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Eleições e novo governo: o que revogar
Por Paulo Kliass - Publicado em Outras Palavras – 16/08/2018
É preciso propor, desde já, a anulação de quatro grandes retrocessos: o congelamento dos gastos sociais, a contrarreforma trabalhista, a obsessão pelo superávit primário e a política de juros.
O aumento da velocidade do calendário político-eleitoral e a elevada instabilidade a respeito das regras e condições do pleito de outubro contribuem para que as questões relativas às disputas dentro e fora dos partidos acabem por consumir o conjunto das prioridades dos grandes meios de comunicação em nosso país. Esse clima também se explica pelo ambiente de final de feira, onde um não-governo ilegítimo vai se rastejando para seu fim catastrófico e ainda disputa seus baixíssimos índices de popularidade com as margens de erro das pesquisas de intenção de voto.
A profundidade do caos social e econômico para o qual fomos empurrados até que justifica o fato de que os grandes temas do debate girem em torno dos mecanismos de emergência para promover algumas mudanças necessárias. Isso significa abandonar de forma urgente e radical os pressupostos e os instrumentos da política econômica de Meirelles & Goldfajn. A maior parte dos candidatos já percebeu a necessidade de se distanciar do desastre provocado pela herança do austericídio, essa enorme perversidade cometida pelo governo Temer contra a maioria do povo brasileiro. Até mesmo aquele que era o ministro da Fazenda até anteontem pretende emplacar uma propaganda enganosa, reivindicando apenas seus 8 anos de mandato de presidente do Banco Central sob Lula, quando as condições de vida do povo trabalhador realmente melhoraram de forma substantiva. Esqueçam o desastre mais recente que eu provoquei!
Um aspecto positivo do debate amplo refere-se ao consenso que começa a ser construído em torno da necessidade de um Referendo Revogatório para retirar de cena todo o entulho de políticas públicas criado por Temer em seus três anos à frente do Palácio do Planalto. Refiro-me à revogação da famosa “PEC do Fim do Mundo”, que se converteu na Emenda Constitucional nº 95, aprovada no apagar das luzes de dezembro de 2016. A medida determinou o congelamento das despesas orçamentárias não-financeiras por longos 20 anos. Seletivo já na sua origem, o texto isenta os gastos com juros, ao mesmo tempo em que asfixia as funções essenciais do Orçamento da União, a exemplo de saúde, educação, previdência social, segurança pública, pessoal, investimento, entre outras.
Mas há ainda outros atos que merecem ser desfeitos a partir da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento, com inclusão e distribuição de renda. É o caso da chamada Reforma na CLT, que promoveu uma redução drástica dos diretos dos trabalhadores e abriu a porteira para a legitimação de práticas trabalhistas que já haviam sido superadas ainda no século XIX. Os processos de privatização de setores estratégicos oferecidos generosamente ao capital privado pelas altas cúpulas da administração pública também devem ser revistos. É o caso das novas áreas de exploração do Pré Sal, bem como as empresas já constituídas do grupo Petrobras que foram vendidas. As concessões à mancheia de estradas, portos e ferrovias deverão igualmente ser objeto de revisão, sem mencionar a venda de empresas estatais na área de energia elétrica, como as subsidiárias da Eletrobras.
É hora de desmontar tabus
Outro assunto tabu que começa a ser desmontado é o tal do esforço para cumprir com a meta de “superávit primário”. Trata-se de mais uma das inúmeras excrescências do consenso ortodoxo, cuja origem remonta a determinações urdidas no interior do próprio sistema financeiro internacional. A partir da renegociação das dívidas externas de países do Terceiro Mundo ao longo das décadas de 1980 e 90, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) estabeleceram uma série de condicionalidades para as políticas dos governos que solicitavam empréstimos novos e rolagem das dívidas antigas. Assim, para além de abertura comercial, privatização de empresas estatais e liberalização geral de suas economias, surgia mui malandramente a exigência de algo a mais – o rigor no cumprimento dessa conceito inovador, o superávit primário.
Essa foi a forma encontrada pela tecnocracia do financismo para exigir dos governos uma austeridade absoluta na condução da política fiscal, mas também oferecendo aos mesmos a liberdade total para o tratamento das despesas de natureza financeira. Afinal, os gênios de Washington sabiam que as políticas de contenção poderiam provocar recessão e reduzir a capacidade de arrecadação dos tesouros nacionais. Na lógica de antecipação desse quadro de desequilíbrio fiscal previsível, o superávit primário nada mais faz senão conferir um tratamento “VIP” aos gastos com juros e rolagem das dívidas públicas. Ou seja, para esse tipo de despesa – considerada nobre por seus pares – não há nenhum tipo de contenção e o céu é o único limite.
