O artigo a seguir do economista Ladislau Dowbor foca os nossos principais desafios, que são a desigualdade e a destruição ambiental, apresentando as conclusões dos principais relatórios internacionais. Particular ênfase é dada à mudança climática e à concentração da riqueza familiar acumulada, bem como à sinergia entre os problemas sociais e ambientais. Finalmente, o artigo aborda as alternativas que se apresentam a esses desafios.
Artigo
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Inovação Social e Sustentabilidade
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O Acordo de Paris e os pobres
Neste artigo, Ivo Poletto analisa o significado do Acordo de Paris, aprovado na COP 21 por 195 países. O autor aponta as limitações do documento que, no entanto, é considerado histórico. Uma delas é que ele não aponta que se deve reduzir o uso de combustíveis fósseis, as empresas petrolíferas não têm seus lucros ameaçados pelo texto aprovado. Por outro lado, o autor propõe como os pobres e seus movimentos sociais podem e devem fazer para garantir o enfrentamento das mudanças climáticas.
O ACORDO DE PARIS E OS POBRESIvo Poletto[1]1. Introdução
A aprovação do Acordo de Paris por representantes de 195 governos do mundo aponta o fim dos argumentos dos que se dizem cientistas céticos. O Acordo tem como base a consciência de que a mudança climática representa uma ameaça urgente e com efeitos potencialmente irreversíveis para as sociedades humanas e o planeta, e, portanto, exige a cooperação internacional efetiva e apropriada, com o objetivo de acelerar a redução das emissões mundiais de gases de efeito estufa. Isso significa, sem dúvida, o reconhecimento de que a mudança climática tem causantes antropogênicas.Por outro lado, para avaliar os resultados dessa Cúpula a partir do ponto de vista dos pobres e excluídos é necessário partir de perguntas-chave: Que participação tiveram os pobres na Cúpula? Mesmo os representantes dos países pouco desenvolvidos e dos pequenos países insulares, eram pobres?
Não é suficiente dizer que representantes de povos indígenas tiveram oportunidade de participar de eventos no interior do espaço oficial, e que as organizações populares e sindicais, com apoio de entidades da sociedade civil e de igrejas, participaram de atividades autogestionárias no que foi chamado Cúpula dos Povos. Não se pode esquecer que muitas pessoas e organizações sociais foram desmobilizadas pela violência que afetou Paris poucos dias antes da Cúpula e pelo anúncio das autoridades de que as manifestações públicas não poderiam ser realizadas. Na realidade, a Cúpula do Clima (COP) foi dos governos dos países, com todos os limites de democracia que os caracterizam. Não se pode dizer que tenha sido uma Cúpula dos Povos – algo talvez absolutamente necessário para que se enfrente com valentia e mobilização universal as causas do aquecimento global e da mudança climática.
2. A festa dos políticos
O que foi anunciado pelos meios de comunicação envolveu grande parte da humanidade na visão dos políticos que representavam seus países, e, em particular, do governo da França. É justo celebrar o acordo que foi possível, mas o que foi noticiado o apresentou como um acordo histórico, como se fosse uma ferramenta capaz de enfrentar as mudanças climáticas. Na realidade, para ser assumido por quase todos os países na forma de consenso, foram retiradas medidas absolutamente indispensáveis. Basta saber que, por ser condição de adesão dos países produtores de petróleo, o Acordo evitou assumir que se deve limitar o uso de combustíveis fósseis e que, por motivos evidentes, os países que deveriam assumir suas dívidas históricas ambientais não aceitaram sua inclusão no texto final.Por outro lado, não pode ser tão histórico um Acordo que não determina metas e prazos de implementação. É verdade que se aceitou manter o princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, mas isso deu num Acordo fundado sobre a boa vontade dos governos de cada país. Não há no texto uma palavra na direção de empoderar a sociedade humana, os cidadãos; o máximo referido é que as pessoas devem receber informações e educação, mas não como forças políticas do processo de enfrentamento das mudanças climáticas.
O Acordo está cheio de bons propósitos e seus autores parecem convencidos de que há condições favoráveis para sua implementação por parte dos governos. Como são mais do que conhecidos os comprometimentos dos políticos com os que controlam o livre mercado capitalista, é mais do que duvidoso e quase uma ilusão que atuarão de forma autônima e em favor das pessoas e da Mãe Terra.
3. A Festa dos grandes empresários
Os que estivemos em Paris, percebemos a numerosa presença de grandes empresas e de bancos de todo o planeta, e nos perguntávamos: o que buscam? Estarão interessados em políticas de enfrentamento das mudanças climáticas? Ou querem apenas impedir que os governos avancem nessa direção?Não eram muitos, talvez, os que tinham informação de, na realidade, estavam ali para garantir que o Acordo fosse oportunidade para novos negócios, particularmente no campo da especulação financeira. Faz parte da história das Cúpulas do Clima a insistência de que o livre mercado teria condições de enfrentar o aquecimento se fosse apoiado em seu desejo de financeirização dos bens comuns e na promoção de uma economia de baixo carbono.
Menos de dois meses depois do encerramento da COP 21 e da aprovação do Acordo de Paris, jornais brasileiros informaram que “o mundo financeiro se prepara para uma nova era econômica: a do clima. Bancos Centrais e instituições incluíram a mudança do clima nas equações que medem os riscos para a estabilidade financeira global. O histórico (sic) acordo de combate ao aquecimento global firmado por 195 países no final de 2015 em Paris abriu as portas para o que pode tornar-se um Bretton Woods verde, com permissão para que o carbono se torne moeda de troca num futuro próximo. Esta é uma das interpretações do artigo 117, que trata do “valor social e econômico das ações de mitigação”. [2]
Segundo a mesma fonte, a estimativa da Climate Bonds Iniciative, organização sem fins lucrativos, os papeis verdes têm o potencial de mobilizar 100 trilhões de dólares, O cálculo se baseia em declarações públicas de gestores que já mobilizaram US$ 45 trilhões e estariam dispostos a aplicar em projetos sustentáveis.
Não temos informação sobre os cálculos de ganhos das grandes empresas de petróleo, mas certamente celebraram a eficácia de seus lobbies, já que nada de ameaçador para elas consta no Acordo. O que se conhece é o seu esforço insistente de produzir falsas informações sobre quanto contribuem as fontes fósseis de energia para o aquecimento global. Uma pesquisa do sociólogo estadunidense Robert Brulle, publicada na última edição da revista Climatic Change, identificou, no que ele denomina “contra movimento sobre as alterações climáticas”, 91 organizações que têm presença sistemática no espaço público no sentido de promover o ceticismo sobre as alterações climáticas e impedir políticas públicas que as combatam. Para elas são destinados quase um bilhão de dólares anuais. [3]
Tanto as festas pela nova moeda de especulação mundial, como o poder dos que querem manter seus lucros com a cultura ou civilização dos fósseis, devem ser vistos como uma grande ameaça justamente porque se sabe que a concentração da riqueza já é quase absurda, com certeza insustentável: nas mãos e bolsas dos 62 indivíduos mais ricos do planeta em 2015 estava igual riqueza que 3,6 bilhões de pessoas podem repartir para viver e sobreviver; comprovando a velocidade da concentração, em 2014 eram 84. [4]
Não há uma só palavra sobre essa concentração no texto do Acordo de Paris, e menos ainda uma proposta de possível utilização de pelo menos parte dela em favor de medidas de enfrentamento das mudanças climáticas; e menos ainda para erradicar a pobreza.Essas festas das grandes empresas e bancos são indícios de que o Acordo de Paris pode ser interpretado de diferentes formas e para diferentes interesses. E isso significa, com certeza, mais ameaças do que promessas para os pobres e excluídos do planeta.
