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Júlio Lancellotti, o padre dos pobres

Entrevista publicada em O Povo

Júlio Lancellotti, o padre da população de rua, foi entrevistado por Domitila Andrade em matéria publicada por O Povo, 12/08/2019 – encurtador.com.br/lsyGK.

Júlio Lancellotti: um sacerdote a serviço do humano

Pedagogo, padre e um ferrenho defensor dos direitos humanos. De fala mansa e pausada, padre Júlio Lancellotti é, aos 70 anos, como um pilar de quem procura por dignidade na vida nas ruas. Roupas, agasalhos, proteção, convivência, luta e fé é o que, cotidianamente, padre Júlio oferta a quem recorre a ele na Matriz Paroquial de São Miguel Arcanjo, na Mooca, bairro da Capital paulista, e na Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo. Mas, nos 34 anos de sacerdócio, e mesmo antes disso, já espalhou suas ações para crianças portadoras do vírus HIV, adolescentes em conflito com a lei, mulheres encarceradas, presos que sofriam tortura… Gente que, diante do sofrimento e da vulnerabilidade, encontraram no padre algum alento. Ao O POVO, Júlio Lancellotti conta sobre sua trajetória e a batalha que trava incansavelmente pelos que mais precisam.

O POVO – Como o senhor buscou e começou o sacerdócio?

Padre Júlio Lancellotti – Essa é uma pergunta que muitas vezes me fazem, mas eu não sei como a gente busca isso. É um arranjo que se faz na vida, de sentido, de significado. Não foi uma coisa linear. Foi um desejo que aparecia, desaparecia. Ora estava mais forte, ora estava mais fraco. Ora a vida me levou para outros caminhos, eu fui dar aula, fui ser professor, trabalhei em várias outras áreas. Mas sempre em alguma área mais ligada à questão social e educação. E sempre tive um apelo religioso muito forte que foi construindo até chegar na vida de presbítero, de padre, na Igreja Católica Romana.

OP – Mas a sua construção familiar levava a isso?

Padre Júlio  – Não, não necessariamente. A minha família nunca impôs, sempre respeitou. Em alguns momentos, até mostrava certa discordância. Eu lembro muito na minha infância, encontrei uma irmã que marcou muito a minha vida pela forma de ela ser. Ela tinha muita dificuldade, ela quase não enxergava, e ela se ligou muito a nós. Eu ia de manhã pro convento onde ela morava, que era a escola que eu frequentava. E eu levantava de madrugada pra ir, e meu pai não queria que eu saísse tão cedo de casa, porque estava escuro. Minha mãe sabia, e eu descia as escadas com sapato na mão, para não fazer barulho e poder ir. A irmã Inezita teve uma interferência maior. Era uma pessoa muito simples, usava uns óculos com uma lente muito grossa, com uma pele muito escura. Eu tinha por ela muita compaixão.

OP – Dessa época, mais alguém se tornou padre ou só o senhor?

