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Pedro A. Ribeiro de Oliveira
A Igreja Católica do Brasil está rachando.
“No quadro de perda de importância da Igreja na sociedade, muitos clérigos aderem ao ideário neofascista e assumem uma postura reacionária tanto nas questões da sociedade quanto da religião. Embora essa adesão seja mais visível entre os padres e mais discreta entre os bispos, aí reside o risco de ruptura da comunidade católica: quando um lado não reconhece o outro como legitimamente católico. Não há mais como costurar o tecido religioso rasgado. Tudo que se consegue fazer hoje é colocar remendos, que cedo ou tarde esgarçarão mais ainda o tecido”, analisa Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, publicado originalmente em IHU, 11 nov. 2022. .
Eis o artigo.
Entre os muitos estragos causados pelo recente processo eleitoral está o agravamento do dissenso no interior da Igreja Católica. É como se os remendos que já há algum tempo vinham sendo colocados sobre um tecido esgarçado revelassem de uma hora para outra sua inutilidade. Não há mais como esconder: a Igreja Católica está dividida e essa divisão não pode mais ser disfarçada.
Quero aqui sugerir uma explicação sociológica para esse fato e apontar um caminho para quem quer se manter dentro da Igreja sem precisar fazer de conta que está num ambiente de irmãs e irmãos na fé.
Bem sabemos bem que a Igreja Católica se distingue entre as Igrejas cristãs por sua enorme capacidade de conviver com as diferenças religiosas. Desde que tenha sido batizada e não renegue publicamente a fé ou a igreja, a pessoa é católica – pouco importando o que crê ou sua maneira de relacionar-se com o sagrado. O fato novo, agora, é que o avanço neofascista na Igreja trouxe divergências de ordem moral e política incompatíveis entre si, tornando praticamente impossível uma verdadeira comunhão eclesial. Sinal disso é a crescente disseminação de rituais do tempo de Pio XII, como se o concílio Vaticano II não tivesse existido.
Mais do que uma afinidade afetiva entre a postura política neofascista e os ritos anteriores à reforma litúrgica, existe uma afinidade estrutural entre eles. O que os une estruturalmente é a rejeição à última inovação da modernidade: o ascenso social das mulheres minando o sistema familiar fundado no patriarcado. É o próprio sistema de poder masculino – chefe de família ou chefe de igreja – que se esvai, obrigando todos os demais componentes a redefinirem seu papel.
Como se isso fosse pouco, vem à tona toda a questão da sexualidade, agora vista sob o prisma das teorias de gênero e assumida pela bioética que não se deixa reger por normas religiosas. O ideário patriarcal, que sustentou tanto a organização familiar quanto a principal Igreja do Ocidente, encontra-se agora sob ataque não só do feminismo, mas também de outros movimentos libertários, decoloniais e contra o supremacismo.
Diante desse ataque, o elo entre o neofascismo e o enrijecimento da liturgia tridentina cria um movimento propriamente reacionário: ambos se colocam em defesa de um sistema de poder cujas bases estão irremediavelmente abaladas. Aí reside sua afinidade estrutural. Nem um nem outro apresenta algum projeto de futuro: ambos idealizam um passado que nunca existiu e infundem o medo ao futuro assombrado por um fantasma comunista. O período eleitoral e os movimentos golpistas posteriores ao resultado do 2º turno mostraram o quanto esse medo foi difundido em diferentes segmentos da população brasileira, entre os quais destaco os católicos que migraram do movimento carismático para o tradicionalismo.
No campo católico, esse movimento reacionário veio aprofundar o dissenso que já estava em curso numa Igreja em processo de encolhimento, como mostram as celebrações dominicais cada vez mais esvaziadas de fiéis. O censo demográfico certamente mostrará o decréscimo da população católica com menos de 40 anos de idade, seguindo a tendência apontada pelo censo de 2010.