4. O Acordo de Paris: enfrentamento das crises ecológica e social?
Ao procurar o que se diz dos pobres no Acordo de Paris, nos damos conta de que é muito pouco e genérico. Há o reconhecimento de países pouco desenvolvidos e pequenos países de ilhas, que necessitam e devem contar com apoios dos desenvolvidos e dos emergentes para implementar suas políticas de mitigação e adaptação. Mas, como já destacamos, nada de efetivo está decidido; tudo está nas mãos da boa vontade dos governos e dos que que têm poder de mercado.É verdade que são afirmadas intenções positivas no documento: promover o desenvolvimento e a erradicação da pobreza; garantir a prioridade fundamental de salvaguardar a segurança alimentar e acabar com a fome; garantir empregos dignos e trabalhos de qualidade…
É verdade também que se afirma: a mudança climática é problema de toda a humanidade… e nas medidas para enfrenta-la as Partes (os países) devem respeitar, promover e ter em conta suas respectivas obrigações relativas aos direitos humanos, o direito à saúde, os direitos dos povos indígenas, das comunidades locais, os migrantes, as crianças… Além disso, ao implementar medidas para enfrentar a mudança climática, devem garantir a integridade de todos os ecossistemas, incluídos os oceanos, e a proteção da biodiversidade, reconhecidos por algumas culturas como a Mãe Terra… e o conceito de justiça climática…
São seguramente cuidados essenciais. Mas, como todas as medidas dependem dos governos dos países, das contribuições determinadas nacionalmente, que possibilidade existe que mudem as prioridades nacionais que são responsáveis por não garantir esses direitos das pessoas, comunidades, povos e da Mãe Terra?É importante destacar que se mantém, no Acordo de Paris, a separação entre a crise ecológica e a crise social. Ao contrário da posição do Papa Francisco, que em sua Laudato Sí – sobre o cuidado da casa comum afirma que há uma única crise, a socioambiental, porque provocada pelo mesmo sistema de livre mercado capitalista e porque cada uma condiciona o enfrentamento da outra. O Acordo de Paris parece aceitar que a pobreza seria algo natural, que deve ser enfrentada por medidas de desenvolvimento do mercado, ao contrário da crise ecológica, que é reconhecida como produto de ações humanas.
Na realidade, o conceito nada definido e com certeza assumido na perspectiva do livre mercado capitalista, é o de desenvolvimento. Ao manter a classificação de países desenvolvidos, emergentes, em via de desenvolvimento e pouco desenvolvidos, está explícita a afirmação de que há países mais avançados, mais civilizados, com maior capacidade de produção e consumo, e há outros que devem seguir o caminho aberto por eles. O Papa Francisco e muitos outros, com diferentes posições sociais e acadêmicas, assumem a crítica de quase todos os movimentos sociais de que esse desenvolvimento, identificado com o crescimento da produção e do consumo sem fim, e mais ainda, com a concentração da riqueza na forma monetária e especulativa, processos absolutamente comandados pelas imaginárias forças de mercado capitalista, é o causador do aquecimento global e das mudanças climáticas.
Analisando com visão crítica o Acordo de Paris, é necessário afirmar que sua aprovação e também sua implementação não garantem o enfrentamento nem da crise ecológica nem da social.
6. O aquecimento global como profecia da Terra
Uma vez apresentada essa análise crítica, é possível uma leitura positiva do Acordo de Paris? Creio que sim e o tentaremos a seguir.Antes de referir-me ao Acordo, é necessário destacar que cresce no mundo a consciência de que a humanidade não pode seguir no caminho em que está. Aumenta todo dia o número de afetados por diferentes eventos climáticos extremos em todos os continentes, mas com maior incidência nos países do Sul. Há pouco tempo, uma reportagem destacou que um senhor chorava o fim da neve nos Dolomiti, na fronteira da Itália com a Áustria. Contudo, quantos indígenas da América do Sul choram pela diminuição e o fim das neves na Cordilheira dos Andes? Todos os centros de pesquisa confirmam que cada novo ano é mais quente que o anterior, com aumento de vítimas seja por ondas de calor intenso ou de frios insuportáveis.
A decisão do Papa Francisco de mobilizar os crentes de sua igreja, mas não só eles, e sim convidar a toda a humanidade a tomar consciência e mobilizar-se para mudar o estilo de vida, e mais do que isso, o sistema de produção e consumo que causa, no mesmo movimento, as crises social e ecológica, é certamente o fato mais significativo dos últimos tempos na luta pelo enfrentamento do aquecimento global e as mudanças climáticas. Nessa perspectiva, a encíclica Laudado Sí é um documento que ainda está fazendo história, mas são as práticas e os convites constantes do Papa que dão força e autenticidade a ela.
Nesse contexto de iniciativas de igrejas, movimentos e organizações sociais, centros de pesquisa e organismos da ONU, é fundamental dar-se conta de que mais e mais pessoas e povos estão retomando a prática de escutar a Terra. Sim, ela é um ser vivo, na realidade uma fonte permanente de vida, e tem uma linguagem de comunicação. Nessa direção, é bom reconhecer o avanço que significa o fato de que a Constituição da República do Equador tenha incluído um capítulo específico sobre os Direitos da Natureza: A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz a vida, tem direito que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. [5]
É verdade que continuam existindo conflitos nas práticas políticas no Equador, mas os povos – que são diferentes e constituem o Estado plurinacional – e todos os cidadãos/ãs podem enfrentar os governos e empresas, lutando por uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver, o sumak kawsay. [6] E isso é mais, com certeza, do que o que se pode fazer na relação com o Acordo de Paris, mas, assim mesmo, será válido e necessário fazê-lo.
Concretamente, os pobres e excluídos, com as forças e organizações sociais que os apoiam em suas lutas contra os efeitos socioambientais provocados pela mudança climática, terão que aprofundar as lutas em todos os níveis tendo presente o positivo que está na declaração de intenções e a fragilidade e debilidade das medidas práticas que constituem o Acordo de Paris. Em outras palavras, as lutas terão como objetivo forçar os governos a serem mais ambiciosos e mais responsáveis em suas ações voluntárias. E será possível, para isso, utilizar o que está referido e reconhecidos no Acordo em relação às ameaças da mudança climática, e mais ainda, em relação ao fato de que a meta desejável é que o aquecimento da temperatura média não ultrapasse 1,5ºC. Então, cada país com sua responsabilidade, deve ser forçado por seus cidadãos e não se manter comprometido com o que, na produção e no consumo, é causante e agravante do aquecimento global que provoca as mudanças climáticas.
O que se pode e deve fazer é dar aos textos que reconhecem quão grave é a mudança climática para a humanidade um fórum público de profecia da Terra. É ela que, antes de todos e de tudo, está sofrendo os efeitos do aquecimento, que se manifestam, entre outros, nos desequilíbrios climáticos de secas mais prolongadas e chuvas que provocam enchentes, de frios e calores insuportáveis e mortíferos, de crises de água e energia. Ela, como expressa o apóstolo Paulo, está gritando em dores de parto, esperando ansiosamente que os filhos e filhas de Deus se manifestem, desejando libertar-se no mesmo processo de libertação dos humanos. [7] Ela é realmente Mãe da vida e luta para manter-se com a sua capacidade de parir mais e mais vida; mas, a partir da presença dos humanos em sua história, necessita de sua cooperação. Porém, para que as pessoas sejam os colaboradores da luta da Terra por seus direitos, que são realmente anteriores aos dos humanos, elas também devem sentir e gritar em dores de parto, mobilizando-se para alcançar sua libertação.
7. As migrações climáticas como profecia
A humanidade está passando por um tempo de contradições terríveis: produz alimentos para mais do que 12 bilhões de pessoas, mas convive com perto de um bilhão de pobres famélicos; tem conhecimentos e capacidade de produzir alimentos saudáveis, com a agroecologia, mas está submetida e interesses de laboratórios e indústrias transnacionais, e por isso grande parte de sua alimentação está cheia de venenos e produtos cancerígenos; com a riqueza produzida, todas as pessoas e famílias poderiam ter sua casa e uma vida tranquila, no campo ou nas cidades, mas o controle das terras no campo e nas cidades, através de uma apropriação comandada pelo princípio da livre iniciativa de marcado, condena a maior parte a não ter um mínimo espaço autônomo de vida e a pagar aluguéis insuportáveis; com as tecnologias disponíveis e com mudanças no estilo de vida, seria possível diminuir o consumo de energia e produzir toda a que é efetivamente necessária utilizando fontes não ou pouco contaminadoras, como o sol e os ventos, mas continua dominada pela indústria ligada a fontes fósseis; todos poderiam trabalhar menos tempo sem diminuição dos salários, mas a dominação econômica de empresas capitalistas os forçam a trabalhar com ritmos que substituem a muitos outros trabalhadores, e com isso, provocam aumento do desemprego e desvalorização do trabalho, impondo um ritmo de insegurança permanente e de competição entre os que têm oportunidade de trabalho e os excluídos.
Nesse mundo, por que há tantas migrações, no interior dos países e a nível internacional? A velha Europa é seguramente o campo de pesquisa que poderá oferecer respostas seguras. Há migrantes voluntários: os que buscam oportunidades para melhorar seu nível de vida ou novos ambientes culturais. Há outros que foram expulsos pela violência das guerras, e nesse particular, é interessante investigar o que causa as guerras, os interesses presentes nelas; mas, pouco muda para as pessoas ou famílias que migraram: para elas, o essencial é sobreviver aos horrores das armas que a indústria bélica tem necessidade de torrar.
