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Artigo

  • Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia: “o neoliberalismo foi um fracasso”

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    Por Justo Barranco, Carta Maior, 03/03/2020

    O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz acredita que estamos passando por uma crise tripla: de capitalismo, do clima e de valores. E ele atribui isso à crença em mercados irrestritos, ao neoliberalismo seguido desde o governo de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

    Pouco antes de viajar de Nova York ao Vaticano, para participar de um simpósio sobre economia justa, o ex-economista-chefe do Banco Mundial e consultor econômico de Bill Clinton conversou dias atrás com o La Vanguardia sobre seu novo livro, “Capitalismo progressista para uma era de descontentamento“, no qual ele dispara contra Donald Trump e diz que os EUA está em guerra consigo mesmo, que a classe média mais poderosa do planeta não para de perder poder de compra. E levanta a necessidade de retornar a um capitalismo de prosperidade compartilhada, no qual a política controla a economia e assume que a educação e, portanto, a criatividade e a produtividade dos cidadãos são a base da riqueza de um país.

    – Taxas de juros negativas, manifestações, populismo, crise climática … O que acontece?

    – É o efeito cumulativo de vários fatores, e um é claramente o aumento da desigualdade. A crise financeira criou muita insegurança e a maneira como ela foi resolvida sugere a muitos que o sistema está quebrado. Na Europa, a crise do euro levou ao desencanto com o funcionamento da União Europeia. Há uma sensação de falta de poder diante de problemas muito sérios. E isso é combinado com problemas de desindustrialização em muitos países, de transformação estrutural, com perda de empregos e sistemas inadequados para as pessoas passarem dos empregos antigos para a nova economia.

    – As quatro décadas de revolução neoliberal, desde Reagan, cumpriram o que prometeram?

    – Não, e a evidência é muito sólida de que o crescimento tem sido muito mais lento após o início do reaganismo e thatcherismo que antes. E praticamente todo esse crescimento foi para as pessoas que são mais ricas. Além disso, a crise de 2008 mostrou a instabilidade do sistema. Em todas as dimensões, o neoliberalismo foi um fracasso.

    – Por que falhou?

    – O principal fator é que os mercados desregulados muitas vezes levam à exploração e à ineficiência. Os benefícios são alcançados, mas não produzindo produtos melhores a preços melhores, mas tirando vantagem de outros, como temos visto com os bancos. E há um fenômeno relacionado, que é subestimar a necessidade de ação coletiva. Muitos dos sucessos da pesquisa básica em ciência e tecnologia são financiados pelo governo e, se você cortar seus fundos, diminuirá o crescimento. Vemos isso de maneira extrema nos EUA. agora com Trump propondo cortar um terço no orçamento da ciência. O Congresso não permitiu, mas é visível sua falta de compreensão do que leva ao progresso.

    – Você disse que Trump é como reaganismo, mas com esteroides.

    – (risos) É. Reagan em seu orçamento de 1981 não se preocupou com o déficit fiscal, que foi o início de grandes déficits. Em 1986, ele tentou corrigi-lo, porque estava claro que a redução de impostos não aumentara a renda como ele acreditava. Em vez disso, a irresponsabilidade de Trump em seu corte de impostos em 2017 foi que ele já sabia o que ia acontecer. E se Reagan reduziu os impostos corporativos, Trump fez muito mais. No que Reagan tentou ser razoável, embora errado em seguir a economia do lado da oferta do neoliberalismo, Trump não estava ciente de nenhum limite. Também existem diferenças importantes. O reaganismo, o republicano padrão, acredita no livre mercado. Trump, em protecionismo. E Reagan não tentou a desinformação que parece o centro da política de Trump. É por isso que estou falando sobre esteroides: é pegar todos os princípios do padrão neoliberal, exacerbá-los e adicionar ingredientes muito piores que os republicanos tradicionais.

    – Reagan foi melhor?

    – Com ele, pessoas como Eisenhower parecem santas. Até Reagan parece muito melhor, não tínhamos percebido o quanto as coisas poderiam ficar ruins. Até Nixon criou leis ambientais, como água limpa. Trump nega as mudanças climáticas e tenta piorar o meio ambiente a qualquer custo. Mesmo quando empresas como Ford dizem que poderiam e gostariam de assumir padrões ambientais mais altos, ele diz que não deveriam. É fenomenal. Não sei se houve um caso assim.

    – Mais do que um conservador, ele diz, Trump é um revolucionário.

    – Está derrubando muitas normas básicas da sociedade. O funcionamento da economia e da política baseia-se em regras e convenções como a de que o presidente é civilizado. Baseia-se no funcionamento das leis, separação de poderes, burocracia independente. Ele está minando as instituições que ajudamos a criar durante mais de 200 anos para dar estabilidade à sociedade e dar voz às pessoas e contribuir para a eficiência econômica.

    – Qual é o seu objetivo?

    – Em parte, ele não tem estrutura intelectual e é incapaz de trabalhar com conselheiros: os razoáveis são demitidos ou vão embora. E todo presidente precisa de pessoas com experiência no governo e na execução de projetos produtivos e criativos. Mas ele vem do setor imobiliário, um setor que não é exatamente criativo ou líder, e era conhecido por seu mau comportamento e falências, por tirar proveito de fornecedores e trabalhadores, por ser basicamente desonesto. Ele não é o empresário com quem você negociaria, e é por isso que os bancos dos EUA o rejeitaram e daí seu relacionamento com o Deutsche Bank e com os russos. Ele tem muito pouco entendimento e um narcisismo que dificulta sua orientação. Ninguém esperava que ele fosse melhor do que ele é, mas ele seria controlado pelo partido republicano. Esse foi o grande engodo. Isso o transformou em um partido pelo nativismo populista extremo que divide os americanos. Trump não apenas não entende o que é necessário para fazer a democracia funcionar, nem que a maioria dos líderes tenta criar coesão social. Em vez disso, sua vontade é governar dividindo o país.

    – O impeachment foi justo?

    – Sem dúvida. O impeachment é que o Congresso o acuse de crimes e ofensas graves. Outra questão é sua destituição. Ele deveria ter sido destituído, o que ele fez é inadmissível, mas a mesma liderança republicana que se rendeu a ele disse que não haveria um julgamento justo e decidiu absolvê-lo sem sequer ouvir evidências não disponíveis antes.

    – Os democratas podem derrotá-lo?

    – Ainda é possível. Há ruido nas divisões do Partido Democrata, mas em seus objetivos elas são muito pequenas, existe um grande consenso no controle de armas, nos direitos reprodutivos das mulheres, no salário mínimo, na saúde para todos e na educação. Existem diferenças na melhor maneira de alcançá-las. E, acima de tudo, Trump não cumpriu, é outra mentira. A economia criou menos empregos mensais do que no segundo mandato de Obama. Ele não superou seu rival.

    -Vivemos um crescimento surpreendentemente lento em uma economia tão inovadora. Por que?

    – Tem a ver com desigualdade. Investimos bem abaixo do necessário em pesquisa, educação e infraestrutura, porque aqueles que estão da faixa 1% mais rica não querem um governo que impõe impostos mais altos. E também, quando você redistribui o dinheiro da base para o topo e dá mais dinheiro aos ricos, eles gastam menos de sua renda, o que diminui o crescimento.

    – A classe média se apaixona pelo neoliberalismo ou pela tecnologia?

    – O problema básico é o neoliberalismo, o mercado irrestrito. A falta de uma política adequada contribuiu para moldar a tecnologia. Qualquer um que olhe o desejável em termos de nossos investimentos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) diria que precisamos fazer coisas que ajudem contra as mudanças climáticas, não precisamos de inovação que tente criar mais desemprego, como agora.

    – Peça um papel maior do governo. Qual?

    – Precisamos de melhores regulamentações para proteger o meio ambiente e contra a exploração, contra o poder de mercado em uma série de áreas onde [a competição] não funciona. Depois, mais investimento público em educação, infraestrutura e tecnologia. Precisamos mudar as regras da economia, que agora minam os direitos dos trabalhadores, aumentam o poder das corporações, permitem a poluição excessiva e os gerentes extraem muito dinheiro das empresas. Precisamos de mais ação coletiva.

    – A globalização como foi feita foi um erro?

    – Nossos acordos comerciais são feitos principalmente de maneira tendenciosa em favor das corporações e muitos precisam mudar. Por outro lado, há áreas em que são necessários mais acordos, como a tributação das multinacionais. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que a globalização ajudou muitos países em desenvolvimento, como China e Índia, embora tenha prejudicado alguns dos mais pobres da África.

    – Que responsabilidade os economistas têm no que aconteceu?

    – Muitos jovens economistas estão convencidos de que o caminho da profissão estava errado, havia muita fé nos mercados, mais baseada na ideologia do que na ciência econômica. É por isso que eles exploram novas áreas, como economia comportamental. Para pessoas que dedicaram 40 anos de vida ao neoliberalismo, é mais difícil mudar.

    – O mercado não será mais rei?

    – Há um desilusão real com os mercados. Como as empresas se comportam: a indústria farmacêutica e a crise dos opioides, a indústria de alimentos e a crise do diabetes infantil, os bancos e a crise financeira. E que o capitalismo não funcionou para uma grande faixa da sociedade, que a expectativa de vida nos EUA caiu, a decepção aumenta. A ideia de que o mercado é rei não é mais verdadeira, principalmente entre os jovens. Eles procuram outra forma de economia. Por isso escrevi este livro.

