Um novo jeito de ser Igreja: entre frestas e brechas da Cristandade

Marcelo Barros (foto arquivo pessoal)

Muitas pessoas perguntam como se explica que, em nossos dias, no Brasil e em outros países, a maioria das paróquias católicas tenta reproduzir um Catolicismo devocional, da época das nossas avós. Em paróquias e dioceses, nas quais, há algumas décadas, se realizavam encontros de comunidades eclesiais de base e círculos bíblicos, atualmente, só se fazem novenas de santos e santas, sucedidas por terço dos homens e adoração ao Santíssimo Sacramento. Muitos padres, na maioria, jovens, dão mais importância a vestes litúrgicas romanas do que ao serviço do povo. Para celebrar missa, precisam da corte de dez ou doze coroinhas, paramentados com túnicas vermelhas. Também no mundo evangélico, o devocionismo toma conta das Igrejas.

No âmbito católico, há quem atribua aos papas João Paulo II e Bento XVI a responsabilidade por isso. De fato, eles fizeram tudo para promover uma volta à Cristandade, ou a organização de uma espécie de Neocristandade.

Comumente costuma-se chamar de “Cristandade” o sistema social e político, no qual a cultura e a sociedade eram ou são fortemente influenciadas pela Igreja Cristã[1]. Do mesmo modo, tem se denominado Neocristandade a tentativa da Igreja Católica recuperar seu poder político, assim como o projeto de alguns grupos de instituir um Brasil pentecostal.

Hoje, novamente, se cruzam movimentos políticos e religiosos, sempre em busca da influência social e controle do poder. Voltam à lógica dos tempos coloniais. Só que, dessa vez, instrumentalizam a fé, de forma menos ingênua e mais brutal do que nos tempos da Cristandade clássica.

Atribuir o retrocesso eclesiológico que vivemos aos papas anteriores a Francisco podeeximir dessa responsabilidade atores bem mais próximos e diretos. Se bispos, padres e grupos católicos, mesmo alguns de postura pastoral considerada aberta, não estivessem imbuídos de uma cultura religiosa tributária da Cristandade, dificilmente, as autoridades romanas e seus embaixadores teriam tido tanto êxito em sua missão de dar ao mundo a impressão de que o Concílio Vaticano II nunca existiu.

Atualmente, mesmo em dioceses, nas quais até 40 ou 30 anos, a missão era na linha do Cristianismo de Libertação, mesmo quando os bispos se mostram abertos e solidários ao serviço do povo, são padres, diáconos e grupos de fieis que optam por um Catolicismo puramente devocional e cada vez mais romanocêntrico. No campo ecumênico, o próprio Conselho Ecumênico de Igrejas Cristãs (CONIC) parece inclinar-se para um ecumenismo eclesiástico e clerical que demite a secretária geral por ter tido coragem de assumir as causas feministas e inserir a atividade ecumênica no mundo real dos oprimidos e das oprimidas desse mundo.

Convido vocês para tentarmos compreender esse fenômeno que é complexo em suas motivações e em suas expressões, mas se caracteriza por ensaiar o que seria uma volta à eclesiologia de Cristandade.

Ao propor essa reflexão, me coloco como “irmão e companheiro de vocês na tribulação, (no momento atual do mundo é o que não nos falta), no reino (esperança de vermos se realizar o projeto divino no mundo) e na perseverança em Jesus” (Apoc 1, 9)

1 – A Cristandade morreu, mas continua referência eclesial

Em julho de 2025, se realizou na PUC, em Belo Horizonte, o 40º Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER). Na manhã do penúltimo dia, dom Joaquim Mol, bispo coadjutor da diocese de Santos e a querida professora Maria Clara Bingemer falaram sobre os 60 anos do Concílio Vaticano II e sua herança para a teologia de nossos dias. Dom Mol e Maria Clara mostraram as imensas transformações que os documentos do Vaticano II e suas intuições teológicas e pastorais trouxeram para a Igreja Católica e outras Igrejas.

Logo no início de sua fala, o bispo citou o papa Francisco, ao afirmar: “Não estamos mais na cristandade. Não mais!”[2]. Dom Mol prosseguiu: “A Cristandade terminou, mesmo que alguns insistam, amarga e desnorteadamente, em reavivá-la, como se tenta reanimar um defunto em putrefação[3].

A Cristandade como religião civil pode estar superada, embora no Brasil, a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se engaja em defender documentos como a Concordata[4], conforme o qual, a hierarquia católicase sente com o direito de gozar de alguns privilégios, em áreas importantes como educação, isenção de impostos e outras regalias.

Antes do Concílio Vaticano II, o teólogo Yves Congar afirmava que, na vigência da Cristandade, a Eclesiologia tinha sido reduzida à hierarcologia[5]. Na prática, Igreja seria sinônimo de hierarquia. É uma pirâmide, no vértice da qual está o papa. Nesse modelo eclesiástico, se confunde ministério com hierarquia e se aceita sinodalidade, desde que se mantenha intocável o poder hierárquico do papa, dos bispos e dos padres.

Assim, o Clericalismo[6] persiste necessariamente, não como abuso do sistema, abuso frequentemente denunciado pelo papa Francisco e sim, infelizmente, como expressão normal do próprio sistema[7].

Em 1975, aconteceu em Vitória, ES, o 1º Encontro Intereclesial de CEBs. O tema do encontro foi “Igreja que nasce do povo, pela força do Espírito”. Em 1975, esse encontro foi ecumênico. Contou com a presença de quatro evangélicos, não como observadores e sim como participantes normais: dois pastores presbiterianos (IPU), um irmão de Taizé (luterano) e a esposa de um dos pastores.

Agora, depois de 50 anos, quem vê a realidade da Igreja Católica e de outras Igrejas, no Brasil e no mundo, pode pensar que aquilo não passou de um projeto utópico, ensaiado por minorias abraâmicas, que talvez não tenham sido tão abraâmicas assim, já que esse projeto parece não ter sobrevivido ao inverno eclesial de décadas mais recentes. No entanto, de fato, esse novo modo de ser Igreja resiste teimosa e profeticamente, em pequenos cenáculos de resistência, praticamente ignorados pela maioria do clero e da hierarquia, justamente, nas brechas e frestas da reconstrução atual da Cristandade. Embora frágil, como uma flor em meio a campo seco, esse projeto aponta para a profecia de um novo modo de ser Igreja.