Em último lugar, mas não menos importante, aumenta a quantidade de migrantes que abandonam seus territórios de origem porque já não há condições de viver neles. São os migrantes climáticos. Segundo a Organização Internacional para a Migração, OIM, já em 2009 os dados disponíveis indicavam a possibilidade de que se chegaria, em 40 anos, a algo como um bilhão de migrantes climáticos. [8] O que se sabe é que a população desalojada pelas mudanças climáticas e por catástrofes naturais preocupa as autoridades mundiais. Estima-se que, desde 2008, cerca de 22,5 milhões de pessoas abandonaram suas casas, por ano, por causa de eventos extremos do clima – o equivalente a 62 mil casos diários. E este cenário pode piorar. [9]
O grave é que, ao contrário dos migrantes por causa de guerras, os que migram por causa das mudanças climáticas não são reconhecidos como exilados, e por isso não têm direitos reconhecidos. O que é certo é que eles não têm possibilidade de retornar aos seus territórios, e algo novo deve ser feito pela humanidade para garantir a vida e os direitos humanos destas pessoas, famílias, povos que são forçados a abandonar seus lares e terras por causa de eventos climáticos de responsabilidade mundial. Na realidade, o que acontece é que os mais empobrecidos, que pouco ou quase nada têm a ver com as causas antropogênicas das mudanças climáticas, são os que pagam o preço mais alto.Por isso, como o da Terra, o grito dos migrantes climáticos tem um sentido profético: chama atenção sobre a urgência de transformações estruturais no sistema dominante em nível mundial para evitar que se agrave ainda mais o aquecimento e os eventos climáticos extremos. Como a Terra, também os migrantes climáticos necessitam que os filhos e filhas de Deus e da Terra se manifestem em seu favor, fazendo que este grito se torne tão forte que os responsáveis pelas decisões políticas dos países e do mundo não o possam silenciar.
8. Conclusão: o Acordo de Paris e a crise socioambiental
Para os lutam com os pobres e excluídos, a atitude em relação ao Acordo de Paris não pode ser nem de encantamento nem de negação. Não é o Acordo desejável e necessário, mas é um acordo, e quando lido com suas contradições, pode ser mais um dos apoios para as lutas pela superação da única crise socioambiental que marca a vida da humanidade no século XXI. Mas é certo que, dadas as debilidades em relação ao que se fará para evitar o pior, tanto nos países individualmente como a nível mundial, pouco do anunciado será realizado, e nada se avançará na direção do que é absolutamente necessário fazer sem a presença forte dos cidadãos e cidadãs, e particularmente dos que são pobres e estão submetidos a relações de exclusão, nas ruas e praças. O grito em favor de transformações profundas do sistema sociopolítico dominado pelos poderosos do livre mercado capitalista e pelo estilo de vida consumista deve tornar-se insuportável.Além disso, e para concluir com indicação de algo essencial, é estratégico que os pobres e excluídos, com todas as forças e organizações que os apoiam, avancem na criação de formas de produção de alimentos, de energia e de tudo que é realmente necessário para uma vida digna, feliz e possível para todas as pessoas e povos que mantenham relações harmônicas com a Terra e relações de cooperação entre os seres humanos; avançando, então, na construção de sociedades de Bem Viver, como propõem e praticam os povos indígenas, as comunidades tradicionais e as comunidades voluntariamente organizadas. Isso somente é possível quando se respeita, ama e promove a biodiversidade, na certeza de que nós, os humanos, fazemos parte de uma grande comunidade de vida na e com a Terra, no e com o Cosmos, como recorda com insistência a Carta da Terra.
Goiânia, 27 de fevereiro de 2016[1] Ivo Poletto é filósofo, teólogo e sociólogo, atualmente assessor nacional do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, autor, entre outros, do livro Brasil – oportunidades perdidas – meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).
[2] O GLOBO, 10/01/2016.
[3] OUTRAS PALAVRAS, 15/01/2016 – http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/o-financiamento-bilionario-dos-ceticos-do-clima/
[4] Ver el documento de OXFAM “Una economía para el 1%” en http://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Informe%20Oxfam%20210%20-%20A%20Economia%20para%20o%20um%20por%20cento%20-%20Janeiro%202016%20-%20Relato%CC%81rio%20Completo.pdf
[5] Ver o Capítulo Sétimo da Constituição da República do Equador, aprovada pela Assembleia Constituinte, ratificada pelo Plebiscito Popular e publicada no dia 20 de outubro de 2008.
[6] Idem, Preâmbulo.
[7] Bíblia Sagrada, Rom 8,18-25.
[8] http://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,mudanca-climatica-causara-1-bilhao-de-migracoes-diz-relatorio,478612
[9] http://umaincertaantropologia.org/2015/10/05/desastres-naturais-forcam-migracoes-de-60-mil-por-dia-o-globo/ -
Certificação participativa de produtos orgânicos garante autonomia para agricolutores/as
Tirar a certificação de produtos agroecológicos das mãos das grandes empresas terceirizadas e passar a tarefa para os/as próprios/as agricultores/as, num modelo compartilhado, horizontal, descentralizado e transparente. Essa é a Certificação Participativa em Rede (CPR), projeto desenvolvido pela Rede Ecovida de Agroecologia.
A certificação feita pelos/as próprios/as agricultores/as funciona através das Opacs (Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade), que são uma espécie de certificadoras formadas pelos próprios agricultores/as e por consumidores/as, comerciantes/as e técnicos/as.
A fiscalização das Opacs consiste em visitas técnicas às propriedades, com a finalidade de avaliar se na prática as normas estão sendo cumpridas e se os produtos orgânicos estão nas condições ideais. Essa fiscalização participativa permite que os/as agricultores/as troquem experiências, conhecimentos e dicas, o que é uma forma difundir conhecimentos sobre agroecologia.
O resultado é sentido no bolso do/a agricultor/a: a certificação por auditoria chega a R$ 3 mil anuais para cada produtor/a, enquanto a participativa fica na média de R$ 80. O ponto crucial é englobar os/as pequenos/as agricultores/as que não conseguem pagar pela auditoria no processo.
A Rede Ecovida de Agroecologia foi formada em 1998, pela necessidade de reunir forças e expandir o movimento agroecológico da agricultura familiar. São hoje 18 núcleos regionais, que reúnem aproximadamente 2 mil famílias em Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. A organização é formada pela sociedade civil (agricultores/as, consumidores/as, comerciantes/as, técnicos/as) e por ONGs, associações e cooperativas.
A experiência é parte dos primeiros projetos que integram o Banco de Práticas Alternativas desenvolvido pela Abong e pelo Iser – Assessoria, como parte do projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento.
Saiba mais sobre a experiência e conheça o Banco de Práticas Alternativas -
Sem Terra se preparam para a colheita do arroz agroecológico no RS
O desequilíbrio climático que paira sobre o Rio Grande do Sul nos últimos meses não desmotivou assentados da reforma agrária que planejam o início da colheita de arroz agroecológico, previsto para o dia 15 de fevereiro.
A produção estimada para a safra 2015/2016 é em torno de 480 mil sacas, superior à do ano passado, que ficou em 450 mil sacas. A área plantada é de aproximadamente 5 mil hectares em todo o estado, e hoje 556 famílias, de 13 municípios e 17 assentamentos, estão envolvidas no cultivo.
A 13º Abertura Oficial da Colheita do Arroz Agroecológico está marcada para o dia 18 de março, no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, na região Metropolitana de Porto Alegre, onde 150 famílias produzem o alimento. Os assentados do município, organizados em 26 grupos, produzem mais de 1.600 hectares e serão os primeiros a colher arroz este ano.
Em 2015 o evento aconteceu em Eldorado do Sul e contou com a participação da presidente Dilma Rousseff. Além de outras lideranças e autoridades, ela será convidada a participar da abertura novamente este ano.
Enchente e estiagem
Mas, junto com a expectativa de início da colheita, os assentados também contabilizam perdas na produção devido às fortes chuvas do ano passado e estiagem deste mês de janeiro.

Assentada há nove meses em São Gabriel, na região da Campanha, a agricultora Ana Paula Magni, 35 anos, conta que vai perder uma parcela da produção por causa das enchentes que danificaram e atrasaram o plantio.
“Comecei a plantar em dezembro do ano passado, quase dois meses depois do período ideal, e consegui concluir somente em janeiro deste ano. Sabemos que vai ser um ano difícil, mas não perco a esperança, pois essa também é a nossa sobrevivência”, afirma.
