“É possível ainda crer em Deus num mundo que manipula Deus para atender a interesses perversos do poder?”, pergunta Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor, em artigo publicado em seu site, 30-07-2021.
“É preferível um ateu ético que um cristão indiferente diante dos sofredores das periferias“. Essa frase não é minha. É repetida várias vezes pelo Papa Francisco ao assistir como cristãos rejeitam refugiados famélicos e desesperados buscando na Europa salvar suas vidas. Quem tem Deus nos lábios e está longe da sensibilidade humana e da justiça mínima, está longe de Deus e seu Deus é antes um ídolo do que o Deus amante da vida e da ternura dos oprimidos.
Quem vive os valores da justiça, da solidariedade, da compaixão e do cuidado de uns para com os outros incluindo a natureza está mais próximo de Deus do que aquele piedoso que frequenta a igreja, faz suas rezas e comunga mas que passa ao largo dos pobres que encontra na rua.
O presidente norte-americano Bush Jr usava frequentemente Deus bem como Bin Laden. Em nome de seu Deus fizeram guerras e promoveram atentados aterradores. Era um Deus belicoso, inimigo da vida e impiedoso destruidor de inteiras cidades com inumeráveis vítimas, particularmente inocentes crianças.
Entre nós o presidente Jair Bolsonaro coloca Deus acima de tudo, mas nega-o praticamente a todo momento com ódio aos negros, aos quilombolas aos indígenas, aos homoafetivos e a seus adversários políticos que os transforma não em adversários mas em inimigos a quem se deve perseguir e difamar. Acostumou-se à mentira direta, às fake news, a ponto de nunca sabermos quando diz a verdade ou simplesmente diz mais uma mentira.
O mais grave, entretanto, que o Deus que continuamente tem em seus lábios não o moveu a um gesto de solidariedade às milhares de famílias que choram seus entes queridos, parentes e amigos. Nunca visitou um hospital para ver a dramática situação da falta de oxigênio e a morte por sufocamento de centenas de pessoas como ocorreu em Amazonas. Se pelo menos fizesse uma obra de misericórdia que é visitar os enfermos. Sua prática nega Deus e o torna um ateu prático, antiético e perverso.
O ódio que destila, a falta de qualquer respeito e veneração face à sacralidade da vida incorpora traços que as Escrituras atribuem ao anti-Cristo. É próprio do anti-Cristo usar o nome de Deus e de Jesus para enganar e seduzir as pessoas para o caminho da perversidade. Marca do anti-Cristo é seu desprezo pela vida e sua pulsão pela morte.
Mas esse Deus é um ídolo porque não é possível que o Deus vivo e verdadeiro queira o que ele quer. O ateísmo ético tem razão ao negar esse tipo de religião com o seu Deus que justificou outrora as cruzadas, a caça às bruxas, a inquisição, o colonialismo, a Shoah judaica e atualmente o genocídio provocado pela Covid-19, particularmente entre os indígenas e os pobres sem proteção nas grandes periferias das cidades.
É possível ainda crer em Deus num mundo que manipula Deus para atender a interesses perversos do poder? Sim, é possível, à condição de sermos ateus de muitas imagens de Deus que conflitam com o Deus da experiência dos praticantes religiosos sinceros e consequentes e dos puros de coração.
Então a questão hoje é: Como falar de Deus, sem passar pela religião? Porque falar religiosamente como Jair Bolsonaro e antes Bin Laden e Bush falaram é blasfemar Deus.
Mas podemos falar secularmente de Deus sem referir seu nome. Como bem dizia o grande profeta já falecido Dom Casaldáliga: se um opressor diz Deus eu lhe digo justiça, paz e amor, pois estes são os verdadeiros nomes de Deus que ele nega. Se o opressor disser justiça, paz e amor eu lhe digo Deus pois sua justiça, paz e amor são falsos.
Podemos falar secularmente de Deus a partir de um fenômeno humano que, analisado, remete à experiência daquilo que chamamos Deus. Penso no entusiasmo. Em grego, de onde se deriva entusiasmo é enthusiasmós. Ela se compõe de três partes: en (em) thu (abreviação de theós=Deus), e mos (terminação de substantivos). Entusiasmo significa, pois, ter um Deus dentro, ser tomado por uma Energia singular que nos faz lutar pela vida, pelos direitos e pelos empobrecidos.
É uma força misteriosa que está em nós mas que é também maior que nós. Nós não a possuímos, é ela que nos possui. Estamos à mercê dela. O entusiasmo é isso, o Deus interior. Vivendo o entusiasmo, neste sentido radical, estamos vivenciando a realidade daquilo que chamamos Deus.
Essa representação é aceitável porque Deus se tornou íntimo e dentro de nós, embora também sempre para além de nós. Bem dizia Rumi, o maior místico do Islã: “Quem ama a Deus, não tem nenhuma religião, a não ser Deus mesmo”. Deus mesmo não tem religião.
Nestes tempos de idolatria oficial há que se resgatar este sentido originário e existencial de Deus. Seu nome é amor, é justiça, é solidariedade, é gratuidade, é capacidade de renunciar para o bem do outro, é ter compaixão e infinita misericórdia. Quem vive nesta atmosfera de valores, está mergulhado em Deus. Somos habitados pelo Deus interior através do entusiasmo que confere sentido às nossas lutas.
Sem pronunciar-lhe o nome, o acolhemos reverentemente com o entusiasmo que nos faz viver e que nos permite a alegre celebração da vida.