Na década de 1990, tornou-se público, um debate eclesiológico entre o cardeal Joseph Ratzinger e o cardeal Walter Kasper. Ratzinger defendia que a Igreja Universal é anterior e precede as Igrejas locais e estas dependem dela. O Cardeal Kasper sustentava a posição eclesiológica mais fiel ao Concílio Vaticano II: a Igreja é fundamentalmente local. A Igreja Universal é a comunhão das Igrejas locais e, portanto, depende das Igrejas locais. A Igreja de Roma é a primaz dessa comunhão e deve exercer um primado não de poder e sim de serviço à unidade de todas as Igrejas[8].

Nesse diálogo entre os dois cardeais, se revelavam duas visões conflitantes de Igreja: o Cardeal Ratzinger defendia um modo de ser Igreja que continua o modelo da Cristandade, não mais para refazer o regime teocrático da Cristandade, mas para organizar internamente a Igreja, a sua missão e a sua espiritualidade, a partir desse modelo.

O Cardeal Walter Kasper sabe que a visão de Igreja que defende é ainda projeto e esperança, vivida somente em pequenos grupos eclesiais e por minorias abraâmicas. O Concílio Vaticano II definiu a Igreja como povo de Deus e aceitou os ministérios ordenados como serviços a esse conjunto. No entanto, a cultura não muda porque a teologia mudou.

O papa Francisco conseguiu oferecer ao mundo uma perspectiva nova para a missão das Igrejas. Retomou a centralidade da opção pelos pobres, no que deve ser a missão das Igrejas cristãs. Foi o primeiro papa a condenar claramente o Capitalismo. Dizia: “esse sistema mata!”. Ao se colocar, antes de tudo, como bispo de Roma, Francisco valorizou as Igrejas locais e respeitou o direito de cada diocese ser Igreja com rosto próprio. Alertou o mundo para a prioridade da questão ecológica e propôs a Ecologia Integral como elemento essencial da missão da Igreja. No entanto, no que diz respeito à organização interna da Igreja, principalmente, aos bispos, padres e movimentos religiosos, não parece ter conseguido quase nada.

A primeira dificuldade para isso foi que a maioria das instituições eclesiásticas, às quais estamos ligados, continuam organizadas, a partir da lógica da Cristandade. Hoje, em quase todo o mundo, qualquer pessoa pode tomar um transporte público e, em pouco tempo, se dirigir ao outro lado da cidade e participar da paróquia ou comunidade na qual se insere melhor. No entanto, enquanto a ordem não vier de Roma, as paróquias católicas continuarão a ser territoriais. As congregações e ordens religiosas, às quais muitos e muitas de nós pertencemos, são organizadas a partir da lógica e da teologia da Cristandade, com governo geral e com legislações que são aprovadas pelo Vaticano e dependem do Papa e da Cúria Romana. Muitas congregações mantêm colégios com nomes de seus santos e santas fundadores. Apostam em uma educação religiosa, baseada no pressuposto de que fazer missas em colégio, promover primeira comunhão e festas de padroeiro (a) provocarão conversão e conduzirão alunos e alunas à fé cristã.

Teólogos e teólogas convivem diariamente com universidades que se chamam PUC: Pontifícia Universidade Católica. Como compreender isso, a não ser em uma lógica de Cristandade?

É a mesma mentalidade que explica o fato de que, em maio de 2025, em pleno século XXI, através da televisão e da internet, boa parte da humanidade retornou à Idade Média para acompanhar o conclave, por ocasião da eleição do papa Leão XIV. Cardeais vindos de todo o mundo revitalizaram as pompas do consulado romano do velho império pagão. Sem constrangimento, repetiram o ritual do fechamento das portas da Capela Sixtina e o Extra omnes, (todos para fora), inócuo no mundo atual, com todos os recursos de comunicação virtual e oposto ao evangelho de Jesus e a tudo o que o papa Francisco ensinava sobre a natureza e a missão da Igreja que deve ser aberta a todos e não fechada e excludente.

Procurados pelos meios de comunicação, alguns companheiros e companheiras, ligados ao Cristianismo de libertação. foram chamados por programas de televisão e internet a traduzir para o mundo do século XXI, os rituais medievais do Conclave, o sentido da fumaça branca e fumaça preta. Assim, tentaram ajudar as pessoas a crer que, apesar das portas fechadas, o Espírito Santo também era convidado ao Conclave.

Em Roma, as cerimônias de sepultamento do papa Francisco e do novo conclave pareciam nos fazer voltar ao século XI, quando o mundo católico era a Europa ocidental e o papa era escolhido para ser soberano dos Estados Pontifícios e coroar o imperador do Sacro Império Romano Germânico. E nós, que amamos a Igreja, tínhamos de nos conformar que fosse essa a imagem da Igreja Católica, transmitida à humanidade de hoje.

Tudo isso me recorda que, em 1966, portanto, imediatamente depois do Concílio Vaticano II, dom Helder Camara, então arcebispo de Olinda e Recife, propôs ao papa Paulo VI, que ele renunciasse a ser chefe de Estado, entregasse o Vaticano à ONU e, para sinalizar mais profundamente que era o bispo de Roma, fosse morar na Igreja de São João de Latrão, antigo palácio do bispo de Roma. O Dom nunca recebeu resposta do papa, mas houve a confirmação de que este recebeu a carta. Isso se deu através de uma carta oficial do Cardeal Villot, secretário de Estado, que afirmava:

Excelência, o Santo Padre recebeu e agradece a sua carta, mas recorda à Vossa Excelência que não vivemos mais nos tempos do Evangelho”[9].

O que movia Helder Camara e, recentemente, o papa Francisco não era a volta aos tempos do Evangelho e sim o esforço para retomar o seu Espírito.

2 – E o sonho de um Brasil protestante ou pentecostal?

Isso que é assim na Igreja Católica, poderia também se aplicar a Igrejas e instituições do protestantismo histórico.

Como na Igreja Católica, há um grupo (minoritário) de extrema direita, que torce para recompor a Cristandade, dessa vez, protestante ou pentecostal. No entanto, há uma grande quantidade de evangélicos (as) que não são de extrema-direita, nem optam pelo fundamentalismo bíblico puro e simples. No entanto, também eles e elas se movem em instituições pensadas e mantidas a partir de uma teologia de seus fundadores nos séculos XVI e XVII e, portanto, mantêm a eclesiologia de Cristandade.

