Por Rafael Silva Martínez, analista político espanhol, em artigo publicado por Rebelión, 25-02-2020. A tradução é do Cepat para o IHU de 03.03.2020
“Pode parecer impossível imaginar que uma sociedade tecnologicamente avançada escolha, em essência, destruir-se, mas isso é o que estamos em vias de fazer” (Elizabeth Kolbert)
“O mundo moderno baseado no capitalismo, na tecnociência, no petróleo e em outros combustíveis fósseis, no individualismo, na competição, na ficção democrática e em uma ideologia de ‘progresso’ e do ‘desenvolvimento’, longe de procriar um mundo em equilíbrio, está levando a espécie humana, os seres vivos e todo o ecossistema global, a um estado caótico” (Víctor Toledo).
Nossas sociedades atuais estão há décadas, inclusive séculos, em direção a um perigoso e exclusivo antropocentrismo, onde a vida gira em torno do homem. A principal causa disso tem sido a civilização industrial capitalista. E note que não dizemos que gira em torno do ser humano, uma vez que as implicações patriarcais também influenciam muito essa maneira de entender o mundo e a vida e, portanto, as mulheres são marginalizadas nessa visão.
O homem (e mais especificamente, um certo tipo de homem, ocidental, branco e heterossexual) é o epicentro da vida, e o resto de manifestações da mesma, assim como o resto dos atores que fazem parte dela, ficam relegados a um segundo plano. E assim, modos de produção e consumo, mas também modos e formas de vida, e imaginários econômicos, sociais e culturais, vêm definindo os moldes do funcionamento de nossas sociedades.
Os dogmas do capitalismo e do neoliberalismo, com seus perigosos valores, não só imbuíram as relações humanas e sociais no fundamentalismo de mercado, que provoca os processos de exploração do ser humano e da natureza, como também conduziram a um absoluto desprezo por todas as outras formas de vida não humanas, ou seja, animais, plantas e o resto de organismos vivos que a Mãe Terra abriga.
Tudo isso nos conduziu à ampliação do conceito originário sobre o conflito capital-trabalho, que nos deixou Karl Marx, que agora também se manifesta na ordem vida-capital, ou se preferirmos, no conflito capital-planeta. Esse conflito é gerado pela degradação do meio ambiente e dos recursos naturais, cada vez mais ligados à ação do homem.
O enfoque antropocêntrico (sobre o qual podem ser rastreadas inclusive motivações e origens religiosas) nos conduz inexoravelmente a um abismo civilizatório, suscitado em suas manifestações mais evidentes como um esgotamento de matérias-primas e de fontes de energias fósseis, bem como os terríveis efeitos de um caos climático que ameaça destruir todos os vestígios de vida em menos de algumas décadas, se não formos capazes de nos adaptar a esse colapso.
E essa adaptação requer, portanto, uma mudança de paradigma civilizatório. Do antropocentrismo característico da civilização industrial capitalista, de caráter monocultural, patriarcal e depredador, temos que conseguir migrar para um paradigma ecocentrista, ou, se preferir, biocentrista, que reside fundamentalmente, como seu nome indica, em colocar a vida no centro. Uma vida (humana e não humana) que deverá ser novamente valorizada e respeitada, para que valha a pena o fato de ser vivida. Onde descansam os fundamentos do biocentrismo? Basicamente, em reconceitualizar os significados de diversos termos que foram apropriados pelo paradigma atual, tais como “progresso”, “desenvolvimento”, “bem-estar” e “riqueza”.
Sob a visão antropocêntrica, esses conceitos estão absolutamente ligados aos postulados capitalistas, de tal modo que são entendidos unicamente em função do crescimento econômico, medidos por seus próprios indicadores, e que se manifesta em um contínuo crescimento no nível de produção de bens e serviços, ligado ao uso crescente das fontes de materiais e energia que são necessárias para esses processos.
O crescimento sem fim da produção, bem como o consumo irracional e compulsivo, são os deuses desse tipo de civilização, onde a própria vida é relegada a segundo plano, sacrificada em prol do crescimento perpétuo. As necessidades humanas foram resignadas no altar desses valores, e a “riqueza” e o “bem-estar” são medidos unicamente de maneira material, na dimensão do “ter” ao invés das dimensões de “ser”, “estar” e “fazer”.
A visão do “progresso”, também intimamente ligada à concepção utilitarista da ciência, mede o avanço de forma linear, de modo que se entende que nossas sociedades progridem se são capazes de produzir cada vez mais elementos para o consumo humano, sem se preocupar com outros indicadores que podem nos dar pistas sobre nosso grau de felicidade, coesão social, igualdade e redistribuição da riqueza gerada.
