Em 22 anos, de 1997 a 2018, o Estado brasileiro repassou para o sistema financeiro (e a turma que vive de renda) o equivalente a R$ 5,1 trilhões, tirados do Orçamento Anual da União (diga-se das Políticas Públicas de Saúde, Educação, Previdência, Transporte etc). Não, você não se enganou na leitura. É isso mesmo: R$ 5 tri!
Segue artigo de Paulo Kliass, Publicado 13/02/2019 em OUTRAS PALAVRAS
Superávit primário: história de uma fraude
Nos anos 1980, surgiu a ideia de que o mais importante, na gestão das contas públicas, era garantir o pagamento de juros aos barões. O novo termo é fruto desta deformação
É bem verdade que o famigerado termo do economês caiu um pouco em desuso nos meios dos “especialistas”, as figurinhas carimbadas sempre chamadas a fornecer suas opiniões nas colunas de economia dos “grandes” meios de comunicação. Afinal, não tem mesmo mais sentido ficar clamando pelo sacrossanto “superávit” quando os resultados fiscais têm apresentado – de forma sistemática desde 2014 – saldos negativos na abordagem do balanço dito “primário” das contas públicas.
Mas não nos deixemos enganar. O fato de o resultado primário não ter sido superavitário depois de 2013 não significa que a essência da malandragem tenha sido abandonada. De modo algum! Muito pelo contrário! Lembremo-nos todos que essa metodologia “inovadora” no tratamento das contas públicas data ainda lá da década de 1980, no período em que os países do chamado Terceiro Mundo estavam atolados em dívidas externas e passaram a enfrentar dificuldades em honrar esses compromissos em moeda norte-americana. A maior parte dos credores era composta de bancos privados, que não queriam ficar sem receber sua parte no butim. Era o início do período que ficou conhecido como o da crise da dívida.
Tendo em vista a impossibilidade de pagamento das obrigações junto à banca estrangeira, entram em cena os organismos multilaterais do financismo internacional. O Banco Mundial (BM) e, especialmente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) se oferecem, generosa e voluntariamente, como guardiães da liquidez. Se propõem a honrar os compromissos dos países endividados para evitar perdas maiores e um risco de colapso sistêmico no âmbito financeiro, mas exigem como contrapartida que as tais nações “beneficiadas” passassem a assumir internamente a agenda de liberalização e privatização.
Privilégios para o financismo
E aqui entra a novidade espoliadora. Para evitar que houvesse outra crise mais à frente, os defensores do financismo apresentam, como um dos itens das “condicionalidades” da dita “ajuda”, o compromisso dos governos com uma nova sistemática de condução da política fiscal. Bingo! A partir de então não seria necessário buscar o superávit nas contas públicas de forma geral. O pequeno “detalhe” era a exigência de superávit nas contas primárias. E o que isso significa na prática? Mais do que mero adjetivo, o sentido era de compromisso em buscar reduzir despesas e ampliar receitas apenas nas contas não-financeiras (as tais contas “primárias”) dos orçamentos. Por meio de tal estratagema, sobrariam recursos assegurados para o cumprimento das despesas financeiras dos governos. Entenda-se aqui como o pagamento de juros e demais serviços da dívida pública.
Ao longo dessas últimas três décadas a prática se generalizou e hoje em dia a grande imprensa trata as duas metodologias como sinônimos. Uma grande falácia! Isso porque a aplicação da regra do “resultado primário” confere um tratamento privilegiado aos gastos públicos associados ao mundo financeiro. Essas rubricas são intocáveis. Já as demais despesas – a exemplo de saúde, previdência, educação, assistência, saneamento, ciência e tecnologia, investimento, pessoal, etc – podem ser comprimidas para obtenção de um superávit que vai justamente para o pagamento dos compromissos financeiros inquestionáveis.
Precisamos de algum número para comprovar o que escrevo por aqui? Pois então, basta que consultemos a página do BC e então poderemos identificar os valores que foram despendidos com pagamento de juros ao longo de 2018. Uma loucura! Entre janeiro e dezembro do ano passado, por exemplo, foram gastos exatamente R$ 379 bilhões para esse fim. Ou seja, o país seguia quebrado, com mais de 13 milhões de desempregados, quase 30 milhões de pessoas sub-aproveitadas em suas atividades na informalidade do mercado de trabalho, falências por todos os lados, cortes orçamentários por todos os cantos. Mas os recursos para o setor financeiro não poderiam faltar de maneira alguma.
