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Artigo

  • Análise de conjuntura: novo ensaio

    Nota prévia

    Análise de conjuntura não é o mesmo que análise dos acontecimentos, porque supõe o prévio conhecimento – sempre hipotético – da estrutura que fornece a lógica dos processos históricos. Sem uma definição do que é estrutural, não é possível avaliar o impacto dos acontecimentos nas bases de um conjunto social. Por isso a análise de conjuntura deve situar os fatos (visíveis) no plano das estruturas (invisíveis). É o que tento fazer aqui, para decifrar o sentido profundo dos resultados das eleições deste ano.

    Distingo três planos estruturais: o sistema de vida da Terra, o sistema-mundo com seu modo de produção e consumo capitalista, e o sistema (social, político, cultural e econômico) brasileiro. É claro que nos interessa especificamente o último sistema, mas não podemos esquecer que ele está subordinadamente integrado nos dois outros. Por isso, farei breve menção das mudanças conjunturais em cada um deles. Na conclusão indico algumas implicações práticas para quem se identifica com as lutas das classes trabalhadoras, dos povos originários e dos grupos socialmente discriminados.

    1. O sistema de vida Terra

      Tornaram-se frequentes os sinais de mudanças estruturais no sistema Terra. Ao abrir a reunião da COP-24, em Katowice, Polônia, disse o secretário-geral da ONU:“Estamos em apuros. Estamos em grandes apuros com as mudanças climáticas”. Porque ele tem uma visão global, sabe avaliar o significado de uma catástrofe climático-ambiental. E sabe que ela poderá acontecer ainda antes de 2050, caso não sejam tomadas as medidas recomendadas pela comunidade científica internacional – medidas que as megacorporações não aceitam porque prejudicam seus lucros. A situação se agrava porque os Estados nacionais dão mais prioridade aos lucros das empresas do que ao equilíbrio climático e ecológico. O caso do presidente dos EUA é emblemático, mas muitos outros governantes se submetem às megacorporações embora se declarem defensores do meio ambiente.

      Ainda não nos habituamos a entender a questão ambiental como uma questão política, e isso reduz muito nosso campo de visão. É preciso ampliar nossas categorias de pensamento para incluir a Terra – ou, pelo menos, sua comunidade de vida – como sujeito da história, e não mais como coisa. Ela está sofrendo e esse sofrimento atinge a espécie humana, embora as categorias científicas de que disponho não consigam desvendar essa conexão. Tudo se passa como se espécie homo sapiens esteja a pressentir sua extinção e por isso dá vazão a comportamentos irracionais como ódio aos semelhantes, voracidade do consumo, aceitação da pós-verdade, refúgio no mundo virtual e outras práticas que destroem a tessitura social. No polo oposto, esse mesmo pressentimento favorece a emergência de uma outra consciência na relação com a Terra, a qual começa a ser percebida como sujeito de direitos e ser vivo do qual a espécie humana faz parte. Essa consciência se expressou na Carta da Terra, publicada em 2000 e desde então tem se expandido por toda parte, inclusive recuperando concepções ancestrais de povos originários como o Sumak Kawsay (Bem-Viver).

      Atenção: Essa realidade de âmbito planetário precisa ser seriamente considerada não só porque ela pode ajudar a explicar fenômenos aparentemente absurdos, como porque ainda é possível ao menos amenizar a catástrofe ambiental que se anuncia. No mínimo, ela precisa ser considerada como um obstáculo intransponível ao crescimento econômico de médio e longo prazo. Isso inclui o projeto chinês da nova rota da seda, que prevê investimento de US$5 trilhões até 2049, poderá fracassar se desconsiderar os estragos advindos da catástrofe ambiental.

    2. O sistema-mundo do capitalismo

      Seu polo dinâmico está passando dos EUA para a China (ou Chíndia?) e essa transição é marcada pela (1) financeirização do capital e (2) clima de guerra. A crise de 2008 ainda não terminou e a situação econômica mundial continuará conturbada enquanto o dólar US for a moeda das transações internacionais. Esse conflito econômico entre as potências emergentes e as decadentes já adquiriu a forma de guerra: atualmente são guerras localizadas, étnicas, contra drogas ou terrorismo, mas podem tornar-se guerra direta entre as grandes potências. A China provavelmente será vencedora e modelará outra forma de capitalismo – a economia verde – conquistando a hegemonia mundial no século 21. Nesse contexto, o Brasil do novo governo se alinhará subservientemente com o provável perdedor (EUA).

      Atenção: Essa inserção do Brasil como parceiro subalterno dos EUA decorre da crise de 2008: a classe dominante rompeu o pacto de não-agressão oferecido pelo PT e trocou o projeto desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma pela política de Temer e Bolsonaro de subordinação ao governo dos EUA. Ela é determinante na explicação do golpe de 2016 e da vitória eleitoral da direita. Por sua posição geopolítica e econômica, o Brasil é um país chave na América do Sul, onde só falta dobrar a Bolívia e a Venezuela aos interesses estadunidenses.

    3. O sistema Brasil

      O resultado das eleições deixou evidente a mudança na correlação de forças entre as classes sociais. A classe dominante (composta por cerca de 40 mil famílias que se beneficiam da financeirização do capital, o que não impede de também controlar o processo produtivo) aproveitou-se do descontentamento popular manifestado em 2013 para romper o pacto de não-agressão proposto pelo PT de Lula (em nome das classes trabalhadoras). Desde então recorre à agressividade para eliminar – ou ao menos afastar do campo político – os grupos por meio dos quais as classes trabalhadoras e setores subalternos se expressam ou se organizam (como o PT e seus aliados, Movimentos como MST, MTST, Indígenas, negros, mulheres, LGBT e outros), ou que as apoiam (como setores de Igrejas, universidades, intelectualidade etc). Talvez caiba o rótulo de fascista a essa proposta por não ceder espaço à luta de classes dentro da institucionalidade democrática, mas visar sua eliminação enquanto agente político.

      Atenção: Essa mudança da conjuntura tem forte incidência estrutural porque afeta diretamente a correlação de forças da luta de classes. A classe dominante – com seus distintos setores (financeiro, agronegócio, minerador, industrial, comercial) – optou por submeter-se às grandes corporações transnacionais, abandonando o projeto nacional-desenvolvimentista proposto pelo PT em 2002 como base do pacto que baseou os governos petistas. Pelo menos temporariamente, a classe dominante conseguiu a adesão das classes médias e os votos da massa popular. Para isso conta com a habitual colaboração da mídia e o apoio das Igrejas neopentecostais e de setores conservadores das Igrejas Evangélicas e Católica. Embora seu ideário político-social dependa de pensadores do quilate de Olavo Carvalho, isso parece bastar para conquistar a adesão da grande massa de insatisfeitos com o sistema atual, que atiça o desejo de consumo mas não o satisfaz.

      O resultado foi a derrota das classes trabalhadoras. Em três anos de luta suas forças foram exauridas. Mas não se acabaram. (1) No campo político, contam ainda com uma bancada relativamente forte na Câmara (se for feito um bom arco de alianças, ela será suficiente para evitar aprovação de PECs), alguns senadores e governos estaduais. (2) No campo social, os Movimentos Sociais organizados e os Povos Indígenas dão mostras de resiliência, bem como o que resta dos sindicatos. (3) No campo do pensamento, a maior parte da população universitária resiste à proposta fascista; as CEBs e Pastorais sociais, bem como um número crescente de bispos católicos e pastores, embora minoritários, não deixam morrer o Cristianismo da Libertação; os e as artistas animam a resistência popular, e seria possível elencar ainda outras forças. (4) No campo econômico as pequenas unidades deeconomia solidária e cooperativas populares sobrevivem, mesmo à margem da economia formal.