Inserida no Grupo Gestor do Arroz Agroecológico, junto a outras famílias do Assentamento Madre Terra, onde são cultivados cerca de 100 hectares do alimento, a assentada e outros Sem Terra do município enfrentam agora a estiagem.
“A nossa preocupação também é com a falta de água, pois não chove direito desde o início do ano e tivemos complicações na barragem. Agora a situação se inverteu”, lamenta.
Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram que nestes primeiros 28 dias do mês choveu pouco mais de 55 milímetros em São Gabriel. Segundo o engenheiro agrônomo Edson Cadore, por mais que haja água armazenada o suficiente para a irrigação, a chuva é essencial para o arroz, pois contribui com nutrientes, principalmente o nitrogênio, melhorando o seu desenvolvimento e suas condições vegetativas.
Mesmo não sabendo exatamente quantas sacas vai render, a expectativa de Ana Paula, que desde a época de acampada tinha vontade de trabalhar com a agricultura limpa, está em torno da colheita, programada para o final de março e início de abril. Nesta sua primeira experiência, a camponesa plantou cinco hectares de arroz.
“Estes últimos meses estão sendo atípicos para todo mundo, mas não podemos desistir. Viemos do acampamento que exige de nós resistência e luta e quando chegamos no assentamento elas continuam. Vamos manter a fé e seguir apostando no arroz no próximo ano”, adianta a agricultora.
Além de São Gabriel, assentados nos municípios de Eldorado do Sul, na região Metropolitana, e Manoel Viana, na Fronteira Oeste, também tiveram lavouras de arroz prejudicadas com as enchentes. Em alguns casos 90% da produção foi perdida.
Bons resultados
O agricultor Edinei da Rosa, 47 anos, conta que no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, a situação é menos delicada e muitas áreas darão bons resultados, apesar de os assentados também enfrentarem problemas com enchente e estiagem.
O grupo de oito famílias do qual Rosa participa plantou, entre outubro e novembro, 80 hectares de arroz. A previsão é colher, de fevereiro a março, cerca de 25 mil sacas do produto – 270 hectares. Na safra 2014/2015 os Sem Terra colheram 200 hectares.
“Algumas áreas do assentamento foram afetadas pelas enchentes do mês de outubro. Agora a barragem está baixa e teremos problemas se essa situação se estender por mais de 15 dias, porque o arroz está cacheando e se faltar água vai diminui a produtividade. Mas se tudo correr bem até a colheita, a tendência é que esta safra seja melhor que a do ano passado”, explica o assentado.
Auxílio aos produtores
Segundo o coordenador do Grupo Gestor do Arroz Agroecológico, Emerson Giacomelli, está sendo feito um levantamento dos prejuízos obtidos nas lavouras gaúchas. A estimativa é que, em todo o estado, as perdas cheguem a 12%.
Para Giacomelli, “a situação mostra que a preservação ambiental deve ser sempre priorizada, uma vez que o desiquilíbrio foge do controle e pode causar muitos problemas aos produtores e à população em geral”.
“Uma hora é excesso de chuva, outra hora é falta de chuva. Tivemos os dois problemas, mas isso reafirma que estamos no caminho certo ao produzirmos com respeito ao meio ambiente”, complementa.
O coordenador diz ainda que estão sendo discutidas formas de ajudar as famílias que tiveram sua produção comprometida com as enchentes. “Queremos criar condições para que nossos agricultores consigam viabilizar a sua lavoura e continuem produzindo arroz na próxima safra”, finaliza.
Investimentos
Para avançar na qualidade do arroz agroecológico, deve ser iniciada nos próximos meses a terraplanagem para implantação de uma agroindústria de arroz parabolizado no Assentamento Lanceiros Negros, em Eldorado do Sul. O valor do convênio, com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), é de R$ 20 milhões.
Por meio da prefeitura do município e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), também está prevista a construção de uma Unidade Básica de Sementes (UBS), no valor de R$ 4,5 milhões. Ela atenderá toda a produção de arroz do MST no estado.
Fonte: MST, por Catiana de Medeiros
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Pesquisadores defendem linhas de financiamento para energia solar – EBC
Pesquisadores brasileiros em energia solar defendem a criação, pelo governo, de linhas de crédito especial para a aquisição de equipamentos e a instalação de energia solar fotovoltaica (que transforma energia solar em energia elétrica) em residências. O tema foi discutido durante a 1ª Escola Internacional de Energia Solar, que ocorreu na última semana na Universidade de Brasília (UnB).
Para o professor da UnB Rafael Shayani, um dos organizadores do evento, esse modelo de microgeração distribuída, com a instalação de painéis nas casas, é bem promissor, pois não ocupa grandes áreas como as usinas solares, e o excedente de energia é enviado à rede pública, em um sistema de compensação. “Poucas pessoas sabem disso, é como se o relógio rodasse para trás. Com essa expectativa de que a energia elétrica vai subir 40%, a solar não vai ficar mais tão cara, se houver subsídio do governo”, disse.
Shayani explica que isso não vai ocorrer da mesma forma em todo o país. Segundo ele, em Minas Gerais, por exemplo, há mais procura porque é um estado com incidência solar favorável e onde o preço da concessionária de energia é mais alto, então o retorno do investimento será mais rápido.Segundo o professor da Universidade Federal de Santa Catarina Ricardo Rüther, investir em geração de energia não é papel do consumidor final, mas é ele quem acaba pagando a conta, então precisa de condições de financiamento. “É um assunto que não está bem equacionado no Brasil. O financiamento é o gargalo. Comparando com a indústria automobilística, se o consumidor é bom pagador, hoje ele sai da concessionária com carro financiado até com juro zero. Como consumidor de energia elétrica, todo mundo é bom pagador, então por que não posso entrar em uma loja e sair com um contrato, para inclusive gerar recursos para pagar um telhado solar?”
Rüther explica que o investimento em um sistema de energia solar fotovoltaica é maior que no de aquecimento solar, usado geralmente em chuveiros, e pode variar de R$ 12 mil a R$ 15 mil, de acordo com a média de consumo das famílias. O retorno financeiro desse sistema vai variar de cinco a dez anos, com o uso de um equipamento que vai durar 25 anos em média.
De acordo com o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Fernando Martins, o Brasil já tem regulamentação para o uso dessa energia, então as pessoas só dependem de mais incentivo e informação. “O benefício é a longo prazo, com o tempo as famílias vão economizar e ajudar o país a enfrentar uma crise hídrica, consumindo a energia da própria residência, enquanto os reservatórios possam ser enchidos”, disse.
Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) indicam que existem hoje no Brasil 317 empreendimentos em operação gerando energia solar fotovoltaica, com potência de 15,1 mil kilowatts (kW), 0,01% da energia utilizada no país. As usinas hidrelétricas produzem 62,55% da energia consumida.
Essa foi a primeira de três escolas internacionais, um projeto que envolve várias instituições para a disseminação do conhecimento das tecnologias de energias renováveis. “Tivemos um público de 300 pessoas, a maioria estudantes. A ideia da escola é fomentar a capacitação de recursos humanos. A escola está desmistificando o uso da energia solar. O Brasil tem uma visão conservadora, talvez pouco inovadora, que ninguém vai saber usar, mas existem dezenas de países que já a utilizam há 25 anos”, disse Rafael Shayani.
Para Rüther, apesar dos incentivos do governo e dos projetos estratégicos da Aneel, essa é uma área muito carente de mão de obra. “Precisamos dessa massa crítica. Essas novas gerações incluem os tomadores de decisões do futuro, que vão, então, fazer isso de forma mais acertada.”
Fernando Martins explica que os impactos ambientais da geração fotovoltaica são bem menores do que de qualquer fonte de energia, e a integração urbana em telhados é uma ótima saída e não necessita de infraestrutura de transmissão. “Mesmo uma grande usina fotovoltaica não traz mais danos que uma hidrelétrica, conseguimos a mesma energia com área muito menor e podemos também usá-la para outros fins, por exemplo, se a área tiver também um potencial eólico. Uma forma não prejudica a outra, existem tecnologias de aproveitamento.”
“O importante é deixar claro que o Brasil tem recursos renováveis suficientes para atender à demanda de energia elétrica do país. Precisamos criar alternativas e informar às pessoas o potencial que temos”, argumentou Martins.
Fonte: EBC
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Carta final do Seminário Nacional clama pela proteção à Mãe Terra
A luta contra a exploração irresponsável dos recursos naturais do planeta por parte dos grandes capitalistas e suas consequências sobre as mudanças climáticas é o principal destaque da carta-resultado do Seminário Nacional realizado pelo Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social (FMCJS). Confira a íntegra do documento:Seminário Nacional do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça SocialPRECISAMOS REESCREVER O FUTUROAGORA!