    *Publicado originalmente em ‘La  Vanguardia‘ | Tradução de César Locatelli

     

  • Do antropocentrismo ao biocentrismo

    Por Rafael Silva Martínez, analista político espanhol, em artigo publicado por Rebelión, 25-02-2020. A tradução é do Cepat para o IHU de 03.03.2020

    “Pode parecer impossível imaginar que uma sociedade tecnologicamente avançada escolha, em essência, destruir-se, mas isso é o que estamos em vias de fazer” (Elizabeth Kolbert)

    “O mundo moderno baseado no capitalismo, na tecnociência, no petróleo e em outros combustíveis fósseis, no individualismo, na competição, na ficção democrática e em uma ideologia de ‘progresso’ e do ‘desenvolvimento’, longe de procriar um mundo em equilíbrio, está levando a espécie humana, os seres vivos e todo o ecossistema global, a um estado caótico” (Víctor Toledo).

    Nossas sociedades atuais estão há décadas, inclusive séculos, em direção a um perigoso e exclusivo antropocentrismo, onde a vida gira em torno do homem. A principal causa disso tem sido a civilização industrial capitalista. E note que não dizemos que gira em torno do ser humano, uma vez que as implicações patriarcais também influenciam muito essa maneira de entender o mundo e a vida e, portanto, as mulheres são marginalizadas nessa visão.

    O homem (e mais especificamente, um certo tipo de homem, ocidental, branco e heterossexual) é o epicentro da vida, e o resto de manifestações da mesma, assim como o resto dos atores que fazem parte dela, ficam relegados a um segundo plano. E assim, modos de produção e consumo, mas também modos e formas de vida, e imaginários econômicos, sociais e culturais, vêm definindo os moldes do funcionamento de nossas sociedades.

    Os dogmas do capitalismo e do neoliberalismo, com seus perigosos valores, não só imbuíram as relações humanas e sociais no fundamentalismo de mercado, que provoca os processos de exploração do ser humano e da natureza, como também conduziram a um absoluto desprezo por todas as outras formas de vida não humanas, ou seja, animais, plantas e o resto de organismos vivos que a Mãe Terra abriga.

    Tudo isso nos conduziu à ampliação do conceito originário sobre o conflito capital-trabalho, que nos deixou Karl Marx, que agora também se manifesta na ordem vida-capital, ou se preferirmos, no conflito capital-planeta. Esse conflito é gerado pela degradação do meio ambiente e dos recursos naturais, cada vez mais ligados à ação do homem.

    O enfoque antropocêntrico (sobre o qual podem ser rastreadas inclusive motivações e origens religiosas) nos conduz inexoravelmente a um abismo civilizatório, suscitado em suas manifestações mais evidentes como um esgotamento de matérias-primas e de fontes de energias fósseis, bem como os terríveis efeitos de um caos climático que ameaça destruir todos os vestígios de vida em menos de algumas décadas, se não formos capazes de nos adaptar a esse colapso.

    E essa adaptação requer, portanto, uma mudança de paradigma civilizatório. Do antropocentrismo característico da civilização industrial capitalista, de caráter monocultural, patriarcal e depredador, temos que conseguir migrar para um paradigma ecocentrista, ou, se preferir, biocentrista, que reside fundamentalmente, como seu nome indica, em colocar a vida no centro. Uma vida (humana e não humana) que deverá ser novamente valorizada e respeitada, para que valha a pena o fato de ser vivida. Onde descansam os fundamentos do biocentrismo? Basicamente, em reconceitualizar os significados de diversos termos que foram apropriados pelo paradigma atual, tais como “progresso”, “desenvolvimento”, “bem-estar” e “riqueza”.

    Sob a visão antropocêntrica, esses conceitos estão absolutamente ligados aos postulados capitalistas, de tal modo que são entendidos unicamente em função do crescimento econômico, medidos por seus próprios indicadores, e que se manifesta em um contínuo crescimento no nível de produção de bens e serviços, ligado ao uso crescente das fontes de materiais e energia que são necessárias para esses processos.

    O crescimento sem fim da produção, bem como o consumo irracional e compulsivo, são os deuses desse tipo de civilização, onde a própria vida é relegada a segundo plano, sacrificada em prol do crescimento perpétuo. As necessidades humanas foram resignadas no altar desses valores, e a “riqueza” e o “bem-estar” são medidos unicamente de maneira material, na dimensão do “ter” ao invés das dimensões de “ser”, “estar” e “fazer”.

    A visão do “progresso”, também intimamente ligada à concepção utilitarista da ciência, mede o avanço de forma linear, de modo que se entende que nossas sociedades progridem se são capazes de produzir cada vez mais elementos para o consumo humano, sem se preocupar com outros indicadores que podem nos dar pistas sobre nosso grau de felicidade, coesão social, igualdade e redistribuição da riqueza gerada.

    A Natureza, sob o paradigma antropocêntrico, é valorizada apenas no sentido de nos proporcionar fontes de energia e materiais, alimentos e sustento para satisfazer às nossas necessidades básicas. Para conseguir tudo isso, a natureza é continuamente espoliada e saqueada, submetida a brutais processos de extrativismo, e as outras formas de vida não humanas são subvalorizadas e seus direitos não são reconhecidos.

    Devemos resinificar, portanto, os conceitos de desenvolvimento, riqueza e bem-estar e, para isso, temos que mudar o paradigma civilizatório. O desenvolvimento deve ser em escala humana, promovendo riqueza e o bem-estar interior e deixando de valorizá-la unicamente como o conjunto de nossos bens materiais. Isso também requer reposicionar as necessidades humanas, renunciando à visão capitalista e consumista.

    O progresso deve renunciar a estar vinculado ao crescimento contínuo, ao contrário, deve ser entendido como a plena realização das necessidades sociais e a valorização de todas as formas de vida. Devemos nos situar sob um prisma que valorize o florescimento da vida, que reconheça em si um valor, independentemente da utilidade para o ser humano.

    A diversidade das formas de vida deve ser entendida como um valor em si mesmo (valor intrínseco) e sua manutenção contribui para preservar tal valor. Nossa relação com a natureza deve ser exclusivamente para atender às nossas necessidades vitais. Mas, para alcançar esse novo paradigma, devemos dar importância a uma nova ética, uma ética ecológica ou uma ética da Terra.

    O paradigma biocêntrico ou ecocêntrico não precisa renunciar ao mercado em si, mas é evidente que os mercados precisam de intervenção e de controle sociais, a partir das comunidades humanas, que devem gerenciá-los democraticamente.

    Devemos conceder a todos os seres vivos um valor inerente, por si mesmos e, portanto, reconhecer os direitos dos animais e da própria natureza é uma consequência lógica dessa visão biocêntrica. Isso também implica passar de uma ética fundada no homem para outra ética ancorada na vida. Tradicionalmente, a ética concentra-se na conduta humana, conferindo ao homem uma série de atributos morais que o tornaram o único ser digno de reconhecimento de um valor intrínseco. Isso ocorre porque essa ética se encontra atravessada por um profundo antroprocentrismo, ligado a um dualismo fundacional, que diferencia o homem do ambiente natural que o rodeia.

    Essa distinção evoluiu para uma localização do homem em um plano de clara superioridade em relação ao mundo natural, seja animado ou inanimado, autorizando o ser humano para sua exploração e aproveitamento. Esse enfoque já não gera nada e necessitamos ir evoluindo para uma ética centrada na vida (humana e não humana), mediante um repensar dos supostos sujeitos morais. Também precisamos abandonar o especismo que nos caracteriza como humanos e começar a considerar o princípio da igual consideração de interesses para todas as espécies que habitam o planeta.

    Da mesma forma, os clássicos valores do capitalismo e do neoliberalismo também devem ser erradicados, para evoluir para valores de interdependência e ecodependência, que nos reconheçam como sujeitos em plena inter-relação com os outros. Temos que entender o verdadeiro desenvolvimento das potencialidades humanas no sentido de uma abertura para a interconexão e identificação que existe entre tudo que é vivo, o que nos permite superar valores como egoísmo e individualismo, para substituí-los pelo ideal de igualdade de todos os organismos, pois o potencial individual não pode ser alcançado isoladamente, mas sob uma conexão com os outros seres.

    A vida deixará de ser entendida, então, como a capacidade de sobrevivência em plena competição com os outros, mas, ao contrário, como a capacidade de coexistir e cooperar.

    Em resumo, precisamos passar da perspectiva antropocêntrica à perspectiva biocêntrica, da banalidade e infinitude das necessidades humanas à sua avaliação, satisfação e garantia, do crescimento material à qualidade de vida, da Natureza como objeto de exploração à Natureza entendida como patrimônio natural e lugar comum de todas as espécies, da conservação utilitarista desse patrimônio à sua preservação ecológica, da sua avaliação instrumental à sua valorização múltipla e intrínseca.

    Necessitamos evoluir do papel humano de consumidores ao papel de cidadãos, de uma visão ensimesmada a uma visão de si mesmo ampliada e integrada ao restante dos seres, do cenário do mercado ao cenário social, do saber científico como conhecimento único e privilegiado a uma valorização de uma pluralidade de conhecimentos e de uma justiça social e ecológica opcionais a uma justiça social e ecológica asseguradas. Esta é, em essência, a visão biocêntrica.

  • NOTA PÚBLICA PELO RESPEITO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
    Nota assinada por 250 entidades e organizações

    A construção do Estado Democrático de Direito se faz com o fortalecimento da democracia e das instituições democráticas, com a garantia dos direitos humanos, com o enfrentamento das desigualdades e com a participação popular com liberdade de expressão e de organização. Todas as instituições e todos/as os/as cidadãos e cidadãs estão convocados/as a se comprometer e a se engajar na promoção e defesa desses valores, de modo permanente.