    Conclusão: implicações práticas

    1. Há um problema estratégico. Hoje chegam inúmeros apelos à resistência: resistir à prisão do Lula, aos ataques a Territórios indígenas e quilombolas e assentamentos de trabalhadores rurais, à política de privatizações, à reforma de previdência, à redução da maioridade penal, ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado, à escola sem partido, aos ataques a defensores e defensoras dos Direitos Humanos, à comunidade LGBT e tantas outras medidas que se anunciam. Não é possível, contudo, atuar em todas as frentes de combate a que somos convocados e é muito triste abandonar companheiros nas mãos dos inimigos. A sabedoria reside em lidar com tantas frentes, reunir forças e fazer um trabalho bem articulado e formativo. Essa sabedoria é importantíssima nos dias de hoje. Para isso, há que restaurar as forças.

    2. Restaurar as forças é fundamental. É preciso buscar refúgio onde se possa trocar ideias, rever serenamente os próprios erros e acertos sem acusar terceiros. Esse retiro não é perda de tempo. É fazer um recuo estratégico, onde seja possível fazer o processo de formação política e tecer novos laços de solidariedade. Embora esse recuo possa deixar espaço para o avanço das hordas adversárias, suas desavenças internas (que já são evidentes) tendem a desgastá-las em pouco tempo. Assim, ao voltar à luta seremos muito mais fortes do que hoje (e elas mais fracas).

    É claro que há demandas tão graves ou urgentes que nos obrigam a sair do retiro e retornar ao confronto direto. Mas nesse caso o lado mais fraco só tem chance de vitória se estiver na defensiva. Sabe-se que as forças de quem se defende se multiplicam por dez, desde que sua defesa seja sólida e não se aventure à luta em campo aberto. Talvez seja o caso da reforma da Previdência, de privatizações que violem a Constituição, a proteção a defensores dos Direitos Humanos e a preservação da Amazônia (que tem forte apoio internacional).

    3. Voltar às bases é dedicar-se ao trabalho direto, pessoal, para fazer conscientização e organização. Bases são os grupos de solidariedade pessoal (família, vizinhança, igreja, de amizade, de trabalho, associação por afinidade e outros) onde as relações pessoais se revestem de laços afetivos (e não necessariamente grupos populares). A esses grupos devemos nos voltar, agora, cada qual para aquele/s onde é bem recebido ou recebida, sempre dando prioridade aos grupos formados por gente pobre, vulnerável ou jovem. Trata-se de ir a essas bases para retomar o trabalho de educação política, isto é, de conscientização e de organização, sabendo que ele exige capacitação e que leva tempo.

    4. Exercer (ou reconquistar) a hegemonia intelectual e cultural é a missão dos e das intelectuais vinculadas/os às classes trabalhadoras. Essa missão foi bem desempenhada ao longo do século 20, quando os valores democráticos, igualitários e libertários se difundiram por todo Ocidente, deixando envergonhadas as pessoas que dele divergiam (tradicionalistas, racistas etc). A vitória do capitalismo na guerra fria, porém, favoreceu o pensamento de direita, que propõe a desigualdade como fator de progresso, e vê nas elites o resultado da ordem natural.

    Esse pensamento de direita conquistou espaço na sociedade com importante contribuição das religiões cristãs de vertente fundamentalista (incluída a católico-romana). Em sua versão vulgar ele traz o criacionismo, justifica o racismo e o patriarcado e outros sistemas de exclusão; em sua versão erudita ele justifica a liberdade individual como fundamento da lei natural que não pode ser mudada pelo Estado. Na versão teológica ele separa corpo e alma e se volta unicamente pela salvação desta (por meio de rituais), deixando as realidades materiais sob o domínio do mercado. Esse pensamento se difunde como defesa da família, da vida e dos valores tradicionais ameaçados pelo marxismo cultural que é apontado como o grande inimigo da civilização ocidental cristã: não tendo conseguido derrotá-la pela economia (fim do socialismo soviético), quer derrotá-la destruindo as bases morais da família.

    Embora esse pensamento tenha uma argumentação rasa e mal fundamentada, ganha adeptos recorrendo às emoções: medo do diferente, medo da liberdade feminina, busca de segurança no passado idealizado, orgulho de ser pobre mas honrado etc. Após sua aparente derrota para a modernidade, ele volta à tona de forma agressiva atacando quem defende um pensamento libertador ou libertário. Contra ele três medidas são recomendadas: (1) não repassar as mensagens que falam de seus avanços e abusos, (2) não se curvar diante das intimidações e ameaças, mas seguir em frente, e (3) sempre que possível rebater os argumentos e esclarecer as ideias, mas ignorar os ataques pessoais.

    Juiz de Fora, 11/ dez. 2018

     

  • Neoliberalismo: o estado do mal-estar social

    Pato de tróia
    Desenho: ctbeducars

    Vale à pena recordar a análise de Vladimir Safatle publicada na FSP, tempos atrás. Como os furações que tem sua temporada de estragos, os mantras neoliberais também se repetem ciclicamente para fazer o povo se sentir culpado pelas suas próprias desgraças. Quando, na verdade, são as políticas econômicas implementadas que produzem desigualdades, desemprego e miséria.

    Neoliberalismo: o estado do mal-estar social

    Por Vladimir Safatle

    Faz parte da retórica neoliberal dizer que, diante dos choques de austeridade, não há escolhas.

    O mantra é sempre o mesmo, independente da latitude, a saber, os gastos públicos estão descontrolados, é necessário assumir o princípio de realidade e aceitar que o Estado não pode tudo. Por isso, todos devem fazer esforços para sairmos da tormenta “cortando na carne”. Foram medidas “populistas” que nos levaram a tal descalabro, agora é necessário ser responsável.

    O alvo privilegiado nesses casos costuma ser a Previdência e o sistema de seguridade social. No sistema neoliberal ideal não haveria segurança social, todos estariam em perpétua dependência das relações de força do mercado, tendo que se adaptar às exigências de flexibilidade, de “inovação”, de intensificação dos regimes de trabalho e diminuição tendencial dos salários.

    Por isso, a Previdência é o alvo de uma espécie de reforma infinita. Ou seja, ela nunca terminará até que a própria Previdência seja extinta. Pois o objetivo é criar o Estado do mal-estar social, no qual governar é gerir a população através do medo do colapso econômico individual, já que não haveria mais nenhuma forma de amparo do Estado.

    A maior prova de que estamos diante de uma reforma infinita é a história. Só no caso brasileiro, esta é a terceira reforma da Previdência em 20 anos. A primeira foi em 1998, com FHC. Depois, tivemos a reforma de 2003, uma das primeiras ações do governo Lula.

    Agora, a pérola apresentada pelo governo, que aumenta para 65 anos a idade mínima de aposentadoria, iguala a idade de aposentadoria entre homens e mulheres (bem, que o desgoverno Temer tem problema com as mulheres não é exatamente uma novidade), e, esta é realmente de cair da cadeira, estabelece 49 anos de contribuição para a aposentadoria integral.

    Ou seja, para ter aposentadoria integral com 65 anos, é necessário começar a trabalhar aos 16 anos e ter contribuído com a Previdência de forma ininterrupta. Como em várias regiões do Brasil a expectativa de vida não chega a 65 anos, a contribuição previdenciária será, para boa parte das pessoas, uma pura e simples forma de espoliação de seus rendimentos, já que elas morrerão antes de se aposentar.

    Nesse contexto, o banqueiro Meirelles, capitão-mor da oligarquia financeira, lembrou que a maioria dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) estabelece 65 anos como idade mínima para aposentadoria.

    Como a honestidade intelectual não é exatamente forte nesses debates, ele esqueceu de lembrar que estamos a falar de países nos quais a expectativa de vida é, em média, de 80 anos, diferente do caso brasileiro (75 anos).

