O governo Bolsonaro começou. Agora, saímos da fase dos discursos e bravatas para a fase das decisões políticas: as medidas estão sendo tomadas e terão consequências.
Os primeiros atingidos foram os povos indígenas e os quilombolas. Dentre as novas medidas, o Ministério da Agricultura – que está nas mãos do agronegócio – é quem passa a ter o poder de demarcar terras indígenas e delimitar comunidades quilombolas. O governo ofereceu o controle do galinheiro à raposa. Por outro lado, o órgão que poderia defendê-los – a FUNAI – foi esvaziado, ao ser transferido do Ministério da Justiça ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Na prática, o direito dos povos indígenas e quilombolas a suas terras está suspenso, o capítulo da Constituição de 1988 sobre os povos indígenas foi rasgado.
O novo governante não tem qualquer apreço pelos direitos dos trabalhadores. Ele pretende aprofundar a Reforma Trabalhista aprovada em 2017, reforma esta que nos fez retroceder aos anos 1930-40, quando foram introduzidas leis em defesa dos trabalhadores, especialmente a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), criada em 1943. Voltamos 70 anos atrás, a um período em que o trabalhador dependia do beneplácito do patrão para ter alguma coisa: ele não tinha direitos.
Apesar desta reforma, que foi feita em benefício dos empresários, Bolsonaro considera que existe excesso de proteção para o trabalhador. A extinção do Ministério do Trabalho é uma evidência de que os trabalhadores estão entregues à própria sorte. Além disso, a fiscalização do trabalho escravo no Brasil era feito por este Ministério e não se sabe como ficará. Para informação, foram libertados 50 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão entre 2003 e 2016.
Foi extinto também o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Este órgão, criado no governo Itamar Franco em 1993, extinto durante o governo FHC e recriado pelo governo Lula (2003), era uma instância de participação da sociedade civil junto com membros do governo na discussão sobre as políticas públicas para a alimentação. Várias das políticas bem sucedidas dos últimos anos foram gestadas neste Conselho.
Nas declarações mais recentes, o novo governante e os integrantes de sua equipe afirmam que vão reduzir o Estado e adotar a política de “austeridade”. Ambas as expressões significam que as políticas sociais – saúde, educação, assistência social, transporte, entre outras – sofrerão novos cortes. Ora, elas vêm sendo cortadas desde 2015, com o ajuste fiscal iniciado por Dilma e seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Em seguida, com o governo Temer, veio a PEC do Teto dos Gastos, que está reduzindo, ano a ano (nos próximos 20 anos), os recursos para saúde, educação e assistência.
São medidas que vão piorar as condições de vida para toda a população, especialmente a maioria mais pobre. As políticas de “austeridade” estão sendo seguidas na Europa desde 2011, em seguida à crise econômica internacional de 2008. Seu resultado tem sido desastroso, como demonstrado por economistas de renome internacional: desemprego crescendo, recursos para políticas sociais diminuindo. A política é “austera” para a maioria, mas um verdadeiro paraíso para os 10% mais ricos – que nada sofrem nem cortam gastos.
Este processo só é possível graças à cortina de fumaça mantida pela mídia, que esconde os fatos e justifica como sendo a única saída possível para a “crise” que estamos vivendo: “é preciso cortar na carne”, “não há crescimento sem sacrifício”, a “crise é muito grave, há que reduzir”. Só que a mídia não explica que os cortes não atingem os que ganham mais.
Vejamos um exemplo simples. Temer promoveu uma redução drástica de recursos nas políticas sociais, mas não para os banqueiros e rentistas: graças à taxa de juros, que é uma das mais altas do mundo, o Brasil pagou 500 bilhões de reais de juros da dívida pública em 2015, 400 bilhões em 2016 e 400 bilhões em 2017. Isto equivale a 3 vezes o que gastou com saúde, 4 vezes o que gastou com educação. São recursos públicos, destinados aos mais ricos do país, aos que têm dinheiro investido em títulos da dívida pública. Se a taxa de juros no Brasil fosse semelhante à de alguns outros países (Canadá, Coréia do Sul, EUA, Austrália, França, Áustria, Chile, Japão, por exemplo), ela seria 0% ou abaixo de zero, portanto, não gastaríamos nem um tostão com isso. E teríamos dinheiro suficiente para saúde, educação, previdência, cultura, ciência e tecnologia e muitas outras coisas.