A Igreja Católica ainda se mantém como espaço de sociabilidade da população acima de 50 anos, mas esta diminui com o tempo. Mas, em vez de criar novos espaços de sociabilidade – como são as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais Sociais –, o clero aposta em celebrações-espetáculo, em programas religiosos na TV, em turismo religioso e em programas radiofônicos de autoajuda. Mantida essa tendência, dentro de mais algum tempo a Igreja Católica brasileira, confinada aos santuários, templos e sacristias, terá perdido a incidência na vida da população em geral.
Nesse quadro de perda de importância da Igreja na sociedade, muitos clérigos aderem ao ideário neofascista e assumem uma postura reacionária tanto nas questões da sociedade quanto da religião. Embora essa adesão seja mais visível entre os padres e mais discreta entre os bispos, aí reside o risco de ruptura da comunidade católica: quando um lado não reconhece o outro como legitimamente católico. Não há mais como costurar o tecido religioso rasgado. Tudo que se consegue fazer hoje é colocar remendos, que cedo ou tarde esgarçarão mais ainda o tecido.
Posso ter pintado esse quadro com tintas fortes, mas ele é real. O apoio explícito de padres ao governo agora derrotado e o silêncio da maioria do episcopado diante das barbaridades por ele cometidas só confirmam a tendência de ruptura no interior da comunidade católica. Isso não significa que estamos às vésperas de um cisma – com a institucionalização de duas igrejas de confissão católico-romana –, mas caminhamos rapidamente para um quadro de desinteresse de um lado em participar da mesma Igreja que o outro. Se o movimento tradicionalista continuar crescendo, os católicos que não o aceitam se afastarão e a Igreja Católica poderá viver o pior dos cenários: sua redução a um conjunto de seitas tradicionalistas.
Diante desse quadro, é preciso elevar o teor profético da Igreja. Tivemos bispos como Helder Camara, Paulo Evaristo, Pedro Casaldáliga, Tomás Balduino e outros que ousaram quebrar a unanimidade de um episcopado silencioso diante de violações aos direitos humanos. Eles devem ser sempre lembrados, para que os bispos e padres que hoje seguem seu exemplo não se sintam como destoantes do conjunto, mas hoje a Igreja Católica já não se entende mais apenas como um espaço de bispos e padres. O movimento histórico de superação do patriarcado entrou também no campo católico onde, desde a segunda metade do século passado, religiosas, leigas e leigos ocupam progressivamente posição de liderança nas comunidades de base, tendo sua autoridade reconhecida pelos fiéis, independentemente de seu reconhecimento canônico. Existe aí um potencial profético que poderá em breve tornar-se a principal fonte de vitalidade pastoral na Igreja Católica brasileira.
Não é necessário que os/as profetas sejam muitos/as. Basta que sejam pessoas admiradas e respeitadas por sua fidelidade ao Evangelho, por sua prática pastoral e por sua adesão às orientações de Francisco. Serão essas as vozes proféticas que suscitarão novas forças ao Povo de Deus que está no Brasil. Essas vozes proféticas não impedirão a inevitável redução numérica da Igreja Católica no país, mas poderão dar realidade ao antigo sonho das Comunidades Eclesiais de Base, animadas pela Teologia da Libertação e pela leitura popular da Palavra de Deus, como ensina Frei Carlos Mesters. Assim será gerado um novo jeito de ser Igreja: uma igreja libertadora que favoreça a superação do patriarcado e lance as raízes de uma sociedade justa, fraterna e respeitosa da Casa Comum.
Se assim for, este momento doloroso de divisão eclesiástica pode tornar-se também o momento germinal de uma Igreja atualizada para assumir o projeto de Jesus na história do século XXI.
Bom dia! Na esteira do tema tratado no artigo, creio que a Igreja Católica não pode silenciar sobre a rápida ação de Lula para retirar o Brasil da Declaração do Consenso de Genebra, contra o aborto, sinalizando uma possível tendência de costurar pela liberação, como ocorreu na Argentina! Uma Igreja em defesa da vida deve atuar fortemente na mídia para evitar que isso ocorra e até agora somente vi uma nota tímida e lacônica.