    Vladimir Safatle
    Vladimir Safatle, filósofo, publicado por FSP, 17 de mar de 2017

    Por sua vez, o sistema de saúde desses países permite que sua população tenha uma vida saudável mais longa do que a brasileira, cuja média, vejam só vocês, é 65 anos e meio.

    No entanto, como todos sabemos, diante de dados dessa natureza, ouve-se atualmente a “evidência” de que o Estado brasileiro está quebrado e que a economia está em sua pior recessão.

    O argumento por trás é que, diante da crise econômica, se deve obrigar cidadãos e cidadãs a trabalharem o máximo possível, com o mínimo de direitos.

     

     

     

  • Por que direitos humanos?

    Se você defende a liberdade, você defende os direitos humanos;

    Se você defende a vida, você defende os direitos humanos;

    Se você é a favor da democracia, você é a favor dos direitos humanos;

    Se você defende a liberdade de expressão, de opinião, de manifestação, você defende os direitos humanos;

    Se você é contra a tortura, você é a favor dos direitos humanos;

    Se você é contra o preconceito e a discriminação, você é a favor dos direitos humanos;

    Se você é contra o poder arbitrário, o comportamento arbitrário, a justiça parcial, você defende os direitos humanos;

    Se você é a favor da vida digna, do direito ao trabalho, ao salário justo, ao direito de defender estes direitos, você é a favor dos direitos humanos;

    Se você acha que todos devemos ter acesso à saúde, à educação, à assistência social, você é a favor dos direitos humanos;

    Se você acha que todos os seres humanos são iguais em direitos, você é a favor dos direitos humanos.

    Agora,

    Se você é a favor da prisão arbitrária, você é contra os direitos humanos;

    Se você é a favor da tortura, você é contra os direitos humanos;

    Se você acha que os seres humanos nascem com direitos diferentes, por causa de sexo, cor, etnia, você é contra os direitos humanos;

    Se você acha que pessoas podem ser discriminadas por causa de seu pensamento ou opinião, você é contra os direitos humanos;

    Se você acha que algumas pessoas ou grupos podem mandar sobre a maioria, em virtude de algum privilégio, sem que a maioria os tenha escolhido, você é contra os direitos humanos.

    No passado, os direitos humanos apareceram como os direitos dos habitantes de um determinado território de não se submeterem às arbitrariedades de um rei, que poderia se tornar tirano sobre os demais.

    No passado, os direitos humanos apareceram como uma defesa do direito a pensar diferente, a liberdade de consciência, para evitar que uma religião pudesse ser imposta a todos os demais.

    Os direitos humanos se afirmaram, no final do século XVIII, como resultado da Revolução de Independência nos Estados Unidos e da Revolução Francesa: diferentemente do que ocorria antes, a partir de então se deveria dizer “todos os homens nascem livres e iguais em direitos”.

    Mais recentemente, os direitos humanos foram uma reação à barbárie da Segunda Guerra Mundial, uma afirmação da igualdade de todos os seres humanos, da liberdade de pensamento, uma defesa da vida e da dignidade, uma defesa do trabalho, da saúde e da educação de todos, o direito à participação e à busca coletiva por seus interesses. Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

    Antes dos direitos humanos, só tinham direitos os mais fortes, os ricos, os poderosos. Só eles tinham proteção, só eles tinham educação, só eles tinham saúde.

    Os direitos humanos surgem das lutas das maiorias e das minorias para serem respeitados, para serem considerados, para poderem ter vida e vida digna. A partir da afirmação dos direitos, todos podem ser livres, pensar, opinar, se expressar publicamente e ter condições de vida dignas: trabalho, saúde, educação, transporte e assim por diante. E ninguém pode oprimir o outro, torturar outro, prender outro arbitrariamente. E ninguém é mais que o outro, por suas roupas, por sua profissão, por seu cargo, por sua riqueza.

    O dever de todo governo é garantir a todos seus direitos, à vida, à liberdade, à livre expressão, ao trabalho, à saúde, à educação, à organização em defesa de seus direitos.

  • Lançamento do livro de Pedro Ribeiro “Fé e Política: uma trajetória”

    Pedro Ribeiro lançou seu livro “Fé e Política: uma trajetória” na noite do dia 1º de dezembro, no Centro de Formação Sagrada Família, em São Paulo. Estiveram presentes cerca de 30 pessoas, a maioria de São Paulo, e membros da coordenação nacional do Movimento de Fé e Política, de vários estados.

    Depois de falar sobre o conteúdo do livro, que versa sobre o seu itinerário desde a JEC (Juventude Estudantil Católica), passando pelo Grupo de Emaús, pela assessoria à CNBB e o engajamento no Movimento Fé e Política, Pedro abriu a palavra aos demais. Falou-se das dificuldades da situação política atual, mas também dos sinais de esperança em muitas articulações que estão sendo feitas para garantir a resistência em defesa dos direitos e o dinamismo de comunidades de fé.

    Apresentação de Frei Betto

    Este livro contém uma rara preciosidade: o testemunho de um militante cristão que, oriundo de família rica, abraçou o marxismo como método de análise da realidade e dedicou a vida a assessorar movimentos pastorais e sociais integrados pelos segmentos mais pobres da população.

    Ler esta trajetória de Pedro de Assis Ribeiro de Oliveira é percorrer a segunda metade do século XX no que teve de melhor: a utopia de que é possível um mundo pós-capitalista, menos desigual e mais livre. Na vida do autor se faz síntese e unidade o que, para tantas pessoas, ainda representa contradição: fé e política; cristianismo e marxismo; origem burguesa e serviço à causa dos pobres.

    Esta obra comprova que, se “a fé remove montanhas” (1Cor 13,2), ela também derruba preconceitos de classe, elitismo acadêmico, apego ao individualismo hedonista.

    Seguir os passos de Pedro nesta narrativa é conhecer melhor a renovação da Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II; o papel da Ação Católica; as Comunidades Eclesiais de Base; o Movimento Fé e Política; o Grupo Emaús, que congrega teólogos e pastoralistas vinculados à Teologia da Libertação; e tantos outros fatores que hoje se expressam na figura ímpar do papa Francisco.Lançamento Livro de Pedro Ribeiro

    “Ler esta trajetória de Pedro de Assis Ribeiro de Oliveira é percorrer a segunda metade do século XX no que teve de melhor: a utopia de que é possível um mundo pós-capitalista, menos desigual e mais livre. Na vida do autor se faz síntese e unidade o que, para tantas pessoas, ainda representa contradição: fé e política; cristianismo e marxismo; origem burguesa e serviço à causa dos pobres” (Frei Betto).

    “Pedro se coloca como testemunha engajada e não como protagonista principal (…) Nisso já podemos concluir elementos fundamentais de uma espiritualidade libertadora que começa por um profundo senso do outro e uma bela capacidade de socialização da vida pessoal e de todas as relações em uma lição de política, de fé e de sabedoria da vida. Pedro partilha conosco o seu itinerário de fé, desde a mais tenra juventude no ambiente familiar até o seu compromisso atual na militância das CEBs, do Movimento Fé e Política e na assessoria a tantos grupos eclesiais e movimentos sociais por esse Brasil afora” (Marcelo Barros).

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  • Macri, o Mito argentino, três anos depois

    Atílio Boron é um importante analista político argentino.

    Sua análise, apresentada semana passada em um congresso internacional realizado na Grécia, nos faz pensar no Efeito Orloff: “Eu sou você amanhã”, aquela propaganda que alertava o consumidor sobre a importância de escolher certo a sua bebida e evitar a ressaca do dia seguinte, lembra?

