A epidemia do coronavírus pegou a todos de surpresa. Começou em fins de dezembro na China e, a partir daí, foi se espalhando para todos os países. Em apenas três meses, os casos se multiplicaram e ocorreram muitas mortes, primeiramente na própria China, depois, em outros países, como a Itália, a Espanha, os EUA.
Vírus e extinção de espécies
Certamente, este vírus que está se difundindo não veio do nada. Os cientistas têm repetido incansavelmente que o modo como temos tratado a natureza, explorando-a de todas as formas, sem respeitar seus limites, está produzindo o desaparecimento de espécies numa velocidade nunca vista anteriormente: segundo artigo publicado na revista Science, “o desaparecimento da biodiversidade global é, atualmente, mil vezes mais veloz do que se ele acontecesse naturalmente, sem o impacto do homem. É uma taxa muito maior do que a estimada anteriormente, em 1995, quando estava em cem vezes”[1] (isto é, há pouco mais de vinte anos).
A destruição da biodiversidade aumenta o risco de uma epidemia. “Se desmatamos e urbanizamos, os animais selvagens perdem seu habitat e isso promove seu contato com animais domésticos e humanos”, resume o pesquisador e ecologista da saúde Serge Morand. O fato de vírus que até agora permaneciam em morcegos na Ásia chegarem aos seres humanos é novo e está diretamente ligado à sua perda de habitat, o que os aproxima dos animais domésticos[2].
O enfrentamento da epidemia e o neoliberalismo
Depois de um período de incerteza sobre como lidar com o vírus, firmou-se a convicção internacional de que seria preciso uma “economia de guerra” para enfrentá-la. Medidas duras foram baixadas por inúmeros países para confinar as pessoas em suas moradias e evitar a aceleração do contágio.
Houve, porém, uma consequência não prevista: esta pandemia revelou que a política econômica neoliberal, aquela que dominou o mundo nos últimos 40 anos, louvada e exaltada por quase todas as faculdades de economia como sendo a única possível, foi um desastre.
As políticas neoliberais, de redução do Estado ao mínimo, de diminuição dos gastos públicos – em saúde, educação, habitação, transporte e outros -, de privatização das empresas estatais e dos serviços públicos, assim como a adesão ao “mercado” como parâmetro e solução para tudo, tiveram consequências nefastas para a grande maioria das populações. Elas só beneficiaram os mais ricos (no máximo, os 10% do topo da pirâmide). Segundo Joseph Stiglitz, nos EUA, “95% de todos os ganhos de renda desde 2009 foram para o 1% mais rico. Estatísticas recentes demonstram que a renda mediana nos EUA não cresceu em quase um quarto do século. O homem norte-americano típico ganha menos do que ganhava há 45 anos, se considerada a inflação (…)”[3]. Com Trump, a desigualdade só piorou.
A necessidade de coordenação de esforços para enfrentar uma epidemia exige um Estado com condições de atender às necessidades da população. Exige um sistema de saúde público, universal (mesmo onde haja também um sistema privado), que seja forte, estruturado, com capacidade de operar as medidas emergenciais a serem tomadas. Exige um sistema de proteção social devidamente montado para reduzir a vulnerabilidade das pessoas.
Ora, as políticas neoliberais implementadas nestas quatro décadas fizeram exatamente o oposto. Reduziram recursos para a saúde. No caso do Brasil, foi mais grave: aprovaram em 2016 (governo Temer) uma lei que reduz, a cada ano, nos próximos 20 anos, os recursos para saúde, educação, assistência social. De modo que, desde então, mais de 40 mil leitos hospitalares foram desativados. Inúmeros profissionais de saúde foram dispensados: médicos/as, enfermeiros/as, auxiliares. Programas de saúde tiveram redução de recursos ou foram interrompidos.
Além disso, foi aprovada uma Reforma Trabalhista que reduziu ou suprimiu direitos trabalhistas que existiam há mais de oitenta anos. O resultado foi um aumento enorme do desemprego e do subemprego, com redução dos salários: hoje, 80% dos trabalhadores brasileiros são pobres e vivem com renda de até 1.700 reais[4].
No governo Bolsonaro, foi aprovada uma Reforma da Previdência que diminuiu o valor das aposentadorias e pensões da grande maioria da população, principalmente para os que ganham menos.
Então, a pandemia chega ao Brasil num momento em que há forte desemprego e muitos trabalhadores na informalidade (são 38,4 milhões sem direitos garantidos) e uma enorme quantidade de pessoas vivendo em favelas e periferias, onde o acesso aos serviços públicos é precário. Aqui, será muito mais difícil combater o vírus, manter as pessoas em casa. Profissionais de saúde – enfermeiros/as, médicos/as -, hospitais, não dispõem ainda da proteção e dos equipamentos que deveriam ter para tratar dos contaminados. No mundo, o grupo profissional que teve um dos níveis de contaminação maior foi justamente o do setor de saúde, por causa da insuficiência de meios para se protegerem eficazmente.
