Embora eu esteja acompanhando, até com participação em grupo de específico de Whats App, pouco tenho me pronunciado sobre essa bomba que explodiu no nosso colo, e sem opção de escolha estamos envolvides.
Mas ontem duas provocações me fizeram discorrer algumas palavras para ajudar na reflexão. Uma amiga da faculdade, estranhando o silêncio, me procurou para saber minha opinião. E uma mana das antigas reagiu a um storie com a seguinte frase: “Amiga, esse BBB fudeu com nossa militância. Tô passada!”. Essa última foi um soco direto no meu estômago…
Hoje acordamos com a notícia que @lucas havia saído do programa. Após mais uma vez ser indagado, de forma violenta e desonesta pelas “proprietárias” das certezas do que consideram certo ideologica e politicamente. Lucas, em um ato corajoso, apresentou para o mundo sua orientação bissexual. Como pode uma pessoa considerar esse ato um jogo de cena? Vivemos em um país moralmente preconceituoso em que a população LGBTQIA+ sofre os mais altos índices de violação dos direitos e diversas violências. O ato de Lucas deve ser considerado uma rebeldia libertadora! Um amigo hoje dizia: “Lucas não pediu para sair, ele foi expulso. Pois todo o seu processo de saída foi antecedido por muita violência psicológica”.
Está sendo muito pesado para nós pertencentes às comunidades negras, onde protagonizamos o combate ao racismo estrutural diariamente, ver nossos manos e manas pretos promoverem um show de horrores! Sim, estamos decepcionades. Sonhamos com um lindo Quilombo num reality show, onde a lógica capitalista nos impulsiona mais uma vez para uma disputa, muitas vezes desonrosa e antiética. Está dito, e essas pessoas terão enormes desafios aqui fora, tendo que se retratar com fãs, seguidores, amiges e etc.. Mas quero relembrar uma das primeiras publicações da @TiaMá, que nos alertava para não criarmos muitas expectativas quanto ao número de pretos e pretas no BBB. Somos diferentes, nem todo mundo tem a propriedade das discussões raciais e muito menos as práticas antiracistas.
Mas aqui quero me ater a algo mais sério. Provocar alguns desafios postos a todes nós, a partir de um programa que deveria ser de entretenimento mas que, no momento, só nos causa dor… uma dor coletiva e alimentada propositalmente.
A Rede Globo estrategicamente colocou um número considerável de pretos e pretas no jogo, com a intenção de nos fragilizar e dividir. Não digo isso para reduzir todo o processo violento cometido contra o Lucas, mas precisamos nos questionar sobre quem sai perdendo com tudo isso. Todos esses dias de audiência serviram para reforçar o auto-ódio, a divisão entre nós, a criminalização dos movimentos raciais, e os estereótipos do tipo: “Tá vendo? O preto violenta o próprio preto. Eles são os primeiros racistas.” Destaco ainda a lógica perversa que sobressairá sobre nós, mulheres pretas militantes. Nos enganamos quando achamos que somente Lumena e Karol perderão com o que elas cometeram na casa!
Infelizmente o mundo aqui fora segue, e a perversidade do racismo continua nos matando. Meninos como o Lucas estão por aí, nas periferias e quebradas, precisando de auxílio e acolhimento. Não nos esqueçamos, enquanto essa bomba rola: três meninos pretos de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, continuam desaparecidos.
Com uma quantia considerável, Bolsonaro ganhou à presidência da Câmara e do Senado. O pacote de maldades seguirá sem interferências;
A Juventude negra é exterminada em proporção muito superior à dos jovens brancos. A fome e o desemprego nos assolam ainda mais nesse período de pandemia. O Brasil lidera o triste ranking de ser o país que mais mata transexuais e travestis no mundo!
Diante desse cenário, gostaria de apontar alguns desafios:
O acolhimento ao Lucas já está sendo feito pela comunidade artista e por grande parte da sociedade, que se identificou com a dor dele. A solidariedade sempre foi nosso mote. Mas insisto que a situação do Lucas deve ser um alerta para olharmos com carinho para outras juventudes adoecidas emocionalmente;
Outras pautas raciais seríssimas estão em jogo, não podemos permitir nos perdermos por conta da promoção intencional das nossas fragilidades;
Nós militantes pretos e pretas devemos nos atentar para a relação entre discurso e prática. Muitos de nós não falamos e nem defendemos mais quem verdadeiramente é nosso público. A arrogância há tempos nos assombra e nós temos uma dificuldade enorme de autoavaliação;
Sei que vou apanhar nessa: até para exigirmos de KarolcomKa, Nego Di, Lumena e Projota, devemos ser fraternos. O discurso punitivo a esses não mudará o mal que esse programa nos causou. O sistema já cumpre esse papel punitivo de forma bem orquestrada.
Enquanto refletia sobre os acontecimentos do BBB, as dores, angústias e brigas causadas entre nós, maratonei a 2ª temporada da série Pose. Uma narrativa das décadas de 80 e 90, que permeia a vida de gays e da população trans preta e periférica de Nova Iorque, vivendo à margem e numa luta contra o vírus da AIDS. Por mais disputas que houvesse entre as “Casas” nos bailes, a série nos provoca: quando um irmão ou irmã sofre, toda a comunidade vai à defesa, simplesmente por saber que o racismo e a LGTBfobia atingem a todes.
Segue uma boa dica de como é desafioso para nós não permitirmos que esse jogo enfraqueça nossa militância e história. Li na internet que estão ameaçando o filho da CarolComka, um menino de 15 anos. O que ele tem a ver com os erros da mãe? Defendemos o Lucas, mas fazemos violência com outro jovem?
Já temos dores demais, a cada corpo preto tombado e massacrado cotidianamente. Não podemos nos permitir a mais esse massacre orquestrado. Eles lucram e nós perdemos.
Por fim, se eu pudesse dizer algo aos companheiros e companheiras que lá estão, traria um pouco da minha experiência profissional como educadora social. É muito fácil condenar, apontar o dedo, questionar um jovem negro periférico. Difícil e desafioso é estender a mão, num gesto concreto de fraternidade e acolhimento. É mais fácil desistir do que ter o trabalho de resgatar. Acredito que Lumena entendeu bem o recado nessa noite de domingo…
Não permitamos que o BBB seja para nós mais um instrumento de massacre!