    Na Argentina, e agora aqui, foram eleitos governos alinhados com o Grande Capital em políticas ultra-neoliberais: Estado mínimo para o cidadão, Estado repressor e forte em defesa do Capital. Como confessou ao El Pais um pequeno empresário “Queríamos a mudança que Macri propunha não a que ele fez.”

    Artigo de Atílio Boron, publicado originalmente por i21, traduzido e publicado em português por Portal Vermelho, dia 28/11/2018.

    As involuções da  Argentina de Macri

    Com o governo de Mauricio Macri, a Argentina passou por uma dupla involução. Por um lado, a transição de uma democracia capitalista limitada para um regime semi-autoritário, uma “democradura”. Macrismo é um híbrido que, em diferentes proporções, dependendo do caso, combina certas características de uma ditadura com as formalidades de uma democracia puramente eleitoral.
    Por outro lado, uma segunda transição de um estado soberano para um semicolonial, pronto a obedecer aos mandatos emanados de Washington, alinhando-se incondicionalmente com a política externa dos Estados Unidos e, recentemente, estabelecendo um aberrante co-governo entre a Casa Rosada e o FMI.
    Em relação à primeira involução, os gestos e as decisões políticas adotadas pela Casa Rosada foram de uma eloquência exemplar. Basta, no entanto, notar a alegação autocrática para designar, por um decreto de necessidade e urgência (DNU) do Poder Executivo dois juízes do Supremo Tribunal ou a aplicação de uma terapia de choque brutal para “sincerar” a economia da Argentina. “Sincerar” é um eufemismo cunhado pela direita para ocultar a tunga do “tarifaço” (1), a queda dos salários reais, o aumento do desemprego, a disparada da inflação, o rápido crescimento da pobreza, a transferência escandalosa de renda realizada ao longo destes quase três anos – como resultado da eliminação de impostos retidos na fonte (imposto de exportação) do agronegócio, mineração e hidrocarbonetos -, o fenomenal endividamento externo e a criação de condições para facilitar a exorbitante fuga de capitais – que era a verdadeira contrapartida da dívida.
    Na arena política, há um enfraquecimento do impulso democrático quando decisões transcendentais são tomadas sem qualquer debate público e de acordo com critérios supostamente técnicos. Um governo que ganhou com uma margem exígua de 51,4% dos votos atua como se sua legitimidade de origem se apoiasse sobre um mandato popular conferido por 70% ou mais dos eleitores, sem reparar que se sobrepõe a um país dividido em dois e que a busca do diálogo e do consenso, tantas vezes apregoada pelos notáveis do Cambiemos (2) durante a campanha eleitoral de 2015, foi velozmente arquivada uma vez que Mauricio Macri chegou à Casa Rosada.

    O caso dos exorbitantes aumentos nos preços dos serviços essenciais como a água, a eletricidade, o gás e o transporte, concretizados sem as necessárias audiências públicas prévias que são exigidas pela legislação argentina, ilustra com eloquência o que vimos dizendo. Por outro lado, a própria composição do governo, com presença significativa de presidentes de grandes transnacionais, lança luz sobre o caráter oligárquico do governo, o que é ratificado não só pela origem social dos supostos representantes da vontade popular, elevados às alturas do aparato estatal, mas fundamentalmente pelas políticas que promovem que, pelo menos até agora, beneficiaram apenas as classes dominantes e as grandes corporações e prejudicaram o resto da sociedade.
    A involução autoritária se confirma também quando se nota a asfixiante uniformidade comunicacional (salvo poucas exceções) que sofre a Argentina desde que Macri revogou parcialmente a Ley de Medios – golpe de mão presidencial que foi lamentavelmente convalidado depois pela Câmara de Deputados – cujo objetivo era a democratização da esfera pública.

    Por isso episódios tão graves como os que revelaram os Panamá Papers ou os “contribuintes truchos” (roubo de nomes de pessoas que depois foram colocadas em uma lista de contribuições ilegais para a campanha do partido no poder) e que comprometem a figura presidencial e seus principais colaboradores, foram meticulosamente blindados ante os olhos da população por um sistema de mídia cuja missão não é mais informar, mas sim manipular ou confundir a opinião pública.

    Vivemos um lamentável retrocesso que empobrece a consciência dos cidadãos e devora a vitalidade da democracia, porque esta adquire uma existência meramente espectral quando o que prevalece na mídia é uma sufocante oligarquia.

    O resultado do ajuste selvagem feito pelo co-governo Macri-FMI é uma crise econômica fenomenal, macro desvalorizaçã o do peso, taxas de juros da ordem de 70% ao ano, inflação projetada de 45% e um índice de desaprovação social de 62% da população. Tudo isso com uma dívida de 153 bilhões de dólares usada para a especulaão financeira e a fuga de divisas. Nem um hospital, nem uma escola, nem uma nova empresa pública, nem uma universidade foram criadas com o dinheiro desse endividamento.
    A segunda involução é aquela que ocorreu quando, somada a anterior, o governo também abandonou qualquer pretensão de autonomia em matéria de política externa fazendo sua a agenda, as prioridades (e os conflitos!) dos Estados Unidos.
    A Argentina já tentou provar as virtudes da submissão neocolonial nos desastrosos anos noventa, durante a presidência de Carlos S. Menem.

    Sem receber nada em troca, quaisquer benefícios especiais como uma recompensa pela subserviência oficial, um preço terrível foi pago por tal subserviência: 106 pessoas foram mortas em dois ataques contra a Embaixada de Israel e da AMIA, em retaliação à participação argentina na Primeira Guerra do Golfo. Por que a história deveria ser diferente dessa vez?

    A ofensiva feroz contra uma única política latino-americanista – a única sensata em um sistema internacional marcado por ameaçadoras turbulências – expressa no abandono pelo macrismo de projetos como UNASUL e CELAC nada de bom prenuncia para o tão alardeado como enigmático “retorno ao mundo” da Argentina. Na verdade, uma inserção proveitosa que só será possível a partir de uma posição de autonomia – é claro que sempre relativa – que preserve os interesses nacionais e não a partir de uma condição de submisso peão em um perigoso tabuleiro mundial cujas fichas o imperador move a seu gosto, e somente atendendo a seus próprios interesses e não aos interesses de seus servis vassalos. Donald Trump precisa da Argentina para fustigar a Venezuela e encontra no governo de Macri um fiel executor de suas ordens.

    Em menos de um ano haverá eleições na Argentina. A direitização do clima ideológico internacional joga contra a restauração democrática e a reorientação da política nacional. O Partido Comunista da Argentina promove a unidade do campo popular para derrotar o holocausto social que executa o macrismo. Se for feito progresso na unidade, organização e conscientização do grupo heterogêneo de forças oposicionistas, se for elaborado a tempo um programa de salvação nacional baseado no Projeto de Plataforma Programática que nosso partido elaborou para enfrentar a crise e se adotamos uma adequada estratégia de campanha – levando em consideração, como ensina o triunfo de Bolsonaro no Brasil, o tremendo papel desempenhado hoje pelas redes sociais, os “big data”, as “fake news” e toda a artilharia da “Cambridge Analytica” – as possibilidades de derrotar o macrismo não são poucas. Lênin nos ensinou que o impossível pode se tornar real. Será uma tarefa árdua, mas inescapável. Especialmente porque é muito necessário, e não só para a Argentina.

    Notas do i21
    1. No primeiro semestre de 2018 o governo Macri promoveu reajustes nas tarifas (os “tarifaços”), que alcançaram até 30% de aumento nos transportes, gás, água, eletricidade, pedágios, medicamentos e telefonia.