O grupo evangélico e pentecostal “de direita” é muito claro e, diariamente, aparece nas mídias. De fato, por todo o Brasil, algumas figuras políticas continuam a insistir que tal cidade, ou tal estado é de Cristo. Vereadores (as) propõem que municípios distribuam Bíblias para escolas públicas. Em nome da fé cristã, grupos fundamentalistas atacam e agridem comunidades de cultos afrodescendentes e indígenas.

No Congresso Nacional, católicos e evangélicos tradicionalistas, assim como pentecostais “terrivelmente evangélicos”, usam o pretexto de defesa dos valores da família para impor regras morais de suas Igrejas, como se fossem do próprio Deus. A maioria forma a bancada da Bíblia, ao mesmo tempo que também participa das bancadas do boi eda bala.

Nas periferias e bairros mais pobres de nossas cidades, onde faltam os mais básicos serviços sociais, se erguem templos ricos, com todos os recursos da técnica e da eletrônica. Não falta dinheiro e relação com o poder.

Em 2017, baseado nessa realidade, o cineasta Cláudio Assis fez o filme Divino Amor, parábola, conforme a qual, em 2027, o Brasil será pentecostal e a festa do Carnaval, substituída pela festa do Divino Amor.

Existiria o que se costumou chamar de teologia da prosperidade e depois teologia do domínio, sem se basear em uma ideologia de Cristandade?

Sem dúvida, essa tentativa de reanimar a Cristandade contou também com a mudança sociocultural, pela qual a sociedade internacional passou a partir dos anos 1990, depois da queda da cortina de ferro e o fim da União Soviética, com movimentos como o neoliberalismo e a chamada globalização. Mesmo na sociedade civil, desde o final do século XX, ocorre o estranho fenômeno de que, frequentemente, a geração dos filhos seja mais conservadora do que a de seus pais.

Desde os anos 1970, o governo dos Estados Unidos descobria que, na América Latina, deveria apoiar grupos pentecostais e carismáticos para contrabalançar no meio do povo a influência do Cristianismo da Libertação. Agora, em nossos dias, ressoa a notícia de que, nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump anunciou a criação de um Escritório de Fé da Casa Branca, liderado pela reverenda Paula White, apresentada como “conselheira religiosa” do presidente e “tele-evangelista”[10].

O Bispo Edir Macedo reconstruiu o que ele considera ter sido o templo de Salomão. Ali, parece pretender reconstruir alguns elementos da religião do templo em um Cristianismo que lê a Bíblia judaica de forma literal e, ao mesmo tempo, rejeita a tradição judaica dos profetas e profetizas.

Silas Malafaia aparece nas pesquisas como um dos brasileiros mais ricos do mundo. Exerce o papel de guru espiritual da direita política, até o ponto em que seja oportuno para o seu bolso e suas ambições.

É importante sublinhar que, por mais ruído que façam, é claro que esses grupos são dominantes em alguns grupos neopentecostais e pentecostais, mas é minoritário nas Igrejas históricas.

É fundamental valorizar os grupos e movimentos de militantes ativos vindos das Igrejas evangélicas históricas e de algumas Igrejas pentecostais que formam coletivos como “evangélicos progressistas”. Esses irmãos e irmãs se formam em escolas de teologia abertas à contemporaneidade. É gente com consciência críticaque dialoga com a melhor parte da humanidade e se coloca solidária com as grandes causas do povo. No entanto, nas suas Igrejas e ministérios, vivem como em brechas e frestas da lógica de Cristandade. São obrigados (as) a conviver comestruturas de Cristandade, tal qual vemos na Igreja Católica. Nas confissões evangélicas, embora essas estruturas sejam mais leves do que as católicas, ainda são intrinsecamente autorreferentes e contra a profecia.

Se não fosse assim, como explicar a opção atual da maioria dos pastores metodistas brasileiros por uma Igreja mais ritual e carismática e, consequentemente, menos ecumênica e menos profética?

Como explicar o gosto da maioria de bispos (as) e reverendos (as) anglicanos por paramentos medievais, ainda oriundos da cultura inglesa ou até romana do antigo império?

Só a cultura religiosa de Cristandade pode explicar que as novas edições dos livros litúrgicos contenham uma linguagem sempre mais sacral e mais separada da vida cotidiana e da cultura da humanidade de hoje. Na Igreja Católica, a nova edição do Missal Romano tem uma teologia e subtende uma espiritualidade mais alienada e menos evangélica do que as edições anteriores. Em outras Igrejas, como o Livro da oração comum da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) e da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), as novas edições dos livros litúrgicos procuraram eliminar as expressões patriarcais, o que já foi uma conquista. O Missal Romano nem isso fez. Cada vez, que os textos litúrgicos falavam em “homens”, modificaram para “homens e mulheres”. No entanto, quando, nas orações, se referem a Deus, a linguagem continua a ser clerical, dualista e separada da vida concreta, o que só reforça a cultura de Cristandade.

Nessas Igrejas, infelizmente, a abertura dos ministérios para as mulheres ainda ocorre dentro da perspectiva da Cristandade clerical. Abrem-se os ministérios ordenados para as mulheres, mas mantem-se a diferença essencial entre clero e laicato. E mulheres ordenadas usam insígnias e vestes masculinas. Esse modo de se apresentar como clero e hierarquia modela a mente e corações. Dá ao mundo o testemunho de uma Igreja que continua fiel à Cristandade de outros séculos, no lugar de escutar “o que o Espírito diz hoje às Igrejas” (Ap. 2, 7).

Tanto em algumas Igrejas evangélicas, como na Igreja Católica, ministros que se distinguem por paramentos e vestes clericais dão ao mundo o testemunho de uma religião colonial, resquício do velho Império Romano e não do Cristianismo do evangelho, o qual pastores como Helder Camara, José Maria Pires, Antônio Fragoso, Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga e outros viviam como profetas.