Além desses temas considerados como intocáveis, os grandes meios de comunicação colaboraram de forma decisiva na criação de um cinturão de proteção em torno da defesa do injusto modelo de política monetária praticada em nossas terras. Refiro-me à sistemática de determinação da taxa de juros oficial, que foi implantada a partir do Plano Real em 1994 e suas adaptações posteriores. O sucesso daquele plano de ajuste econômico, em comparação com os fracassos de uma série de tentativas anteriores, contribuiu para criar um clima de receio em se mexer no modelo que havia conseguido, afinal, reduzir as elevadas taxas de inflação de forma sustentada no tempo.
No entanto, o ponto a reter é que o uso e o abuso da taxa de juros oficial elevada por um período tão longo de tempo terminou por provocar sérias distorções em nosso sistema econômico e social. Entre outros aspectos, esse processo reforçou nossa dependência quase visceral à dimensão financeira das coisas e abriu espaço para que fosse consolidada a dominância do financismo no conjunto das atividades. Nossa memória coletiva tende a ser curta, mas não nos esqueçamos de que a SELIC chegou a atingir o tresloucado patamar de 38% ao ano em 1998 e até mesmo o criminoso nível de 45% em 1999. Uma loucura que só pode ser explicada pela forma obtusa de se encarar as ferramentas de política econômica. Não havia nenhum risco de retomada do processo inflacionário no horizonte, mas tão somente o desejo de reter os fluxos de capital internacional especulativo em conjuntura de valorização cambial artificial e exagerada.
FED mira o emprego também
Os defensores dessa verdadeira espoliação a que a maioria da população brasileira está sendo submetida desde então enchem a boca para tecer loas e boas ao modelo da política monetária norte-americana, com elogios à institucionalidade em torno do FED. Ocorre que nos Estados Unidos o mandato que a legislação e o Congresso oferecem aos responsáveis pela definição da taxa oficial de juros não se restringe à taxa de inflação. Quem se der ao trabalho de pesquisar tais informações verificará que as atribuições do órgão que seria equivalente ao nosso Comitê de Política Monetária (COPOM) recomendam que o mesmo se guie em suas decisões pelas seguintes diretrizes: i) maximização do emprego; ii) estabilização de preços; e, iii) taxas moderadas de juros de longo prazo.
Ora, se tais fossem os elementos que tivessem norteado a nossa política monetária ao longo dos últimos 25 anos, muito provavelmente não teríamos permanecido boa parte desse tempo todo como campeões mundiais da taxa oficial de juros. Além disso, o foco dos integrantes do colegiado do nosso Banco Central (BC) não teria se reduzido a mirar apenas nas tais “expectativas de inflação”, tal como definidas pela consulta realizada semanalmente pelo próprio BC, em que são ouvidos única e exclusivamente os dirigentes dos principais interessados na manutenção desse modelo – as próprias instituições financeiras.
Tivesse o modelo brasileiro incorporado as definições existentes na sistemática da política monetária da pátria mãe do capital, o COPOM seria obrigar a matizar suas decisões relativas à SELIC. O problema é que, para os estrategistas do mundo da finança tupiniquim, questões como o desemprego ou os efeitos perversos de juros elevados são detalhes de menor importância, que só fazem prejudicar o equilíbrio do modelo e a tal da confiança do mercado.
No caso brasileiro, a base legal e institucional revela-se ainda mais fluída. Trata-se de um ato do Presidente da República que define os fundamentos da política monetária. O art. 1º do Decreto nº 3.088/1999 sintetiza dessa forma as bases do modelo:
(…) “Fica estabelecida, como diretriz para fixação do regime de política monetária, a sistemática de “metas para a inflação” (…)
Para que seja alterada essa regra, portanto, basta um novo decreto presidencial. Assim, o novo governo terá oportunidade, como aconteceu ao longo dos quase 16 anos em que o PT esteve à frente do aparelho de Estado, de oferecer à sociedade quais serão suas prioridades em termos de atendimento de elementos essenciais de política econômica. É necessário fazer uma opção entre alternativas que denotam prioridades distintas. Pode-se continuar com esse modelo e aceitar que as bases da política monetária sejam apenas as sacrossantas metas de inflação. Ou então, pode-se incorporar também o elemento “bolivariano” dos ianques no modelo e sugerir que haja também um olhar para o que se passa com o nível de emprego.
A história do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do COPOM teria sido outra caso esse também fosse nosso modelo. E, com certeza, nunca mais será a mesma a partir do momento que os adoradores das opções econômicas da América do Norte aceitarem copiar o desenho que rege as decisões do FED.