    Inaceitável que o Presidente da República promova ações que ataquem estes pilares, replicando convocações de manifestações públicas contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Uma atitude que ataca frontalmente os princípios constitucionais por afrontar o inciso II, artigo 85, da Constituição Federal, que diz: “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, co ntra: II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.

    Ataques à democracia e à estabilidade social vindas da maior autoridade do país não podem ser minimizadas como sendo de “cunho pessoal”. Urge que as instituições democráticas reajam com veemência a este tipo de atitude e promovam a responsabilização constitucional. Também confiamos que as organizações populares da sociedade civil se engajem na formação de uma ampla frente de luta conjunta para defender a democracia e a liberdade, o Estado Democrático de Direito e a garantia da realização de todos os direitos humanos para todos/as os/as brasileiros/as.

    Brasília, 27 de fevereiro de 2020.

    #PorDemocraciaeDireitos

    Assinam:
    Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil – AMDH Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH Processo de Articulação e Diálogo – PAD Fórum Ecumênico ACT Brasil – FEACT Brasil Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB União Brasileira de Mulheres – UBM Liga Brasileira de Lésbicas – LBL Articulação Brasileira de Gays – ARTGAY Associação Juízes para a Democracia Plataforma DHESCA Brasil Plataforma MROSC Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – FBOMS Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – FBSSAN Rede de ONGs da Mata Atlântica Rede de Cooperação Amazônica – RCA Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil – CONCRAB Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ Coalizão Negra por Direitos Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes – ANCED Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários – Unisol Brasil Fórum Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes – Fórum DCA Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST Movimento de Atingidos por Barragens – MAB Movimento de Mulheres Camponesas – MMC Comissão Pastoral da Terra – CPT Conselho Indigenista Missionário – CIMI Cáritas Brasileira Fundação Luterana de Diaconia – FLD Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia Aonectas Direitos Humanos FIAN Brasil Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço Coordenadoria Ecumênica de Serviços – CESE Criola Geledés Educafro UNEAfro Rede de Religiões Afro-brasilieras e Saúde – RENAFRO Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH Instituto Vladimir Herzog Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP Centro de Assessoria Multiprofissional – CAMP Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação Artigo 19 Articulação Comboniana de Direitos Humanos Ação da Cidadania do Maranhão Ação da Cidadania São Paulo Articulação do Semiárido do Maranhão – ASA/MA Associação Circo Belô/ Belo Horizonte/MG Associação Comunitária de Desenvolvimento Econômico, Agrícola, Sócio-Cultural e Educativo – ACADE/PI Associação das Costureiras do Dirceu II – PI Associação de Apoio a Criança e ao Adolescente – AMENCAR Associação de Apoio Social e Ambiental da Bahia – APMS Associação de Ex Conselheiras e Conselheiros do RJ Associação de saúde da Periferia – ASP Associação de Servidores da Educação Básica do Estado do Piauí Associação de Terapia Ocupacional de São Paulo – ATEOESP Associação dos Produtores de Artesanato de Teresina – ASPROARTE Associação Internacional Mayle Sara Kali – AMSK/Brasil Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes – APACC Associação Paulista de Saúde Pública Casa da Mulher Trabalhadora – CAMTRA Casa de Cultura CCIAO – João Pessoa/PB CDES Direitos Humanos Centro Burnier Fé e Justiça – MT Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária – CEAPAC Centro de Apoio aos Direitos Humanos Valdício Barbosa dos Santos Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia – CAPA/FLD Centro de Cultura Negra do Maranhão – CCNM Centro de Defesa da Cidadania e dos Direitos Humanos Marçal de Souza Tupã i – MS Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza – CE Centro de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes – CEDECA Renascer Centro de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes da Bahia – CEDECA/BA Centro de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes do Rio de Janeiro – CEDECA/RJ Centro de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes Ermínia Circosta – Itaim Paulista/SP Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do ACRE – CDDHEP Centro de Defesa dos Direitos Humanos Helda Regina Centro de Defesa dos Direitos Humanos Heróis do Jenipapo Centro de Defesa dos Direitos Humanos Teresinha Silva Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá Centro de Direitos Humanos “Valdício Barbosa dos Santos” Centro de Direitos Humanos de Barreirinhas – MA Centro de Direitos Humanos de Joinville – SC Centro de Direitos Humanos de Londrina – PR Centro de Direitos Humanos de Palmas – CDHP Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennes – CDHDMB/MT Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – CDHEP Centro de Direitos Humanos e Memória Popular – CDHPM/RN Centro de Direitos Humanos Nenzinha Machado Centro de Educação e Cultura Popular – CECUP Centro de Estudos de Saúde Coletiva do ABC – CESCO Centro de Estudos e Ação Social – CEAS Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – CEDEMPA Centro de Estudos, Pesquisa e Direitos Humanos – CEPDH/Caxias do Sul Centro de Integração Sócio cultural Aprendiz do Futuro – CISAF Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Pe. Josimo Centro de Referência Integral do Adolescente da Bahia – CRIA Centro de Solidariedade da Criança e do Adolescente – CSCA/Ananindeua/PA Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC/PE Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro Brasileiro – CENARAB Círculo Operário Leopoldense – COL Coletivo de Artesãs do Piauí – CAPI Coletivo Desencuca – GO Coletivo Feminino Plural Coletivo Feminista GSEX Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo – CDHPF Comissão de Mobilização Docente – CMD/UFG/GO Comissão Pró-Índio de São Paulo Comitê Estadual de Educação em Direitos Humanos no Piauí Comitê Estadual de Enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes do Amazonas Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes Comitês Islâmicos de Solidariedade – CIS Congresso Nacional Afro-Brasiliero – CNAB Conselho de Missão entre Povos Indígenas – COMIN/FLD Conselho Regional de Psicologia do Pará e do Amapá – CRP10 Fórum das Mulheres da Amazônia Paraense – FMAP Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Bahia – Fórum DCA/BA Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Paraíba – Fórum DCA/PB Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Roraima – Fórum DCA/RR Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo – Fórum DCA/SP Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Amazonas – Fórum DCA/AM Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Maranhão – Fórum DCA/MA Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pará – Fórum DCA/PA Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pernambuco – Fórum DCA/PE Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Piauí – Fórum DCA/PI Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Tocantins – Fórum DCA/TO Fórum de Direitos Humanos do Piauí Fórum de Direitos Humanos e da Terra – MT Fórum de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes de Minas Gerais – FEVCAMG Fórum de Gênero e Masculinidades do Grande ABC Fórum de Mulheres do Mercosul Seção Lages – SC Fórum Permanente de Cultura – GO Frente de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente de Minas Gerais Manuel Munoz Frente Estadual da Luta Antimanicomial – FEASP Frente Inter-Religiosa do ABC Fundação Grupo Esquel Brasil Fundação Instituto Nereu Ramos – Lages/SC Fundação Movimento Ecológico do Piauí – FUMEPI Grupo Ambientalista da Bahia – Gambá Grupo Gayvota Grupo Guará: Grupo Unificado de Apoio a Diversidade Sexual de Parnaíba – PI Grupo LGBT GEE – GO Grupo pela Livre Expressão Sexual Ilê Omolu Oxum Instituto Abaré – Fomento a Autogestão Popular de Santo André Instituto Braços – SE Instituto Brasil Central – IBRACE Instituto Dakini Instituto de Acesso à Justiça – IAJ Instituto de Apoio ao Desenvolvimento Ambiental – IDEAH Instituto de Direitos Humanos Econômicos, sociais, culturais e ambientais – IDHESCA Instituto de Pesquisas e Formação Indígena – Iepé Instituto IDHES Instituto Mira-Serra Instituto Samara Sena – ISENA Instituto Sócio Ambiental da Bahia – IDESAB Instituto Soma Brasil – PB Instituto Travessias Instituto Universidade Popular – UNIPOP IROHIN – Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro Brasileira Meu voto será Feminista Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Núcleos Habitacionais – MDDF/Santo André-SP Movimento Nacional da População de Rua – MA Movimento Nacional de Direitos Humanos – Articulação Piauí Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH/SC ONG Sã Consciência Organização de Direitos Humanos Projeto Legal – RJ Plataforma Mrosc – Bahia Proame Cedeca Bertholdo Weber Programa Socieducativo para homens autores de violência doméstica “e agora José” Projeto Meninos e Meninas de Rua – SP Rede de Mulheres Negras da Amazônia Rede de Mulheres Negras de Alagoas Rede Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos Rede Jirau de Agroecologia Serviço de Assessoria as Organizações Populares Rurais – SASOP Serviço de Paz – SERPAZ Sindicato dos Psicólogos de São Paulo Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos – SDDH Themis – Gênero Justiça e Direitos Humanos Torcida Esquadrão Andreense – Santo André-SP União de Mulheres de São Paulo União de Negras e Negros pela Igualdade – UNEGRO/MA União por Moradia Popular – MA Unidade e Cooperação para o Desenvolvimento dos Povos – UCODEP

    Foto: https://www.zonacurva.com.br/o-grito-da-passeata-dos-cem-mil-contra-a-ditadura-militar/

  • DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS
    Nota Pública da Comissão Brasileira Justiça e Paz

    Um sistema político-econômico, para seu desenvolvimento saudável, necessita garantir que a democracia não seja somente nominal, mas sim que possa se ver moldada em ações concretas que velem pela dignidade de todos os seus habitantes sob a lógica do bem-comum, em um chamado à solidariedade e uma opção preferencial pelos pobres (cf. ‘Laudato Sì’, 158).