Padre Júlio  – Não, outro amigo estudou bastante, mas não foi. Nós dois fomos coroinhas juntos, nós cuidávamos do padre, um alemão que tinha estado na guerra (Segunda Guerra Mundial). Aí fui pro seminário a primeira vez, mas era longe, eu senti muita saudade de casa, e fiquei seis meses só e voltei. E perdi a irmã Inezita de vista, nunca mais a encontrei. Mas ela sempre ficou viva na memória, tive uma vida intensa com ela, no Educandário do Espírito Santo, no Tatuapé. Minha família mudou de bairro, e eu fui estudar com os padres Agostinianos. Depois do ginásio, eu voltei pro seminário. Eu fiquei lá um bom tempo, fiz todo o nível médio, e o noviciado. Mas no noviciado eles me mandaram embora, porque disseram que eu era muito questionador, muito crítico, perguntava demais, não seguia as regras. Porque eles tinham regras muito absurdas e eu questionava. No último ano do ensino médio, isso foi em Bragança Paulista, eu fiz um curso de atendente de enfermagem na Santa Casa de Misericórdia de Bragança, onde viveu Santa Paulina. E construí a enfermaria do seminário. Então dava medicação, injeção, remédio, marcava consulta. Quando o novo superior chegou, ele disse: “Foi você quem fez a enfermaria?”. Eu respondi que sim. “Você gosta muito da enfermaria, né?”. Eu falei: “Gosto”. Ele falou: “Então, a partir de hoje você está proibido de entrar lá. Passa a chave pra cá”. Aí, a enfermaria passou pra outro rapaz. E nós não podíamos falar mais os que eram noviços com os outros seminaristas. Um dia eu falei com um que estava com dor de dente e não tinha tido atendimento. E o padre viu que eu fiz isso. Iiii! Eu levei um castigo enorme. Quando eles me disseram para ir embora, eu tinha uns 18, 19 anos. Eles disseram: “Você vai embora que você não serve pra isso”. Aí eu voltei pra casa, meu pai falou: “Você já foi duas vezes, já tentou, eles não te querem. Então, agora, meu filho, vai trabalhar, porque ninguém aqui vai sustentar vagabundo, não”. Fui trabalhar de atendente de enfermagem num hospital, e depois fiz uma prova, comecei a trabalhar na área de educação, comecei a estudar Pedagogia. Quando terminei, dava aula de alfabetização, para crianças com dificuldade de aprendizado, de formação de professores no nível médio e aula de história da Educação a noite nas faculdades. Em termos profissionais, eu fui entrando na área de defesa dos Direitos Humanos, a gente combateu muita tortura, muita violência, contra jovens e crianças, contra encarcerados. Foi uma fase que marcou minha vida. Até que surgiu a Pastoral do Menor em São Paulo, e o cardeal era dom Paulo Evaristo Arns, o grande defensor de Direitos Humanos, e o eminente dom Luciano Pedro Mendes de Almeida. E eu me aproximei muito dele, eu estava trabalhando na antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), na área de educação. Mas eu não aguentava de ver tortura, e eu combatia muito, por isso, eles queriam me pôr fora de todo jeito. Era o governo do Paulo Maluf, era tempo de Ditadura (Militar). O que acontecia nessa fase era terrível. Consegui que eles me liberassem para que eu fosse trabalhar com dom Luciano, na Pastoral do Menor. E em 1980, quando o papa João Paulo II veio no Brasil a primeira vez, dom Luciano era secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), e dom Luciano acompanhou o papa. E, quando o papa foi embora, ele estava contando pra nós tudo que o tinha acontecido. Fazer parte da comitiva do papa era uma aventura. E ele disse: “O papa me fez uma pergunta”. Eu disse: “É, dom Luciano, o que foi que o papa lhe perguntou?”. “O papa me perguntou quando eu vou te ordenar padre”. Eu falei: “Imagina que o papa iria falar isso, ele nem sabe que eu existo”. E ele falou: “Mas quem tá perguntando sou eu”. Em 1981, eu comecei a estudar Teologia, em 85, ele me ordenou padre. Então, eu sou padre faz 34 anos.

OP – Eu ia lhe perguntar em que momento servir a igreja se encontrou com esse acolhimento a populações vulneráveis, mas foi contrário, não é?

Padre Júlio  – Sim. Eu sempre fui ligado à vida da Igreja, eu fui catequista, sempre ajudei nas comunidades, nas paróquias. Mas nós vivíamos em outro tempo. Era o tempo de Puebla, de Medellín, da opção pelos padres, com dom Paulo Evaristo. As pessoas que marcaram a nossa vida, na minha geração é a de dom Aloísio Lorscheider, que foi arcebispo de Fortaleza, dom Hélder Câmara, dom José Maria Pires, dom Paulo Evaristo, dom Luciano. Eles foram as grandes pessoas que redemocratizaram o Brasil. Dom Paulo, no culto inter-religioso por Vladmir Herzog, era uma luta pelos Direitos Humanos, contra tortura, contra a violência, na defesa das minorias, dos povos sofridos. É toda uma geração que foi construída nisso. Com a Catedral de São Paulo cercada pelo Exército, com ameaças a dom Paulo, censura muito forte. A gente viveu isso. Nós fomos forjados nesse fogo.

OP – Para o senhor é possível dissociar o sacerdócio da luta pelos direitos humanos?

Padre Júlio  – Hoje, eu não consigo dissociar. Faz parte integrante do sentido do que eu tenho pra minha vida, na convivência com os moradores de rua, com todos os grupos, é uma coisa é ligada a outra. Não tem separação.

OP – O senhor ajudou a fundar a Casa Vida que cuidava de crianças portadoras do vírus HIV. Como foi esse trabalho?

