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Uma “renda universal”. A proposta do Papa Francisco

Artigo de Gaël Giraud

trabalho-renda-basica-900×450 Imagem publicada Por Carlos Odas

Gaël Giraud, jesuíta, economista, em artigo publicado por Civiltà Cattolica, 06-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini para IHU 18.06.2020.

Segue o artigo.

Em sua Carta aos movimentos populares, publicada no dia da Páscoa, 12 de abril de 2020, o Papa Francisco pediu a instituição de uma “renda universal” básica: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos.”[1].

A proposta não deixou de provocar reações, tanto entusiasmadas quanto críticas. Essas suas afirmações significam que o Santo Padre talvez abrace a causa de uma renda universal, paga a todos, sem condições? Ou ele pretende defender o princípio do salário justo para todos os trabalhadores? E então, se estamos realmente falando de uma renda universal incondicional, como pode uma atenção autenticamente evangélica nos orientar para avaliar bem as condições práticas de sua implementação? Ou se trata simplesmente de uma utopia irrealizável?

Essas são perguntas que precisam ser feitas, muito mais hoje, já que a gestão “medieval” da pandemia de coronavírus praticada em muitos países[2] ameaça afundar grande parte do nosso planeta em uma depressão econômica pelo menos tão severa quanto aquela vivida no Ocidente nos anos 1930. Diante da explosão do desemprego e da pobreza, que provavelmente nos acompanhará a partir de agora por toda a década de 2020, mesmo em grande parte da Europa e dos Estados Unidos, essa “remuneração universal” pode ser considerada uma das soluções para nos ajudar a sair da armadilha deflacionária? Também pode ajudar a resolver o enorme desafio da pobreza global?

Uma questão teologal

O principal problema colocado pela Carta do Bispo de Roma é o reconhecimento desses irmãos e irmãs dos movimentos populares e daqueles para quem eles trabalham: “Eu sei que muitas vezes vocês não são reconhecidos adequadamente porque, para este sistema, são verdadeiramente invisíveis. As soluções do mercado não chegam às periferias e a presença protetora do Estado é escassa.”[3]. Francisco convida a combater a invisibilidade desses “poetas sociais”, com o mesmo olhar atento de Cristo em relação àquela viúva que discretamente colocava seu óbolo no tesouro do templo (cf. Mc 12, 38-44).

Esse desafio é espiritual e político. Certamente requer uma conversão do olhar individual de cada um de nós, mas também uma reforma das estruturas sociais que produzem e mantêm a invisibilidade daqueles que vivem na periferia de nossas sociedades[4]. A possibilidade de ser visível no espaço público não se baseia exclusivamente em performances individuais, mas depende das regras sociais que legitimam e melhoram nossa vida cotidiana ou, pelo contrário, a tornam precária e a desqualificam. Visibilidade e invisibilidade não são qualidades naturais, mas formas sociais de confirmar ou negar nossos estilos de existência[5]. Rebaixamento de classe, marginalização e falta de trabalho marginalizam as pessoas a ponto de cancelá-las, excluindo-as de todas as formas de participação; o empregado, o precário, o excluído, o desempregado, a viúva, o órfão, o refugiado, o sem-teto, o paciente, tornam-se cada vez menos audíveis, cada vez menos visíveis.

Que reformas de nossas instituições podemos implementar para romper a invisibilidade em que a periferia de nossas sociedades é mantida, às vezes até dentro da Igreja? Como Francisco aponta na entrevista publicada recentemente por La Civiltà Cattolica, o que a tradição cristã chama de Espírito Santo “desinstitucionaliza” o que a Igreja não precisa mais ser e “institucionaliza” o futuro[6]. Deve-se logo dizer que essa desintegração criativa do Espírito não pode ser limitada às instituições eclesiais, no mínimo porque elas não foram desenvolvidas in abstracto, mas ainda estão situadas dentro de uma sociedade específica e de uma história. A tensão espiritual entre “desordem” e “harmonia”, evocada por Francisco, atravessa todas as nossas instituições[7]. Reformá-las é uma questão teologal, mesmo quando se trata de instituições seculares, como as que determinam a renda dos cidadãos.

Salário mínimo ou renda universal?

É dentro do horizonte dessa questão política e espiritual que se insere a proposta de uma “retribuição universal“. Trata-se de um salário mínimo reservado para quem tem emprego, ou de uma renda universal destinada a todos, sem condições?