    A Comissão Brasileira Justiça e Paz inicia nova gestão, com a renovação de seus membros pela CNBB, e o faz com a reunião de seu colegiado por três dias de intensos e fraternos debates e estudos, que culminaram com a presença do presidente da CNBB, dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte.

    Deparamo-nos com um quadro nacional de graves ataques aos direitos humanos e à dignidade da pessoa, que se expressa em uma preocupante trajetória do governo rumo ao autoritarismo e ao desrespeito às normas constitucionais, e se manifesta em um processo de elevação da pobreza, do reaparecimento da fome e da miséria, mas também no aumento do feminicídio, de assassinatos de lideranças populares no campo e nas cidades, da iminência de um processo de etnocídio e genocídio de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, fruto da cobiça humana e do incentivo governamental à ocupação das terras indígenas para a mineração, a agricultura e a pecuária voltadas à exportação.

    É uma conjuntura que preocupa os cristãos de todo o planeta em comunhão com as pessoas de boa vontade que habitam nossa Casa Comum, ameaçada por um sistema econômico que, sob o signo da morte, compromete a vida na Terra. Nós nos unimos ao Papa Francisco em sua caminhada profética em defesa da Amazônia, dos pobres e desesperançados, respondendo a seu chamado de unir forças para garantir a vida de mulheres e homens que precisam receber os frutos do desenvolvimento humano integral, numa perspectiva do Bem Viver.

    O Brasil está em uma encruzilhada que ameaça a democracia, a soberania e a vida. Enfrentar essa situação, com dignidade e amor ao próximo, é dever de todas as pessoas.

    “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que dá o trabalho!” (Papa Francisco).

    Brasília, 19 de fevereiro de 2020

    Secretaria Executiva Comissão Brasileira Justiça e Paz

  • Dez pontos para se entender a conjuntura do Brasil

     

    Esse texto se propõe a indicar elementos para uma análise de conjuntura desses tempos obscuros que estamos vivendo. São chaves de leitura preliminares. Como tais, não serão desenvolvidas aqui.

    1) O que se passa atualmente no Brasil não é um caso isolado. Coisas semelhantes ocorreram em outras partes do mundo. O que aconteceu nas eleições presidenciais de 2018 por aqui com o uso da tecnopolítica – disseminação de “fake news”, transmissão automática de mensagens – já havia ocorrido de forma semelhante no Reino Unido (Brexit), na Argentina (eleição de 2015 – vitória de Maurício Macri) e nos EUA (eleição de Donald Trump).

    2) Da mesma forma, governos de viés autoritário, baseados na intolerância e no ódio à diferença/pluralidade cultural se estabeleceram em várias partes do mundo ao longo desta década. E em lugares muito diferentes entre si, tais como as Filipinas (Duterte), Índia (Modi), Turquia (Erdogan), Hungria (Orban), Polônia (Morawiecki) Reino Unido (Boris Johnson), EUA (Trump), Brasil (Bolsonaro). Além destes, estiveram até recentemente  presentes no governo italiano (Salvini). São lideranças de extrema-direita, ultraconservadores e que chegaram ao poder ou se aliaram com governos democraticamente eleitos. A “implosão lenta” das instituições democráticas é, portanto, um fenômeno que não se restringe ao Brasil.

    3) As descobertas relacionadas ao petróleo do Pré-Sal, os recursos naturais de que dispomos e a inserção brasileira na geopolítica internacional na década passada trouxeram o país para o centro de uma disputa entre os EUA (potência em declínio) e a China (potência emergente) coligada com a Rússia. Além de nossas contradições internas, a ascensão da extrema-direita no Brasil nos últimos anos também é efeito da chamada Guerra de 4ª Geração. Principalmente porque os governos de esquerda buscaram um alinhamento internacional com um grupo de nações que ficaram conhecidas como BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

    4) Bolsonaro é um autoritário proto-fascista. Não é neoliberal nem anarcocapitalista como seu ministro Paulo Guedes. Seus atos presidenciais são marcados pela desonestidade intelectual, pelo grotesco e pela bizarrice. É notório seu despreparo para o cargo, mas sua estratégia política tem sido extremamente eficiente em anular as esquerdas e em manter um contingente não muito elevado (mas aguerrido) de apoiadores, sobretudo nas redes digitais.

    5) A democracia para ele é uma questão de conveniência.  Enquanto o sistema eleitoral servir aos seus interesses, ele se sujeitará a disputar as eleições. Se ele for derrotado sob qualquer circunstância, contra qualquer candidato, ele não entregará o poder pacificamente. Em 2018, ele já tinha um discurso pronto (a tese da fraude das urnas eletrônicas) para justificar uma eventual derrota e contestar um resultado que lhe fosse adverso. Agora que ocupa a cadeira presidencial, que argumentos terá ao seu dispor para se negar a deixar o poder?

    6) Enquanto Bolsonaro for bem-sucedido em manipular as eleições através das “fake news”, de mensagens enviadas pelas redes digitais e por aplicativos de comunicação, as eleições continuarão a acontecer. Mas isso não significa que continuamos numa democracia. Na ditadura havia eleições…

    7) O grupo que hoje está no poder formou um “consórcio do ódio” para vencer as eleições. A base de apoio bolsonarista, apesar das fissuras recentes, continua forte, embora sem coordenação. É formada por segmentos da grande propriedade agrária (agronegócio), por segmentos religiosos fundamentalistas seja no campo evangélico (setores intelectuais presbiterianos, evangelismo norteamericano e pastores neopentecostais), seja por extremistas católicos que fazem oposição ao próprio Papa (catolibãs). O Presidente ainda conta com apoio de frações do grande capital, sobretudo dentre os grandes rentistas. Ao mesmo tempo, o governo sublocou sua agenda econômica ao Congresso Nacional. O presidente da Câmara se comporta como um primeiro-ministro não declarado em temas de economia e nas finanças, como se estivéssemos em um “parlamentarismo branco”. O setor financeiro agradece e lucra como nunca.

    8) A grande imprensa se divide entre o apoio quase incondicional e a oposição à agenda moral do governo. Se a mídia capitalista não o apoia totalmente, tem muita responsabilidade pelo atual estado de coisas. TV, rádio e jornais deram grande contribuição à polarização política, pois ajudaram a incendiar o país, criando um ambiente social que permitiu a ascensão do bolsonarismo ao poder, sepultando quaisquer vestígios da chamada Nova República.

    9) O “Messias” busca constituir um aparato político-militar que o sustente indefinidamente no poder. Para tanto, está cada vez mais cercado de militares, terceirizando setores do governo aos quartéis para, caso descarte o processo eleitoral, ter um dispositivo militar para governar o país sem eleições, com poderes absolutos. Por isso, há tantos militares ocupando postos-chaves no Poder Executivo. Os oficiais-generais que estão no governo compartilham ou da mesma visão de mundo de Bolsonaro ou da aversão que ele tem às esquerdas e aos movimentos sociais. Mas esse é o eixo institucional do aparato de poder bolsonarista. Existe outro, oculto.

    10) Diferente de outros governos conservadores, o consórcio que está hoje no Planalto tem conexões não explicadas com o pior do banditismo nacional e da criminalidade mais abjeta. No campo e na cidade, grupos paraestatais se veem autorizados para impor o terror e à violência a seus opositores (indígenas, negros, feministas, movimentos sociais, comunidade LGBT, moradores das periferias, intelectuais, servidores públicos, professores e jornalistas investigativos) e por exercer formas de dominação autônomas face aos poderes constituídos. Os autores das queimadas da Amazônia, as milícias no Rio e em outras partes (talvez na Bahia e no Ceará?), e grupos armados (jagunços), patrocinados pela grande propriedade agrária, estariam de alguma forma em simbiose com os atuais donos do poder central?

    Será esse o eixo oculto do dispositivo ditatorial que está em curso no Brasil? Não há como afirmar. Queimas de arquivo recentes talvez tenham sido eficientes em encobrir a verdade dos fatos. E podem ocultar da sociedade brasileira ligações que tornariam evidentes o que hoje parecem ser apenas indícios.

    OBS: Agradeço a Ivo Lesbaupin e a Névio Fiorin a leitura preliminar e as sugestões ao texto.

    * Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor da Educação Básica. Católico, participa do Movimento Fé e Política.

  • “É assassino quem tira a vida dos pobres” (Eclesiástico 34, 25)
    Mensagem dos Frades Dominicanos no Brasil

    Hoje no Brasil, os Direitos Humanos vêm sendo violados, não como exceção, mas como rotina. Povos indígenas são ameaçados em seus direitos e seus territórios: várias lideranças indígenas foram assassinadas nos últimos meses, como os guajajaras Paulo, Firmino e Raimundo, no Maranhão. A Amazônia sofre violência, queimadas e devastação por mineradoras, garimpeiros, madeireiros e latifundiários. Neste chão, hoje entregue à ganância dos poderosos, posseiros e sem-terra, lideranças populares e defensores de direitos são equiparados a delinquentes e vilipendiados por um Estado que abriu mão de suas responsabilidades na efetivação das reformas agrária e urbana, e de políticas sociais inclusivas.

