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O Conservadorismo Católico de 1964 recorrente nos ataques à Campanha da Fraternidade de 2021

O Conservadorismo Católico de 1964 recorrente nos ataques à Campanha da Fraternidade de 2021 

José Cristiano Bento dos Santos[1]

O atual acirramento de divergências políticas na Igreja Católica do Brasil é materializado nos ataques contra a realização da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021. Os acontecimentos do momento representam uma ruptura no catolicismo, por causa da visão de bispos, padres e leigos que resistem à atuação da instituição religiosa, na adesão aos Direitos Humanos, base fundamental da dignidade de todo homem e de toda mulher, principalmente, de grupos marginalizados, como a população negra, os indígenas, as mulheres, a comunidade LGBTQI+.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) articula há cinquenta anos, a Campanha da Fraternidade (CF), como ação sociorreligiosa que propõe temáticas que apontam para o compromisso dos cristãos com a sociedade, com debates e enfrentamento dos problemas que afetam a população pobre: precariedade da saúde, do trabalho, da educação, de moradia, falta de políticas públicas, etc..

Nesta perspectiva, explica a própria CNBB, “a Campanha da Fraternidade é uma verdadeira iniciação à fé e à sua prática […]. A Campanha da Fraternidade quer ajudar a construir uma cultura de fraternidade, apontando os princípios de justiça, denunciando ameaças e violações da dignidade e dos direitos, abrindo caminhos de solidariedade” (CNBB, 2017, p. 19).

O atual cenário de tensão na Igreja Católica é promovido por grupos resistentes às mudanças estruturais da Igreja, propostas pelo Concílio Vaticano II, de um catolicismo aberto às realidades do mundo moderno, no que se refere aos avanços da ciência e da tecnologia, das configurações dos processos políticos e culturais, principalmente, de uma vivência cristã atenta às demandas sociais dos mais empobrecidos. Essa mentalidade religiosa e politicamente retrógrada, produziu materiais que circulam nas redes sociais contra a Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021, com narrativas de desinformação sobre as ações sociais da pastoral católica, a partir de acusações infundadas sobre os bispos do Brasil, ausência de dados sobre a violência e genocídio praticados contra as minorias sociais, distorcendo o objetivo da Campanha da Fraternidade que é a unidade dos cristãos, a partir da solidariedade. O próprio tema da CFE ressalta esse objetivo, “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, como também o seu o lema, “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2, 14a).

Os conteúdos produzidos por esses grupos, estão estruturados em inverdades que têm por meta destruir as ações de uma Igreja comprometida com as propostas de um cristianismo voltado aos dramas da humanidade, como é registrado na biografia de santos(as), mártires e de Papas preocupados com a justiça social. Percebe-se, ainda, que a narrativa que foi difundida nas redes sociais contra a Campanha, usa da fé de pessoas simples que se apoiam em indivíduos que instrumentalizam a religião para a manutenção de projetos políticos que utilizam o Estado para manter o povo na submissão e exploração sociais.

Tensão no catolicismo brasileiro: um problema histórico

A tensão no catolicismo brasileiro é um problema histórico, visto que a Igreja está imersa na realidade social que a condiciona, com os conflitos sócio-políticos que a atravessam estruturalmente e provocam divisões de interesses de classes, dentro da própria instituição. Esses interesses orientam as relações de poder e o jogo de forças entre grupos dominantes e dominados, na implementação de suas ideologias específicas, em apoio e na contraposição dos elementos hegemônicos do contexto histórico vivido (SOUZA, 1996).

O apoio dos católicos conservadores ao Golpe Militar de 1964, ano de fundação da Campanha da Fraternidade, pode ajudar a compreender a manutenção de projetos políticos de opressão e exclusão, principalmente, a resistência à atuação de uma parcela da Igreja comprometida com as minorias sociais.

Depois que as classes dominantes, representadas pela burguesia e pelas camadas médias, assumiram o poder por meio de um golpe de Estado, os militares consolidaram um regime político ditatorial que reprimiu violentamente os movimentos trabalhistas e os grupos de oposição. A sociedade brasileira foi submetida ao terror de um Estado autoritário, que usava a tortura, largamente empregada pelos órgãos policiais, contra os cidadãos oponentes para extrair confissões daqueles considerados suspeitos pelo sistema (SOUZA, Luiz, 2014).