Para economistas especialistas nessas distinções, a formulação do papa é ambígua. Por exemplo, aos olhos de um sindicalista francês como Joseph Thouvenel, secretário da Confederação Francesa dos trabalhadores cristãos, as observações de Francisco não podem ser interpretadas como um álibi para aqueles que “ficam no ócio”[8], mas podem ser apenas uma alusão à teoria do “justo salário”, formalizada por Tomás de Aquino e posteriormente retomada por Leão XIII na encíclica Rerum novarum (1891). Nesse caso, a proposta do Papa equivaleria a estabelecer um salário mínimo garantido. De fato, a atual globalização do “mercado” de trabalho implica logicamente que também as regras que permitem evitar todas as distorções possíveis sejam globais; caso contrário, a imposição de um salário mínimo em um país ou em outro apenas fornecerá um incentivo para as empresas deslocalizarem suas atividades para outro lugar.

Vários economistas, entre os quais Thomas Palley[9], propõem impor um salário mínimo, igual a 50% do salário médio de todos os países do planeta. Na Itália, isso seria equivalente a estabelecer um salário mensal mínimo de cerca de 1.860 euros (em vez dos atuais 500): um quarto da força de trabalho italiana recebe atualmente um salário inferior a esse valor, e essa cota corre o risco de aumentar nos próximos anos. Ao contrário do que se costuma afirmar, isso não causaria uma explosão do desemprego[10], levaria a aumentos bastante pequenos nos custos de produção[11] e, por outro lado, mudaria a vida de muitos “trabalhadores pobres”, mesmo na Alemanha.

No entanto, a lista de beneficiários da “remuneração universal” a que o Papa Francisco alude vai além da categoria de assalariados stricto sensu: “Os vendedores ambulantes, os recicladores, os feirantes, os pequenos agricultores, os pedreiros, as costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado. Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular, não têm um salário estável para resistir a esse momento …”12]. As várias traduções da Carta Pontifícia sugerem que o termo “salários” não pode ser interpretado de forma estrita: salaire, salarios, salário e wage, mas também Grundeinkommen e remuneração. Aqueles que devem sair da invisibilidade também são os “doentes e [os] idosos. Eles nunca aparecem nos meios de comunicação de massa, da mesma forma que os camponeses e pequenos agricultores que continuam a cultivar a terra para produzir alimentos sem destruir a natureza, sem pegar para si os frutos ou especular sobre as necessidades vitais das pessoas”[13].

Para quem, portanto, a proposta do Papa é endereçada? Para todos os “trabalhadores”. Uma dona de casa, por exemplo, cujos serviços, por não estarem no mercado, nunca são levados em consideração no cálculo do PIB, fornece uma prestação “de trabalho”? Quem são esses “trabalhadores” se não são reconhecidos por um status que os qualifica como tal? É precisamente nessa sua invisibilidade que reside o problema que Francisco quer resolver. Acreditamos que a resposta esteja nos próprios “invisíveis”. Francisco escreve: “Nossa civilização […] precisa mudar, se repensar, se regenerar. Vocês são os construtores indispensáveis dessa mudança urgente”[14]. E não seria tarefa desses obscuros trabalhadores definir as características de tal “remuneração universal” que Francisco pede? Para que “o acesso universal a esses três T: […] tierra, techo e trabajo (terra – incluindo seus frutos, isto é, o alimento -, casa e trabalho)”[15] lhes sejam garantidos nas condições que eles mesmos consideram mais adequadas?

Afinal, os debates que giram em torno da definição de salário mínimo ou de uma renda universal são conduzidos principalmente por aqueles que pertencem ao centro da sociedade. É sem dúvida a hora de dar voz aos que não têm voz, para que eles mesmos possam ajudar a decidir qual significado deve ser atribuído à “remuneração universal“, em vez de sofrer novamente a violência das definições e dos padrões impostos pelo centro.

É essa inversão de perspectiva – do centro para a periferia – que orienta, por exemplo, o movimento mundial ATD-Quarto e o pensamento do padre Joseph Wresinski[16]. Essa mudança de perspectiva não é estranha à abordagem de alguns economistas. Está na base, por exemplo, da construção de indicadores estatísticos com base participativa, como o Barômetro das Desigualdades e Pobreza (BIP 40), criado na França em 2002 por e com cidadãos comuns[17].