    2. Nome da formação política do presidente da Argentina, Maurício Macri.

    *Atilio Borón é doutor em Ciência Política pela Harvard University, professor titular de Filosofia Política da Universidade de Buenos Aires e membro do Comitê Central do Partido Comunista da Argentina

     

  • A prisão perpétua de Lula

    LulaQuando Lula estava sendo preso no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, se tivesse a chance de lhe dizer uma palavra, eu lhe teria dito: “se você quiser viver e lutar politicamente pelo Brasil, vai para uma embaixada ou outro país e peça asilo político. Se você optar em ir para a cadeia, será um gesto de suprema magnanimidade de sua parte, você se tornará um ícone definitivo para os descartados desse país e do mundo, mas você só vai sair de lá o dia que morrer”.

    Condenado sem provas por Moro, será condenado também sem provas pelo sítio de Atibaia. Mas, se for necessário para morrer na cadeia, Lula será condenado uma terceira, quarta, quantas vezes forem necessárias para que sua prisão seja perpétua. É um golpe de Estado, é uma justiça política. E agora, o General Villas Bôas afirma claramente que Lula é um preso político do Exército Brasileiro.

    O primeiro grupo social a contestar o governo Lula fomos nós aqui no São Francisco, quando sua popularidade estava no auge, em função da transposição de águas do rio São Francisco. Tínhamos outros projetos nas mãos para solucionar de vez o problema da sede humana e animal no Semiárido. Lula, por imposição da aliança com Ciro, optou pela grande obra, que hoje funciona precariamente apenas no Eixo Leste, levando pouco mais de 3 m3 de água por segundo para a Paraíba, como se fosse um canhão para matar um mosquito.

    Nas longas conversas com o pessoal do governo sempre dizíamos: “não somos nós os inimigos, nós apenas estamos alertando para um rumo de obra e de governo que um dia mostrará sua insustentabilidade. Os inimigos comem no mesmo prato com vocês”.

    Porém, aprendemos a valorizar as políticas públicas e sociais que tanto fizeram melhorar a condição de vida do nosso povo no Semiárido, apesar da obra problemática da transposição. E o sertão mudou muito e foi para melhor. O povo reconheceu esses avanços votando massivamente em Haddad.

    As circunstâncias históricas mudam, quero estar enganado, mas tudo indica que essa injustiça cruel de sua prisão prosseguirá até que tudo seja consumado.

    Assim como Paulo Freire, nem no túmulo Lula terá sossego e será continuamente atacado por seus inimigos. Mas, desses fantasmas a elite brasileira jamais conseguirá se livrar, simplesmente porque se tornaram ícones mundiais da educação e da superação da miséria.

     

  • O Mistério na tessitura da Vida: A espiritualidade de Gilberto Gil

    Trata-se de tarefa desafiante tentar captar a experiência espiritual na trajetória criativa de Gilberto Gil. Foi o desafio que busquei responder nas breves notas que seguem, a partir de um convite de conferência realizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UFJF. Seguiu-se um mergulho nas canções desse compositor singular e inaugural, assim como nas biografias disponíveis e entrevistas realizadas pelo compositor baiano. O panorama geral é convidativo, descortinando dimensões singulares da visão espiritual de Gil.

    De início, podemos destacar o profundo amor pela vida alimentado por Gil e cantado em diversas canções.

    Gilberto Gil foi alguém sempre marcado pela vida espiritual, mas curiosamente o passo de abertura para a experiência interior ocorreu por ocasião de sua prisão, em dezembro de 1968.

    A prisão de Gil aconteceu no final de dezembro de 1968, junto com Caetano Veloso. Os dois foram libertados em 19 de fevereiro de 1969, uma Quarta-Feira de Cinzas. Seguem então para Salvador, permanecendo em estado de confinamento até a partida para o exílio, em julho de 1969. Gil ficará no exílio até janeiro de 1972, quando retorna com sua mulher Sandra e o filho Pedro. Caetano e sua mulher, Dedé, tinham retornado antes.

    A experiência na cadeia foi decisiva no desenvolvimento de sua vida espiritual. Como ele mesmo diz, foi ali que sua busca manifestou uma “face mais visível”, bem como sua “ânsia mística”.

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  • Viver com as mudanças climáticas

    O debate sobre a mudança climática não é mais sobre o que causa o aquecimento global. Em vez disso, a questão para os formuladores de políticas é como garantir que bilhões de pessoas e empresas em risco em todo o mundo possam se adaptar rapidamente e garantir que suas comunidades sejam tão resilientes quanto possível.
    Para quem ainda não tem clareza quanto às conseqüências do aquecimento global, o verão de 2018 no hemisfério norte, um dos mais quentes já registrados, deveria ser a resposta cabal. Em todas as longitudes e latitudes, as mais diferentes regiões estão enfrentando problemas com eventos relacionados ao clima.

    No sul dos Estados Unidos, as cidades e vilas atingidas pelo furacão Florence, em setembro, ainda estavam se recuperando quando o furacão Michael causou mais inundações em outubro. Na Califórnia, os bombeiros estão fazendo o rescaldo do maior incêndio florestal da história do Estado. E em partes da América Latina, Europa, África e Ásia, a produção agrícola está em queda livre após meses de calor sufocante.

    O tempo mais frio pouco ajudou a aliviar o sofrimento. De acordo com o Departamento Oceânico e Atmosférico dos EUA , as condições de seca “moderadas” a “excepcionais” cobrem 25,1% dos Estados Unidos. Mas as secas “extremas” e “excepcionais” – as piores categorias – expandiram-se para cobrir 6,3% do país, acima dos 6% em meados de setembro. Diversas regiões na Austrália também estão lutando contra a pior seca em uma geração.

    De fato, para um número crescente de pessoas em todo o mundo, inundações, deslizamentos de terra e ondas de calor – o verão do Japão, em poucas palavras – são o novo normal. Um estudo recente da revista PLOS Medicine projeta, que em 2080, nos EUA haverá cinco vezes mais mortes relacionadas ao calor; as perspectivas para os países mais pobres são ainda piores.

    O debate sobre o clima não é mais sobre causas; combustíveis fósseis e atividade humana são os culpados. Em vez disso, a questão é como bilhões de pessoas e empresas em risco podem se adaptar rapidamente e garantir que suas comunidades sejam tão resilientes quanto possível. Mesmo que o mundo cumpra a meta do Acordo Climático de Paris de limitar o aumento da temperatura global a 2º Celsius em relação aos níveis pré-industriais, a adaptação ainda será crítica, porque os extremos climáticos são agora o novo normal.

    Algumas comunidades já reconheceram isso e avançaram bastante e a adaptação local está bem encaminhada. Em Melbourne, na Austrália, por exemplo, a administração local está trabalhando para dobrar a cobertura arbórea da até 2040, uma abordagem que reduzirá as temperaturas e reduzirá as mortes relacionadas ao calor.

    Da mesma forma, em Ahmedabad, uma cidade de mais de sete milhões de pessoas na Índia ocidental, as autoridades lançaram uma importante iniciativa para cobrir os telhados com pinturas reflexivas para reduzir as temperaturas das “ ilhas de calor ”, áreas urbanas que aprisionam o calor do sol e tornam a vida da cidade insuportável. mesmo à noite . Estas são apenas duas das muitas soluções para a infraestrutura que comunidades em todo o mundo realizaram.

    Mas adaptar-se às mudanças climáticas também significará administrar as consequências econômicas de longo prazo do clima extremo, e isso é uma exigência que os países estão apenas começando a levar a sério.

    Consideremos a escassez de água. Segundo uma análise do Banco Mundial de 2016, as crises hídricas relacionadas à seca na África e no Oriente Médio poderiam reduzir o PIB nessas regiões em até 6% até 2050. Isso seria complicado em qualquer lugar, mas seria devastador em regiões que convivem com conflitos políticos e crises humanitárias.

    Ao mesmo tempo, a elevação do nível do mar causará muitos prejuízos nas áreas costeiras. O declínio nos valores das propriedades terá implicações de longo alcance não apenas para a riqueza pessoal, mas também o comércio e indústria, com impacto na arrecadação tributária das comunidades.

