Toda reflexão sobre o Rio de Janeiro, sua dinâmica, sua beleza, sua gente e inclusive seus (não poucos e nem pequenos) dramas, passará pelas suas águas em algum momento. Da água benta da procissão de São Sebastião aos pulos sobre as sete ondas em Copacabana no Reveillón. São ás aguas da Baía de Guanabara, de Copacabana, do quebra-mar da Barra, do pisicinão de Ramos, da Lagoa…
Mas, tragicamente, são as águas das enchentes na Praça da Bandeira, em Madureira e em Jacarepaguá. São ás águas das chuvas que alagam a rua do Catete, que levam morro abaixo os barracos da gente pobre… Também são as águas da Cedae, da adutora do Guandú, que nem na cidade do Rio está localizada.
Para além da cidade, a água tem profunda simbologia. Está intimamente vinculada á vida, afinal somos majoritariamente… ÁGUA! Por isso ela é tão ligada ás cerimônias religiosas. Presente nas mitologias indígenas, avatar de divindades das religiões afro-brasileiras, é pelas águas que os Cristãos são inciados em sua fé religiosa, renascendo para uma vida nova.
Mas na Cidade Maravilhosa, hoje á agua provoca desconfiança, adoece a população e esvazia o bolso do cidadão. Neste verão, a água sangra a alma carioca. E sufoca os mais humildes
Quando nós, professores da rede estadual, fizemos greve em 2016, o Estado do Rio de Janeiro começa a viver a profunda crise fiscal e financeira que se perdura até hoje. Para poder colocar os salários do funcionalismo em dia e sair do buraco, o governo se submeteu a acordos financeiros com instituições bancárias. Deu a Cedae como garantia, prometeu privatizá-la. Brasília autorizou o acordo e o banco liberou a grana. E a joia do patrimônio público estadual estava empenhada.
Na época, apenas os mais atentos se deram conta de um detalhe: A companhia estadual de água e esgoto era um empresa saudável, que havia ficado praticamente de fora dos escândalos de Cabral e Pezão, e lucrava para o Estado R$ 70 milhões por ano. Nós, cidadãos fluminenses, temos que aturar o cretinismo dos governantes que fazem ilações sem apresentar provas.
Afinal, desde quando o sucateamento da Cedae é sabotagem? Só se for a do Poder Executivo que, em nome dos interesses privados de seus mandatários, prejudica a vida da população e faz a festa dos comerciantes e distribuidores de água mineral. É evidente que essa história da água barrenta com gosto ruim é uma tentativa de justificar a privatização da empresa. Um meio de convecer a população de que o serviço público não é bom, a empresa é ineficiente e que nas mãos da inciativa privada teremos uma água de qualidade superior.
Mais uma vez o Rio e o Brasil indo na contramão dos interesses da população. E nem podemos contar com os canais de televisão e com os jornais para um debate sério. Ao contrário, já seria de conhecimento público que, na Alemanha e no Reino Unido estão reestatizando as empresas de saneamento e de eletricidade por que as privatizações, após mais de duas décadas, pioraram a qualidade dos serviços essenciais.
Enfim, este verão, que poderia ser marcado pelos 50ºC a sombra ou pela polêmica dos megablocos, virou o verão da água suja. Tão suja quanta a cara de pau dos gestores desse combalido estado. Quem sabe tenhamos água limpa com as águas de março…
Triste sina a do carioca, sitiado pela incompetência e pelo desgoverno em nível municipal, estadual e federal. Mais triste ainda é constatar nossa passividade com essas coisas. Em um descalabro desses, nossos dirigentes nem deveriam poder sair às ruas por causa da insatisfação popular. Mas ao invés disso, ficamos nós caçando água mineral comércio afora como se estivéssemos em uma gincana de colônia de férias.
Fico me perguntando o que sobrará para nós depois que isso tudo passar. Sim, eu creio que isso tudo vai passar, apesar de tudo. O problema é que parece ainda estar muito distante para enxergar uma luz no fim do túnel.
*Sociólogo, professor da Educação Básica e carioca da gema