Nesse período ditatorial, a Igreja como um dos organismos pertencentes ao corpo social (Durkheim, 1987), se dividiu politicamente como a sociedade secular, entre católicos conservadores e progressistas, dentro da mesma instituição religiosa, isso desde a hierarquia eclesiástica, até os leigos. Nesta perspectiva, afirma Alberto Luiz Gómez de Souza:

Uma parte significativa de cristãos e membros da estrutura eclesiástica católica ajudara a preparar o golpe de estado. Este não foi uma ação circunscrita aos militares, como algumas quarteladas na América Latina, mas um amplo movimento de setores da população e do exército (Souza, Luiz, 2014, p. 50).

Os católicos apoiadores do Golpe Militar, considerados de direita, promoveram uma sistemática perseguição aos religiosos contrários ao Estado Ditatorial. De acordo com Herbert de Souza (1996), os conservadores causaram escândalo e lançaram uma campanha de acusação de infiltração ideológica do marxismo no interior da Igreja Católica, e alguns membros estavam proibidos de pronunciarem a palavra socialismo.

Esquerda católica e Marcha da Família com Deus pela Liberdade

Nesse período, no qual o país estava submetido ao terror ditatorial, uma esquerda católica, representada pela juventude, orientada politicamente pelos religiosos progressistas, se juntara à esquerda tanto universitária quanto operária, demonstrando uma participação mais profunda de católicos, nos movimentos libertários.

Segundo Herbert de Souza (1996), a década de 1960 revela uma juventude com consciência social que ocupa o cenário político, através das organizações católicas, formadas em sua grande maioria por esses jovens no interno da Igreja, como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Operária Católica (JOC), a Ação Católica Operária (ACO) e a Ação Popular (AP). Esses grupos surgiram dentro da Ação Católica Brasileira (ACB) e do Movimento de Educação de Base (MEB). Afirma Souza: “Descobri um mundo de reencontros e o universo da militância: a JEC (Juventude Estudantil Católica) e, depois, a JUC (Juventude Universitário Católica), os dois braços estudantis da Ação Católica” (SOUZA, Herbert, 1996, p. 14).

O envolvimento político dos jovens inclinou-se cada vez mais para a pobreza e a desigualdade social, para a luta dos trabalhadores por direitos e enfrentamento contra o autoritarismo do poder militar. Os grupos juvenis tornaram-se setores politizados da esquerda brasileira, com uma forte presença revolucionária na Igreja e na sociedade. Todavia, os grupos progressistas foram perseguidos pelos movimentos conservadores, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que acusava a Igreja de sofrer a ameaça do “fantasma do comunismo”, o terror dos conservadores.

De acordo com Alberto Luiz Gómez de Souza (2014), os grupos conservadores da Igreja Católica, constituído por bispos, padres e leigos, utilizaram a bandeira dos bons costumes, para expandir a luta contra o comunismo, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, evento político amparado por elementos religiosos, que facilitavam a manipulação dos católicos e da sociedade conservadora.

Esta articulação religiosa cooptada por um projeto político, articulado pelas classes dominantes, utilizou a reza do terço, devoção católica transformada em instrumento racional de dominação espiritual a serviço do Golpe Militar. Esse mecanismo foi idealizado pelo Padre Patrick Peyton, cidadão norte-americano e representante das forças reacionárias do catolicismo. Afirma Luiz Alberto Gómez de Souza:

Uma campanha do rosário do Padre Patrick Peyton, em meses anteriores, com o lema “uma família que reza unida permanece unida”, preparara o terreno para, em São Paulo, dia 19 de março de 1964, a primeira Marcha da Família, com Deus, pela liberdade, uma resposta ao comício da Central, dia 13 de março, em que João Goulart anunciou a concretização das reformas de base. O presidente dissera ali: “O cristianismo nunca foi o escudo para privilégios condenados pelo santo padre, nem também os rosários podem ser erguidos contra a vontade do povo… Os rosários não podem ser erguidos contra aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da terra, hoje ainda em mãos de tão poucos, de tão pequena minoria”. Já o Padre Peyton defendera antes que o rosário seria “a mais poderosa alavanca que eleva o mundo do deprimente materialismo em que se encontra” (SOUZA, Luiz, 2014, p. 50-51).