Viemos de todos os estados brasileiros, do Distrito Federal, das comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, da agricultura familiar, das cidades, dos movimentos sociais e populares do campo, das florestas, das águas e das cidades, todxs violentadxs por projetos extrativistas e de infraestrutura como hidrelétricas,Brasília, 28 de outubro de 2016termoelétricas, energia eólica e nuclear, transposição de rios, mineração, pecuária, extração de fontes fósseis (convencionais e não convencionais), expansão da monocultura e do agronegócio, agrotóxicos, projetos de créditos de carbono, desastres ambientais que geram migrações forçadas e projetos urbanos que expulsam comunidades. Em Brasília, no Seminário Nacional do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social, de 25 a 28 de outubro de 2016, refletimos sobre as mudanças climáticas, socializamos os gritos, nos fortalecemos para enfrentar os mega-projetos patrocinados pelo sistema capitalista, por meio de corporações e governos que atentam contra a vida da Mãe Terra, de suas Filhas e Filhos.
Motivadxs pela espiritualidade dos povos da floresta, das águas, do campo e das cidades, em uma só voz denunciamos as faces desse desenvolvimento perverso, que produz o Ecocídio, o Etnocídio e o Genocídio da Mãe Terra e alimenta o capitalismo financeirizado, globalizado e agressivo. Denunciamos a falácia da “Economia Verde”, que mercantiliza e privatiza rios, oceanos, florestas, o ar e a Mãe Terra, expulsando suas filhas e filhos em favor de projetos que produzem morte cultural, econômica, social e organizacional de povos e comunidades tradicionais, camponeses e comunidades urbanas.
Somando-se à voz dos povos originários, a ciência revelou que chegamos a uma nova época geológica, chamada de ”Antropoceno”. Nele, a humanidade, com uma responsabilidade bem maior por parte dos mais ricos e que mais consomem, tornou-se uma força indutora de impactos profundos e irreversíveis em escala global. Impactos que incluem a 6ª grande extinção de espécies da história terrestre, um domínio destrutivo sobre a maior parte das terras e da água doce, a acidificação dos mares, a destruição da camada de ozônio. Incluem, sobretudo, uma radical mudança do clima da Terra provocada pelo aumento exponencial da concentração dos gases de efeito estufa pela queima de combustíveis fósseis, desmatamento, etc. São frutos envenenados de uma economia da morte.
As mudanças climáticas já aumentaram em 1,2oC a temperatura do planeta desde o início da era industrial, provocando efeitos extremos, tais como furacões, secas, tempestades, ondas de calor, elevação crescente do nível do mar. Ameaçam a vida de milhões de seres humanos e de outras espécies. É o maior desafio jamais posto diante da humanidade. Precisamos agir para deter essas mudanças. O causador destas aflições é o modo capitalista de desenvolvimento, que prioriza o lucro e a acumulação, e não o atendimento das reais necessidades materiais e imateriais da humanidade, que confunde desenvolvimento com mero crescimento físico. Estamos perto de esgotar os bens naturais e é urgente determos a voracidade do crescimento capitalista. Constatamos que, sem superar o sistema do capital, o Planeta mergulhará no caos e a vida nas formas conhecidas desaparecerá. Para viver, precisamos de alimentação boa e saudável, beleza e amor, e não de alimentos e água contaminados, pobreza e egoísmo. A produção contínua de desigualdades sociais e a destruição de comunidades humanas e seus modos de reprodução ampliada da vida tornam o sistema insustentável. De quanto tempo a fração privilegiada da humanidade vai precisar para descobrir que não se come dinheiro nem se bebe petróleo?
O predomínio antagônico do homem sobre a mulher e sobre a Mãe Terra, de nossa espécie sobre as demais, do capital sobre o trabalho, da riqueza material sobre a não material, da ilusão de que a técnica resolve tudo, e das corporações sobre os povos da Terra anula o sentido participativo da democracia. Reconstruir as sociedades humanas de baixo para cima começa com a organização de comunidades intencionais onde as pessoas vivem e trabalham. Produzir e consumir localmente; partilhar solidariamente nossos excedentes; promover saúde coletiva; garantir espaços de mobilidade ativa, ferrovias para passageirxs e cargas, e transporte público includente, multimodal e de qualidade; assegurar terra para quem dela necessita para viver e trabalhar; universalizar a permacultura, a agrofloresta e a agroecologia; acolher os que sofrem as mazelas espalhadas pelo capital; receber refugiadxs climáticxs com braços, portas e fronteiras abertas para a partilha; construir uma economia do suficiente (bens materiais), e da abundância em qualidade de vida – lazer, comunicação, artes, amizade, amor, felicidade, criando o ambiente político, social, natural e espiritual propício para que cada pessoa desenvolva sempre mais plenamente seus potenciais individuais e coletivos – este é o sentido maior da vida humana.
A economia da vida promove a descentralização do poder político, econômico e cultural, e a valorização da unicidade (comunidade da vida que habita a Casa Comum) e da diversidade humana e biológica. Promove o empoderamento das comunidades para planejarem e implementarem o seu próprio desenvolvimento de forma autogestionária, solidária, sustentável, e articuladas entre si em escala sucessiva até o âmbito nacional e global. Com a posse compartilhada dos bens produtivos e o planejamento participativo superam-se os riscos da superprodução, do descarte e da especulação; em vez da privatização, o cuidado e a partilha dos bens comuns. A matriz energética se reerguerá num modelo descentralizado de produção e consumo da escala comunitária até a nacional. A educação para a vida ensinará valores e métodos da partilha dos bens produtivos e da troca solidária, ou doação dos excedentes, da reciprocidade voluntária, da restauração e da conservação dos ecossistemas.
O futuro escrito pelo capital é de destruição e morte, mas já está sendo reescrito na sabedoria representada pelos povos originários e demais comunidades tradicionais, e por outras formas de comunidades intencionais, como comunidades camponesas, ecovilas e ecocidades. Aprendamos com eles o modo de vida simples, compartilhado e rico de tradições ancestrais, o seu cuidado com o meio natural e a sua espiritualidade enraizada na Mãe-Terra, na perspectiva da construção de sociedades do bem viver!Abraços,Marcos ArrudaPACS e Rede JubileuRede Diálogos em Humanidade -
‘Bem viver’, o conceito que imagina outros mundos possíveis, já se espalha pelas nações –
Como prometi, volto ao tema “Bem Viver”, sobre o qual comentei no último post após ter mergulhado no livro “O Bem Viver”, de Alberto Acosta (Ed. Autonomia Literária e Elefante) nesse fim de semana. Devo dizer que foi uma ótima leitura, que me possibilitou boas reflexões, mesmo sob os acordes carnavalescos precoces aqui debaixo da minha janela. Acosta liga pontos que, na visão de muitos autores citados por ele, colaboraram para que a situação chegasse à tremenda desigualdade social, à tremenda devastação ambiental, à crise econômica e política que vemos hoje no mundo inteiro. E que pavimentaram o caminho que vai da euforia pelo desenvolvimento – fenômeno que começou depois do fim da II Guerra – para o desencanto pelo mesmo desenvolvimento, que tem alcançado os dias atuais. O desenvolvimento, na visão do conceito “Bem Viver”, ocidentalizou a vida no planeta.
A difusão de padrões de consumo já inconcebíveis; as máquinas nos transformando em simples ferramentas, quando a relação deveria ser inversa; a eterna superioridade dos colonizadores, que se sentem legitimados a desqualificar conhecimentos de povos tradicionais. São questões pensadas no livro.
O “Bem Viver” chama atenção para algumas armadilhas, como o “mercantilismo ambiental exacerbado há várias décadas e que não contribuiu para melhorar a situação”. Entram aí os conceitos de “economia verde”, “desenvolvimento sustentável” que têm sido apenas uma espécie de “maquiagem desimportante e distrativa”. Os indicadores ambientais e sociais, que surgem em profusão, não conseguem chegar a um acordo e, na visão de Acosta, “acabam por cercear ideias inovadoras”.
É importante, aqui, dizer que Alberto Acosta, o autor que propõe uma ruptura civilizatória e oferece os caminhos para isso, em 2007 pôs os Direitos da Natureza na Constituição do Equador, um feito inédito no mundo. É economista, foi um dos responsáveis pelo plano de governo da Alianza País, partido encabeçado por Rafael Correa, presidente desde então. Acosta foi também Ministro de Energia e Minas do Equador. Mas se distanciou do governo de Correa justamente na fase de implantação da Constituinte.
