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Marcia Oliveira: O apagão do Amapá e o apagamento da Amazônia

Na foto, protesto de moradores de Macapá no sétimo dia às escuras – Foto: Amazônia Real/Fotos Públicas, por Hora do Povo.

Artigo de Marcia Oliveira* publicado originalmente em Amazonas Atual, 11 de novembro de 2020, na coluna da autora.

O ‘apagão’ que deixou 13 municípios do Amapá sem luz, água, alimentação e comunicação na semana passada é um sintoma grave das consequências da dependência energética a que a Amazônia vem se submetendo nas últimas décadas por causa da privatização de recursos básicos como luz e água.

A demonstração de descaso e omissão dos governos em nível nacional, estadual e locais se reproduz em outras regiões da Amazônia em situações drásticas como no caso das queimadas, da contaminação das águas pelas grandes mineradoras ou dos garimpos clandestinos, do uso indiscriminado de veneno na produção agrícola, dos conflitos socioambientais e muitas outras formas de violação dos direitos humanos e dos direitos na natureza na Amazônia.

Os diversos povos que vivem nas florestas e nas cidades da Amazônia, sofrem drasticamente com os contrastes sociais e econômicos de uma das regiões mais desiguais do mundo. Enquanto alguns grupos políticos e econômicos centralizam as riquezas produzidas na região e a propriedade privada de boa parte de seu território, a grande maioria dos povos vive na miséria nas periferias das cidades.

A Amazônia já sofreu um desmatamento de mais de 700.000 km. A ciência vem alertando que existe um limite para este desmatamento que, uma vez ultrapassado, poderá ocasionar a maior tragédia ambiental do mundo, incalculável para o ciclo de carbono do planeta.

As políticas governamentais de incentivo às hidrelétricas, mineração e agronegócio tendem a anular as iniciativas em prol de sua preservação priorizando a exploração e o saque das suas riquezas em detrimento da miséria de seus povos que vivem no meio urbano, com todos os problemas daí derivados, de ausência de saneamento básico, aglomeração nas periferias, insalubridade, desemprego e outras mazelas de uma concentração urbana e desregulada.

O processo do chamado desenvolvimento da Amazônia é um exemplo mais que claro de como ele se deu como reprodução do sistema colonialista que presidiu a formação dos países da Pan-Amazônia a partir da sua colonização em 1500. O atual desenvolvimento econômico ainda se pauta na agenda do integracionismo iniciado no governo da ditadura militar, que ignora a presença histórica das populações locais formadas por povos indígenas, posseiros, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e toda uma infinidade de comunidades tradicionais, consideradas como entrave e empecilho ao desenvolvimento e progresso capitalista na região.

Em todos os países da Pan-amazônia, as populações locais sofrem as mais diversas formas de pressão para abrir caminho para o ‘desenvolvimento e o progresso’ que chega de fora para ‘redimir’ a Amazônia do ‘atraso’ instaurado um novo processo colonial dando continuidade ao colonialismo de outrora.

Há décadas os conflitos pelo território estão marcando toda a região amazônica. As populações tradicionais defendem seus direitos seculares e querem ter seus territórios reconhecidos e legalizados. São históricas as lutas indígenas para a demarcação de suas terras. Os ribeirinhos buscam e estão, aos poucos, conseguindo a concessão comunitária do uso de suas terras. As populações quilombolas querem que seu território étnico seja reconhecido e demarcado. Seringueiros e castanheiros buscam a criação das reservas extrativistas.

Camponeses e posseiros exigem que seus lotes sejam devidamente titulados e lutam por uma reforma agrária que acabe com o latifúndio e para que os governos destinem as terras públicas e devolutas à criação de novos assentamentos, a partir da realidade amazônica, com políticas públicas eficazes para seu funcionamento. Os conflitos e a violência contra camponeses e indígenas se concentram de forma expressiva na Pan-Amazônia, para onde avança o capitalismo econômico com sua ganância e destruição.

O neocolonialismo tem expulsado nações indígenas inteiras de seus territórios promovendo grandes aglomerados nas periferias das grandes cidades entregues à condições de moradia insalubres, pobreza, tráfico de pessoas e de drogas, exploração sexual, inclusive de crianças.

Por causa de suas riquezas naturais, a Amazônia é cobiçada por corporações nacionais e internacionais especializadas na exploração de água, fármacos, essências, minérios, saberes ancestrais das populações, madeiras e terra para plantio de monocultivos.

Grandes madeireiras e serrarias conseguem aprovar propostas de ‘Manejo Florestal’ junto às instituições públicas de Meio Ambiente locais e nacionais prometendo ‘manejo sustentável’ da floresta em seus contratos celebrados com propinas. Acobertadas pelo ‘manejo florestal’ empresas nacionais e estrangeiras se instalam na região sob aval das instituições nacionais e atuam sem fiscalização dos órgãos competentes. Aproveitam-se da fragilidade das legislações ambientais e utilizam-se até mesmo de uso de trabalho análogo ao escravo para acelerar o desmatamento de forma indiscriminada. Anos depois, devolvem grandes porções de terras totalmente desmatadas, desertificadas e improdutivas, que avançam rumo às de áreas de reservas ambientais e terras indígenas.

Por causa da omissão proposital dos governos na fiscalização das empresas, alguns projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), da chamada ‘economia verde’, têm sido acusados de provocar perda de controle de territórios tradicionais, impactos na segurança alimentar (privando as comunidades do acesso à caça e pesca),  deslocamentos compulsórios, gerando conflitos socioambientais, insegurança, empobrecimento, contendas no interior das comunidades étnicas e de outros povos tradicionais.

Um dos problemas fundamentais da Amazônia é o modelo de desenvolvimento adotado para a região ignorando a vocação da floresta, seu papel no clima, no ciclo do carbono, a fragilidade de seus solos descobertos pelas queimadas, a contribuição para os demais biomas da América Latina, sobretudo no ciclo das águas. O avanço desse modelo tem sido um desastre denunciado no mundo inteiro por instituições comprometidas com o meio ambiente e com a vida na terra.

Neste cenário, o apagão do Amapá é somente mais um dos resultados da cobiça capitalista sobre a Amazônia. Apagões como este continuarão acontecendo em toda Amazônia enquanto os direitos das populações locais não forem assumidos como prioridade.

 

*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva – Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.

 

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