria e no louvor”(n.12).
    O espírito terno e fraterno de São Francisco de Assis perpassa todo o texto da encíclica Laudato sí. A situação atual não significa uma tragédia anunciada, mas um desafio para cuidarmos da casa comum e uns dos outros. Há no texto leveza, poesia e alegria no Espírito e inabalável esperança de que se grande é a ameaça, maior ainda é a oportunidade de solução de nossos problemas ecológicos.
    Termina, poeticamente com as palavras “Para além do sol”, dizendo: “caminhemos cantando. Que nossas lutas e nossas preocupações por esse planeta não nos tirem a alegria da esperança” (n.244).
    Apraz-me terminar com as palavras finais da Carta da Terra, que o próprio Papa cita (n.207): “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade e pela intensificação no compromisso pela justiça e pela paz e pela alegre celebração da vida”.
    [Este texto, publicado originalmente no blog de Leonardo Boff, será um capitulo de um livro em italiano “Curare la Terra”, Editrice EMI, Bologna 2015]
  • Perspectivas para as CEBs no Pontificado de Francisco

    A chegada do Papa Francisco levou a um impulso às Comunidades eclesiais de Base (CEBs). 
    A partir desta nova situação eclesial, o Iser Assessoria e o Setor CEBs da Comissão Episcopal para o Laicato da CNBB organizaram um encontro de assessores e assessoras das CEBs do Brasil de 30 de julho a 1 de agosto de 2015.  Estiveram presentes mais de 50 pessoas, procedentes das diferentes regiões do país, para refletir juntos a partir do tema “Perspectivas para as CEBs no Pontificado do Papa Francisco”, sem deixar de lado os desafios que se apresentam na evangelização do mundo urbano, aspecto que constitui o tema central do próximo Intereclesial, a ser celebrado em Londrina, em janeiro de 2018.
     Os desafios do mundo urbano são grandes e complexos, assim como os da própria realidade eclesial. Dentro deste panorama socioeclesial, as CEBs se movem em uma perspectiva de esperança, que surge da proposta do Reino e a retomada de Francisco da visão eclesiológica do Vaticano II.
    As CEBs se posicionam como instrumento necessário e eficaz na realização da missão, de que são destinatários principais a juventude, os empobrecidos e excluídos, as mulheres, e também na que se fazem participantes os movimentos populares, as pastorais sociais e outras igrejas, com quem querem assumir conjuntamente as causas dos pobres.  Foram compartilhadas diversas experiências de trabalho na periferia de algumas cidades brasileiras e com aqueles que vivem nas periferias existenciais. Tudo isso sem esquecer que vivemos em uma sociedade e participamos de uma linguagem onde o virtual exige cada vez mais protagonismo.
    Neste sentido, Raquel Rolnik, professora da Universidade de São Paulo e ex-relatora da ONU em questões referentes ao direito à moradia digna, depois de analisar a realidade do mundo urbano, assinalava que as CEBs devem assumir o papel, a partir de seu compromisso com a libertação, de oferecer uma leitura alternativa do que se passa, que seja fonte de esperança e de utopia. E não só isso, devem também mostrar aos movimentos populares que não estão loucos nem sozinhos e que suas reivindicações são legítimas.
    Da reflexão coletiva surge a necessidade de revitalizar as CEBs, revendo seus princípios orientadores e metodológicos, sendo necessário um diálogo com a complexa realidade do mundo urbano a partir de uma perspectiva bíblica, na qual devem se consolidar experiências de fé transformadoras, libertadoras e proféticas, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus de Nazaré, valorizando as expressões religiosas populares e elaborando um discurso contrário ao do mercado, que coloque o foco na solidariedade, na vida fraterna, na reconstrução das relações comunitárias, no macroecumenismo, na ecologia, na misericórdia e na escuta do clamor dos sofredores, assumindo o compromisso de lutar por direitos, que leve a reafirmar a centralidade dos pobres e a prática da justiça. Tudo isso baseado em uma articulação da mística, da presença, do testemunho e da profecia.
    As CEBs são conscientes que o presente é um tempo de busca, em um ambiente em que o clericalismo e a autorreferencialidade eclesial levam a um sentimento de estar como ovelhas sem pastor. A isso se referia Francisco de Aquino Junior, sacerdote e professor de Teologia, que fez uma leitura histórico-teológica da vida da igreja nos últimos 50 anos, as consequências do modelo eclesial assumido desde a década de 80 e o empenho do Papa Francisco para mudar esta dinâmica, aspectos em que também insistiu o professor Sérgio Coutinho. Daí, o ser igreja em saída, que tanto incentiva o bispo de Roma, tem que partir de algumas perguntas: Para onde? Com quem? A favor de quem?
     As CEBs assumem que hoje são uma minoria teológica e eclesiológica, que não são a única expressão profética do Reino, que devem buscar o consenso, que não devem diluir o espírito, carisma e identidade dentro da realidade contemporânea e que são igreja pobre e dos pobres, colocando os excluídos, as minorias e o seguimento de Jesus de Nazaré como elementos centrais.
    O caminho a seguir deve partir de um processo de formação de leigos e de leigas que animam a vida das comunidades, numa perspectiva bíblica e teológica que coloque a Palavra de Deus no centro da experiência comunitária, impulsionando os grupos de reflexão bíblica. Um desafio urgente é fazer-se presente nas bases com novas metodologias, levando em conta as experiências bem sucedidas de vida comunitária e aproveitando os ventos favoráveis chegados com Francisco e que têm permitido que voltem adquirir protagonismo as intuições eclesiológicas formuladas no Vaticano II e em Medellín.
    As CEBs creem em uma eclesiologia participativa onde os conselhos pastorais sejam mais valorizados, comunitária, ministerial, laical, ecumênica, aspectos defendidos no Vaticano II. Insistem na necessária incorporação dos jovens e outros atores sociais, e no imperativo de abraçar o cuidado da Casa Comum e dos frágeis do mundo.
    A partir destas idéias surgem algumas perguntas, como a formulada pelo sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira em sua intervenção, se as CEBs são ainda comunidades eclesiais de base, se não deixaram de ser aquilo que Pedro Casaldáliga destacava em 1989, as definindo como “a nova forma de toda a igreja ser”, para converter-se em um movimento espiritual a partir dos círculos bíblicos e da Teologia da Libertação. A socióloga Solange Rodrigues que, como Pedro faz parte da equipe de Iser Assessoria, se interrogava se tem sentido falar de CEBs em uma sociedade urbana, complexa e plural.
    Na verdade, são muitos os elementos a serem refletidos e, ao mesmo tempo, são muitas as perguntas que surgem ao levar adiante um processo evangelizador baseado na centralidade dos pobres e na luta pela justiça. A isso buscam responder as CEBs do Brasil e  de tantos lugares do mundo, especialmente da América Latina. Tudo isso sem esquecer da letra da canção com que o encontro foi encerrado:  “Nossa alegria é saber que um dia todo este povo se libertará, pois Jesus Cristo é o Senhor do mundo, nossa esperança realizará”.
    Luis Miguel Modino*
    *Sacerdote diocesano de Madri desde 1998 e missionário na Diocese de Ruy Barbosa, Bahia, Brasil desde 2006.
    Fonte: periodistadigital.com

     

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