    Enquanto isso, permanecem impunes ecocídios mortíferos como em Mariana e Brumadinho, a reforma trabalhista estanca as possibilidades de se exigir condições dignas de trabalho, ao desarticular a legislação e dificultar o acesso à Justiça. Abre-se cada vez mais espaço para o trabalho precarizado, o desemprego e subemprego, e até a tolerância para o trabalho escravo. Movidos por nefasta ideologia ultraliberal, os poderes públicos se omitem, entregando os indefesos à sua sorte e deixando os poderosos aos seus lucros. A cada minuto quatro mulheres em nosso país são agredidas. A esperança de vida para transexuais no Brasil não ultrapassa 35 anos. Mais de 100 mil pessoas vivem ao relento, pois se encontram em situação de rua. Metade da população brasileira não dispõe de saneamento, sendo exposta a muitas enfermidades, enquanto o sistema público de saúde se encontra sucateado. Crianças, jovens, adultos são mortos por balas “perdidas”.

    Embora mais da metade da população brasileira seja formada por negros e pardos, fazendo de nosso país a segunda nação com maior contingente de negros do mundo, aqui esses nossos irmãos e irmãs – mais de 130 anos após a abolição da escravatura –, sofrem preconceitos e discriminações em dose dupla: por serem negros e pobres. São muitas as pessoas caídas à beira da estrada. Como na parábola do “bom samaritano” (Lc 10, 30-37), cada um de nós é desafiado a abrir o olho e tomar atitudes. Nós mesmos, como reagimos? Com aquela indiferença denunciada pelo Papa Francisco? Ou com aquela agressividade – para não dizer ódio – de quem destrata Direitos Humanos como “coisa de bandido”? Estaríamos dispostos a interromper a nossa rotina, desviar nosso caminho e nos colocarmos a serviço das vítimas de tantas injustiças? Afinal, a quem pretendemos “salvar”: a nós mesmos ou àqueles e àquelas que têm sido violentados, despejados, e assassinados, muitas vezes a mando ou com a anuência do Estado e do poder econômico, seu aliado?

    O compromisso com a defesa da vida e da promoção dos Direitos Humanos é prioridade para nós Frades Dominicanos no Brasil, consoante com nossas  Constituições e as decisões dos nossos Capítulos, e coerente com o exemplo do padroeiro que identifica nossa Província: Frei Bartolomeu de las Casas. Como ele, levamos a sério essa advertência bíblica: “Quem tira a vida dos pobres é assassino. Mata o próximo quem lhe tira seus meios de vida, e derrama sangue quem priva o operário de seu salário”. (Eclo 34, 21-22)

    Discípulos de Jesus, a exemplo dos discípulos de Emaús, não queremos nos deixar abater e não pretendemos caminhar sozinhos. Daqui, de nossa Assembleia anual, impelidos pela urgência frente a tantas violações do direito, da dignidade e da justiça, lançamos um apelo a todas as pessoas de boa vontade: é hora de assumir destemidamente nosso compromisso com a defesa intransigente da vida, da diversidade e do planeta, nossa Casa Comum. Discípulos de um profeta assassinado, porém ressuscitado, proclamamos nossa fé na promessa de uma terra sem males e reafirmamos nosso compromisso de colocar nossa vida religiosa consagrada a serviço do Reino por Ele inaugurado.

     

    Frades Dominicanos do Brasil

    Assembleia Anual

    São Paulo, 31 de janeiro de 2020.

     

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  • Frei Sérgio Görgen: A Petrobras está dentro de nossas casas

    Esta empresa é uma de nossas maiores façanhas como Povo Brasileiro. Muitos lutaram por ela.

    04/02/2020

    O ônibus que nos leva até a rodoviária, até o bairro ou até o centro da cidade é movido a diesel, com petróleo extraído do fundo do mar, pela Petrobrás e seus trabalhadores, com tecnologia de exploração em águas profundas desenvolvida por engenheiros e cientistas desta nossa amada nação.

    Nossos carros e motos se movem com gasolina, da mesma fonte e da mesma empresa. Assim nossos tratores, caminhões e colheitadeiras. Produzem e transportam o alimento e as bebidas que estão todos os dias em nossas mesas.

    Cozinhamos e aquecemos água – para o café, o chá, o chimarrão – com gás de cozinha originado na forma gasosa de co-produto proveniente da extração do petróleo. Assim também fertilizantes nitrogenados e uma gama enorme de produtos originários da petroquímica estão presentes em nosso quotidiano.  Muito mais do que imaginamos, de plásticos, estofados a chinelos de dedos.

    Em tudo isto, a Petrobrás presente.

    Esta empresa é uma de nossas maiores façanhas como Povo Brasileiro. Muitos lutaram por ela. Muitos desacreditavam de suas possibilidades. Getúlio Vargas assumiu a decisão política de cria-la no bojo de um fantástico movimento popular chamado “O Petróleo é Nosso”.

    O mesmo Getúlio criou a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Brasileira de Tratores. Mas Juscelino Kubitscheck, em troca de multinacionais automobilísticas e de máquinas agrícolas, rifou a indústria e a tecnologia nacional. O militares nacionalistas – já existiu este tipo de seres em nosso país – não aceitaram entregar a fabricação de aviões e a Embraer sobreviveu como empresa nacional até dias atrás.

    E assim a FNM e a CBT foram extintas e os motores de nossos ônibus, carros, motos, tratores, colheitadeiras, caminhões são todos produzidos por multinacionais e o lucro vai para fora. E vivemos o paradoxo de um povo que desenvolveu ciência para explorar petróleo em águas profundas e construir aviões, mas não sabe fazer uma motocicleta, um carro, …… Não que não sabe, é que houve uma decisão política que entregou isto a outros e matou o que era nosso. Matou a ciência, o saber, a indústria.

    Agora as multinacionais querem também a Petrobrás e todo o nosso Petróleo.

    O processo está em andamento, por isto o preço dos combustíveis e do gás já está dolarizado e sobe conforme a moeda americana. As refinarias da Petrobrás produzem 70% de sua capacidade e nós exportamos óleo cru e importamos diesel. Petrobrás produz adubos nitrogenados. Fecharam a fábrica e passaremos a importar encarecendo ainda mais os custos de produção agrícola, que vai encarecer o alimento.

    Os trabalhadores da Petrobras, os heroicos Petroleiros, estão na linha de frente para resistir e não deixar que este descalabro aconteça.

    Fosse por mim, não queria a Ford, a Mercedes, a GM, a John Deere ganhando dinheiro nas nossas costas e levando o lucro para fora enquanto nosso povo passa necessidade. Mais dia, menos dia, um projeto nacional começará a reverter esta desnacionalização reconstruindo uma nação livre, justa e soberana.

    Precisamos a Petrobras nacional e pública dentro de nossas casas, em nosso quotidiano, industrializando o país e gerando emprego, vendendo combustível em reais e não em dólares. Dispensamos a Esso, a Shell, e outras que tais, sugando nosso suor, nosso sangue e levando nossas riquezas.

    Até para a grande transição ecológica que as mudanças climáticas nos obrigarão a fazer, diminuindo paulatinamente a petrodependência em nossa economia, em nossa agricultura e em nossa sociedade, será mais fácil e mais viável com uma Petrobrás nacional e pública.

    Viva a resistência petroleira. Todo o apoio à greve dos petroleiros. Somos todos petroleiros.

    Frei Sérgio Antônio Görgen ofm. – Frade Franciscano, Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores.

    https://jornalggn.com.br/artigos/a-petrobras-esta-dentro-de-nossas-casas-por-frei-sergio-antonio-gorgen-ofm/

  • DOM, COMPROMISSO E PLURALIDADE: PELO DIREITO DE SER NO CATOLICISMO

    DOM, COMPROMISSO E PLURALIDADE: PELO DIREITO DE SER NO CATOLICISMO

    Por Jorge Alexandre Alves*

    O surgimento de grupos ultraconservadores no catolicismo tem chamado a atenção mais pelo barulho que fazem do que pela quantidade de membros que possuem. Com considerável aporte financeiro, têm sido relativamente eficazes em disseminar sua ideologia religiosa, assumindo para a si a missão de “recristianizar a Igreja”, nas palavras de Thais Oliveira. Contudo, é no ambiente líquido das redes sociais onde seu alcance é maior.

    Nas últimas eleições, o extremismo católico surfou na onda do conservadorismo de extrema-direita que colocou Jair Bolsonaro no Planalto e vários similares do gênero nos governos estaduais. Os catolibãs também elegeram representantes para o parlamento federal e nos legislativos estaduais também. Assim, seu discurso hoje está amplificado e potencializado pelo momento político vivido no país. Por isso, se por um lado são pouco numerosos, por outro não podemos desconsiderar o alcance de sua “catequese”.

    No contexto do catolicismo, suas falas e proposições vão na contramão do magistério do Papa Francisco. Alguns de forma velada e outros abertamente criticam o Bispo de Roma. E assim, constituem a linha de frente da resistência às reformas que Bergoglio vem tentando promover na Igreja.

    Com certa frequência, atacam a CNBB e sua direção, acusando-os dos mais variados disparates (comunistas, lenientes com a defesa da fé ou mesmo hereges). Não obstante o ataque à conferência episcopal, alguns prelados apoiam abertamente tais grupos. Os extremistas leigos acabam fazendo o “jogo sujo” contra o Papa que muitos eclesiásticos não têm coragem de fazer abertamente.

    Dessa forma, em algumas (arqui) dioceses muito conservadoras esses grupos tem feito ecoar com mais força sua mensagem intolerante. Há uma certa cultura católica em implementação por esses grupos. Aqui reside o problema, porque tal modus operandi tem se caracterizado pelo fundamentalismo religioso, permeado por um discurso de ódio a tudo o que tais grupos consideram contrários a fé cristã católica.