Utopia ou reforma profética?

Portanto, justifica-se que o Movimento francês por uma Renda Básica conclua cautelosamente que o Papa “está se aproximando da causa da renda universal“[18]. Desde que se entenda que, quando ele “se aproxima” a isso e ponto, não é por timidez, mas porque depende principalmente das próprias pessoas sem voz decidirem o que querem para elas. O respeito pela dignidade das pessoas deve ir tão longe.

Contudo, a interpretação que propomos aqui implica que é possível que a “remuneração universal” a que Francisco alude seja entendida como “renda universal” no senso comum, caso os invisíveis de nossas periferias assim o decidissem.

Existem cinco critérios normalmente usados para definir a renda universal. São:

  1. um pagamento periódico, diferente do cheque uma tantum de US $ 900 que o governo australiano enviou a seus cidadãos em 2009 para superar as consequências da crise financeira; ou aquele de US $ 1.000 que o governo Trump acabou de enviar às famílias estadunidenses[19];
  2. uma transferência monetária, ou seja, em dinheiro, que oferece a todos a liberdade de fazer o que quiserem com o próprio dinheiro, mas pressupõe, por exemplo, a abertura de uma conta bancária, uma operação incomum para muitos entre os mais pobres;
  3. uma contribuição personalizada: o pagamento é efetuado individualmente e não, por exemplo, em base familiar do ponto de vista fiscal;
  4. universal: não está sujeito a nenhum requisito específico;
  5. incondicional: o pagamento não está coberto por nenhuma obrigação do beneficiário, em especial a de procurar emprego.

Vamos lembrar algumas ordens de grandeza. O Banco Mundial identificou o limiar da linha de pobreza extrema em US $ 1,9 de remuneração diária, com paridade de poder de compra. Porém, é opinião amplamente compartilhada entre os pesquisadores econômicos que essa convenção subestime amplamente as necessidades reais de um ser humano saudável, capaz de levar uma vida digna. Uma renda mínima de US $ 7,4 por dia parece muito mais razoável[20].

Em 2018, mais de 4,2 bilhões de pessoas (60% da população mundial) ainda viviam abaixo desse limite, e esse número aumentará significativamente nos próximos meses devido às consequências catastróficas do lockdown. Que fluxo anual de renda seria necessário para permitir que essas pessoas vivessem acima desse limite? Sem entrar nos detalhes dos cálculos da paridade do poder de compra, podemos responder que custaria menos de US $ 13 trilhões. Isso pode parecer um número considerável: está próximo do PIB nominal da China em 2018. No entanto, um estudo da ONG Oxfam[21] mostra que, no mesmo ano, 1% das pessoas mais ricas do planeta recebeu uma renda anual de 56 trilhões de dólares (igual a 80% do PIB mundial). Se apenas “retirássemos” um quarto dessa renda (US$ 14 trilhões), seria suficiente financiar uma renda básica de US $ 7,4 por dia (e inclusive mais ainda) para a parte da humanidade que é privada dela. Após a “retirada”, ao maior percentil desses super-ricos ainda restariam em média US $ 47.500 de renda mensal por pessoa, o que deveria ser suficiente para permitir que continuassem levando uma vida “digna“.

Não pretendemos defender que tal “retirada” seja politicamente fácil de colocar em prática. No entanto, esses simples valores nos lembram que, ao contrário do que se pensa, o problema do financiamento da renda básica não consiste na “falta de recursos“. Da mesma forma, se, segundo estimativas das Nações Unidas, 820 milhões de pessoas ainda sofrem de fome no mundo – e esse número infelizmente aumentará nos próximos meses devido à atual situação de emergência – não é porque a biomassa produzida pelo planeta seja incapaz de alimentar a humanidade: trata-se de um problema político e ético de distribuição da riqueza.

O imaginário neoliberal da escassez, que facilmente nos conduz a pensar que uma proposta generosa seja impossível, é enganoso: vivemos em um planeta superabundante – embora ameaçado por uma crise ecológica – e em uma economia mundial muito rica, embora corra o risco de se tornar consideravelmente mais pobre devido ao lockdown e ao confinamento.

