Iser Assessoria

Leonardo Boff – a mãe que virou beija-flor para libertar a filhinha

Leonardo Boff – Em homenagem aos indígenas: a mãe que virou beija-flor para libertar a filhinha

Amigos/as,
Estou enviando este belo mito indígena
em homenagem aos muitos deles
que estão morrendo de covid-19.
Abraço desesperançado deste governo.
lboff

São muitos irmãos e irmãs nossos indígenas que estão morrendo por causa do Covid-19 e o descaso das políticas genocidas e etnocida do atual Governo.

Dedico-lhes este belo mito-estória dos povos amazônicos sobre o sentido da morte e da entrada na suprema Felicidade. Ela vale também para os familiares dos milhares de falecidos por causa do Coronavírus. Eles merecem a nossa solidariedade e também nossas palavras de consolo.

Sempre nos perguntamos: como as pessoas falecidas chegam ao céu? Há uma convicção entre os povos de que todos devem fazer uma viagem. Nessa viagem há provas a passar. Segundo este relato dos povos amazônicos, cada um deve se purificar, tornar-se leve para poder mergulhar para dentro daquele mundo de alegria e de festa onde estão todos os antepassados e os parentes falecidos.

A nossa tristeza é que, por causa do descaso das atuais autoridades que desprezam e até odeiam os povos originários, muitos pajés estão morrendo, vítimas do Covid-19. Com eles desaparece uma inteira biblioteca de conhecimentos que eles herdaram, enriqueceram e sempre passam às novas gerações. Com sua morte há uma ruptura dolorosa dessa tradição. Eles e nós sofremos e ficamos mais pobres. A todos eles nossa profunda solidariedade e com-paixão, sofrendo também a dor que eles sofrem: LBoff

Indígena usa mascara durante funeral do chefe Messias Kokama 53 do parque das tribos falecido devido a covid-19 em Manaus. 1589508291656_v2Em muitas tribos da Amazônia acredita-se que os mortos se transformam em borboletas. Durante o tempo necessário para a purificação, cada qual ganha uma forma adequada. As que se purificam logo, são alvíssimas, com poucas horas de vida e com cores brancas. Penetram diretamente no mundo da felicidade.

As que precisam de mais tempo, são menores, leves e multicores. E as que precisam de muito tempo são maiores, pesadas e com cores escuras.

Todas elas voam de flor em flor, sugando néctar e fortalecendo-se para carregar o próprio peso ao se alçarem ao céu, onde viverão felizes com todos os antepassados e parentes que estão apenas no outro lado da vida. Conta-se naquela floresta a seguinte estória:

Coaciaba, era uma jovem índia, esbelta e de rara beleza. Ficara viúva muito cedo, pois seu marido, valente guerreiro, tombara sob uma flecha inimiga. Cuidava com extremo carinho da única filhinha, Guanambi.

Para aliviar a saudade interminável do marido, passeava, quando podia, pelas margens do rio, vendo as borboletas ou na campina, perto do roçado, onde também esvoaçavam os colibris e outros insetos.

De tanta tristeza, Coaciaba acabou morrendo. Não se morre só de doença, por velhice ou por causa de um vírus maligno da natureza. Morre-se também por saudade da pessoa amada.

Guanambi, a filha, ficou totalmente sozinha. Inconsolável, chorava muito, especialmente, nas horas em que sua mãe costumava levá-la a passear. Mesmo pequena, só queria visitar o túmulo da mãe. Não queria mais viver. Pedia a ela e aos espíritos que viessem buscá-la e a levassem lá onde estivesse a sua mãe.

De tanta tristeza, Guanambi foi definhando dia após dia até que também ela morreu. Os parentes ficaram muito penalizados, com tanta desgraça sobrevindo sobre a mesma família.

Mas, curiosamente, seu espírito não virou borboleta como a dos demais índios da tribo. Ficou aprisionado dentro de uma linda flor lilás, pertinho da sepultura da mãe. Assim podia ficar junto da mãe, como havia pedido aos espíritos.

A mãe Coaciaba, cujo espírito fora, sim, transformado em borboleta, esvoaçava de flor em flor sugando néctar para se fortalecer e encetar sua viagem ao céu.

Certo dia, ao entardecer, ziguezagueando de flor em flor, pousou sobre uma linda flor lilás. Ao sugar o néctar, ouviu um chorinho triste e doce. Seu coração estremeceu e quase desfaleceu de emoção. Reconheceu dentro dela a vozinha da filha querida Guanambi. Como poderia estar aprisionada ai? Refez-se da emoção e disse:

Mas deu-se logo conta de que ela era uma levíssima borboleta e que não teria forças para abrir as pétalas, romper a flor e libertar a filhinha querida. Recolheu-se, então, a um canto e, em lágrimas, suplicou ao Espírito criador e a todos os ancestrais da tribo:

Tanta foi a compaixão despertada por Coaciaba que o Espírito criador e os anciãos da tribo atenderam, sem delongas, a sua súplica. Transformaram-na num belíssimo beija-flor, leve, ágil, que pousou imediatamente sobre a flor lilás. Sussurrou com voz carregada de enternecimento:

Com o bico ponteagudo, foi tirando com cuidado pétala por pétala até abrir o coração da flor. Lá estava Guanambi sorridente, estendendo os bracinhos em direção da mãe.

Purificadas e abraçadas voaram alto, cada vez mais alto até chegarem juntas ao céu.

Desde então se introduziu entre indígenas amazônicos, o seguinte costume: sempre que morre uma criança órfã, seu corpinho é coberto de flores lilás, como se estivesse dentro de uma grande flor, na certeza de que a mãe, na forma de um beija-flor, venha buscá-a para, abraçadas, voarem para o céu, onde estarão eternamente juntas e felizes com todos os antepassados e com todos os demais parentes.

Leonardo Boff reescreveu mitos-estórias de nossos povos indígenas:”O casamento entre o céu e a Terra”, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2014.

 

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