E o governo brasileiro está liberando recursos a conta-gotas, ao contrário do que estão fazendo outros países para sustentar a renda dos mais pobres, dos trabalhadores e as micro, pequenas e médias empresas. O governo toma medidas, prioritariamente, para defender os grandes bancos e empresas. O presidente está entre os raros governantes[5] do mundo a recusar as medidas necessárias e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para enfrentar a pandemia.
Pior que isso: o governo está aproveitando a situação excepcional criada pelo coronavirus para tomar medidas econômicas em favor dos empresários e contra os trabalhadores, tornando estes mais vulneráveis na crise. Como bem havia analisado Naomi Klein em seu livro “A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre”, a situação extraordinária – em que a sociedade está abalada e insegura, com dificuldade de reação organizada – é usada contra a maioria.
No entanto, não faltam recursos no Brasil para enfrentar a crise atual. Vejam.
Brasil. Orçamento federal executado (pago) em 2019 = R$ 2,711 trilhões
Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida (https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2020/02/Orc%CC%A7amento-2019-versao-final.pdf).
O maior gasto público do Brasil não é a Previdência, como dizem muitos: é a dívida pública (externa e interna). Como se vê no gráfico acima, em 2019, quase 40% do orçamento foi para pagar os juros e as amortizações da dívida.
O país gasta pelo menos 350 bilhões de reais por ano com os juros da dívida pública. Quem recebe estes juros está no topo da sociedade. Se a nossa taxa de juros (taxa Selic) fosse mais baixa, como o é em vários países do mundo, os gastos em juros seriam fortemente reduzidos[6].
O Brasil hoje abre mão pelo menos de 400 bilhões de reais por ano em isenções fiscais (favorecimentos para grandes empresas).
O Brasil perde 500 bilhões por ano em sonegação fiscal (e, hoje, temos tecnologia que nos permite localizar os sonegadores)[7].
Ao somarmos
350 bilhões (juros),
400 bilhões (isenções fiscais),
500 bilhões (sonegação),
temos 1 trilhão e 250 bilhões de reais – por ano – que poderiam e deveriam ser usados em políticas públicas (saúde, educação, transporte, renda cidadã, etc.) e que hoje só servem a ricos e empresários/banqueiros/rentistas.
Portanto, temos recursos, sim, para pagar uma renda cidadã de um salário mínimo a cada pessoa (somos 210 milhões de habitantes) e apoio para micro, pequenas e médias empresas.
E temos como obter mais recursos para enfrentar a situação excepcional que estamos vivendo: aplicar o imposto sobre grandes fortunas – que está na nossa Constituição, mas nunca foi usado. Este imposto geraria recursos para a sociedade e não atingiria em nada o nível de vida dos bilionários.
No nosso sistema tributário, desde 1996, os investidores não pagam imposto sobre “lucros e dividendos”, isto é, exatamente sobre aquilo em que eles mais ganham. Além do Brasil, só um outro país tem um sistema semelhante: a Estônia. O trabalhador paga imposto sobre o salário, o pobre paga imposto sobre o que consome, o milionário é privilegiado: não paga imposto sobre seus lucros e dividendos. E há uma outra injustiça flagrante na tributação: o imposto sobre propriedades rurais. Num país que tem uma das maiores concentrações de propriedade da terra do mundo, os grandes proprietários pagam uma quantia irrisória de imposto: são outros privilegiados[8].
Resumindo: recursos não faltam. Temos meios para fazer frente à epidemia, para comprar equipamentos para a saúde, respiradores para as UTIs, para construir novos leitos, com hospitais de campanha ou ampliando áreas ociosas dos hospitais existentes, contratando médicos/as, enfermeiros/as, auxiliares. Nosso Sistema Único de Saúde (SUS) poderia ser um dos melhores do mundo – havendo vontade política para isso.
Temos universidades públicas de excelente qualidade, nas quais há centros de pesquisa reconhecidos, temos instituições de pesquisa que também produzem soros e vacinas (o Instituto Butantã, a Fiocruz), temos órgãos de âmbito nacional de fomento à pesquisa (CAPES, CNPq). E, como vimos acima, temos recursos – que podem ser investidos em pesquisa e desenvolvimento, em apoio a projetos, em bolsas para estudantes e para pesquisadores. No entanto, sendo um governo ultraliberal, o que ele tem feito até o momento é reduzir estes recursos e cortar bolsas. Nunca as universidades, a educação pública e a pesquisa científica foram tão desprezados como no governo atual.
Esta epidemia está chegando num momento em que nossas políticas públicas estavam em baixa, o SUS estava sucateado, com redução de leitos hospitalares, e havia diminuição do apoio à pesquisa e à universidade como um todo.