3 – Cristandade como modelo de Igreja e de pastoral

Na década de 1990, tornou-se público, um debate eclesiológico entre o cardeal Joseph Ratzinger e o cardeal Walter Kasper. Ratzinger defendia que a Igreja Universal é anterior e precede as Igrejas locais e estas dependem dela. O Cardeal Kasper sustentava a posição eclesiológica mais fiel ao Concílio Vaticano II: a Igreja é fundamentalmente local. A Igreja Universal é a comunhão das Igrejas locais e, portanto, depende das Igrejas locais. A Igreja de Roma é a primaz dessa comunhão e deve exercer um primado não de poder e sim de serviço à unidade de todas as Igrejas[11].

Nesse diálogo entre os dois cardeais, se revelavam duas visões conflitantes de Igreja: o Cardeal Ratzinger defendia um modo de ser Igreja que continua o modelo da Cristandade, não mais para refazer o regime teocrático da Cristandade, mas para organizar internamente a Igreja, a sua missão e a sua espiritualidade, a partir desse modelo.

O Cardeal Walter Kasper sabe que a visão de Igreja que defende é ainda projeto e esperança, vivida somente em pequenos grupos eclesiais e por minorias abraâmicas. O Concílio Vaticano II definiu a Igreja como povo de Deus e aceitou os ministérios ordenados como serviços a esse conjunto. No entanto, a cultura não muda porque a teologia mudou.

Em meados deste agosto de 2025, alguns canais de comunicação, ligados a grupos católicos tradicionalistas, celebraram o fato de que o Papa Leão XIV escreveu aos bispos católicos da Amazônia que a missão da Igreja é anunciar Jesus Cristo e não devemos adorar a Mãe-Terra. De fato, por ocasião de um encontro dos bispos da região amazônica em Bogotá (de 17 a 22 de agosto), o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, dirigiu ao cardeal Pedro Barreto Jimeno, presidente da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), um telegrama de Leão XIV, no qual o papa agradece aos bispos por “seus esforços para promover o bem maior da Igreja para os fiéis do amado território amazônico“. Nessa mensagem, o papa afirma: É necessário que Jesus Cristo, em quem se recapitulam todas as coisas, seja anunciado com clareza e imensa caridade entre os habitantes da Amazônia”.E elenca três elementos, ou dimensões da missão da Igreja: 1 – o anúncio do evangelho, 2 – a solidariedade aos povos da região    3 – o cuidado com a Casa Comum.Ainda acrescenta: O cuidado com a terra e a natureza se baseia no fato de que toda criação é feita para louvar ao Criador[12].

As mesmas redes sociais que festejaram esse telegrama do papa também aplaudiam o fato de que Dom João Santos Cardoso, arcebispo de Natal, publicou no site da CNBB uma síntese crítica do livro A Crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação, do frei Clodovis Boff e do padre Leandro Adorno. Em seu ensaio, o arcebispo ressalta que, ao examinar o “declínio atual da Igreja Católica, a obra de Clodovis Boff e Leandro Adorno afirmam que a Igreja perde fiéis porque, em muitos contextos, deixou de comunicar de forma viva o mistério de Deus, oferecendo respostas mais sociológicas que espirituais. (…)“A gravidade está no deslocamento do centro da Igreja de Cristo para o mundo, priorizando demandas sociais em detrimento da experiência teologal”[13].

O livro de Clodovis Boff e do padre descreve e critica a proposta de Igreja que, durante esses 50 anos, nos deram muitos irmãos e irmãs mártires. Essa acusação que hoje esse livro faz é a mesma que os militares e senhores que matavam nossos mártires faziam em outras décadas.

No fundo, em 2025, essa discussão volta aos conflitos internos nas pastorais e na organização missionária da Igreja do começo dos anos 1970. Motivados pela conferência eclesial de Medellín (1968) e de suas conclusões, em 1972, um grupo de missionários da Amazônia criam o Conselho Indigenista Missionário. A orientação é que as missões indígenas nas aldeias não iriam mais pretender converter as comunidades indígenas à religião e sim iriam inserir-se amorosamente e apoiar a caminhada dos povos indígenas na reconquista de suas terras, na revalorização de suas culturas e no direito de viverem suas espiritualidades originárias. Três anos depois, a assembleia que fundou a Comissão Pastoral da Terra (CPT) propunha trocar o modelo de missão da Pastoral Rural (evangelização do homem do campo) pela inserção amorosa e apoio às causas do povo do campo: Reforma Agrária, agricultura ecológica, etc. É claro que, naquela época, o maior embate era dentro da própria Igreja: reclamavam o P da CPT, ou seja, não reconheciam que o martírio de pessoas como o Padre Josimo Tavares, Margarida Alves, Ezequiel Ramín e a Irmã Dorothy Stang foi fruto de sua doação pastoral e espiritual e não era apenas consequência da posição política desses irmãos e irmãs.

Agora, tantos anos depois desse batismo de sangue, esses irmãos tentam de novo nos fazer retomar à Cristandade, como se essa fosse mais de acordo com o evangelho de Jesus e a sua proposta de testemunha do reinado divino no mundo.

Seria muito bom que esses críticos das demandas sociais pudessem nos mostrar em quais as dioceses e Igrejas hoje sobrevive o modelo de Igreja da caminhada que, em 1975, o 1º Encontro intereclesial de Cebs chamou de “Igreja que nasce do povo, sob a força do Espírito”. Agora, 50 anos depois, os autores do livro e os que os apoiam dizem que temos de retomar o modelo de Cristandade. É claro que a linguagem é o anúncio explícito de Jesus Cristo. É a mesma linguagem dos missionários coloniais de Portugal e de Espanha nos tempos da conquista e da colonização. O melhor modo de continuar o modelo colonial do Cristianismo de Cristandade é insistir em separar Deus e o mundo, o espiritual e o social, o Cristo e os pobres.

Infelizmente, o desafio para viver um estilo eclesial novo, libertado do modelo de Cristandade, não vem principalmente de padres e pastores, ligados a centros de extrema-direita. Esses são minoria e o seu projeto de Igreja e de mundo é claro. Não permite confusão.

O desafio maior está em uma estrutura eclesial que parece mais aberta e, entretanto, continua incapaz de superar a cultura religiosa da Cristandade. Nesse modelo, hoje, hegemônico, é impossível colocar em prática as propostas de viver uma Igreja em saída, a partir das periferias do mundo ese organizar a partir da Sinodalidade.