A Natureza, sob o paradigma antropocêntrico, é valorizada apenas no sentido de nos proporcionar fontes de energia e materiais, alimentos e sustento para satisfazer às nossas necessidades básicas. Para conseguir tudo isso, a natureza é continuamente espoliada e saqueada, submetida a brutais processos de extrativismo, e as outras formas de vida não humanas são subvalorizadas e seus direitos não são reconhecidos.
Devemos resinificar, portanto, os conceitos de desenvolvimento, riqueza e bem-estar e, para isso, temos que mudar o paradigma civilizatório. O desenvolvimento deve ser em escala humana, promovendo riqueza e o bem-estar interior e deixando de valorizá-la unicamente como o conjunto de nossos bens materiais. Isso também requer reposicionar as necessidades humanas, renunciando à visão capitalista e consumista.
O progresso deve renunciar a estar vinculado ao crescimento contínuo, ao contrário, deve ser entendido como a plena realização das necessidades sociais e a valorização de todas as formas de vida. Devemos nos situar sob um prisma que valorize o florescimento da vida, que reconheça em si um valor, independentemente da utilidade para o ser humano.
A diversidade das formas de vida deve ser entendida como um valor em si mesmo (valor intrínseco) e sua manutenção contribui para preservar tal valor. Nossa relação com a natureza deve ser exclusivamente para atender às nossas necessidades vitais. Mas, para alcançar esse novo paradigma, devemos dar importância a uma nova ética, uma ética ecológica ou uma ética da Terra.
O paradigma biocêntrico ou ecocêntrico não precisa renunciar ao mercado em si, mas é evidente que os mercados precisam de intervenção e de controle sociais, a partir das comunidades humanas, que devem gerenciá-los democraticamente.
Devemos conceder a todos os seres vivos um valor inerente, por si mesmos e, portanto, reconhecer os direitos dos animais e da própria natureza é uma consequência lógica dessa visão biocêntrica. Isso também implica passar de uma ética fundada no homem para outra ética ancorada na vida. Tradicionalmente, a ética concentra-se na conduta humana, conferindo ao homem uma série de atributos morais que o tornaram o único ser digno de reconhecimento de um valor intrínseco. Isso ocorre porque essa ética se encontra atravessada por um profundo antroprocentrismo, ligado a um dualismo fundacional, que diferencia o homem do ambiente natural que o rodeia.
Essa distinção evoluiu para uma localização do homem em um plano de clara superioridade em relação ao mundo natural, seja animado ou inanimado, autorizando o ser humano para sua exploração e aproveitamento. Esse enfoque já não gera nada e necessitamos ir evoluindo para uma ética centrada na vida (humana e não humana), mediante um repensar dos supostos sujeitos morais. Também precisamos abandonar o especismo que nos caracteriza como humanos e começar a considerar o princípio da igual consideração de interesses para todas as espécies que habitam o planeta.
Da mesma forma, os clássicos valores do capitalismo e do neoliberalismo também devem ser erradicados, para evoluir para valores de interdependência e ecodependência, que nos reconheçam como sujeitos em plena inter-relação com os outros. Temos que entender o verdadeiro desenvolvimento das potencialidades humanas no sentido de uma abertura para a interconexão e identificação que existe entre tudo que é vivo, o que nos permite superar valores como egoísmo e individualismo, para substituí-los pelo ideal de igualdade de todos os organismos, pois o potencial individual não pode ser alcançado isoladamente, mas sob uma conexão com os outros seres.
A vida deixará de ser entendida, então, como a capacidade de sobrevivência em plena competição com os outros, mas, ao contrário, como a capacidade de coexistir e cooperar.
Em resumo, precisamos passar da perspectiva antropocêntrica à perspectiva biocêntrica, da banalidade e infinitude das necessidades humanas à sua avaliação, satisfação e garantia, do crescimento material à qualidade de vida, da Natureza como objeto de exploração à Natureza entendida como patrimônio natural e lugar comum de todas as espécies, da conservação utilitarista desse patrimônio à sua preservação ecológica, da sua avaliação instrumental à sua valorização múltipla e intrínseca.
Necessitamos evoluir do papel humano de consumidores ao papel de cidadãos, de uma visão ensimesmada a uma visão de si mesmo ampliada e integrada ao restante dos seres, do cenário do mercado ao cenário social, do saber científico como conhecimento único e privilegiado a uma valorização de uma pluralidade de conhecimentos e de uma justiça social e ecológica opcionais a uma justiça social e ecológica asseguradas. Esta é, em essência, a visão biocêntrica.