Portanto, quando o governo Bolsonaro fala de “redução do tamanho do Estado”, redução dos gastos públicos, está falando de gastar menos em saúde e educação, em reduzir os direitos dos trabalhadores, mas vai continuar pagando o que paga aos mais ricos: neste gasto público, que é o maior do orçamento, o governo não vai mexer. Trata-se de “Estado mínimo” para os pobres, “Estado máximo” para os ricos.
O novo governo mantém a postura do candidato em relação a seus opositores: não os admite. Eles devem ser varridos da cena pública. No dia da posse, tratou mal os jornalistas, somente porque não são seus bajuladores – e a grande maioria dos meios de comunicação é de direita -, imaginem como tratará qualquer membro de partido de oposição – seja ele do PT, do PSOL, do PCdoB ou outro. Quem não o apoia, é “comunista”, “esquerdista”, “vermelho”, “socialista”, deveria estar preso ou fora do país. Não os trata como adversários que estão disputando o poder segundo as regras democráticas: trata-os como “inimigos”.
Face à evidente vitalidade de nossa sociedade civil, o governo quer estabelecer formas de controle. No primeiro dia, já baixou decreto onde pretende vigiar a atuação das organizações não governamentais (ONGs). Disse Bolsonaro: “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs”. Como havia prometido na campanha eleitoral, ele quer acabar com os “ativismos” e, obviamente, a defesa dos direitos dos povos indígenas é um deles.
Qualquer que seja nossa avaliação crítica da imprensa brasileira (que é, até hoje, um oligopólio), é consenso de que não há democracia sem imprensa livre. Se não se pode fazer crítica aos que exercem o poder – Executivo, Legislativo, Judiciário -, se não se pode investigar sua prática, não há liberdade. O novo governo não quer avaliação crítica, só quer aprovação. Por isso, até agora, optou pela hostilidade aos meios de comunicação (exceto os que o apoiam incondicionalmente).
Em relação aos grupos que sofrem algum tipo de discriminação – negros, LGBTI –, a direção adotada foi a de extinguir as secretarias que se ocupavam destas políticas. Não são prioridade. Na campanha, os discursos passavam a ideia de que tais grupos não mereciam direitos especiais e de que agredir pessoas negras ou homossexuais ou transsexuais (ou “esquerdistas”) não era errado. Houve dezenas de casos de agressão relatados neste período, o mais conhecido dos quais foi o assassinato de Moa do Katendê, em Salvador, por ter se declarado contrário a Bolsonaro. A execução da vereadora Marielle Franco – negra, favelada, homossexual, defensora dos direitos humanos -, em março de 2018, foi tratado com desdém pelos apoiadores do candidato e alguns deles quebraram a placa feita em sua homenagem, numa demonstração de quase-aprovação ao assassinato.
Concluindo
As políticas que foram anunciadas nestes primeiros dias expressam ataques ao que mais valorizamos: os direitos humanos, os direitos trabalhistas, dos povos indígenas, dos quilombolas, à igualdade racial, da população LGBTI.
Diante disso, precisamos nos manter unidos – “ninguém larga a mão de ninguém” -, denunciar as ameaças às conquistas da Constituição Cidadã, resistir – para impedir retrocessos – e exigir.
Neste sentido, precisamos reforçar a articulação entre pessoas, entre entidades, reforçar as redes. Articulação física: grupos, associações, etc. E virtual: estreitar a comunicação entre nós e tornar visível para o mundo o que está acontecendo aqui. (Sem ingenuidade: devemos estar atentos às iniciativas de controle/vigilância que querem exercer sobre a nossa liberdade de opinião e de expressão).
Acompanhar atentamente e monitorar o respeito às garantias democráticas, aos direitos humanos. Precisamos reagir imediatamente a qualquer ameaça ou violação de direito. Devemos reforçar as medidas de segurança e solidariedade para proteger os grupos sociais vulneráveis.
Devemos organizar debates, rodas de conversa, seminários, publicações, textos e vídeos sobre estas temáticas: democracia, riscos para a democracia, direitos humanos, meio ambiente, ecologia, Amazônia, história da ditadura, as Igrejas e a ditadura, totalitarismo, fascismo, nazismo, “1984” (George Orwell), “Admirável Mundo Novo” (Aldous Huxley).
Organizar uma frente ampla em defesa da democracia, organizar “Comitês de Defesa da Democracia”, “Núcleos pela Democracia” ou coisa semelhante – o que for melhor, mais viável, mais prático.