Padre Júlio  – A Casa Vida surgiu na minha cabeça e no meu coração de uma maneira muito interessante. Quando foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), começou com a Constituinte de 1988. Em 88, nós conseguimos o artigo 227 da Constituição, em que crianças e adolescentes são prioridades absolutas. Só falta esse Congresso de hoje querer retirar isso. Foi ele que ensejou a lei que é o ECA, que é de 89. Foi escrito e descrito da luta de muitos grupos. A Casa Vida foi a intuição que eu tive, porque os grandes orfanatos, pelo estatuto, acabaram, então deveríamos de ter pequenas residências, pequenas casas. Como eu tinha trabalhado em uma casa grande da Febem, onde tinha muitas crianças abandonadas, eu fui lá ver a situação que estava e vi as crianças com HIV, que estavam segregadas, que não se comunicavam com as outras crianças, que não tomavam nem banho de sol, porque a aids era muito difícil. Então, aquelas crianças estavam ali como que condenadas à morte. Então, veio pra mim a ideia de fazermos uma casa com o nome de Vida, para crianças com HIV. Foi uma luta. Eu fui processado, tentaram incendiar a Casa Vida duas vezes, teve muita situação difícil. Foi uma luta muito grande, porque naquela época, o Congresso Nacional queria aprovar uma lei de aborto compulsório às mães HIV positivo. A gente conseguiu combater isso, porque a maior parte das crianças, mesmo filhas de mulheres HIV positivo, nascem sem estarem com o vírus. Por toda essa luta, a gente conseguiu que o protocolo do pré-natal tenha o exame de HIV pra mãe. Antes, as mães sabiam que estavam com o vírus por conta dos filhos. Hoje, os filhos não se contaminam, porque as mães já sabem que têm o HIV, e o parto é assistido para que a criança não nasça infectada. Aí vieram as questões de adoção, das crianças conhecerem a síndrome, como se cuidarem, foi uma luta muito grande, de muitos anos, que custou muita vida, muitas lágrimas, muito sorriso, muita esperança, muito cansaço. As casas hoje são abrigos comuns que estão a cargo de uma entidade.

OP – O senhor consegue elencar que lutas o senhor travou que marcou mais a sua vida?

Padre Júlio  – Acho que a luta pelas crianças com HIV marcou muito a minha vida. A luta pelos encarcerados. As mulheres me marcaram muito, eu acompanhei por muito tempo mulheres presas. O que marca muito vida agora é o povo da rua. Com isso eu tenho sofrido muitas ameaças, já fui agredido, já se movimentaram muitas campanhas contra mim. A gente passa por situações muito desafiadoras.

OP – Vi uma entrevista em que o senhor fala que as populações de rua têm crescido. A que o senhor credita esse aumento?

Padre Júlio  – A população de rua cresce porque é a lógica desse sistema neoliberal, neo-capitalista que descarta. É a população que descarta, e ela vai ser cada vez maior. Nova Iorque já tem 60 mil pessoas na rua; Los Angeles tem 40 mil; São Paulo deve estar chegando aos 25 mil; o Rio de Janeiro está com 16 mil; até Tóquio já tem população de rua. Só aumenta em todas as grandes cidades do Brasil e do Mundo. A população de rua é uma população de refugiados urbanos, que ninguém os quer. Todo mundo quer se ver livre. Em todo lugar em que eles estão, se incomodam, eles são visíveis; se eles estão morrendo de frio, eles são invisíveis. Esse dias eu disse: o inverno é democrático, todo mundo sente frio, mas mata os pobres. Só os pobres morrem de frio.

OP – O senhor promove um bazar com doações de roupas. Qual a importância disso, para além da entrega da roupa?

Padre Júlio  – Eles ficam ali na porta da igreja, e hoje (17/7) por exemplo estava muito frio, estavam todos dentro da igreja. Na hora que eu termino a missa, eu fico na porta me despedindo das pessoas, e eles todos vêm pra me dar a mão. Quem é que dá a mão pro morador de rua? Quem olha nos olhos dele e fala bom dia? Que dá um sorriso? Ontem, teve um que me mostrou a calça rasgada, ele estava sem cueca. Aí logo pedi pra verem uma roupa pra ele, pra que ele pudesse se compor. Muitos estavam pedindo coberta, gorro, meias. Isso tudo não é o fim, é um meio pra um objetivo. O objetivo é dizer: “Você é importante pra mim, eu vou cuidar de você, você é uma pessoa, você não é indiferente pra mim, por isso eu partilho alimento com você, partilho roupa, quero que você se aqueça”.

OP – O senhor se posicionou muito fortemente contra a candidatura e as eleições do agora presidente Jair Bolsonaro (PSL). Inclusive recebeu críticas por isso. Por que demarcar a posição?