    Uma preocupação relacionada é que casas e empresas ao redor do mundo acabarão se tornando mal asseguradas ou mesmo sem seguro do patrimônio, devido à frequência de catástrofes relacionadas ao clima. A ClimateWise , uma rede global de organizações do setor de seguros, já avisou que o mundo está enfrentando uma lacuna de proteção contra risco climático anual de US $ 100 bilhões .

    Nenhuma organização ou autoridade internacional tem todas as respostas para essa quantidade de desafios que as mudanças climáticas provocam. Mas alguns estão assumindo um papel de liderança, pressionando governos e comunidades locais a agir com mais urgência. Uma das iniciativas mais promissoras para acelerar soluções, lançada nesta semana, é a Comissão Global de Adaptação , presidida pelo ex-secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon , por Bill Gates , co-fundador da Microsoft , e Kristalina Georgieva, diretora executiva do Banco Mundial .

    Nos próximos 15 anos, o mundo precisará investir cerca de US $ 90 trilhões em melhorias de infraestrutura. O modo como esses projetos avançarão e se eles forem projetados com recursos de baixo carbono poderão levar o mundo a um futuro mais resiliente ao clima – ou podem minar alimentos, água e segurança nas próximas décadas.

    Patrick V. Verkooijen é diretor executivo do Global Center on Adaptation.

    Copyright: www.project-syndicate.org

    Publicado em Valor Econômico, 07/11/2018

     

     

  • DERROTA DA DEMOCRACIA NO BRASIL

    Em 1933, Adolf Hitler chegou ao poder na Alemanha pelo voto democrático. Em 2018 – 85 anos após a vitória eleitoral do líder nazista – o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil com 57,5 milhões de votos dos 147 milhões de eleitores. Seu adversário, o professor Fernando Haddad, ex-ministro da Educação dos governos do Partido dos Trabalhadores e ex-prefeito de São Paulo, mereceu 47 milhões de votos. Houve 31,3 milhões de abstenções, 8,6  milhões de votos nulos e 2,4 milhões de votos brancos. Portanto, 89,3 milhões de brasileiros não votaram em Bolsonaro.

    Muitos se perguntam como foi possível, após a Constituição Cidadã de 1988 e os governos democráticos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, os brasileiros elegerem presidente um deputado federal obscuro e declaradamente favorável à tortura e à eliminação sumária de prisioneiros, defensor intransigente da ditadura militar que subjugou o país ao longo de 21 anos (1964-1985).

    Nada é acaso. Somam-se múltiplos fatores para explicar a meteórica ascensão de Bolsonaro. Não tenho a pretensão de abarcar todos. Apenas expresso o meu ponto de vista.

    A democracia brasileira sempre foi frágil. Desde a chegada dos portugueses às nossas terras, em 1500, predominaram governos autocráticos. Na condição de colônia, fomos governados pela monarquia lusitana até novembro de 1889, quando se decretou a República. E até o ano anterior manteve-se no Brasil o mais longo regime escravocrata das três Américas. Durou 350 anos.

    Os dois primeiros períodos de nossa República foram comandados por militares. O marechal Deodoro da Fonseca governou de 1889 a 1891, e o general Floriano Peixoto de 1891 a 1894. Na década de 1920, o presidente Artur Bernardes governou durante quatro anos (1922-1926) mediante o recurso semiditatorial do Estado de Sítio. Vargas, eleito presidente em 1930, tornou-se ditador sete anos depois, até ser deposto em 1945.

    Desde então o Brasil conheceu breves períodos de democracia. O marechal Dutra sucedeu Vargas que, pelo voto direto, retornou à presidência da República em 1950, onde permaneceu até as forças de direita o induzirem ao suicídio, em 1954. Seu vice, Café Filho, e os parlamentares Carlos Luz e Nereu Ramos, completaram o mandato, sucedidos por Juscelino Kubitschek, eleito em 1955. Em 1960 JK empossou Jânio Quadros, derrubado sete meses depois por “forças ocultas”. O poder foi provisoriamente ocupado por uma Junta Militar que o repassou a Ranieri Mazzilli e, logo, admitiu a posse de João Goulart (Jango), vice de Jânio, que governou apenas 7 meses. Em abril de 1964 foi deposto pelo golpe militar que implantou a ditadura, que durou até 1985.

    Nesses últimos 33 anos de democracia, um presidente faleceu antes de ser empossado (Tancredo Neves); seu vice, José Sarney, assumiu e levou o país à bancarrota; um avatar, Fernando Collor, se elegeu como “caçador de marajás” e, dois anos e meio depois, sofreu impeachment por corrupção, tendo a presidência sido ocupada por seu vice, Itamar Franco. Este foi sucedido pelos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), dois de Lula (2003-2011) e um integral de Dilma (2011-2014) que, reeleita, sofreu impeachment nitidamente golpista após 1 ano e 8 meses de governo, tendo sido substituída por seu vice, Michel Temer, que passará a faixa presidencial a Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019.

    Acertos e erros do PT

    Como se explica que, após 13 anos de governo do PT, 57 milhões de brasileiros, entre 147 milhões de eleitores dentre a população de 208 milhões de habitantes, eleja presidente um militar de baixa patente, deputado federal ao longo de 28 anos (sete mandatos), cuja notoriedade não resulta de sua atividade parlamentar, mas de seu cinismo ao louvar torturadores, lamentar que a ditadura não tenha eliminado ao menos 30 mil pessoas? Como entender a vitória de um homem que, em seu discurso de campanha em São Paulo, via internet, proclamou em alto e bom som que, se eleito, seus opositores deveriam sair do país ou iriam para a prisão?

    Não é hora de “jogar pedra na Geni”. Mas em que pesem os avanços sociais promovidos pelos governos petistas, como livrar da miséria 36 milhões de brasileiros, há que destacar erros que o PT até agora não reconhece publicamente e que, no entanto, explicam o seu desgaste político. Saliento três:

    1) O envolvimento de alguns de seus líderes em casos comprovados de corrupção, sem que a Comissão de Ética do partido tenha punido nenhum deles (Palocci se excluiu do partido antes que o expulsassem).

    2) O descaso com a alfabetização política da população e com os meios de comunicação favoráveis ao governo, como rádios e TVs comunitárias e a mídia alternativa.

    3) Não haver implementado nenhuma reforma estrutural ao longo dos 13 anos de governo, exceto a que alterou o regime de contribuição previdenciária do funcionalismo federal. O PT é, hoje, vítima da reforma política que não promoveu.

    As manifestações públicas de junho de 2013 soaram como um alerta. A população se sentia acéfala. Havia nas ruas protestos, mas não propostas. A multidão não se considerava representada por nenhum partido.

    No ano seguinte, Dilma se reelegeu com pequena margem de votos acima de seu adversário, Aécio Neves. O PT não entendeu o recado das urnas. Era hora de assegurar a governabilidade pelo fortalecimento dos movimentos sociais. Optou-se pela via contrária. Adotou-se a política econômica do programa de governo da oposição. O ajuste fiscal monitorado por um economista ultraliberal, Joaquim Levy, aprofundou a recessão. O governo petista se tornara um violinista que agarra o instrumento com a esquerda e toca com a direita… Desacreditado por suas bases de apoio, abriu-se o flanco que possibilitou o golpe parlamentar que derrubou Dilma, sem que houvesse protestos significativos nas ruas.

    Temer aprofundou a crise: 14 milhões de desempregados; crescimento pífio do PIB; reforma trabalhista contrária aos direitos elementares dos trabalhadores; 63 mil assassinatos por ano (10% do total mundial); intervenção militar no Rio de Janeiro para tentar evitar o controle da cidade pelo narcotráfico. E a corrupção grassando na política e nos políticos, sem isentar sequer o presidente da República, com fotos e vídeos comprobatórios exibidos na TV em horário nobre.