“É verdade que na Constituição equatoriana se tensionam os dois conceitos – Bem Viver e Desenvolvimento – mas não é menos verdade que os debates na Assembleia Constituinte, que, de alguma maneira, ainda continuam, foram posicionando a tese do Bem Viver como alternativa ao desenvolvimento. No entanto, deve ficar claro que o governo equatoriano utilizou o ‘Buen Vivir’ como um slogan para propiciar uma espécie de retorno ao desenvolvimento”, escreve Acosta.
A base do pensamento do “Bem Viver” é indígena. Entre as muitas contribuições sobre o tema aceitos pelos organizadores do pensamento, há reflexões da comunidade Sarayaku, na província de Pastaza, Equador, onde se elaborou um “plano de vida” que sintetiza princípios fundamentais do “Bem Viver”.
É difícil resumir a proposta desse conceito porque ele vai de um polo a outro, o que torna a minha tarefa aqui bem complexa. O “Bem Viver”, além de fazer parte da constituição do Equador e da Bolívia, tem sido debatido em outras partes do mundo. Países europeus, como Espanha e Alemanha, já têm seguidores desse conceito. Mas, antes que haja uma confusão, é bom dizer: não se trata de estimular o “dolce far niente”, a arte de não fazer nada. Como está escrito no subtítulo do livro, a questão aqui é imaginar outros mundos possíveis, tarefa que, por sinal, vem sendo tentada pela humanidade desde sempre. Em alguns momentos, lendo o livro de Acosta, recordei trechos do “Nosso Futuro Comum”, relatório final da longuíssima reunião proposta pelas Nações Unidas e conduzida por Gro Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega, de 1984 a 1987.
Sendo assim, em vez de alongar-me em comentários sobre o conceito, passo a descrever algumas das principais propostas do “Bem Viver”.
1) Não é mais uma ideia de desenvolvimento alternativo dentro de uma longa lista de opções: apresenta-se como uma alternativa a todas elas e se fundamenta na construção de um estado plurinacional e eminentemente participativo. A tarefa, complexa, é aprender desaprendendo, aprender e reaprender ao mesmo tempo.
2) O convite é para se ter clareza, antes de mais nada, sobre o que são os horizontes de um estado plurinacional. Com isso, propõe-se construir uma nova história, uma nova democracia, pensada e sentida a partir do respeito aos povos originários, à diversidade, à natureza .
3) Como se propõe a ser uma alternativa ao desenvolvimento, o “Bem Viver” exige outra economia, sustentada nos princípios de solidariedade e reciprocidade, responsabilidade, integralidade. O objetivo é construir um sistema econômico sobre bases comunitárias, orientadas por princípios diferentes dos que propagam o capitalismo ou o socialismo. Será preciso uma grande transformação, não apenas nos aparatos produtivos, mas nos padrões de consumo, obtendo melhores resultados em termos de qualidade de vida. Uma lógica econômica que não se baseie na ampliação permanente do consumo em função da acumulação do capital. Há que desmontar tanto a economia do crescimento como a sociedade do crescimento. Não é só o decrescimento, ele tem de vir acompanhado de mudanças da economia.
4) Essa nova economia deve permitir a satisfação das necessidades atuais sem comprometer as possibilidades das gerações futuras, em condições que assegurem relações cada vez mais harmoniosas do ser humano consigo mesmo, dos seres humanos com seus congêneres e com a natureza. Nesse sentido, o conceito do “Bem Viver” se aproxima daquele registrado no relatório “Nosso Futuro Comum”: satisfazer as necessidades básicas de todos e estender a todos a oportunidade de satisfazer suas aspirações para uma vida melhor.
5) Os padrões de consumo no “Bem Viver” devem olhar para um prazo longo de sustentabilidade. Os valores vão encorajar padrões de consumo dentro dos limites ecológicos possíveis e aos quais todos possam aspirar.
6) A descentralização assume papel preponderante. Para construir, por exemplo, a soberania alimentar a partir do mundo camponês, com a participação de consumidores e consumidoras. Aqui emergem com força muitas propostas que querem recuperar a produção local com o consumo dos produtos localmente, chamadas “iniciativa zero quilômetro”. O fundamento básico é o desenvolvimento das forças produtivas locais, controle da acumulação e centramento dos padrões de consumo.
7) Tudo deve ser acompanhado de um processo político de participação plena, de tal maneira que se construam contrapoderes com crescentes níveis de influência no âmbito local.
8) A ideia não é fomentar uma “burguesia nacional” e voltar ao modelo de substituição de importações. Mercado interno, aqui, significa mercado de massas e, sobretudo, mercados comunitários onde predominará o “viver com o nosso e para os nossos”, vinculando campo e cidade, rural e urbano. Poderá ser avaliado, a partir desse modelo, como participar da economia mundial.
9) As necessidades humanas fundamentais podem ser atendidas desde o início e durante todo o processo de construção do “Bem Viver”. Sua realização não seria, então, a meta mas o motor do processo.
10) Pessoas e comunidades podem viver a construção do “Bem Viver” num processo autodependente e participativo. O “Bem viver” se converte em um bem público, com um grande poder integrador, tanto intelectual como político. Fortalece processos de assembleias em espaços comunitários. Repensa profundamente os partidos e organizações políticas tradicionais.
11) O conceito fundamental é: crescimento permanente é impossível. O Lema é “melhor com menos”. Preferível crescer pouco, mas crescer bem, a crescer muito, porém mal. Tem que haver consenso e participação popular.
12) O trabalho é um direito e um dever em uma sociedade que busca o “Bem Viver”. Tem-se que pensar em um processo de redução do tempo de trabalho e redistribuição do emprego. Mas outro fetiche a ser atacado é o mercado: subordinar o estado ao mercado significa subordinar a sociedade às relações mercantis e ao individualismo. Busca-se, então, construir uma economia com mercados, no plural, a serviço da sociedade. O comércio deve se orientar e se regular a partir da lógica social e ambiental, não da lógica da acumulação do capital.
13) No “Bem Viver” os seres humanos são vistos como uma promessa, não uma ameaça. Não há que se esperar que o mundo se transforme para se avançar no campo da migração. Há que agir para provocar essa mudança no mundo.
14) Surge com força o tema dos bens comuns. Podem ser sistemas naturais ou sociais, palpáveis ou intangíveis, distintos entre si, mas comuns , pois foram herdados ou construídos coletivamente. É indispensável proteger as condições existentes para dispor dos bens comuns de forma direta, imediata e sem mediações mercantis. Tem que evitar a privatização dos bens comuns. O que se busca é uma convivência sem miséria, sem discriminação, com um mínimo de coisas necessárias. O que se deve combater é a excessiva concentração de riqueza, não a pobreza.
15) Não há que desenvolver a pessoas, é a pessoa que deve se desenvolver. Para tanto, qualquer pessoa tem que ter as mesmas possibilidades de escolha, ainda que não tenha os mesmos meios.
Fonte: G1, por Amelia Gonzales
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Há riquezas que são de todos: os bens comuns
Todos sabemos, bem ou mal, administrar os nosso bens privados, a nossa casa, eventualmente a nossa empresa, além das nossas poupanças. Sabemos administrar também, de maneira razoável, os bens claramente de responsabilidade do Estado, ou públicos no sentido estrito, como as ruas: os parques, os hospitais ou escolas públicas. Em ambos casos ocorrem deslizes mais ou menos graves, mas no conjunto são esferas onde sabemos quem é responsável.
E os bens comuns, como ficam? Estas reservas finitas de riquezas planetárias que não são bem de responsabilidade de um governo determinado nem de uma pessoa física ou jurídica, quem as governa? Trata-se aqui evidentemente das calotas polares, mas também dos oceanos e dos mares, dos nossos rios, dos lençóis freáticos de águas subterrâneas, do ar que respiramos, do conhecimento produzido pela humanidade, dos animais que ainda povoam o planeta, da beleza das paisagens e de outros bens essenciais para as nossas vidas, e que estamos maltratando ou simplesmente destruindo. Quem cuida deles? Como reverter a sua sistemática destruição ou esgotamento? Com mais de 7 bilhões de habitantes no planeta, e 80 milhões a mais a cada ano, já ultrapassamos os limites de esgotamento ou de contaminação dos recursos naturais.
