ArtigoNotíciaPublicação
George Monbiot: Sobre nossa finitude, as ameaças e o dinheiro
As bolhas de conforto e negação estouraram. A vida não está protegida por cápsulas: a casa, o carro, o shopping. Espalham-se riscos: mudanças climáticas, fome, bactérias resistentes. Enfrentá-las exige desafiar as cegueiras do capital
Por George Monbiot – OUTRASPALAVRAS – Publicado 09/04/2020 – Tradução: Antonio Martins | Imagem: Alessandro Gottardo
Vivemos por muito tempo numa bolha de falso conforto e negação. Nos países ricos, os cidadãos começaram a acreditar que haviam transcendido o mundo material. A riqueza acumulada – com frequência, às custas de outros – blindou-os da realidade. Viver por trás de telas, passando entre cápsulas – as casas, os carros, os escritórios e os shoppings – persuadiu-os de que as contingências haviam recuado, de que eles próprios haviam alcançado o ponto almejado por todas as civilizações: o isolamento dos riscos naturais.
Agora, a membrana se rompeu, e nos encontramos nus e ultrajados. A biologia, que pensávamos ter banido, irrompe em nossas vidas. A tentação, quando a pandemia tiver passado, será encontrar uma nova bolha. Não podemos sucumbir a isso. De agora em diante, deveríamos expor nossa mente às dolorosas realidades que negamos por tempo demais.
O planeta tem múltiplas morbidades, muitas das quais farão o coronavírus parecer, em comparação, fácil de tratar. Uma, mais que as outras, tornou-se minha obsessão nos últimos anos: como nos alimentamos? As disputas por papel higiênico, nos supermercados, já são horríveis demais. Espero nunca ter de testemunhar uma luta por comida. Mas está se tornando difícil descobrir como poderemos evitá-las.
Um vasto conjunto de provas está se acumulando, para mostrar como o colapso climático vai, provavelmente, afetar o abastecimento de comida. A agricultura, em muitas partes do planeta, está sendo afetada por secas, inundações, incêndios e gafanhotos (cujo ressurgimento, nas últimas semanas, parece ser o resultado de ciclones tropicais anômalos). Quando chamamos estas ocorrências de “bíblicas”, nos referimos ao tipo de fenômenos que ocorreu num passado remoto, a pessoas cujas vidas quase não podemos imaginar. Agora, com frequência crescente, eles ocorrem para nós.
Num livro a ser lançado em breve, Our Final Warning [“O alerta final”], Mark Lynas explica o que ocorrerá provavelmente ao abastecimento de comida, com cada grau a mais de aquecimento da atmosfera. Ele aponta que o perigo extremo virá quando as temperaturas subirem 3ºC ou 4ºC acima dos níveis pré-industriais. Neste ponto, uma série de impactos inter-relacionados ameaçará projetar a produção de alimentos numa espiral ao abismo. As temperaturas ambientes serão mais altas do que o ser humano é capaz de suportar, o que tornará a agricultura de subsistência impossível, na África e no sul da Ásia. O gado morrerá, por estresse de calor. As temperaturas começarão a superar os limites letais para as plantas cultivadas em muitas partes do planeta. As grandes regiões produtoras de alimentos vão se converter em bacias de poeira. Perdas simultâneas de colheitas, em todo o mundo– algo que nunca ocorreu em tempos modernos – vão se tornar prováveis.
Combinadas com o crescimento da população humana, a perda de água para irrigação, a erosão dos solos e a morte dos insetos polinizadores, poderão projetar o mundo em fome estrutural. Mesmo hoje, quando o planeta produz alimentos para todos os seus habitantes, centenas de milhões estão mal nutridos, devido às desigualdades de riqueza e poder. Um déficit na produção de alimentos pode resultar na fome de bilhões. O sequestro de alimentos, que sempre ocorre nestas condições, terá dimensões globais, com os poderosos desviando comida dos pobres. Ainda que todos os países cumpram as promessas que fizeram nos Acordos de Paris – o que hoje parece improvável –, o aquecimento global ficará entre 3ºC e 4ºC.