    O extremismo católico direciona seus ataques fundamentalmente sobre qualquer pessoa, grupo, movimento ou expressão que possa ter vinculação à Teologia da Libertação. Mesmo que isso esteja bem longe da verdade, como aconteceu em 20/11/2019, em celebração pelo Dia Nacional da Consciência Negra, numa paróquia a poucos metros da sede do arcebispado do Rio de Janeiro. Os catolibãs consideram essa teologia (e toda pastoral que se produziu a partir dela) a origem de todos os males do catolicismo contemporâneo brasileiro.

    Esses grupos se entendem como verdadeiros “cruzados” do Novo Milênio, a caça de hereges em nome sã doutrina da Igreja. Travestidos de paladinos da tradição, destilam ameaças, difamações e perseguições a quem eles consideram responsáveis de, através da TdL, corromper a Igreja, infiltrando na esposa de Cristo o marxismo cultural, a ameaça a família e a subversão dos valores da cristandade. Agem com enorme violência simbólica, com doses cavalares de agressividade virtual através da internet, nas redes digitais.

    É nesse contexto explosivo que a Campanha da Fraternidade nos interpela com a temática da compaixão, do cuidado e da solidariedade. E faz uma significativa reflexão sobre o papel da vida como dom e compromisso cristão, trazendo uma poderosa imagem: a do Bom Samaritano. Cabe perguntar como podem grupos que se dizem defensores da fé da mais genuína Tradição ignorarem a mensagem contida nessa narrativa do Evangelho?

    Nove parágrafos do Texto-base (134-142) da CF-2020 desenvolvem a máxima “Cuidar é ter mais ternura na vida”. O parágrafo 135 afirma que “se Deus é ternura infinita, também o ser humano é capaz de ternura”. Sendo assim, onde está a ternura daqueles que, em nome da fé, espalham ódio e intolerância internet afora? Mais à frente, o parágrafo 137 começa afirmando que “não é possível falar de cuidado sem falar de ternura”. Que cuidado é esse dos catolibãs para com o próximo que se baseia na mentira, no ataque e na violência?

    Decerto que a ênfase da Campanha está relacionada ao cuidado com os pobres, os excluídos, aqueles sofrem nas periferias existenciais do mundo de hoje. Estes uma grave exigência à Igreja e aos seguidores de Jesus de Nazaré: que se coloque em saída, muito mais como hospital de campanha. Nesse contexto, a Eucaristia deve ser muito mais consolo e remédio do que prêmio para os bons, como nos ensina o Papa.

    Logo, fazendo jus ao significado mais profundo do termo católico, a Igreja deveria ser uma campeã do diálogo e da escuta, da construção de pontes. Consequentemente, todo católico deveria também recusar os muros da intolerância e do fechamento em si mesmos. Como defender a fé, anunciar a Boa-Nova e seguir ao Cristo indo na contramão desses princípios?

    As questões anteriormente suscitadas por uma breve reflexão sobre a CF-2020 já vêm sendo feitas há algum tempo. O extremismo dos catolibãs causa espanto e indignação em muitos grupos, dentro e fora da Igreja. Por vezes, ao manifestar publicamente seu escândalo com os fundamentalistas, pessoas e grupos também são criticados como incapazes de dialogar.

    Evidentemente, é fato que precisamos ser assertivos e abertos o suficiente para compreender as razões de tanta gente ter adotado uma narrativa baseada no ódio, sobretudo no campo da política. Mas no contexto religioso cristão-católico, o que fazer quando se é alvo e sua forma de crer é acusada de forma desonesta e vil? Neste caso, não se trata mais de uma limitação nas tentativas de estabelecer uma espécie de diálogo “intraecumênico”.

    Muitas vezes, debatendo sobre a questão do fundamentalismo, se interpela os adeptos da Teologia da Libertação com uma crítica bastante séria. Ao se escandalizarem publicamente com o tradicionalismo impregnado de ódio dos extremistas, estariam colaborando mais para o aprofundamento da divisão na Igreja do que para a pacificação dos espíritos. É uma crítica contundente, sem dúvida.

    No entanto, o problema é de outra natureza. E muito mais grave atualmente, uma vez que o diálogo somente é possível quando existe predisposição para a conversa. A raiz do problema se encontra nessa questão.

    Portanto, como estabelecer pontes com quem lhe vê como inimigo da Igreja e da fé? Com quem lhe nega a sua condição básica e fundamental de batizado? Com quem não reconhece que você tem o direito inalienável de escolher como ser cristão, e que podem haver outros modos legítimos de viver a fé?

    A acusação feita aos que se identificam com a Teologia da Libertação resvala em certo discurso presente nos ambientes paroquiais da arquidiocese do Rio de Janeiro em meados dos anos 1990. Naquele tempo havia tensões no campo pastoral entre várias tendências católicas, como o modo pentecostal-carismático de ser Igreja, os “movimentos de encontro” e os defensores de uma pastoral libertadora. Dizia-se que os carismáticos tinham a espiritualidade e o pessoal da TdL tinha o engajamento social. Muita gente afirmava buscar a síntese dos dois. E talvez seja possível ainda hoje encontrar gente reproduzindo esse discurso e angariando aplausos. Ledo engano.

    Só pode afirmar que não há espiritualidade na Teologia da Libertação quem desconhece o Ofício Divino das Comunidades ou a experiência fecunda de Penha Carpanedo e de tantas pessoas na Rede Celebra no campo da liturgia. Quem nunca ouviu com atenção as canções de Zé Vicente ou ignora a mística Hélder Câmara ou de Marcelo Barros.  E desconhece a potência criativa que usa a arte como expressão de fé do Ateliê 15 ou do Movimento dos Artistas da caminhada – MARCA.

    Precisa ser pouco informado ou desonesto para dizer que a TdL é vazia de Deus. Só pode ser coisa de quem nunca celebrou com a PJ ou nunca foi a um encontro de Ceb’s. Ou desmerece a experiência da leitura orante da Bíblia e nem nunca participou de um encontro ecumênico de formação pastoral, como foi o Curso do Rio ou é ainda o Curso de Verão em São Paulo.

    Mais do que tudo isso, negar a existência de uma íntima relação com o Deus de Jesus Cristo na Teologia da Libertação é solenemente ignorar a profunda fé do povo das comunidades. De gente que, contra toda adversidade desses tempos obscuros, continua a caminhar depositando suas esperanças no Senhor e no Reino de Deus. Quem afirma a ausência do sagrado na Teologia da Libertação despreza a fé simples do Povo de Deus.

    Portanto, longe de ser uma atitude fechada, o que se aponta é o elevado grau de fundamentalismo de certos grupos, a pressuposição de que um determinado modo de ser e de viver a fé é o único possível. Ou seja, aqueles que não vivem dessa forma devem ser ou “convertidos” à força ou suprimidos, cortados ou mesmo eliminados da comunidade eclesial.

    Mas também não podemos negar que se pensa a Igreja a partir de outras bases, de uma outra eclesiologia. Consequentemente, se constata um modelo de Igreja fracassou retumbantemente em sua missão de cristianizar o mundo contemporâneo. A renúncia de Bento XVI é a maior evidência disso. Por isso também existem objeções e questionamentos em relação a grupos que, para além de sua intolerância, desejam o resgate de um modo tridentino de viver o catolicismo, totalmente anacrônico.

    Entretanto, diálogo pressupõe escuta mútua e predisposição para se colocar como igual, olhando nos olhos e acolhendo as diferenças. Certamente isso não seria problema para quem se vincula à Teologia da Libertação. Todavia, ninguém quer ser agredido, atacado e violentado em suas crenças.

    Assim, o que parece é que certos grupos pentecostais católicos ou tradicionalistas estão tão convencidos de seu catolicismo embriagado de triunfalismo, são tão senhores da verdade que se recusam em reconhecer aqueles ligados à TdL como irmãos na fé.  Para os catolibãs, estes são como a lepra, hereges perigosíssimos. Como dialogar nesse clima?

    A única coisa que os fundamentalistas parecem desejar é a eliminação de qualquer um que se declare simpatizante da Teologia da Libertação como sujeitos eclesiais (alguns parecem até que, se pudessem, os queimariam numa fogueira tal qual se fazia nos autos de fé da Inquisição) ou a à capitulação diante do que se acredita ser o seguimento de Jesus. Com efeito, não parecem muito dispostos a quaisquer formas de diálogo. Tampouco querem debater teologia ou perspectivas eclesiológicas.

    Esses cristãos se veem numa batalha messiânica.  Por isso estão numa disputa permanente com quem não comunga de seus princípios. E aí entramos nós, que somos os alvos desse combate. Esse embate não foi por nós provocado e não ocorre em bases racionais.

    Ao mesmo tempo, é necessário não se deixar intimidar pelo ódio e pelo extremismo do catolibãs. Precisamos reafirmar o direito á diferença no catolicismo. Aliás, o termo católico significa universal. Em 2000 mil anos de cristianismo, essa universalidade nunca foi sinônimo de uniformidade.

    Não podemos ser ingênuos a ponto de crer que a pluralidade será facilmente aceita pelos intolerantes, como efeito de uma sensibilização dos espíritos ou por uma ação milagrosa de natureza divina. Esses grupos não estão abertos a esse caminho de conversão (metanoia). Tampouco serão convencidos através de argumentos racionais.

    A disputa se dá no plano simbólico, na subjetividade e nas narrativas.  Por isso, será muito difícil construir qualquer ponte com essa gente. Se eles nos reconhecem como interlocutores, eles deixam de ser quem são. Ora, só há existência para eles se eles tiverem um inimigo da fé, uma ameaça à cristandade a ser combatida.