    Tudo isso contribuiu para aprofundar o vácuo político. Dos partidos com maior bancada no Congresso, apenas o PT tinha um líder representativo, Lula. Mesmo preso, chegou a merecer 39% das intenções de voto ao inicio da corrida eleitoral. Porém, o Judiciário confirmou o óbvio: fora preso sem provas para ficar excluído da disputa presidencial.

    Quem então poderia aspirar a presidência? Fernando Henrique Cardoso percebeu o vazio. Nenhum dos lideres políticos em voga tinha suficiente cacife para preencher o vácuo. Por isso ele propôs Luciano Huck, um apresentador de TV. Mas Huck declinou da indicação. Então surgiu Bolsonaro.

    Como se explica a ascensão meteórica do candidato de um partido minúsculo, insignificante, que ferido em campanha abandona as ruas e não participa dos debates na TV?

    Repito, nada acontece por acaso. O capitão recebeu o apoio de três importantes segmentos da sociedade brasileira:

    1) Primeiro, do único setor que, nos últimos 20 anos, se dedicou obstinadamente a organizar e fazer a cabeça dos pobres: as Igrejas evangélicas de perfil conservador. O PT deveria ter aprendido que nunca teve tanta capilaridade nacional ao contar com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Mas as CEBs refluíram sob os pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. E nenhum trabalho de base se fez para expandir a capilaridade e a formação dos núcleos partidários, dos sindicatos e dos movimentos sociais, exceto movimentos como o MST e o MTST. Enquanto isso, as Igrejas evangélicas passaram a ocupar 30% da programação televisiva aberta, e ensinar que “irmão vota em irmão”, deslocando os temas sociais e políticos para o moralismo individualista. Tais Igrejas cresceram mais de 60% nos últimos anos. Não por acaso Bolsonaro, que era católico, se deixou batizar em Israel pelo pastor Everaldo.

    2) Foi apoiado também pelo segmento policial militar que nutre nostalgia pelos tempos da ditadura militar, quando gozavam de amplos privilégios, tinham seus crimes acobertados pela censura à mídia, e desfrutavam de total imunidade e impunidade. Agora, segundo promessa do eleito, terão licença para matar.

    3) E foi apoiado ainda pelos setores da elite brasileira que se queixam dos limites legais que dificultam seus abusos, como o agronegócio e as mineradoras em relação às reservas indígenas por eles cobiçadas e à proteção do meio ambiente, em especial da Amazônia. Este setor quer um governo disposto a ignorar tudo que diz respeito a trabalho escravo, proteção ambiental, direitos de indígenas e quilombolas. E obter sinal verde para criminalizar movimentos sociais que lutam por terra e teto, em defesa dos direitos humanos, e contra atitudes discriminatórias, como o homofobia.

    Há ainda um novo fator que favoreceu a eleição de Bolsonaro: o poderoso lobby das redes digitais monitoradas desde os EUA. Milhões de mensagens foram remetidas diretamente aos 120 milhões de brasileiros com acesso à internet, quase todos eleitores, já que no Brasil o voto é obrigatório para quem tem de 16 a 70 anos de idade.

    Bolsonaro soube explorar esse novo recurso que ameaça seriamente a democracia e foi utilizado com êxito na eleição de  Donald Trump, nos EUA, e no referendo que decidiu a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit). Os tribunais eleitorais do Brasil até agora não sabem como enfrentar tais ataques cibernéticos.

    Desafios de futuro

    E agora, o que fazer? Os movimentos progressistas e o que resta de esquerda no Brasil certamente promoverão passeatas, manifestações, abaixo-assinados etc., no esforço de evitar um governo fascista. Nada disso me parece suficiente. Há que retornar às bases populares. Como enfatizou Mano Brown no comício final da campanha de Haddad no Rio, a esquerda já não fala a linguagem da periferia. Os pobres votaram no projeto dos ricos. A esquerda enche a boca com a palavra “povo”, mas não se dispõe a “perder” fins de semana para ir às favelas, às vilas, à zona rural, aos bairros onde vivem os pobres. Não se arma com o método Paulo Freire para organizar, politizar e mobilizar o povão. Não procura conhecer e aplicar a metodologia de educação popular. Não reconhece a fé popular como fator, não apenas de alienação, mas também de libertação, dependendo de como é cultivada.

    Eis as prioridades da atual conjuntura brasileira: o PT fazer autocrítica e se recriar; a esquerda retornar ao trabalho de base; o movimento progressista redesenhar um projeto de Brasil que resulte em projeto político viável. Caso contrário, o Brasil ingressará por longo período na idade das trevas.

    Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros…

  • Na construção de uma Frente Ampla Democrática

    Nas últimas semanas, vivemos um certo movimento de tomada de consciência cidadã. Houve como que um despertar de alguns  setores da população, que se deram conta de um  perigo iminente. É o que se chamou uma possível virada eleitoral. Expressiva nas grandes cidades, com pessoas de todas as idades, mas particularmente entre jovens e mulheres. Tempo curto, que não impediu a derrota de nosso candidato Haddad, mas que mostrou um movimento saudável na sociedade e que poderá servir para desenhar um caminho futuro. Pela rua, no momento da votação, aqui no Rio, havia um grande número de bótons 13, de pessoas de uma alegria contagiante. Do outro lado, uma certa perplexidade, diante de uma vitória que já não parecia tão fragorosa. Mesmo assim, foi uma ampla maioria, de cerca de 12%. Em São Paulo, ela foi enorme. Ali nasceram PT e PSDB, assim como fortes movimentos sindicais. E agora é o centro do conservadorismo. Em plano nacional, em relação às últimas pesquisas, foi caindo a diferença entre os dois candidatos, mas não levou a uma inversão no resultado final. Há como que dois brasis, o do nordeste, onde ganhou Haddad e as outras regiões. Temos, neste momento, alguns ingredientes básicos com que preparar um programa de ação política para o futuro.

    Não posso deixar de lembrar, no passado, dois momentos traumáticos para o país: a eleição de Jânio e sua vassoura e de Collor com a denúncia dos marajás, dois presidentes sem equilíbrio nem apoio político. Receberam o voto de setores de classe média, como agora, pendentes de um discurso anticorrupção. Uma ética necessária virava um moralismo simplificador e enganoso. Aliás, a  falta de ética desses dois presidentes foi ficando evidente, na vida privada e pública. Estaremos repetindo o mesmo erro, com os mesmos apoios?

    Bolsonaro aproveitou o terrível atentado para posar como vítima ou para eximir-se de debater e de apresentar um programa de governo minimamente coerente. E então, assim, jornalistas a soldo, se lançaram como abutres contra a dupla democrática. Lembremos a valentia de Manuela diante de perguntas mal intencionadas num programa roda viva. Ou no mesmo programa a clareza de estadista de Fernando Haddad. Antes, ele fora agredido com violência por uma dupla raivosa, que não fazia perguntas mas desfiava acusações sem prova.

    Gostaria de refletir sobre o que está acontecendo no país. Vivemos um tempo de divisão profunda, marcada pela intolerância, e, inclusive há que dizer, com a contribuição apaixonada de companheiros de nosso lado. Famílias, amigos, colegas, entraram em choque e ficou difícil a convivência.  A sociedade adoeceu. Como recuperar o que os ingleses chamam sanity? Há uma lição a tirar para nosso lado democrático. Não podemos cair na síndrome paralisante da  decepção e da derrota. Mas, principalmente, não deveríamos reagir com agressividade e rancor, por mais que pudesse haver razão de sobra, ao descobrir um trabalho criminoso de falseamento da realidade e de construção de slogans absurdos.