Mesmo em canais de comunicação de padres da caminhada, alguns companheiros manifestam o seu apreço pelo Direito Canônico, refeito em 1983, mas ainda a partir de uma teologia da Cristandade. Mesmo padres amigos, críticos em relação ao tradicionalismo, sentem-se bem em tirar fotografias com paramentos romanos, ou celebrando com cálice e hóstia nas mãos. Não elaboram uma crítica profunda a esse modelo de ministério presbiteral sacerdotalizado, na perspectiva sacrificial, como na época da Cristandade. Vários deles, quando se sentem agredidos por alguém de direita, expressam o desejo de que “o superior” reprima e castigue esses infiéis. Isso revela que continuam pensando a Igreja no velho modelo de Cristandade. Nos tempos do Concílio Vaticano II, o papa João XXIII, afirmava que nunca mais a Igreja deveria voltar a ser Igreja de anátemas e sanções canônicas. Somos nós, adeptos de uma eclesiologia de comunhão que vamos, agora, propor isso?

A CNBB tem em sua organização de Pastoral as pastorais da ação social transformadora. Isso supõe que haveria pastorais não organizadas na perspectiva da ação social transformadora. Ao contrário, ao menos, em princípio, para ser evangélica, qualquer pastoral deveria ser social e transformadora. A Liturgia, a Catequese, o esforço de colocar em comum os organismos de Igreja, tudo isso pode ser visto em uma perspectiva social transformadora. No entanto, esse não é o horizonte de uma pastoral construída a partir da teologia e da espiritualidade da Cristandade.

É direito da CNBB precisar melhor que as chamadas pastorais sociais se especializam na ação social transformadora. Mas, se a própria eclesialidade e a missão são ainda vistas dentro da cultura de neocristandade, então essa diferença se torna divisão. Por isso, no dia a dia das paróquias e dioceses, muitas vezes, as pastorais sociais ainda aparecem como algo externo e menos importante na vida e na missão da Igreja. Concretamente, ficam submetidas ao juízo do padre, que permitirá ou não reuniões de estudo e celebrações nas casas.

As pastorais sociais procuram se inserir em romarias tradicionais e nas práticas do Catolicismo popular. No entanto, até aqui, agimos como se, pelo fato de que o discurso se torna social e politicamente ligado ao Cristianismo de Libertação, essas manifestações de Cristandade tradicional pudessem continuar, tranquilamente, clericais, patriarcais e mesmo coloniais. Muitos companheiros e companheiras pensam que, seja como for, no imediato, isso faz bem ao povo. Assim, a Cristandade é não somente apoiada, mas realimentada mesmo por grupos identificados com o Cristianismo da Libertação. Não podemos nos enganar: pensar uma Cristandade libertadora é como pensar em círculo quadrado.

4 – Cristandade como modelo de espiritualidade

Não é fácil caracterizar o que constitui a cultura ou eclesiologia de Cristandade ou de Neocristandade[14]. Aqui já ficou claro que a identificação da Igreja com clero e hierarquia é um elemento fundamental. É também claro que nesse modelo, a Igreja se caracteriza pelo culto e, de preferência, culto hierárquico, sacerdotal e sacrificial.

O Concílio Vaticano II tinha toda razão ao afirmar que a Eucaristia e, portanto, “a Liturgia, é fonte e cume de toda a vida e ação da Igreja” (LG 11). No entanto, evidentemente, a liturgia é fonte e cume da vida e da ação da Igreja como sinal – sacramento. Na realidade, a fonte e o cume da vida e da ação da Igreja é o amor (a caridade) e a fé que se expressa por esse caminho de amor. A liturgia e a eucaristia expressam isso sacramentalmente.

Em um contexto de Cristandade, esses planos se confundem e o sacramentalismo faz com que o que deveria ser sinal (sacramento) se torne a única realidade. Em geral, as pessoas confundem o Reino de Deus com a Igreja e, concretamente, a Igreja Católica. A nova evangelização, proposta por João Paulo II e que seguia sua doutrina em encíclicas como “Redemptor Hominis” (1979) e Redemptoris Missio (1990) tem como objetivo “o anúncio explícito de Jesus Cristo”, mas, concretamente, confunde isso com a adesão ao modelo de Igreja Cristandade. A linguagem continua sendo “anunciar Jesus Cristo”, mas o que, de fato, propõem é a estrutura sacramental católica.

Mesmo se superamos os tempos de intolerância e de condenação das outras Igrejas e religiões, a Igreja Católica mantém uma espécie de autossuficiência espiritual que não a ajuda a se abrir a uma forma de viver a fé na qual o outro, o diferente, é essencial e eu o procuro, não porque sou bonzinho e aberto, mas porque sem ele e ela, não posso viver o caminho do Evangelho.

Onde o Catolicismo de Cristandade mais se expressa no dia a dia é na espiritualidade das devoções e na celebração diária e dominical da Missa, conforme o Ritual Romano.

As devoções, novenas e toda a espiritualidade que é proposta pela maioria das paróquias e dioceses têm como fundamento e horizonte uma visão espiritual que separa céu e terra. A separação do sagrado e do profano impede que a proposta de Jesus do reinado divino como proposta para o mundo tenha importância. Nessa perspectiva, as pastorais sociais são aceitas como instrumentos de caridade que a Igreja pratica, mas são sempre algo externo à sua missão essencial que seria de caráter espiritualista.

É lamentável que padres busquem clericalizar devoções que nasceram laicas através de rezadeiras e benzedores e as usem como cara de uma Igreja autorreferente e alienada. Esse tipo de populismo espiritual, usado por alguns ministros para agradar às massas, pode parecer muito espiritual, mas é pura prostituição da fé e da espiritualidade.

No caso da espiritualidade de Cristandade, o centro é a Missa, como ela é celebrada. Sem dúvida, a Ceia de Jesus é a proposta mais radical e revolucionária que os evangelhos contêm. Nunca poderemos valorizar suficientemente o fato de que Jesus fez da partilha do alimento sacramento da nova aliança e sinal permanente de sua presença entre nós. A sua ceia é profecia da comunhão divina e memorial da doação do Cristo à humanidade.