    Para os catolibãs, apenas faz sentido defender a fé nessas bases.  Eles precisam de inimigos para manterem sua própria identidade. Por isso, a necessidade de alvos. Contra inimigos não há ternura, nem cuidado, nem humanidade. Só resta o ódio. Como lidar com isso?

    * Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor da Educação Básica e participa do Movimento Fé e Política.

    REFERÊNCIA:

    OLIVEIRA, Thais Reis. Os católicos ultraconservadores que querem “recristianizar” o Brasil. Disponível em: https://vermelho.org.br/2020/01/20/os-catolicos-ultraconservadores-que-querem-recristianizar-o-brasil/ Acesso em: 29/01/2020

  • Pedro A. Ribeiro de Oliveira – Análise de conjuntura – 2020

    Introdução

    Este texto atualiza a análise publicada em maio de 2019, evitando repetir suas justificativas teóricas e os dados de caráter estrutural[1]. Sua novidade reside no aprofundamento das consequências da derrota do povo brasileiro na guerra de 4ª geração que derrubou o governo Dilma e resultou no atual regime ultraliberal. Quanto ao esquema, o texto segue a forma habitual: o sistema Terra, o sistema-mundo capitalista e o Brasil.

    Sistema Terra

    catástrofe climático-ambiental continua a dar sinais de antecipação. As medidas recomendadas pela comunidade científica internacional no sentido de evita-la continuam sendo promessas vagas. Devemos esperar, portanto, o agravamento das dificuldades climáticas porque a data-limite para estancar o processo é o ano de 2021. Sinal positivo é o Fórum Econômico de Davos receber neste ano a adolescente Greta Thumberg, que deu seu recado de protesto a quem manda no mundo dos negócios e na política: os 2.150 bilionários cuja riqueza equivale à riqueza de mais da metade da população mundial. Mas é preciso ser ingenuamente otimista para acreditar que aquele clube de ricaços (cujo número dobrou depois da crise 2008) abra mão da riqueza que lhe garante status privilegiado para evitar a deterioração da vida na Terra. Noticia-se que uma parte deles aceita abrir mãos de (alguns) privilégios, mas outra parte continua dizendo que o clima é um problema entre outros, e que o importante é o crescimento econômico. Se eles não se mexem em favor da Terra, tampouco se mexem os milionários, os muito ricos ou apenas ricos. Sinal disso são os dividendos da Vale, que superaram as indenizações pelo crime de Brumadinho, levando suas ações a recuperar o valor anterior à tragédia.

    Longe do mundo dos milionários e ricaços, porém, cresce na juventude a consciência da Terra como sujeito de direitos e isso poderá trazer resultados positivos para a vida da Terra e da Humanidade. Também os povos originários e tradicionais – exímios cuidadores da natureza – estão assumindo protagonismo no mundo político. Ameaçados de extinção, eles ganharam nova energia. Os novos movimentos sociais, organizados de forma horizontal, como coletivos, despontam como sujeitos do processo que marcará o final do atual modo de produção e consumo capitalista. Ainda é cedo para saber por quanto tempo esses coletivos serão atuantes e qual a sua real incidência nesse processo (porque com a mesma rapidez que se formam, podem se desfazer), mas diante do esgotamento das instituições políticas usadas pelas classes trabalhadoras (partidos, sindicatos, igrejas) é neles que hoje surgem sinais esperançosos de mudança. Ainda que não seja mais possível escapar da catástrofe que se anuncia, ela poderá ser amenizada se esses coletivos conseguirem produzir a real solidariedade universal, como é seu propósito.

    Sistema-mundo capitalista em crise – clima de guerra

    A crise financeira de 2008 marca o final do ciclo de acumulação puxado pelos EUA no século 20. A intervenção dos Bancos Centrais injetando alguns trilhões de US dólares no sistema bancário deu-lhe uma sobrevida, mas não alterou o processo de financeirização do capital, que beneficia a concentração da riqueza em poucas mãos. Hoje 147 grupos (dos quais 75% são bancos) controlam 40% do sistema corporativo mundial, de modo que 1% dos habitantes da Terra detêm riqueza igual à dos 99% restantes. Enquanto o capital financeiro se agiganta, os capitais produtivos quase não crescem, exceto no campo polarizado pela China e pela Índia, fazendo que o polo mundial se transfira do Atlântico Norte ao Pacífico.

    O poder militar, porém, continua sendo dos EUA, que exibiu sua força ao matar o principal chefe militar iraniano em visita ao Iraque. Não se enquadrando numa operação de guerra, esse atentado confirma que os EUA hoje não se submetem às normas do convívio internacional. E isso alimenta o clima de tensão mundial, que caminha para a intensificação dos conflitos armados.

    Essa crise financeira que se encaminha para o agravamento de conflitos militares incide no campo das ideias e das relações políticas como expressão de um mal-estar generalizado. O processo de dissolução da civilização ocidental moderna (capitalista, colonialista, patriarcal e antropocêntrica) está avançando, fazendo eclodir movimentos reacionários ou ultraconservadores – dos quais o bolsonarismo é um exemplo – em diferentes partes do mundo. Sua presença se dá também no campo religioso: os fundamentalismos e a oposição a Francisco atacam intransigentemente as inovações em nome de um passado idealizado. S. Bannon –que respalda os reacionários no campo político (campanhas eleitorais) e no campo religioso e cultural – é um dos cérebros desses movimentos de reação ao processo de construção de uma sociedade planetária. Eles são incapazes de apontar uma solução viável às dificuldades do tempo presente, mas têm a capacidade de demolir as propostas de estruturas sociais, econômicas, culturais e políticas alternativas àquelas da civilização ocidental em decadência. Daí o mal-estar contemporâneo que parece atingir todos os setores da sociedade.

    Em muitos lugares da Terra esse mal-estar resulta em guerras. Seu pretexto varia: podem ser questões étnicas, religiosas, políticas, combate ao terrorismo ou às drogas, mas trata-se sempre de eliminar um poder definido como hostil. No final do século 20, as corporações e o governo dos EUA impuseram sua vontade unilateral ao resto do mundo, mas o ressurgimento da Rússia, a emergência da China como maior economia mundial, e a resiliência da União Europeia quebraram aquela hegemonia. Hoje temos um quadro multipolar no qual as tensões se equilibram sem chegar ao confronto direto entre as grandes potências, embora não esteja descartado um conflito de grandes proporções – inclusive com o uso de armas nucleares de baixa intensidade.

    A novidade das guerras do século 21 é o uso racional e metódico da informação via internet como meio de ataque a um poder hostil. Trata-se de produzir informações parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake-news) que sejam plausíveis para quem as recebe. Difundidas pela grande mídia (TVs, rádios e jornais), redes digitais, ou instituições (Igrejas, ONGs, institutos de produção de ideias), elas são replicadas por quem as recebe, multiplicando-se nas redes virtuais (como o vírus do hacker). Elas agem sobre as consciências no sentido de deslegitimar o inimigo (a acusação mais frequente é de corrupção) até que, fragilizado esse poder seja facilmente derrubado por meios militares, políticos ou judiciais. Essa forma de guerra (chamada híbrida ou de 4ª geração) foi experimentada no Iraque (em 2003) e depois na Primavera árabe. O Irã é alvo constante dessa guerra, mas tem resistido, tal como a Venezuela. Em nossa América, ela foi empregada em Honduras, na Venezuela, no Paraguai e agora na Bolívia. No Brasil, ela conduziu o processo de derrubada da Presidenta Dilma até a eleição de Bolsonaro e mantém-se até hoje como forma de dissuasão a possíveis reações populares contra o regime em vigor.

    Para entender essa forma de guerra, é preciso ter em conta que ela não tem um único comando centralizado, mas diferentes nodos – grupos de poder econômico, político, cultural e militar – atuando em vista de seus próprios interesses, mas objetivamente conectados e reforçando-se mutuamente. P. ex.: agências governamentais e fundações dos EUA oferecem bolsas para formar gente que vai pensar e atuar conforme suas leis e valores; agências de segurança interceptam informações que trafegam na internet e definem os alvos para ataques policiais ou econômicos (ver Snowden); sites produzem e falseiam notícias, que são reproduzidas por instituições confiáveis e replicadas na rede virtual; promovem-se manifestações públicas, com repercussão midiática, que enfraquecem as instituições definidas como “hostis”. O resultado é que a grande massa, confundida por notícias disparatadas, acaba sendo levada por argumentos que apela antes para as emoções do que para a razão.

    É claro que o sucesso das guerras de 4ª geração requer a cumplicidade de grupos sociais no país alvo. No caso do Brasil, foram os 20.000 muito ricos, que romperam o pacto de 2002 com o PT (que suspendeu as reformas agrária, fiscal e política e a auditoria da dívida pública em troca da governabilidade e do projeto social-desenvolvimentista do governo Lula) e se alinharam com as corporações e o governo dos EUA. Disso resultou o governo Temer-PSDB e a eleição de Bolsonaro, ambos dando cobertura à política ultraliberal: o máximo ao mercado, o mínimo ao Estado de proteção social.