Diante desse conflito exposto, o autor deixa explícito que houve sim uma participação de setores importantes da sociedade civil, como o apoio dado pela Igreja Católica na deposição do presidente João Goulart e na entrega do país para os militares. Por isso o movimento Marcha da Família com Deus pela Liberdade ganhou uma amplitude nacional com a mesma pauta religiosa-política de protesto, através do incentivo de manifestações religiosas de cunho político em várias regiões do país e nas principais capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, nos fins de 1963 até meados de março de 1964, ano da concretização do Golpe Militar (SOUZA, Luiz, 2014).

Eventos religiosos, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, articulam as frentes dominantes da sociedade, como uma parcela significativa da imprensa, a classe produtora de informação e ideologias que dão forma ao inconsciente coletivo e que ordenam o caos disfarçado de “manifestações espontâneas” dos setores conservadores pertencentes ao catolicismo. Nesta perspectiva, foram esses movimentos de caráter religioso, que apoiaram abertamente o golpe de 1964.

Esse tipo de atuação política da Igreja Católica pode ser interpretado, numa visão gramsciana, como “aparelhamento do poder”. Afirma Antonio Gramsci que “a Igreja, em sua estrutura, já está aparelhada para este trabalho” (GRAMSCI, 2007, p. 46). Uma visão que ajuda a compreender o papel que a instituição religiosa desempenhou para a efetivação da Ditadura Militar.

Na história do catolicismo, quando se trata da relação envolvendo a alta hierarquia romana e o clero de modo geral, com a burguesia e o Estado, o que está em jogo são ações políticas da instituição católica em defesa e manutenção dos seus interesses corporativos (GRAMSCI, 2007), de seu poder e de seus privilégios, enquanto segmento religioso, majoritária na sociedade. Isso gera conflito de grupos dentro da própria instituição religiosa.

No catolicismo brasileiro, pode-se observar que a Igreja como qualquer instituição, tem autonomia e poder de reação e por isso desenvolve um papel protagonista e não simplesmente reativo. Nesse sentido, como ator social, ela chega a ser responsável por mudanças estruturais na organização de uma nova sociedade, como afirma Luiz Alberto Gómez de Souza: “No momento das invasões bárbaras dos primeiros séculos, as Igrejas ajudaram a plasmar uma nova sociedade e o mundo feudal mais adiante” (SOUZA, Luiz, 2014, p. 35).

O autoritarismo que ressurge contra a atuação social da Igreja

A ruptura ideológica, atualmente, no catolicismo brasileiro, provocada por grupos conservadores, é continuidade dos mesmos conflitos de interesses apontados na implementação da Ditadura Militar. O discurso ideológico que apoiou o Golpe Militar de 1964, com a justificativa de a Igreja sofrer a ameaça do “fantasma do comunismo”, é recorrente nos dias atuais, e sustentado com mais vigor político e religioso do que no período ditatorial. Essa mentalidade ressurge nos momentos de intervenção social da Igreja contra propostas políticas que possibilitam o extermínio de direitos, historicamente conquistados pelos movimentos populares, classe trabalhadora, movimentos sociais, partidos de esquerda e pela própria instituição católica.

De fato, para os grupos conservadores, quando a Igreja fala em distribuição justa de bens econômicos, materiais, financeiros e também da garantia de direitos sociais, conquistados a duras penas, ela é classificada, como comunista, esquerdista, petista, marxista, dentre outros, por esses cristãos, juízes de um “tribunal religioso”, capazes de julgar e condenar seres humanos ao “fogo do inferno”, simplesmente por defender direitos iguais para todos. Para estes “algozes” da Igreja, direitos iguais e bem comum são o mesmo que comunismo.

Esses mesmos “juízes” defenderam a Reforma Trabalhista que aumentou o desemprego, a precarização do trabalho e o trabalho informal. Não contentes com este apoio que comprometeu de forma trágica a vida do trabalhador, sustentaram a Reforma da Previdência e atacaram de forma violenta, a Igreja, porque esta se posicionou contra essas reformas que destruíram os direitos sociais dos pobres, defendidos pela Constituição Federal.