Devido a nossa ilusão de segurança, não estamos fazendo quase nada para nos precaver desta catástrofe – muito menos, para evitá-la. Este tema essencial pouco parece penetrar em nossa consciência. Todos os setores ligados à produção de alimentos alardeiam que suas práticas são sustentáveis e não precisam ser mudadas. Quando desafio estas afirmações, sou recebido com ira e insultos, e com ameaças do tipo que não havia vivido desde que me opus à guerra do Iraque. Vacas sagradas e cordeiros de deus estão em toda parte, e o pensamento necessário para desenvolver os novos sistemas alimentares de que precisamos é escasso em toda parte.
Mas esta é apenas uma das crises iminentes. A resistência aos antibióticos é, potencialmente, tão mortal quanto qualquer doença nova. Uma das causas é o modo espantosamente irresponsável com que estes medicamentos preciosos são usados na criação de gado. Quando enormes contingentes de animais são amontoados, os antibióticos são administrados profilaticamente, para prever eclosões de doenças que de outro modo seriam inevitáveis. Em muitas regiões do mundo, são usados não apenas para prevenir doenças, mas também para promover o crescimento. Doses baixas são rotineiramente adicionadas às rações. Seria difícil conceber uma estratégia melhor para promover a resistência das bactérias.
Nos EUA, onde 27 milhões de pessoas não têm cobertura médica alguma, milhões estão agora se tratando com antibióticos veterinários – inclusive aqueles vendidos, sem receitas, para peixes de aquário. As corporações farmacêuticas deixaram de investir de modo adequado na pesquisa de novas drogas. Se os antibióticos deixarem de ser efetivos, as cirurgias vão se tornar quase impossíveis. Os partos serão novamente um risco à vida das mães. A quimioterapia não poderá ser praticada com segurança. As doenças infecciosas, de que confortavelmente nos esquecemos, serão ameaças fatais. Deveríamos debater estes temas tão frequentemente quanto falamos de futebol. Mas quase nunca o fazemos.
Nossas múltiplas ameaças de crise, das quais vimos apenas duas, têm uma raiz comum. O problema pode ser visto na resposta dos organizadores da Meia Maratona de Bath, realizada no Reino Unido em 15 de março. Às milhares de pessoas que pediram cancelá-la ou adiá-la, a resposta foi: “É muito tarde. O local está pronto; a infraestrutura, montada; os patrocinadores, mobilizados”. Em outras palavras, os custos ocultos do evento pesaram mais que seus impactos futuros – a transmissão potencial da doença e as possíveis mortes que poderiam resultar.
O longo tempo transcorrido até que o Comitê Olímpico Internacional adiasse os jogos do Japão reflete processos similares – mas ao menos, a decisão correta foi tomada. Os custos ocultos em setores como os de combustíveis fósseis, pecuária, bancos, planos de saúde e outros impedem as transformações rápidas de que necessitamos. O dinheiro torna-se mais importante que a vida.
Há duas saídas. Podemos, como fazem algumas pessoas, dobrar a aposta negacionista. Alguns dos que desprezaram outras ameaças, com o colapso climático, tentam minimizar os riscos da covid-19. Comprova-o o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, para quem o coronavírus não é mais que “uma gripezinha”. A mídia e os políticos de oposição que pedem a quarentena são, para ele, parte de uma conspiração.
Outra saída é uma virada em que começamos a nos enxergar, de novo, como seres governados pela biologia e pela física, dependentes de um planeta habitável. Nunca mais deveríamos ouvir os mentirosos e negacionistas. Nunca mais devemos permitir que uma falsidade reconfortante oculte uma verdade dolorosa. Não podemos mais correr o risco de ser dominados por aqueles que colocam o dinheiro acima das vidas. O coronavírus nos lembra de que pertencemos ao mundo material.