    Brasil: Estado cliente

    Se aceitarmos a hipótese – plausível, embora sujeita a contestação – de que houve uma guerra de 4ª geração vencida pelas corporações e governo dos EUA com a cumplicidade dos muito-ricos do Brasil, devemos explicitar suas consequências. A primeira delas, já mencionada em textos anteriores, foi a derrota histórica das classes trabalhadoras e dos setores nacionalistas[2]. Outra consequência foi a imposição de um regime de subordinação do Estado brasileiro aos vencedores. Para facilitar a compreensão, podemos fazer um paralelo com o regime em vigor na França após sua derrota diante do exército alemão em 1940[3]. O Marechal Pétain, herói da Guerra de 1914-18, assumiu o governo do Estado Francês e assinou o armistício que dividiu o território francês em duas partes. Uma, ficou sob controle direto das forças alemãs de ocupação e outra, com cerca de 3/5 do território mais as antigas colônias, ficou sob governo francês com sede na cidade de Vichy. Sua soberania era apenas formal, para permitir a manutenção das relações diplomáticas e o controle das “províncias ultramarinas”, porque de fato só fazia o que não contrariasse a orientação nazista. Por isso, pode ser usado o conceito de “Estado cliente” da Alemanha. Embora contestado por um pequeno setor militar comandado por De Gaule, refugiado na Inglaterra, e por grupos nacionalistas de esquerda, que assumiram a Resistência na clandestinidade, aquele governo sobreviveu até a invasão aliada em 1945, tendo o apoio das classes médias e altas e do clero católico.

    É evidente que a realidade do Brasil hoje é muito diferente do que ocorreu na França e em outros países sob ocupação nazista. Mas se houve uma guerra e uma derrota – tal é nossa hipótese de trabalho – o regime aqui imposto não decorre somente de uma troca de governo resultante das eleições de 2018. Novos parâmetros políticos foram estabelecidos pelos vencedores: a Constituição e as instituições republicanas permanecem em vigor, mas seu funcionamento foi enviesado para proteger os interesses das corporações e das empresas a elas subordinadas, em detrimento do trabalho[4]. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, devidamente amparados pelo Ministério Público e pelas Forças Armadas, estão conduzindo a sociedade brasileira na direção do ultraliberalismo econômico. A redução dos gastos públicos com políticas sociais, as privatizações, o favorecimento ao agronegócio, as concessões de exploração mineral na Amazônia e em Territórios Indígenas, e outras medidas já anunciadas são evidências de que aquele projeto avança praticamente sem resistência da sociedade.

    A cada semana tomamos conhecimento de novas violações de Direitos assegurados pela Constituição, mas a indignação dos setores democráticos não resulta em punição dos transgressores nem produz efeitos na política: na hipótese mais favorável, o responsável é demitido e outra pessoa toma seu lugar. A cena política é ocupada por falas provocadoras ou disparatadas do presidente, de algum ministro ou ministra e de pessoas de seu entorno, produzindo indignação de um lado e recebendo aplausos de outro. Esses jogos de cena distraem o público enquanto a equipe econômica de P. Guedes faz seu serviço nos bastidores. É importante observar que os resultados nefastos dessa política, especialmente para os setores de média e baixa renda, já são evidentes, mas os equipamentos da guerra de 4ª geração continuam em pleno funcionamento: a Mídia corporativa, as redes digitais, setores importantes das Igrejas evangélicas e católica, e organismos formadores de opinião tratam de camuflar as notícias e, sempre que possível, atribuem os malefícios atuais aos governos passados ou os apresentam como remédios amargos mas necessários para o País atingir a almejada prosperidade geral. De vez em quando faz-se ouvir a voz de militares – boa parte deles treinados para manter a lei e a ordem dos brancos no Haiti – para lembrar que o atual regime tem seu respaldo e que não serão tolerados desvios de seu rumo político.

    Nesse contexto, é ingênuo propor manifestações de massa, greve geral ou ocupações de terra, assim como é ingênuo pensar que uma vitória eleitoral possa mudar o regime. Há que se disputar as eleições municipais, pelo menos para dificultar o avanço do projeto ultraliberal em âmbito local e constituir mandatos em defesa das causas populares, mas sabendo que elas se limitam a reduzir danos. Também a atuação nos espaços sindicais, de associações civis, movimentos organizados e Igrejas deve ser conduzida por objetivos claros: minimizar o alcance da política econômica ultraliberal e de seus efeitos colaterais. No contexto de um Estado que hipotecou sua soberania, as ações de libertação têm que mirar o médio e o longo prazo, preparando hoje o terreno para a contra-ofensiva que deverá aguardar o momento oportuno para alcançar êxito.

    Diante do quadro acima, o atual momento brasileiro deve ser visto como um “deserto fértil”, no dizer de D. Hélder. É o momento de plantar as sementes que alimentarão o processo de criação de um novo modo de produção e consumo justo, construtor da paz e respeitoso da Terra. Essas sementes serão tanto mais fecundas quanto mais forem adubadas pelo exame sereno e crítico dos erros e equívocos cometidos pelas forças populares, que não perceberam a realidade de guerra de 4ª geração na qual foram envolvidas. Uma dessas sementes é a conscientização popular, tema que preciso estudar e aprofundar antes de aborda-lo num futuro artigo.

    [1] A pessoa interessada encontrará esses textos em:  http://www.ihu.unisinos.br/588773-analise-de-conjuntura-em-tempos-de-guerra-artigo-de-pedro-a-ribeiro-de-oliveira ou em http://fepolitica.org.br/pedro-ribeiro/analise-de-conjuntura-em-tempos-de-guerra/

    [2] Não cabe aqui analisar seus erros estratégicos, porque a derrota era inevitável devido à superioridade das armas de 4ª geração empregadas pelas forças vencedoras.

    [3] Para quem não conhece esse fato histórico, um breve relato encontra-se em https://pt.wikipedia.org/wiki/França_de_Vichy

    (Publicado originalmente no site do Movimento Fé e Política, e 03/fevereiro de 2020)

  • Sobre as águas do Rio, sobre as águas da CEDAE



    Toda reflexão sobre o Rio de Janeiro, sua dinâmica, sua beleza, sua gente e inclusive seus (não poucos e nem pequenos) dramas, passará pelas suas águas em algum momento. Da água benta da procissão de São Sebastião aos pulos sobre as sete ondas em Copacabana no Reveillón. São ás aguas da Baía de Guanabara, de Copacabana, do quebra-mar da Barra, do pisicinão de Ramos, da Lagoa…

    Mas, tragicamente, são as águas das enchentes na Praça da Bandeira, em Madureira e em Jacarepaguá. São ás águas das chuvas que alagam a rua do Catete, que levam morro abaixo os barracos da gente pobre… Também são as águas da Cedae, da adutora do Guandú, que nem na cidade do Rio está localizada.

    Para além da cidade, a água tem profunda simbologia. Está intimamente vinculada á vida, afinal somos majoritariamente… ÁGUA! Por isso ela é tão ligada ás cerimônias religiosas. Presente nas mitologias indígenas, avatar de divindades das religiões afro-brasileiras, é pelas águas que os Cristãos são inciados em sua fé religiosa, renascendo para uma vida nova.

    Mas na Cidade Maravilhosa, hoje á agua provoca desconfiança, adoece a população e esvazia o bolso do cidadão. Neste verão, a água sangra a alma carioca. E sufoca os mais humildes

    Quando nós, professores da rede estadual, fizemos greve em 2016, o Estado do Rio de Janeiro começa a viver a profunda crise fiscal e financeira que se perdura até hoje. Para poder colocar os salários do funcionalismo em dia e sair do buraco, o governo se submeteu a acordos financeiros com instituições bancárias. Deu a Cedae como garantia, prometeu privatizá-la. Brasília autorizou o acordo e o banco liberou a grana. E a joia do patrimônio público estadual estava empenhada.

    Na época, apenas os mais atentos se deram conta de um detalhe: A companhia estadual de água e esgoto era um empresa saudável, que havia ficado praticamente de fora dos escândalos de Cabral e Pezão, e lucrava para o Estado R$ 70 milhões por ano. Nós, cidadãos fluminenses, temos que aturar o cretinismo dos governantes que fazem ilações sem apresentar provas.

    Afinal, desde quando o sucateamento da Cedae é sabotagem? Só se for a do Poder Executivo que, em nome dos interesses privados de seus mandatários, prejudica a vida da população e faz a festa dos comerciantes e distribuidores de água mineral. É evidente que essa história da água barrenta com gosto ruim é uma tentativa de justificar a privatização da empresa. Um meio de convecer a população de que o serviço público não é bom, a empresa é ineficiente e que nas mãos da inciativa privada teremos uma água de qualidade superior.

    Mais uma vez o Rio e o Brasil indo na contramão dos interesses da população. E nem podemos contar com os canais de televisão e com os jornais para um debate sério. Ao contrário, já seria de conhecimento público que, na Alemanha e no Reino Unido estão reestatizando as empresas de saneamento e de eletricidade por que as privatizações, após mais de duas décadas, pioraram a qualidade dos serviços essenciais.

    Enfim, este verão, que poderia ser marcado pelos 50ºC a sombra ou pela polêmica dos megablocos, virou o verão da água suja. Tão suja quanta a cara de pau dos gestores desse combalido estado. Quem sabe tenhamos água limpa com as águas de março…

    Triste sina a do carioca, sitiado pela incompetência e pelo desgoverno em nível municipal, estadual e federal. Mais triste ainda é constatar nossa passividade com essas coisas. Em um descalabro desses, nossos dirigentes nem deveriam poder sair às ruas por causa da insatisfação popular. Mas ao invés disso, ficamos nós caçando água mineral comércio afora como se estivéssemos em uma gincana de colônia de férias.

    Fico me perguntando o que sobrará para nós depois que isso tudo passar. Sim, eu creio que isso tudo vai passar, apesar de tudo. O problema é que parece ainda estar muito distante para enxergar uma luz no fim do túnel.

    *Sociólogo, professor da Educação Básica e carioca da gema

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