O Nobel de economia de 2009 conferido a Elinor Ostrom resgata um pouco este tremendo atraso nas chamadas ciências econômicas, que é a preocupação com a gestão dos nossos bens comuns, além de resgatar um pouco de outra dívida óbvia: é a primeira vez que este prêmio, que aliás não vem do fundo Nobel e sim do Banco da Suécia, é concedido a uma mulher. Ostrom está contribuindo muito para a construção de uma outra visão. O seu livro Governing the Commons (governando os bens comuns) retomou uma discussão antiga, colocada na mesa por Garrett Hardin, ainda nos anos 1960, em artigo que se tornou um clássico, The Tragedy of the Commons.
Não se trata, no caso de Ostrom, de mais uma denúncia da tragédia ambiental. Para isto temos clássicos como O nosso futuro comum coordenado por Gro Brundtland e excelentes sínteses recentes como o Plano B 4.0 de Lester Brown, além de inúmeras pesquisas sobre todas as áreas ameaçadas. A característica dos trabalhos da autora é o fato de se debruçar de forma muito concreta sobre a economia política dos bens comuns, ou seja, o problema da sua governança. Por força dos limites da natureza, somos condenados a aprender a nos governar de maneira responsável.
Tomemos como exemplo a sua análise da água na Califórnia. É um estado rico em todos os sentidos, e em particular em ciência. No entanto, aproveitando as tecnologias que permitem irrigação e bombeamento de águas subterrâneas em grande profundidade e em grandes quantidades, geraram um drama. As tecnologias avançaram, a governança muito menos. Há muitas décadas que os californianos já discutiam os limites da água disponível, enquanto a iam esgotando, gerando o drama atual.
Ostrom mostra que os grupos privados simplesmente entraram na corrida de quem conseguia extrair mais água do que os outros – na tradicional visão da sobrevivência do mais forte – até que, a água passando a faltar para todos, tiveram de elaborar e aplicar uma outra visão de economia política: a negociação de pactos para a gestão coletiva de um recurso escasso e apenas parcialmente renovável. Este tipo de mecanismo participativo de negociação vai além tanto dos parâmetros da economia de mercado como da simples codificação impositiva através de leis e controle estatal. A sociedade precisa aprender a colaborar no uso responsável dos recursos finitos ou escassos.
O subtítulo do livro resume bem a problemática: a evolução das instituições para a ação coletiva. A Califórnia está construindo “acordos negociados sobre o direito às águas”. Fazem parte do que tem sido chamado de “novos arranjos institucionais”. No centro destes arranjos estão os sistemas que permitem uma divisão equilibrada de acesso aos recursos – o que pode envolver recursos pesqueiros, pastagens, madeira e inúmeros outros – através de sistemas participativos numa sociedade mais organizada.
A privatização obviamente não resolve: “Cada usuário tem uma estratégia dominante de bombear tanta água quanto lhe será lucrativo, e de ignorar as consequências de longo prazo para os níveis e qualidade da água.”(136) O resultado é uma economia com PIB muito elevado e excelentes centros de pesquisa, e um desastre sistêmico.
Neste ano de 2015, em que negociamos acordos de longo prazo cruciais para a sobrevivência do planeta – as Metas do Desenvolvimento Sustentável em Nova Iorque, os acordos sobre o clima em Paris e o desenho do financiamento do desenvolvimento em Addis Abeba – reler este trabalho de Elinor Ostrom, que traz dezenas de exemplos de formas inovadoras de gestão dos recursos escassos que constituem bens comuns, realmente vale a pena. Lamentavelmente, este pequeno clássico não foi publicado ainda em português, mas já existe em espanhol.
Elinor Ostrom – Governing the commons: the evolution of institutions for collective action – Cambridge University Press, Cambridge, 1990 (Prêmio Nobel 2009). Em espanhol, El gobierno de los bienes comunes.
Fonte: Ladislau Dowbor
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Crise ambiental: existem propostas alternativas
Desde o início da hegemonia neoliberal, tornou-se um hábito justificar a continuidade da situação existente ou das políticas em curso pela ideia de que “não há alternativa”. É uma ideia que não precisa de provas: é afirmada como um dogma de fé. No entanto, em nenhum período da história este fenômeno aconteceu, a falta de alternativas. O Império Romano caiu, a Idade Média acabou, o III Reich – “de mil anos” – foi derrotado, as próprias teses neoliberais ruíram com a crise mundial de 2008.Todos se lembram da famosa afirmação, repetida por todos os governos e ideólogos até a eclosão da crise, de que o Estado não tinha mais recursos para os gastos com saúde, educação, aposentadoria, etc. No entanto, quando os grandes bancos e multinacionais quebraram, foi o Estado que os salvou, com os recursos que, supostamente, não existiam. Descobrimos, na ocasião, que estes recursos eram muito maiores do que qualquer um de nós, leigo, poderia imaginar: trilhões de dólares públicos foram usados para salvar instituições privadas, as mesmas que haviam causado a crise.Traduzindo: há sempre alternativas. Os que negam sua possibilidade são aqueles que ganham com a continuidade do que já existe.
O mesmo se pode dizer da atual crise ecológica. As pessoas comuns sabem que estamos vivendo uma situação extremamente grave, que não tínhamos antes: sabem-no através dos jornais – falados, escritos, televisados – e também por experiência própria, em razão dos eventos extremos que têm nos atingido. Desde chuvas e inundações extraordinárias, capazes de destruir cidades inteiras, até secas prolongadas, inclusive na Amazônia, assim como longos períodos de temperaturas fora do comum.
O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC – sigla em inglês), constituído por 2.500 cientistas de todo o mundo, tem nos advertido repetidamente, com dados cada vez mais precisos, de que a humanidade está caminhando para o desastre – se não tomarmos logo providências, se não mudarmos o modelo de desenvolvimento que temos hoje. No entanto, os governos parecem viver em outro mundo: não sabem ou não querem saber de crise ecológica, de mudanças climáticas, de aquecimento global. A cada reunião internacional, as decisões tomadas são mais distantes daquelas que são necessárias.
Mas há alternativas, são viáveis e todo governo é capaz de implementá-las. Melhor: elas são mais viáveis que as políticas atualmente em curso, elas são mais baratas do que o que se está fazendo e são mais saudáveis do que o que vivemos hoje. Elas são a solução para muitos problemas atuais. Vamos ver alguns exemplos.
Estamos vivendo uma crise de energia elétrica, causada por insuficiência de chuvas. Para fazer face às dificuldades, o governo apela para as termelétricas, que são mais caras e mais poluentes. No entanto, haveria uma solução muito mais barata e eficaz para enfrentar a instabilidade das chuvas. Seria a utilização de uma fonte que o Brasil tem de sobra, muito mais que qualquer país do Norte: o sol. O Brasil poderia continuar usando a energia hidrelétrica que tem, mas poderia complementá-la com a energia solar, porque nós temos sol o ano inteiro, numa proporção que poucos países no mundo têm. Dados do Atlas Solarimétrico do Brasil indicam que, dada a média anual de radiação, se apenas 5% dessa energia fosse aproveitada, toda a demanda brasileira por eletricidade poderia ser atendida[1].
O sol é uma fonte gratuita e durável (por milhões de anos). Só precisa de alguns equipamentos para gerar energia. Estes equipamentos, se produzidos em quantidade, se tornam baratos e perfeitamente acessíveis. Lester Brown, especialista na temática, revela que, na China, em 2010, cento e vinte milhões de famílias usavam aquecedores solares, que eram produzidos por cinco mil empresas e cujo custo correspondia a 150 euros (algo como 450 reais)[2]. Se o país quisesse, poderia propor às empresas que fabricam chuveiros elétricos que produzissem aquecedores solares, facilitando empréstimos e abrindo uma linha de crédito para os consumidores. Isto traria uma enorme economia de energia elétrica. Com uma vantagem: depois de instalado o equipamento, o consumidor não gasta nada, a não ser a sua manutenção. A fonte, como lembramos, é gratuita.
Poderíamos estabelecer como norma que toda construção (e toda reforma de um prédio) exigisse a instalação de equipamentos captadores de energia solar. Assim como, em algumas estradas do país, a iluminação noturna é garantida por painéis solares, os painéis poderiam cobrir as casas e edifícios e garantir a energia de que necessitam.
Para aqueles que moram no campo, em casas distantes da cidade, a energia solar tem a vantagem de não precisar de longas linhas de transmissão para poder funcionar: cada casa pode ter seu próprio “gerador” de energia.
Mais: o Brasil poderia abrir uma linha de financiamento de pesquisa nas universidades federais para desenvolver a tecnologia da energia solar.