As duas formas de renda universal

Para aprofundar o exame de sua viabilidade concreta, precisamos distinguir pelo menos duas formas de “renda universal”: a primeira, diríamos “de direita“, inspirada em critérios de eficiência econômica; a outra, “de esquerda“, orientada pelo desejo de justiça social. Essa distinção elementar, no entanto, imediatamente nos obriga a sair de fáceis dicotomias: a renda universal não é nem de direita nem de esquerda, mas é transversal às nossas categorias políticas tradicionais.

O primeiro tipo de renda básica tem origem no trabalho do economista de Chicago Milton Friedman[22] e foi pensado para substituir todos os outros tipos de transferências sociais, tornando assim supérflua a introdução de um salário mínimo. Seus promotores têm a esperança de uma maior flexibilização do “mercado de trabalho” e de uma redução dos gastos públicos em solidariedade, ou mesmo de um completo abandono por parte do Estado de seu papel decisório sobre as rendas de trabalho dos cidadãos. A caridade, “mais adaptável e flexível” em relação ao Estado de bem-estar social, afirma Friedman, recuperaria assim um lugar de destaque na luta contra a pobreza.

Quem contesta essa proposta argumenta que equivaleria a garantir uma renda mínima de subsistência que torna escravo o “exército de reserva” dos cidadãos, obrigados a se empregar sob qualquer condição para melhorar suas condições de vida ordinária. Sem dúvida, é esse tipo de preocupação que alimenta a rejeição, por uma certa parte do mundo sindical, da renda universal.

Independentemente da manipulação política que possa ser feita sobre a renda básica, é inegável que sua força reside na simplicidade: a ausência de qualquer condição permite colocar em curto-circuito a eventual ineficácia dos procedimentos administrativos necessários para identificar os beneficiários das transferências sociais tradicionais, que, como sabemos, com demasiada frequência, por esse motivo, renunciam a desfrutar daquilo a que teriam direito. Consequentemente, quanto mais fraca for a administração pública de um determinado país ou o sistema de transferência social imperrado ou mesmo inexistente, mais relevante se torna a opção de uma renda universal. Essa é a razão pela qual, independentemente de sua sensibilidade política, vários economistas recomendam a implementação de tal renda na maioria dos países do Sul globalizado[23].

O segundo tipo de renda universal foi defendido, pelo menos desde 1986, por Guy Standing, um dos fundadores da Basic Income Earth Network (Bien)[24]. Diferentemente do primeiro tipo, essa seria uma renda suplementar e, portanto, não alternativa às transferências sociais já ativas, nos casos onde existem. Seria, portanto, um ótimo meio de resolver os crescentes problemas de insegurança financeira da classe média e das camadas populares e, acima de tudo, possibilitaria outro tipo de relação de trabalho. A desumanidade das condições de trabalho em algumas situações – das quais a tragédia do Rana Plaza, em Bangladesh em 2013, se tornou o símbolo – deve-se obviamente à necessidade, por aqueles que não têm alternativa, de serem contratados sob qualquer condição para sobreviver. Mas mesmo em países ricos, uma renda universal desse tipo certamente implicaria o fim dos chamados bullshit jobs[25] (“trabalhos inúteis”), como o são aqueles de uma parcela crescente de funcionários de nossas administrações públicas e empresas privadas: se posso me permitir viver sem trabalhar, por que deveria aceitar um emprego socialmente inútil e que me deixa insatisfeito?

Tal ferramenta reverteria radicalmente os termos de negociação implícitos em qualquer relação de trabalho, seja ele formalizado por um contrato ou não. Evidentemente, ao fortalecer o poder de barganha dos trabalhadores, isso certamente levaria a uma redução da cota da renda de capital em valor agregado de uma economia e a um aumento na cota de renda do trabalho. Porém, isso corrigiria a tendência inversa que se registra há quarenta anos às custas da grande maioria de nós: desde o final do boom econômico do pós-guerra, e na maioria dos países anteriormente industrializados, a cota da renda do trabalho caiu de 70%. 80% do PIB para 60%.