Padre Júlio  – Quando ele era deputado federal e despontava como um possível candidato, eu comentei em um homilia na igreja que eu achava muito impressionante essa intolerância que vai se acentuando de que a população tivesse tanta simpatia por uma pessoa declaradamente homofóbica, racista e machista. Isso ocasionou que ele me processa. Estou sendo processado, já faz um bom tempo. A minha posição sempre vai ser anti-fascista, anti-autoritária, anti-totalitária, e também uma posição que não aceita a homofobia, nem o racismo. Nós estamos vendo como está o Brasil, que diariamente estamos vendo uma tragédia, de coisas como, por exemplo, nessa reforma previdenciária, que a própria Igreja se posicionou contra, a questão dos autistas, dos esquizofrênicos, e das pessoas com síndrome de Down; a notícia de que 19 medicamentos não serão mais fabricados e que são distribuídos gratuitamente; os ataques às populações originárias, aos quilombolas; a questão do porte e da posse de arma. Nós estamos vendo o empobrecimento acelerado da população. Eu, reiteradamente, tenho dito que, pela população jovem que está na rua e sem possibilidade de ter esperança, nós podemos estar caminhando para uma convulsão social. Nós estamos vendo uma deterioração do tecido social, estamos perdendo todas as políticas de proteção social. Estamos vivendo um momento extremamente grave. Eu vejo as pessoas, as famílias que vêm me pedir ajuda para comprar gás, porque estão cozinhando com metanol, com lenha. E isso não é no Interior do Brasil, é na cidade mais rica do País, onde os contrastes são imensos. Parece que a gente está caminhando para um genocídio.

OP – Essa postura tanto política quanto de acolhida a essas populações traz ônus ao senhor?

Padre Júlio – Traz, mas é um preço que eu sei que eu tenho que pagar, e que eu não me importo. Não tenho problema com isso. Eu recebo ameaças, na internet colocaram “Morte ao Padre Júlio”, “Esse padre tem de morrer, tem de desaparecer”. Mas prefiro estar com os moradores de rua a estar do lado de poderosos. Uma dia uma jornalista me perguntou qual a minha perspectiva. A minha perspectiva é o fracasso. Se eu tiver perspectiva de vencer é porque eu aderi a esse sistema. Eu não quero vencer, eu quero fracassar.

OP – O senhor faz a cerimônia de lava-pés com travestis e pessoas trans; há, inclusive, uma travesti que adotou o sobrenome do senhor por considerá-lo um pai. Como acredita que essa acolhida à comunidade LGBTQIA é vista dentro da Igreja?

Padre Júlio – Olha, ninguém me fala nada. Porque eu digo: eles são a imagem do amor de Deus. São pessoas que têm fé, que manifestam seu amor a Deus e que têm de ser respeitadas e disso eu não abro mão. Eu os respeito, os defendo, e os protejo. Todo grupo LGBT que está na rua ou que está em dificuldade sabe que eu estou do lado deles, sem julgá-los nem recriminá-los, e estou junto como eles e com elas diante de qualquer crueldade.

OP – Ano passado, houve um episódio em que o senhor, para proteger moradores de rua, acabou também sendo agredido pela guarda municipal de São Paulo. Como foi esse episódio? O senhor vê alguma diferença depois do ocorrido de como forças de segurança tratam a questão do povo que mora nas ruas?

Padre Júlio  – Não há diferenças, eles continuam bastante cruéis. O que aconteceu foi que a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma cautelar para o governo brasileiro para que me proteja, no sentido de garantir a luta na defesa dos direitos humanos sem ser atingido. Eu coloquei que não quero escolta. A minha proposta é de que parem de maltratar os moradores de rua e não os atinja. A gente continua no front para que cessem essas ações higienistas, esse “rapa”, a forma cruel com que eles são tratados.

OP – São 70 anos de vida, quase metade dedicada ao sacerdócio e a luta por direitos humanos. O que o senhor acredita que falta realizar?

Padre Júlio  – Não esperava, aos 70 anos, ver o retrocesso que nós estamos vendo. Nós temos voltado atrás em tantas questões. Nós estamos no século XXI e em seis meses voltamos ao século XVIII. Eu não vou ver a mudança, de ir para frente outra vez, não acredito que eu vá ver. Mas acredito que, na história, a mudança haverá e vamos ter que reaprender a fazer um caminho que humanize a vida, as relações e que os pobres sejam respeitados.

OP – A Igreja poderá participar dessa mudança?

Padre Júlio  – Ela deve participar. A sinalização, o caminho, o testemunho do papa Francisco está aí. Muita gente está se fazendo de surdo, cego e mudo. Mas o papa Francisco continua mostrando esse caminho. Ele não só mostra, como vai nesse caminho e dá o exemplo. Acredito que é preciso seguir. O Cristianismo está passando por uma desfiguração, talvez a maior que aconteceu desde quando o Império se cristianizou, com Constantino. Hoje, estamos vendo o ‘neopentecostancialismo’, essa comercialização religiosa, essa teologia da prosperidade, que de cristã não tem nada.

 

 

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