Em 2018: país quebrado e R$ 380 bi com juros
O governo Temer passou seus longos e tenebrosos dois anos reclamando por uma Reforma da Previdência, decretou a Emenda Constitucional “do Fim do Mundo” congelando as despesas orçamentárias (não financeiras, que fique bem claro) por longos 20 anos e provocou um verdadeiro desmonte do Estado com o argumento de que não havia recursos. Uma grande mentira! O dinheiro público existia, como ainda existe. O problema é que ele é direcionado para outras prioridades. No caso, para o poderoso jogo de interesses e de pressão do sistema financeiro.
O governo do capitão e seu porta-voz na economia vão pelo mesmo caminho. Para Paulo Guedes, a “Reforma” da Previdência seria a mãe de todas as reformas. Sem ela, as contas públicas ficariam inviabilizadas agora e no futuro. Em troca da destruição da Previdência Social, ele acena com a economia de R$ 1 trilhão ao longo das duas décadas à frente. Mentira! Está mais do que provado que basta que as atividades econômicas voltem a crescer e os níveis de emprego sejam recuperados para que as necessidades de financiamento atualmente existentes no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) sejam eliminadas.
O problema é outro. Trata-se de saber quem terá a coragem política de propor a mudança desse modelo perverso de transferência de recursos para o sistema financeiro e para a rede que se alimenta do parasitismo em seu entorno. Afinal, desde que o Tesouro Nacional começou a contabilizar uma série estatística de apuração de “resultado primário” os dados são estarrecedores. Entre 1997 e 2018, por exemplo, foram repassados ao sistema financeiro o equivalente a R$ 5,1 trilhões dos 22 Orçamentos Anuais da União do período. Não, você não se enganou na leitura. É isso mesmo: R$ 5 tri!
Entre 1997 e 2018: R$ 5 trilhões com juros
E tem mais. Entre 1998 e 2013, foram superávits religiosamente gerados e cumpridos. Eram valores que giravam em torno de 1,9% do PIB na média anual. Com o recorde tendo ocorrido justamente durante o primeiro mandato de Lula. Naquele momento, a duplinha dinâmica Antonio Palocci (Ministério da Fazenda) e Henrique Meirelles (Banco Central) chegou ao absurdo de alcançar uma média de 2,5% do Produto Interno entre 2003 e 2005. Um sistema de extração de recursos de toda a sociedade, com a intenção de promover um redirecionamento dos mesmos para uma reduzida casta de privilegiados.
A partir de 2014, a economia começou a patinar e as contas públicas passaram a apresentar seus primeiros problemas. Mas apesar dos déficits primários gerados desde então, a cada exercício a conta de juros no orçamento federal era religiosamente cumprida. No total foram pagos escandalosos R$ 1,8 trilhões ao longo dos 5 anos de resultado fiscal deficitário em 5 anos. Pois é! Crise para quem, cara pálida?
A mudança nessa verdadeira eternização da perversidade e da injustiça social exige mais do quem uma simples retomada do crescimento. É necessário que a sociedade brasileira tome para si a responsabilidade de romper com esse pacto de privilégios do financismo. Um modelo que aponte para o desenvolvimento e a redução das desigualdades não pode conviver com tamanha fonte de disparidade. A agenda das forças progressistas deve incorporar a redefinição dessa metodologia nas contas públicas, que nos é apresentada como “natural”. Além disso, necessitamos uma revisão das amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal e a libertação do País das condições draconianas de gestão da dívida pública sob o império de juros elevados. Enfim, tudo isso passa pelo fim da ditadura do superávit primário.
Paulo Kliass – Possui graduação em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – SP (1985), mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo (1988) e doutorado em economia pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 – Nanterre (1994) e pós doutorado em economia na Université de Paris 13. Desde 1997 é integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Informações coletadas do Lattes em 03/12/2018.