Mesmo com todas as mudanças positivas e felizes, propostas pela Reforma Litúrgica depois do Concílio Vaticano II, o Rito da Missa ainda decorre da longa história da tradição litúrgica no Ocidente e da síntese feita pelos que elaboraram o Rito da Missa, como era celebrada na capela da Cúria Romana, no século XI[15]. Na segunda metade da década de 1960, em Roma, o Conselho para pôr em prática a Constituição do Concílio Vaticano II para a Liturgia reelaborou o ritual. Valorizou a dimensão comunitária e celebrativa. Entretanto, não conseguiu superar a mentalidade sacrificial, comum às antigas religiões pagãs e manteve o caráter de culto sacerdotal da Missa, já desde séculos, transformada de ceia fraterna e sororal em sacrifício do altar.

O ritual da Missa, como é celebrado no Rito Romano e também em outras Igrejas, só se pode compreender no quadro da Cristandade clerical. O estilo hierático e os gestos realçam o poder do padre que preside a celebração, as funções próprias do diácono e os graus que dividem os demais ministros e ministras no altar.

Tomemos como exemplo os textos traduzidos e as modificações dessa nova tradução do Missal Romano que parece ainda separar mais do que antes, liturgia e vida, sagrado e profano, relação com Deus e compromisso social. Só para dar um exemplo: em todas as orações, pede-se ao Pai “por Jesus Cristo, que é Deus, convosco e com o Espírito Santo”. Não se menciona que Jesus é também e sempre quis ser sobretudo humano. Isso se dá por acaso, ou teria alguma intencionalidade no plano da fé e da vida?

Já desde algum tempo, em encontros de CEBs e de pastorais sociais, para evitar esse divórcio entre liturgia e vida, as comunidades desenvolveram o costume de celebrar ágapes eucarísticos, nos quais se voltam a valorizar a partilha e a comunhão e todas as pessoas se sentem em círculo de amor ao redor da mesa.

Em julho de 2022, na abertura do XV Encontro intereclesial de CEBs em Rondonópolis, três mulheres presidiram o ágape. Refizeram a memória da ceia de Jesus, cantaram a oração eucarística e deram graças a Deus pelo pão, pelo vinho e outros alimentos que todos e todas partilharam na alegria. Estavam presentes muitos bispos e padres e parece que todos se sentiram participantes e igualmente acolhidos.

Os assessores e assessoras podem ajudar as comunidades a recuperar o direito de toda pessoa batizada viver na alegria da fé e na comunhão do discipulado de iguais o memorial da ceia de Jesus, sem cair no clericalismo e no caráter sacrificial da Missa Romana[16].

5 – Como ficamos nós depois,ou para além da Cristandade

Precisamos reler o Concílio Vaticano II e a Conferência Episcopal de Medellín que o atualizou e o inseriu na América Latina, a partir de uma Igreja que seja comunhão de comunidades, organizadas de forma sinodal e que se compreendam como minorias abraâmicas proféticas na diáspora de um mundo laical. Para isso, temos de superar os esquemas e visões eclesiais de Cristandade que ainda moram dentro de nós…

Em um documento de 1969, a CNBB fazia a distinção entre ecumenismo e ecumenicidade[17]. Enquanto o ecumenismo diz respeito à atividade intereclesial ou interreligiosa, a ecumenicidade é mais uma dimensão da fé e deve estar presente transversalmente em todo o nosso modo de ser e de agir. Corresponde profundamente ao conceito antigo de catolicidade em um sentido que vai além do eclesiasticismo[18].

A preocupação permanente, radical e profunda de ecumenicidade está ligada ao caráter laical da fé e ao reinocentrismo da nossa espiritualidade. Sem ela não há como superar o eclesiocentrismo católico-romano, evangélico e pentecostal.

É essa abertura e convívio com o Princípio Pluralista[19], com o Diálogo interreligioso, como é proposto por mestres como Faustino Teixeira[20] e com a espiritualidade macro-ecumênica, proposta por Pedro Casaldáliga[21], que ajuda a própria Igreja a se renovar e a se parecer mais com o movimento de Jesus no qual, na hora de escolher sinais distintivos, próprios da sua cultura religiosa, optou pelo batismo, ritual que não vinha da religião oficial e sim da cultura popular e teria proposto o Pai Nosso não em hebraico, mas em aramaico…

Em um mundo cada vez mais polarizado social e politicamente, só podemos ser fieis ao testemunho do Evangelho de Jesus, se formos capazes de ir além da Cristandade nossa de cada dia, mesmo daquela com linguagem e alguns sinais ligados à caminhada libertadora. É preciso retomarmos a preocupação com a interculturalidade que foi vivida por muitos de nossos pastores e comunidades até a década de 1980.

O que está em jogo é a construção de uma eclesialidade que retome a dimensão político-libertadora e ecológica que é própria da fé evangélica, a partir dos movimentos populares e das comunidades de periferia. Só superaremos o eclesiocentrismo, se formos capazes de um passo a mais, no caminho da laicidade e da inserção social e política, assim como também na compreensão e em uma forma de viver a fé cristã que não separe e sim integre o intercultural e o interespiritual.

Atualmente, nas dioceses e comunidades católicas, têm se multiplicado encontros e debates interessantes sobre o tema do Sínodo e da Sinodalidade. Esses encontros são bons e devem ser feitos. No entanto, para terem efeito real, precisam ser precedidos de uma reflexão que nos leve a descobrir a cultura religiosa de Cristandade que ainda existe em nós e na nossa forma de compreender a fé, assim como visibilizar mais as pequenas experiências eclesiais que surgem e se desenvolvem em direção nova e profética.

De fato, mesmo dentro dessa realidade eclesial, cada vez mais complexa e difícil, muitos irmãos e irmãs fazem trabalhos maravilhosos. Aproveitam frestas e brechas dentro do sistema fechado. Mantêm-se dentro da estrutura e, ao mesmo tempo, abrem caminhos novos. Possibilitam processos que ajudam pastorais sociais e movimentos populares a avançarem. Precisamos apoiar e fortalecer cada vez mais esses cenáculos de resistência, essas experiências eclesiais que vão além da Cristandade, ou seja, na construção de novo estilo de Igreja e de missão.