Como narrativa de sustentação para a sua militância no seio do catolicismo, estes fiéis que se autodenominam legítimos católicos defensores da Igreja, elegeram o Partido dos Trabalhadores (PT), como suposto inimigo, o demônio atuando em algumas pastorais da mesma instituição religiosa. Porém, outros partidos políticos circulam, livremente, no mesmo espaço, sem serem incomodados. Para esses outros, o silêncio é o passaporte da legitimidade.

Os ataques à Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 ajudaram a perceber que estes grupos reacionários não se sentem intimidados em mostrar que são contra os Direitos Humanos, a distribuição de terra e de renda, o diálogo inter-religioso, a comunidade LGBTQI+ e outras minorias, mas a favor do armamento, da pena de morte, do racismo, do machismo, da xenofobia e do encarceramento em massa.

Com quase trezentos mil óbitos confirmados pela Covid-19 e milhões de pessoas infectadas pelo vírus, num Brasil que se tornou o epicentro da pandemia, esses religiosos, em nome de Deus, preferiram fortalecer uma política negacionista da pandemia, minimizando seus efeitos, forçando a saída do isolamento social, promovendo aglomerações, recusando o uso da máscara e de outros cuidados básicos, e espalhando mentiras contra a vacina, meio fundamental para a proteção da vida.

Outro fator grave é uma enorme apologia ao ódio visível nas redes sociais, principalmente, nos grupos de WhatsApp de membros de pastorais e movimentos. É estarrecedor o número de católicos que, no intuito de defenderem suas opiniões, muitas vezes infundadas no Evangelho, nos documentos da Igreja e do Papa Francisco, expressam todo tipo de acusações, mentiras, rancores e desrespeito contra seus líderes religiosos, neste caso, alguns bispos, que segundo a Tradição da Igreja, são sucessores legítimos dos Apóstolos.

Esse tipo de comportamento revela um perfil de fiel mal-intencionado, proporcionando perseguição de católico contra católico dentro do mesmo credo religioso. Essa tensão parece ser consequência de um projeto contraditório de país, ou seja, um Brasil de “religiosos” sem Deus, que trocou o amor pelo ódio.  Por isso, é preciso conhecer a história de cada ação social da Igreja Católica, para não dividir “o corpo de Cristo” (1 Coríntios 12,27), que é uma construção de amor e união e não de divisão.

Os ataques à Campanha da Fraternidade Ecumênica enfraquecem e descontroem toda luta contra a injustiça e opressão estruturais sofridas pelas minorias sociais, negando a violência simbólica, material e religiosa contra elas.

Diante de tanta violência no mundo, respaldada pela religião, principalmente no Brasil, de modo particular no período do Regime Militar de 1964, é urgente perceber que este momento de realização da Campanha da Fraternidade de 2021, oportuniza meios para o(a) cristão(ã) refletir, avaliar e identificar caminhos para a superação das polarizações e das violências que marcam o mundo atual.

A Campanha da Fraternidade Ecumênica fala de união entre os cristãos católicos e evangélicos para superar as divisões que enfraquecem o sonho de Jesus de Nazaré: “Para que todos sejam um […]. Que eles sejam levados à plena unidade” (João 17, 22-23). Porém, é visível a resistência destes cristãos que não querem concretizar este sonho do Cristo, o que se percebe pelas atitudes de oradores que gritam contra as ações ecumênicas da Igreja. Seus discursos disseminados nas redes sociais revelam religiosos que não aceitam ou desconhecem a história da Campanha da Fraternidade, uma iniciativa eclesial privilegiada, pela qual a Igreja no Brasil, vivencia a Quaresma como meio de inserção e transformação das relações sociais.

 

REFERÊCIAS

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Campanha da Fraternidade 2017: Texto-Base. Brasília, Edições CNBB. 2016. Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da visa.

CONIC/CNBB. Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021: Texto-Base. Brasília, Edições CNBB. 2021. Fraternidade e Diálogo: Compromisso de amor.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração: Depoimento a François Bougon. São Paulo: Moderna, 1996.

SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. Contradições das religiões nos anos de chumbo: do apoio à profecia. In: PANASIEWICZ, Roberlei; VITÓRIO, Jaldemir (org). Espiritualidades e dinâmicas sociais: Memória – Prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2014.

[1] Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e padre da Arquidiocese de Londrina – PR.

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