As virtudes atribuídas por seus defensores “progressistas” à renda universal são frequentemente questionadas por seus opositores: um tipo de renda assim não forneceria um álibi para não trabalhar mais? Longe de fortalecer os laços sociais, não causaria a dissolução das relações humanas? Por trás dessas questões, podemos ver duas filosofias políticas radicalmente opostas: por um lado, a de Thomas Hobbes ou John Locke, para os quais o homem é um átomo, até mesmo um lobo, um ser solitário que se envolve em relações com os outros apenas por interesse; pelo outro, a de uma antropologia relacional que pertence à grande tradição cristã[26]. Nessa segunda perspectiva, é apenas no contexto das relações sociais constitutivas da humanidade como tal que pode acontecer o reducionismo que consiste na busca de meu interesse particular.

É possível resolver esse debate com a ajuda do que observamos empiricamente? Desde 2010, em vários países começaram os experimentos com a renda básica. Eles testemunham o crescente interesse por tal medida antes mesmo da pandemia[27], mas revelaram, às vezes, uma certa falta de ambição por parte dos governos e a dureza do debate político que acompanha tais experiências: embora tenham sido instrumentos de escopo limitado, muitos foram interrompidos antes do tempo.

No Canadá, o Projeto Piloto de Renda Básica de Ontário, lançado em 2018 para testar o impacto de uma renda básica em 4.000 canadenses, foi cancelado após alguns meses pelo recém-eleito partido conservador. O objetivo era experimentar o efeito da renda básica em segurança alimentar, estresse e ansiedade, saúde – incluindo a saúde mental -, casa, educação e participação no mundo do trabalho[28]. Podemo-nos perguntar: se é tão óbvio que uma renda universal resultaria prejudicial a todos, por que não deixar que o experimento prove isso? Na realidade, experimentos com um salário mínimo (ou seu aumento) muitas vezes demonstraram o oposto do que seus oponentes previam, ou seja, um aumento generalizado dos salários e do número de horas trabalhadas, bem como uma redução no desemprego[29]. Talvez haja alguém que tema que isso possa ser demonstrado que uma renda básica beneficiaria a maioria?

Em 2014, um experimento na Índia estabeleceu o objetivo de testar a renda universal como um meio para injetar liquidez em ambientes onde a troca monetária é limitada. As conclusões de tal experimento, que poderia ter sido conduzido até o fim, se dissolveram, mas foram extremamente positivas. Elas sugerem que, devido às suas consequências sociais, o “valor” econômico da renda universal excede em muito o valor nominal atribuído a cada destinatário[30]. Finalmente, numerosas experimentos de transferência de dinheiro provaram ser proveitosas na Namíbia, na Índia e em uma dúzia de países no hemisfério sul, a tal ponto que, após décadas de sarcasmo, vários analistas agora a consideram “a chave do desenvolvimento”[31].

Bens comuns versus privatização do mundo

O experimento realizado no Alasca desde 1982 merece menção especial. De fato, todos os anos, uma fração dos dividendos do petróleo é distribuída aos residentes, incondicionalmente e individualmente. Os montantes – entre US $ 1.000 e US $ 2.000 por ano, dependendo do período[32] – estão na ordem de grandeza da linha de pobreza de US $ 7,4 por dia mencionados acima. Trata-se de quantias pequenas, é claro, considerando o padrão de vida médio naquele estado dos EUA. Mas o mais interessante é o princípio usado pelo Estado do Alasca para justificá-los: trata-se de uma compensação pelo direito de exploração de um bem comum, o petróleo, que realmente pertence a cada um dos residentes.

Para entender o significado dessa maneira original de financiar uma renda universal, é necessário dar um passo atrás. Em 1217, a Carta Floresta havia concedido aos agricultores britânicos o direito de desfrutar dos commons – “bens comuns” – florestas, pastos, pastagens, rios – para estocar madeira, água e alimentar seus rebanhos etc. A Inglaterra formalizou um direito que era percebido pela maioria da população como natural e que já havia sido reconhecido pela lei romana com a categoria res communis, colocada pelo Código Justiniano no topo da hierarquia dos bens, enquanto a propriedade privada ocupava o último lugar.

Já no século XV, como sabemos, a nobreza britânica promoveu o movimento dos enclosures (“cercas”), para delimitar os commons e, assim, decretar que a partir daquele momento eles eram propriedade exclusiva do senhor local. Ao privar os camponeses pobres de toda forma de subsistência, esse movimento contribuiu a empurrá-los para as cidades, na busca desesperada de meios para sobreviver. Sem esse êxodo rural, a revolução industrial nunca teria surgido. Assim, desde o início, foi a privatização dos bens comuns que produziu e incentivou aquelas formas desumanas de trabalho assalariado que conhecemos há três séculos[33].