Estou me referindo ao ministério de padres e agentes de pastoral porque, nas bases, o povo já caminha assim, de forma mais autônoma. Apesar de conviver séculos com a velha Cristandade, muitos irmãos e irmãs católicos e evangélicos de comunidades negras e indígenas sempre souberam viver a fé dentro dessa ecumenicidade que vai além dos parâmetros da Cristandade. Mas, agentes de pastoral clericais e mesmo leigos clericalizados têm dificuldade de compreender essas vivências.

Em 1992, aconteceu em Santa Maria, o 8º Encontro Intereclesial de CEBs com o tema: “Povo de Deus renascendo das culturas oprimidas”, com foco em grupos como negros, indígenas, mulheres, trabalhadores e migrantes. No meio do encontro, o Bispo local convidou os bispos e pastores para subirem ao palco e se apresentarem ao povo. (Naquele tempo, os intereclesiais ainda convidavam vários pastores e pastoras evangélicos e em Santa Maria eram quase 20). Ocorreu que, na fila dos bispos e pastores que se apresentaram para subir ao palco, apareceram umas quatro ou cinco mães de santo e um ou dois pajés indígenas. Ao vê-los, o bispo impediu que subissem com o argumento de que o encontro era ecumênico, mas não era interreligioso. Não adiantou que as mães de santo dissessem: somos ao mesmo tempo mães de santo do Candomblé e representantes das CEBs das quais participamos. Os pajés insistiam: Somos pajés como cristãos e cristãos como pajés. Não subiram. Todos os assessores e assessoras do intereclesial presentes se solidarizaram com as pessoas de espiritualidades afro e indígenas que não foram reconhecidas como cristãs.

Pessoalmente, perguntei ao bispo que era amigo:

– Se fosse o Dalai Lama, o senhor convidaria para subir e se apresentar ao povo nesse palco?

Ele me respondeu: Claro.

Continuei:

– E se fosse o rabino-chefe da sinagoga?

Ele respondeu: – Também.

– E porque mãe de santo não pode?

Ele respondeu: – Por causa do Sincretismo…. [22]

Mais de trinta anos depois, talvez não sejam muitos os atuais assessores dos intereclesiais que continuam fieis a essa linha que os assessores do 8º encontro e lideranças das CEBs de todo o país defenderam, naquela época, divergindo claramente do bispo que, repito, era um dos nossos. Em si, as religiões indígenas e negras não precisam de nós ou da nossa pastoral para viverem os seus valores e manterem suas riquezas espirituais. Nós é que precisamos aprender deles e delas para viver a nossa fé cristã, a partir da ecumenicidade[23] e do Princípio Pluralista. Eles podem nos ajudar a ir além da velha cultura religiosa da Cristandade.

Essa Igreja da Cristandade tem produzido entre nós um grupo significativo de cristãos e cristãs desigrejados ou “desigrejadas”. Sem dúvida, há quem, por convicção interior, não se liga a nenhuma Igreja e é o seu direito. No entanto, há muita gente, principalmente, jovem que se insere em grupos, ou pastorais sociais e não conseguem suportar o peso das instituições eclesiásticas. Algumas saem, agredidas pelo autoritarismo de padres, ou pela hipocrisia que percebem nos ambientes eclesiásticos, ou ainda pelo fato de que a rotina de missas, bênçãos e novenas não conseguem mais nutrir sua necessidade espiritual.

A cultura religiosa de Cristandade não permite que a maioria dos eclesiásticos percebam isso e busquem corrigir esses desvios. Algumas pessoas que se colocam nas brechas e frestas do sistema religioso dominante formam grupos de antigos militantes e até lideranças históricas de pastorais e grupos na busca de como viver a fé e a espiritualidade na comunhão das pessoas e comunidades que optam por testemunhar o reinado divino, mas sem ligação institucional com o clero e com grupos oficiais de Igreja.

Retomar o diálogo com esses grupos pode significar um novo alento para o conjunto da Igreja. Como sempre nos ensinou a teologia, a salvação sempre vem, como que “de fora”. As Igrejas cristãs precisam sempre alargar suas fronteiras, não de forma proselitista e na linha da conquista e da adesão, mas do diálogo humilde e da ecumenicidade vivida na espiritualidade macroecumênica e intercultural.

De fato, na História da Igreja, os grandes e históricos movimentos de espiritualidade laical, na época, surgidos à margem da Igreja oficial, ajudaram a arejá-la, até que fossem também cooptados por ela, tais como o monaquismo de Antão, Pacômio e mesmo de Bento de Núrcia, os mendicantes de Francisco de Assis e outros.

Certamente, alguém pode perguntar: nessa realidade eclesial tão árida, por que continuamos a manter o amor à Igreja e o nosso pertencimento a ela. Como gostava de dizer Dom Helder Camara, há mil razões para crer e esperar. Há muitas pessoas que se doam à causa do projeto divino no mundo e fazem isso como Igreja. Há trabalhos lindos e maravilhosos que nos animam na caminhada eclesial.

Lembro-me de que, em 1998, eu morava em Goiás e, passando em Recife, visitei Dom Helder Camara, com o qual trabalhei na minha juventude e pastor que, em 1969, tinha me ordenado presbítero. Ele já tinha seus 89 anos e se mantinha em sua casa, na sacristia da Igreja das Fronteiras, frágil e mais silencioso. Quase não falava. Mas, me contaram que, antes da minha visita, ele tinha recebido um jornalista que lhe perguntou:

– Dom Helder, desde jovem, o senhor se dedica ao serviço dos pobres e da renovação da Igreja. Agora, depois de tantos anos, quanto o senhor pensa ter conseguido? Olhando para trás, calcula que teve mais vitórias do que fracassos, ou mais fracassos do que vitórias?

A resposta de Dom Helder foi imediata e límpida:

– Meu filho, Deus não me mandou quantificar o que consegui ou não consegui. O apóstolo Paulo escreveu aos coríntios: “Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem faz crescer” (1 Cor 3, 6). O que posso lhe garantir é que vou até o último suspiro de minha vida por Aquele no qual acredito e por sua causa no mundo”[24]. Que seja essa a nossa esperança e nossa alegria!