    O curioso é que muitos votaram em Bolsonaro em nome do novo na política. Incrível a falta de memória. Esse cidadão foi deputado em mais de uma legislatura, obscuro, imerso há tempos no grupo informe do chamado baixo clero. Apareceu para a opinião pública naquela noite lamentável, capitaneada vingativamente por Eduardo   Cunha, no encaminhamento do impeachment de Dilma Rousseff. Ali, na sua declaração, fez uma incrível homenagem a um  dos maiores torturadores dos tempos da ditadura. Procurando descobrir sua atuação nas votações na Câmara, vemos que estava sempre ao lado do chamado grupo da bala, daquele do boi e de um fundamentalismo religioso. Nada mais velho e caduco.

    Assusta ver pessoas inteligentes e de boa vontade dizerem coisas insensatas e sem provas, afirmando que o país correria o risco de se tornar uma nova Venezuela, ou que seria invadido por médicos cubanos doutrinadores.  Ou invocando um inexistente “kit gay”. Ao tentar desmanchar esses equívocos, muitas vezes nos temos deparado com um semblante rígido e inexpressivo, incapaz de entrar num contraditório. Fiéis de igrejas pentecostais votam no que os pastores ordenam, considerando que só eles dizem a verdade. O diálogo torna-se quase impossível.

    Há dois tipos de eleitores bolsonarescos. Uns, que tem a mesma síndrome violenta do candidato e que agridem adversários, odeiam negros e gays ou são de um machismo espantoso.  Aí, pelo momento, há pouco a fazer, a não ser denunciar uma síndrome de destruição, que surge em todas as ocasiões que viram nascer o nazismo e o fascismo. Temos de apelar aos psiquiatras e aos psicólogos e lembrar com eles, Karen Horney e sua mentalidade neurótica de nosso tempo, ou o medo da liberdade de Eric Fromm.  Joel Birman tem desocultado com maestria essa enfermidade coletiva.

    Mas há outra parte dos que votaram Bolsonaro,  que absorveu acriticamente notícias falsas ou deturpadas, difundidas pelos meios de comunicação  ou por púlpitos. Com esses temos de preparar o caminho para um diálogo. Há que provar que realmente aceitamos o pluralismo e que estamos dispostos inclusive a rever nossas próprias posições. Tudo num clima de abertura e de simplicidade. Habermas falava da força da argumentação, e ela vale nos dois sentidos.

    É preciso aprender com a história, nas vitórias, e especialmente nas derrotas. O grande poeta Antonio Machado, em 1939 partindo para o exílio, onde morreria logo depois, escreveu melancolicamente: “A história não caminha no ritmo de nossa impaciência”. Mas a resposta vem mais adiante, em 1973, na intervenção pela radio Magallanes de Salvador Allende. Vendo os aviões voar baixinho para bombardear o Palácio da Monda e ouvindo Allende despedir-se, baixou-nos num  primeiro momento uma  enorme tristeza e uma sensação de impotência. Porém disse o presidente: “Más temprano que tarde volverá el pueblo a las grandes alamedas… La historia es  nuestra, la hacen los pueblos”. Suas palavras foram retiradas do ar pela estática dos vencedores. Mas nos trouxeram alento e esperança.

    Tempos depois da derrota, alguns partidos de diferentes tendências criaram a Concertação, que elegeria os primeiros presidentes democratas. Eu estava em Santiago mais adiante, voltei à Moneda restaurada, atravessei comovido o pátio de los naranjos, convidado para almoçar ali pelo secretário-geral da presidência, que voltara do exílio. E no canto da praça, um busto de Allende estava voltado para a janela de onde tantas vezes ele se dirigira a seu povo. Na base, trechos de sua última alocução. Mais tarde, quando Ricardo Lagos tomou posse como presidente democraticamente eleito, entrou pela porta da rua Morandé, por onde chegava Allende, e que tinha sido taipada pela ditadura,  foi até a sala de onde ele se tirou a vida e depositou ali uma rosa vermelha. E o corpo de Allende voltou a Santiago, atravessou a Alameda Bernardo O’Higgins, onde um povo comovido o acolheu em silêncio.

    Tudo isso para dizer que a história pode redimir-se de seus tropeços. Sentimos isso, fortemente, os que retornamos ao Brasil entre 1977 e 1979.

    Volto à atualidade. Passada a eleição, é hora de preparar um novo processo. Não deveria ser possível ressuscitar  velhos ajustes de contas, nem fazer cobranças, mas é indispensável lembrar fatos nem sempre agradáveis de ouvir. Aqui seria necessária uma grande abertura, grandeza e sentido uma revisão histórica positiva. Temos uma realidade complexa pela frente.

    Criou-se, certamente construído em bases falsas, um clima antipetista violento. Porém o próprio partido não sai totalmente absolvido. Faz muitos anos, Tarso Genro, então presidente interino, propôs sua refundação, no tempo dos escândalos do mensalão.  Não foi ouvido. Depois, vieram mais denúncias, infundadas ou não. Talvez por culpa de alguns dirigentes, o partido passou um ar de arrogância e de incapacidade para confessar falhas. E não se abriu a uma aliança, em igualdade de condições, com outros partidos e políticos. Por isso, num momento futuro, o PT não tem condições de ser o catalizador de uma nova aliança, mas certamente será um dos membros principais desse processo.

    A construção de uma frente deveria ser fruto de uma concertação em várias direções, como no Chile. O PCdoB tem dado um exemplo, colocando-se disciplinadamente nas alianças. Manuela d’Ávila deu um lindo sinal de firmeza e de discrição. Flávio Dino, reeleito largamente no primeiro turno, entrou de cheio da campanha de Haddad, ele que,  na primeira eleição, viu  dirigentes petistas apoiarem  Roseana Sarney, agora uma vez mais derrotada. O PSOL, que sai com uma expressiva votação em Marcelo Freixo, teria de abrir-se a alianças, o que não conseguira fazer na eleição municipal, que levou o incompetente Crivella à prefeitura carioca. Assim por diante, são lições a tirar, sem mágoas, mas sem esquecer a dureza implacável dos fatos.

    Podemos elencar deputados eleitos, que podem ajudar a costurar essa grande aliança: Alessandro Molon, Paulo Teixeira, Luíza Erundina, Jandira Feghali,  Jean Wyllys   e tantos outros que talvez eu esteja esquecendo. Temos senadores como Paulo Paim ou Jacques Wagner. E inclusive políticos excelentes que foram varridos pelo tsunami eleitoral, como Flavio Suplicy, Jorge Viana, Dilma Roussef, à frente em sondagens no começo do período eleitoral ou outros com boas raízes, como Lindberg Farias, Chico Alencar e  Roberto  Requião.

    É de prever que o futuro governo poderá ser errático, entre militares nacionalistas e economistas privatistas, com um presidente meio  perdido no meio. Medidas draconianas poderão fazer perder avanços históricos populares, nosso petróleo seguirá sendo rifado, como está fazendo este atual governo liliputiano. Poderão crescer  setores de repressão, à sombra de uma nova doutrina de segurança nacional.  O que parece provável é que, por um desgoverno, o presidente caia mais adiante, vítima de suas contradições e de sua incapacidade. Poderá haver pela frente o terrível risco de uma intervenção militar. Ou então, teríamos, por um tempo, uma ciranda de governos fracos. Sem uma reforma política  – E este parlamento será capaz de fazê-la? – Nos espera um futuro bastante incerto. A não ser que, lenta, mas firmemente, se vá afirmando a tão sonhada  Frente Ampla Democrática, Popular e Nacional.
    Escrevendo este texto, depois dos foguetes e dos gritos de vitória, saiu de uma janela vizinha a voz de Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Assim seja.

     

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