Uma renda básica, mesmo que apenas parcialmente universal, quebraria essa lógica perversa. É possível que um instrumento desse tipo se articule de alguma forma com a onipotência da privatização, que hoje se traduz em um segundo movimento de enclosures, que atinge novos commons, como os bens e serviços do ecossistema, o genoma humano, a propriedade intelectual, produções artísticas e potencialmente todas as atividades humanas?

O exemplo do Alasca fornece o esboço de uma resposta positiva. Por que não imaginar que uma fração da receita proveniente da exploração de nossos bens comuns globais seja redistribuída para financiar uma renda básica? Não seria este um meio concreto e eficaz de honrar o destino universal dos bens, cara aos Padres da Igreja e à doutrina social da Igreja? Por exemplo, a atmosfera é certamente um bem comum para o mundo inteiro: um imposto global sobre o carbono – como aquele enfaticamente defendido pela Comissão Stern-Stiglitz[34] – de 120 euros por tonelada de CO2 produzida[35], aplicada às 100 empresas multinacionais responsáveis por 70% das emissões, geraria 3,1 mil bilhões de euros por ano. Estendida a todos os outros tipos de emissão, essa taxação forneceria 4.430 bilhões de euros. Geridas por um Fundo Internacional[36], essas receitas poderiam ser distribuídas às populações que vivem abaixo da linha de pobreza[37]. Pode-se argumentar que não são suficientes para tirar a humanidade da pobreza extrema. Não importa: um imposto de 27% sobre os US $ 32 mil bilhões atualmente escondidos nos paraísos fiscais seria suficiente para complementar o que está faltando, para que todos possam viver com mais de US $ 7,4 por dia. Também as rendas provenientes da propriedade de terras, florestas ou até resíduos – um “mal comum” – poderiam estar sujeitas a tributação global.

Qualquer que seja a opção escolhida, deve ser feita após consultar todas as partes interessadas. De fato, muitas outras questões surgem sobre os destinatários de uma renda básica, caso ela viesse a ser apenas parcialmente universal: deveríamos, por exemplo, reservá-la para menores de 25 anos, visto que se pode pensar que a maioria deles terá uma dificuldade considerável em encontrar trabalho na Europa nos próximos anos?

Nenhum discernimento coletivo verdadeiramente frutífero pode ser feito sobre tais questões fundamentais até que aqueles que são relegados nas periferias da nossa sociedade não possam tomar parte ativa delas. Como Francisco escreveu em sua Carta aos trabalhadores dos movimentos populares: “Essa atitude de vocês me ajuda, questiona e ensina muito”[38].

Notas:

[1]. Francisco, Carta aos movimentos populares, 12 de abril de 2020.

[2]. Cf. G. Giraud, «Per ripartire dopo l’emergenza Covid-19», em Civ. Catt. 2020 II 7-19.

[3].Francisco, Carta aos movimentos populares, cit.

[4].Esse desafio, por exemplo, está no centro das reflexões de Axel Honneth, Paul Ricœur e Judith Butler. Veja A. Honneth, La lutte pour la reconhecimento, Paris, Cerf, 2000; P. Ricœur, “Parcours de la reconnaissance”, em Mondes en développement, Paris, Stock, 2004; J.P. Butler, Giving an Account of Oneself, New York City, Fordham University Press, 2005.

[5]. G. Le Blanc, L’ invisibilité sociale, Paris, PUF, 2009. Esse também é o tema do belo filme Les invisibles, dirigido pelo diretor francês Louis-Julien Petit em 2019.

[6]. Cf. A. Ivereigh, «Il Papa confinato. Intervista a papa Francesco», no site La Civiltà Cattolica.

[7]. Essa afirmação é central à teologia de Ch. Theobald, Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité,, vol. 1, Paris, Cerf, 2007.

[8]. Cf. J. Thouvenel, “Le revenu universel, meilleur ennemi des travailleurs“, em Valeurs, 18 de abril de 2020.

[9]. Cf. Th. Palley, A Global Minimum Wage System, no FT Economists’ Forum, 18 de julho de 2011.