Um segundo exemplo, bem concreto, nestes tempos de Copa do Mundo e de preocupação com a mobilidade urbana. Há grandes cidades no mundo onde, durante a semana, as pessoas não precisam usar carro: elas dispõem de um meio de transporte rápido e seguro, que é o metrô. Além do mais, dispõem de uma ampla frota de ônibus. E o sistema de transporte público é completado por bondes (tramways) na cidade e ferrovias interurbanas. Com isso, é possível deixar o transporte individual para utilização secundária ou para lazer e reduzir radicalmente os engarrafamentos e a perda de tempo nos trajetos diários para o trabalho. Não adianta construir novas vias e viadutos enquanto o número de carros nas ruas não diminuir. Temos de investir em transporte público de qualidade: prioritariamente em trilhos (linhas de metrô cobrindo toda a cidade, bondes, trens interurbanos). E, secundariamente, em ônibus.
Para o transporte entre as cidades e regiões – tanto de pessoas como de mercadorias -, temos de começar a mudar a nossa matriz, priorizando as ferrovias – mais seguras, mais duráveis, capazes de um volume de carga muito maior.E, nas cidades, facilitar o uso da bicicleta, com ciclovias e normas de trânsito para garantir a segurança dos ciclistas. Há países onde a bicicleta é o meio normal de transporte da maioria das pessoas. E contribui para a sua saúde.
Em suma, se insistirmos no modelo de desenvolvimento que temos hoje, se continuarmos produzindo e consumindo do modo como fazemos hoje, caminharemos para cenários ambientais dramáticos e mudanças climáticas desastrosas. Já estamos assistindo ao princípio destas mudanças, mas tudo se passa como se isso fosse natural e inevitável. Os “mercadores da dúvida” têm tido sucesso: eles têm conseguido manter a incerteza sobre o aquecimento global e sobre nossa responsabilidade quanto a ele [3].
Por Direção Executiva da Abong
[1] Greenpeace Brasil (www.greenpeace.org.br). [R]evolução energética – a serviço de um desenvolvimento limpo, dezembro de 2010.
[2] Lester Brown, Basculement: comment éviter l’éffondrement économique et environnemental. Bernin, Souffle Court Éditions; Paris, Rue de l’Échiquier, 2011 (cf. www.earthpolicyinstitute.org).
[3] Oreskes, Naomi e Conway, Erik M. Os mercadores da dúvida. Ou: Como um punhado de cientistas mascararam a verdade sobre problemas sociais tais como o tabagismo e o aquecimento global.
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A economia circular chega ao Brasil
Dos desafios solitários, no interior de um veleiro, em que fez a mais rápida circum-navegação do globo, em 2005, nasceu a inspiração para que Ellen McArthur lançasse um dos mais ambiciosos movimentos empresariais contemporâneos. Os 71 dias em que a britânica percorreu mais de 50 mil quilômetros, sem reabastecimento de combustíveis, alimentos ou água, forneceram-lhe uma imagem preciosa. Os materiais, a energia e os recursos bióticos do Planeta são abundantes, mas, em alguma medida, finitos e se não forem usados de forma inteligente, acabarão por esgotar-se. Entre 2005 e 2010 Ellen McArthur empregou seu prestígio e sua obstinação para encontros com líderes empresariais e de ONG’s do mundo todo. O resultado é a Fundação Ellen McArthur, apoiada hoje não só por mais de uma centena de empresas globais do calibre de Renault, Philips, e-Bay e IBM, mas também por uma ampla rede de organizações de consultoria e pesquisa, incluindo diversas universidades ao redor do mundo. Acaba de ser lançado seu escritório brasileiro, com seminário recentemente realizado na sede da Natura e na FEA/USP.
A constatação de base é que a vida econômica contemporânea percorre uma trajetória linear: extrair, transformar, consumir e descartar. O desperdício daí resultante até que podia ser tolerado num mundo com dois ou três bilhões de habitantes. Hoje, não mais.
Mesmo na Europa, onde os hábitos de vida são muito menos perdulários do que nos Estados Unidos, os dados são chocantes, conforme mostra um fascinante relatório da Fundação Ellen McArthur e da McKinsey, recém lançado[2]. 60% dos materiais descartados pelos europeus são enviados a aterros ou incinerados. Ora, materiais e componentes correspondem a algo entre 40 e 60% do custo total da atividade manufatureira europeia. Os europeus importam 60% dos materiais e da energia que consomem. Portanto, a urgência com relação à melhoria em seu aproveitamento não é um tema “ambiental”, mas um imperativo econômico de sobrevivência.
O relatório analisa três necessidades humanas básicas – mobilidade, alimentação e moradia – que correspondem a 60% dos gastos domiciliares e a 80% dos recursos consumidos na União Européia. O mau uso é generalizado. O automóvel europeu, por exemplo, fica estacionado 92% do tempo. Em média, ao ser usado, somente 1,5 de seus cinco lugar é ocupado. Quando se juntam os gastos domiciliares com o automóvel aos custos de suas externalidades (sobretudo congestionamento) o resultado total é de dois trilhões de euros anuais, equivalentes aos PIBs da Itália e da Suécia somados.
Na alimentação, joga-se fora nada menos que um terço dos alimentos produzidos. O uso da água é pouco eficiente e a estimativa é que as culturas absorvem apenas 30 a 50% dos fertilizantes aplicados. Além disso, não se pode separar a produção alimentar das distorções em seu consumo, razão pela qual o relatório mostra o impressionante custo social do sobrepeso e da obesidade na Europa.
O funcionamento da construção civil, também impõe custo exorbitante à sociedade europeia, que tem três expressões principais. A primeira é o desperdício de materiais e a baixa produtividade em muitos países europeus, em contraste com o avanço tecnológico em outros setores. Além disso, de 35% a 50% dos escritórios europeus permanecem sem uso, mesmo nos dias e horários úteis. Em terceiro lugar, apesar de sua tradição histórica de cidades compactas, o processo de dispersão urbana também avança na Europa, com custos imensos para toda a sociedade.
A economia circular tem a ambição de transformar este sistema para que tanto os nutrientes biológicos, como os nutrientes técnicos que compõem a riqueza sejam permanentemente não apenas reciclados, mas revalorizados ao longo dos processos produtivos. O ponto de partida é de natureza eminentemente ética: os vários documentos lançados desde 2012 pela Fundação Ellen McArthur preconizam uma economia não apenas menos danosa, mas regenerativa tanto dos ecossistemas como do tecidos sociais que têm sido sistematicamente destruídos pelas formas atuais como se obtém riqueza. Em um trabalho também recentemente publicado sobre a Suécia a economia circular é definida como um “sistema industrial restaurativo por intenção e por design”[3].
A novidade contida nesta orientação ética é tríplice. Por um lado, ela só vai florescer caso consiga se apoiar em muita ciência e tecnologia. Os vários documentos da Fundação Ellen McArthur reconhecem que já existe redução no uso de materiais, energia e recursos bióticos, mas mostram que estes ganhos têm sido constantemente contrabalançados pelo próprio aumento no consumo. Globalmente, o uso de recursos aumenta e só a pesquisa em torno de energias renováveis, novos materiais e formas regenerativas de uso de solo poderá reverter esta tendência.
Em segundo lugar, a inovação tecnológica disruptiva que pode dar origem à economia circular supõe novos modelos de negócio em que o acesso se torna mais importante que a propriedade e o compartilhamento passa a ser estimulado pelo próprio setor privado. De maneira realista e sem sensacionalismo, o relatório europeu mostra o avanço notável do uso compartilhado de automóveis na Europa.
Em terceiro lugar, os trabalhos da Fundação Ellen McArthur procuram estimar os ganhos econômicos que a transição para a economia circular pode trazer. No caso europeu se forem incluídas as externalidades, estes ganhos podem chegar a 1,8 trilhão de euros até 2030.
O Brasil e a América Latina são hoje os grandes fornecedores das matérias-primas cujo uso a economia circular tem a ambição de reduzir drasticamente. Parte cada vez mais importante da inovação contemporânea visa exatamente diminuir a dependência em que o sistema econômico se encontra de produtos primários. Longe de ser má notícia para nosso Continente, esta realidade abre as portas para o melhor uso dos recursos de que dispomos. A economia circular dá um rumo promissor para a retomada do crescimento brasileiro, quando ela vier.
Por Ricardo Abramovay [1]
[1] Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, autor de Beyond the Green Economy (Routledge). www.ricardoabramovay.com
[2] http://www.ellenmacarthurfoundation.org/news/circular-economy-would-increase-european-competitiveness-and-deliver-better-societal-outcomes-new-study-reveals
[3] http://www.clubofrome.org/?p=8260Fonte: Valor Econômico