[1] – Cristandade è o termo que designa o sistema no qual a cultura e a sociedade eram fortemente influenciadas pela Igreja Cristã, especialmente na Europa Ocidental durante a Idade Média e o Renascimento. Historicamente, a cristandade é vista como uma espécie de teocracia cristã, onde a Igreja e o Estado estavam interligados, e os valores cristãos eram centrais na vida social e política. Em geral, a Cristandade teve o domínio da hierarquia católica. No entanto, com a reforma anglicana, no século XVI, o rei da Inglaterra se tornou chefe da Igreja, enquanto o arcebispo de Cantuária, automaticamente, faz parte da Câmara dos Lordes. Do mesmo modo, em Genebra, quando Calvino implantou a Reforma, instalou um tipo de Cristandade Calvinista.

Sobre a história da Cristandade, ver: AZZI, Riolando. A Cristandade Colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987.

[2] – FRANCISCO. A Igreja precisa mudar de mentalidade, caso contrário corre o risco de ficar atrasada 200 anos. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/617244-papa-francisco-esta-se-baseando-no-vaticano-ii-para-mudar-radicalmente-a-igreja-catolica. Acesso em: 28 jul 2025.

[3] – GUIMARÃES, Dom Joaquim Mol. Prospectivas abertas pelo pontificado do Papa Francisco. In PERETTI, Clélia e PEREIRA, André Philipe (Organizadores). As religiões frente às crises mundiais contemporâneas: construindo esperanças.São Paulo:SOTER/ Paulinas, 2025, pp. 125- 126.

[4] – Concordata é um tratado internacional que o Vaticano propõe aos países, segundo o qual, mesmo o país sendo laical, concede certos direitos e prerrogativas à hierarquia e ao clero católico.

[5] – A concepção da Igreja, predominante na teologia católica até o Vaticano II era caracterizada pela expressão de Congar: “eclesiologia hierarcológica”: significando uma valorização a respeito do aspecto hierárquico, visível e piramidal da realidade eclesial: a Igreja é vista como uma instituição histórica autossuficiente (societas perfecta), com leis próprias, seus ritos e seus chefes. Cf CONGAR, Y. Cette église que j’aime. Paris: Les Editions duCerf, 1968, pp. 16- 17. .

[6] – Quem quiser compreender melhor o que é o Clericalismo e a sua história na Igreja, veja no site de Eduardo Hoornaert o seu texto: “O modelo diocesano está passando?”.

In http://www.eduardohoornaert.blogspot.com 

[7] – Nessa visão eclesiológica de Cristandade, a mediação hierárquica é considerada tão essencial que, no século XIX, provocou a afirmação de J. A Mohler, um dos mais importantes teólogos da época: “Deus criou a hierarquia e assim providenciou mais do que o suficiente para as necessidades da Igreja até o fim do mundo” Maior aprofundamento ver: FORTE, Bruno. A missão dos leigos. São Paulo: Paulinas, 1987.

[8] – Quem quiser aprofundar o debate, ver: KASPER, Walter. Uma resposta amigável ao Cardeal Ratzinger sobre a Igreja. In Revista de Cultura Teológica, número 37 (2001), pp. 103- 114.

[9] – Cf. MARCELO BARROS, Não deixe cair a Profecia. (A herança de Dom Helder Camara para a humanidade do século XXI). Recife: CEPE, 2022, p. 149.

Ver outra versão: MARCOS DE CASTRO, Dom Helder: misticismo e santidade. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002, pp. 202 – 206.

[10] – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/02/06/trump-anuncia-investigacao-contra-ataques-aos-cristaos-nos-eua.htm?cmpid=copiaecola

[11] – Quem quiser aprofundar o debate, ver: KASPER, Walter. Uma resposta amigável ao Cardeal Ratzinger sobre a Igreja. In Revista de Cultura Teológica, número 37 (2001), pp. 103- 114.

[12] – Cf. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-08/papa-leao-xiv-bispos-conferencia-eclesial-amazonia-ceama-2025.html

[13]– Cf. https://www.acidigital.com/noticia/64145/arcebispo-de-natal-analisa-critica-de-clodovis-boff-a-teologia-da-libertacao-em-site-da-cnbb

[14]– Cf. J.B. LIBÂNIO. Modelos eclesiológicos. Ver: https://www.missiologia.org.br/wp-content/uploads/2017/11/42Modelos-eclesiologicos.pdf

[15] – Sobre a história da Missa no Rito Romano, ver: JUNGMANN, J. A. Missaram Sollemnia. São Paulo: Paulus, 2009, pp 60 a 182.

[16]– Para ajudar nessa compreensão, veja: FERNANDES, Rosemary e BARROS, Marcelo. A proposta revolucionária da Ceia de Jesus.(Encher o mundo de ágapes de amor). Rio de Janeiro: Editora Metanoia, 2025.

[17] – Cf. WOLFF, Elias. Caminhos do Ecumenismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 2002.

História –

[18]– COSTA, Rosemary Fernandes. Ecumenicidade como vivência: um caminho dialógico. In: Revista CREatividade. PUC-Rio, 2024. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/68397/68397.PDF

[19] – RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. O Princípio Pluralista. São Paulo: Loyola, 2020.

Ver também: TOSTES, Angélica e RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Organizadores: Religião, Diálogo e Múltiplas Pertenças. São Paulo: Annablume, 2019.

[20] – Cf. TEIXEIRA, Faustino. (organizador) No limiar do Mistério: Mística e Religião. São Paulo: Paulus, 2004. (junto com J. B. Libânio) Teologia e Pluralismo Religioso. São Paulo: Ed. Nhanduti, 2012. Religiões e Espiritualidade. Ideias e Letras, 2014. Ver como artigo: https://fteixeira-dialogos.blogspot.com/2010/04/teologia-e-dialogo-inter-religioso.html

[21] – Cf. CASALDÁLIGA, Pedro e VIGIL, José Maria. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1996.

[22]– Quem quiser aprofundar esse assunto, veja: LIBÂNIO, João Batista. VIII Encontro Intereclesial de CEBs (Evento no Evento),. In Revista Eclesiástica Brasileira Vol 52. No 208, dez 1992. pp 785- 800.

[23]– BARROS, Marcelo. Os segredos do nosso Encanto. (O que a Fé Cristã pode aprender das espiritualidades indígenas e negras). São Paulo: Editora Recriar, 2024.

[24]– conto isso na versão mais atualizada do livro: BARROS, Marcelo. Não deixe cair a Profecia. (A herança de Dom Helder Camara para a humanidade do século XXI). Recife: CEPE Editora, 2022. p. 172.

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