[10]. Cf. J. Schmitt, Why Does the Minimum Wage Have No Discernible Effect on Employment?, Washington, Center for Economics and Policy Reasearch, fevereiro de 2013

[11]. Principalmente porque os riscos das espirais inflacionárias no contexto da deflação no Ocidente são iguais a zero, a menos que o custo das matérias-primas exploda devido à interrupção de algumas cadeias de suprimentos devido à pandemia. Portanto, a inflação não seria a consequência do custo do trabalho.

[12]. Francisco, Carta aos movimentos populares, cit.

[13]. Ivi.

[14]. Ivi. Os itálicos são nossos.

[15]. Ivi.

[16]. Cf. G. Mucci, Joseph Wresinski. Un costruttore sociale em Civ. Catt. 1996 I 436-445.

[17]. Cf. disponível aqui.

[18]. G. Normand, Le Pape François s’approche de la cause du revenu universel, em revenudebase.info, 16 de abril de 2020.

[19]. São iniciativas que hoje seriam bem-vindas na Europa.

[20].Cf. D. Woodward, “Incrementum ad Absurdum: Global Growth, Inequality and Poverty Eradication in a Carbon-Constrained World”, in World Social and Economic Review, 9 de fevereiro de 2015.

[21]. Cf. Oxfam, Partager la richesse avec celles et ceux qui la créent, janeiro de 2018.

[22]. Cf. M. Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago, University of Chicago Press, 1963; Id., “The Case for the Negative Income Tax: A View from the Right”, in Proceedings of the National Symposium on Guaranteed Income, Washington, DC, Câmara de Comércio dos EUA, 9 de dezembro de 1966. A proposta foi imediatamente aceita pelos economistas keynesianos, o que indica sua ambivalência desde o início: cf. J. Tobin – J.A. Pechman – P.M. Mieszkowski, “Is a negative income tax practical?”, in The Yale Law Journal , vol. 77/1, novembro de 1967.

[23]. Cf. M. Ghatak – F. Maniquet, “Universal Basic Income: Some Theoretical Aspects”, in Annual Review of Economics 11 (2019) 895–928.

[24]. Cf. disponível aqui; ver também o discurso de Standing no Fórum de Davos em 2017.

[25]. Cf. D. Graeber, Bullshit Jobs: A Theory, New York, Simon & Schuster, 2018

[26]. Cf. Ch. Theobald, Selon l’Esprit de sainteté. Genèse d’une théologie systématique, Paris, Cerf, 2015.

[27]. Cf., por exemplo o relatório solicitado pela Escócia: A. Painter – J. Cooke – I. Burbidge – A. Ahmed, A Basic Income for Scotland, maggio 2019.

[28]. A proposta do Ontario Basic Income Pilot Project.

[29]. Cf. P. Constant, «New UW Report Finds Seattle’s Minimum Wage Is Great for Workers and Businesses”, in Civic Skunk Works, 22 de julho de 2016.

[30]. Cf. G. Standing, “Why Basic Income’s Emancipatory Value Exceeds Its Monetary Value”, in Basic Income Studies 10 (2015/2).

[31]. Cf. Oxfam, “Just Give Money to the Poor: the Development Revolution from the Global South”, an excellent overview of cash transfers”, 24 de maio de 2010.

[32]. Cf. TJ Isenberg, “What a New Survey from Alaska Can Teach Us about Public Support for Basic Income”, in Economic Security Project, 28 de junho de 2017.

[33]. Cf. G. Giraud, Composer un Monde en commun, une “théologie politique” de l’ Anthropocène, Paris, Seuil, no prelo.

[34]. Cf. Carbon Pricing Leadership Coalition, Report Of The High-Level Commission On Carbon Prices, 29 de maio de 2017.

[35]. Trata-se do atual nível de imposto no carbono aplicado na Suécia.

[36]. Pode-se imaginar uma supervisão das Nações Unidas, desde que esta, agora completamente paralisada pela pandemia, se reforme para dar pleno espaço aos países emergentes do hemisfério sul.

[37]. A proposta de financiar uma renda básica parcial com um imposto sobre o carbono foi feita por dois ex-Secretários de Estado Republicanos e pelo Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson. Cf. M. Howard, “Conservative Carbon Dividend Proposal is a Welcome Development for Introduction of Partial Basic Income”, in Basic Income News, 11 de fevereiro de 2017.

[38]. Francisco, Carta aos movimentos populares, cit.

 

 

 

 

 

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