Mas é possível dar a volta por cima. É possível construir unidades em pouco tempo. É possível empresas produzirem os bens de que necessitamos urgentemente: isto é o que se chama “economia de guerra”. Podemos produzir ventiladores de UTI, máscaras cirúrgicas, roupas de proteção, camas, colchões e tantas outras coisas, além de investir nas instituições, centros e projetos de pesquisa, assim como conceder bolsas. Se o governante de um país democrático pode exigir que empresas automobilísticas fabriquem ventiladores mecânicos para UTIs, por que não cobrar de empresas brasileiras a fabricação de máscaras cirúrgicas, em vez de esperar a chegada de máscaras importadas?[9]
Solidariedade. A sociedade, as pessoas, muitas, por todo o Brasil, saíram de seu conforto e estão organizando ajuda para os mais vulneráveis, arrecadando alimentos, roupas, produtos de higiene, cestas básicas, fazendo “vaquinhas”, de modo a garantir a sua sobrevivência. Atuando intensamente, mesmo em quarentena.
Quem tem que sair de sua letargia agora é o governo, mobilizando-se para prover o necessário para a saúde, para garantir a produção dos equipamentos (universidades, fábricas) e para sustentar as pessoas vulneráveis e os salários dos trabalhadores que estão ou ficaram desempregados pela crise. Para apoiar os estados e os municípios.
Se há uma consequência a ser tirada desta pandemia – que está longe de acabar -, é que o “Estado mínimo” do neoliberalismo é um Estado só para a camada mais alta, um Estado no qual os recursos públicos – recolhidos de toda a população – deixam de ser utilizados para a maioria e são transferidos para os de cima.
O Estado de que necessitamos é um Estado que garanta proteção social a todos/as e pratique uma economia voltada para a vida e não para o lucro (de poucos).
Como certeiramente afirmou o Papa Francisco há poucos anos, referindo-se à economia neoliberal, “esta economia mata”[10]. A economia de que necessitamos é voltada à satisfação das necessidades de todos/as, à efetivação de seus direitos, numa relação harmoniosa com a natureza. Não é voltada para a produção incessante e o consumo crescente, mas tem como objetivo o “bem viver”. Porque sabe que a Terra, da qual dependemos para nossa vida, tem de ser respeitada (por isso chamada pelos povos andinos de Mãe Terra, Pachamama).
[1] Apud Amelia Gonzalez, 30/05/2014 (http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/cientistas-da-science-afirmam-que-extincao-das-especies-e-mil-vezes-mais-veloz.html).
[2] Cf. http://www.rfi.fr/br/mundo/20200402-coronav%C3%ADrus-crise-sanit%C3%A1ria-deve-provocar-reflex%C3%A3o-estrutural-sobre-sobreviv%C3%AAncia-humana
[3] Joseph Stiglitz, 15/10/2013 (https://operamundi.uol.com.br/opiniao/31824/um-novo-retrato-da-desigualdade-global).
[4] “É preciso pensar em medidas que não são usuais, porque a situação não é usual”. Entrevista especial com Waldir Quadros (http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/597222-e-preciso-pensar-em-medidas-que-nao-sao-usuais-porque-a-situacao-nao-e-usual-entrevista-especial-com-waldir-quadros).
[5] São quatro: Turcomenistão, Bielorússia, Nicarágua e Brasil (O Globo, 01/04/2020).
[6] Japão, Portugal, China, Grécia, Polônia, Estados Unidos, para dar apenas alguns exemplos, têm taxas reais de juros abaixo de zero. Os EUA acabam de reduzir sua taxa de juros (nominal): está entre 0 e 0,25%. A do Brasil está em 3,75%.
[7] Cf. entrevistas do professor Eduardo Fagnani, em 22/04/2019 (http://www.ihu.unisinos.br/588411-reforma-tributaria-como-alternativa-a-reforma-da-previdencia-entrevista-especial-com-eduardo-fagnani%22) e à Carta Capital (https://www.youtube.com/watch?v=e7j_izWR6fY).
[8] O Imposto Territorial Rural no país arrecadou R$ 1,5 bilhão em 2018, o que representou 0,1% da receita tributária da União “Como comparação, só o IPTU da cidade de São Paulo rendeu R$ 9,94 bilhões em 2018.” (https://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/novo-iptu-do-campo-poderia-arrecadar-ate-10-vezes-mais-aponta-estudo-5kmk4oqkt3sk3sa51rsrnp3py/
[9] “O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ordenou nesta sexta-feira (27/03) que Ford e GM passem a produzir respiradores artificiais imediatamente, como ajuda para o combate à pandemia do coronavírus (https://g1.globo.com/carros/noticia/2020/03/27/donald-trump-exige-que-ford-e-gm-produzam-respiradores-nos-eua.ghtml).
[10] “Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata” (Evangelii Gaudium, 2013, par. 53).
Fonte da foto de capa: http://www.analisandomt.com.br/noticia/64524/orcamento-da-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-conta-da-emenda-do-teto-de-gastos