Não houve um período de “lua de mel”, como costuma acontecer em todo início de governo eleito: ao tomar posse, já havia as denúncias relativas ao motorista de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, de ter recebido uma quantia enorme em apenas um ano. O não comparecimento para prestar depoimento, tanto por parte de Queiroz como por parte do ex-deputado estadual, só fizeram aumentar as suspeitas em relação ao caso.
Seguiu-se a isto a designação pela polícia do assassino da ex-vereadora Marielle Franco, hoje foragido. Tanto a mãe quanto a mulher deste ex-policial e miliciano trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro, o que confirma a proximidade da família com as milícias.
A ida do presidente a Davos foi um fiasco junto à comunidade internacional. O discurso, que poderia ser de quarenta e cinco minutos não passou de seis. Posteriormente, o presidente e os membros do governo deixaram de comparecer a uma coletiva de imprensa. A avaliação da mídia internacional foi muito crítica: tanto o discurso quanto a ausência revelavam a pouca consistência deste governo.
Aliás, a mídia no exterior tem sido muito reticente em relação ao governo Bolsonaro. Certamente, haverá apoio a medidas econômicas neoliberais, mas não passarão incólumes as posturas homofóbicas, antifeministas ou racistas, nem tampouco iniciativas autoritárias ou militaristas.
Existe um processo de desmoralização do governo, que vem se mostrando incapaz de controlar os membros da família, de se relacionar bem com alguns quadros mais próximos, de gerir seu partido. Bolsonaro não parece preparado para o cargo que obteve.
As medidas iniciais tomadas pelo novo governo revelaram com muita precisão que o discurso de campanha era, no essencial, verdadeiro:
– O corte de direitos dos povos indígenas e quilombolas (transferindo a responsabilidade pela demarcação dos territórios para o Ministério da Agricultura, nas mãos do agronegócio, e esvaziando a FUNAI).
– O fim do Ministério do Trabalho.
– As secretarias da igualdade racial e de política pública para a população LGBTI desaparecem.
– O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) é extinto.
– Estabelece-se controle sobre as ONGs (em especial as entidades ambientalistas, os centros de defesa dos direitos humanos).
Ainda no primeiro mês, tal como havia prometido na campanha, o governo liberou a posse de armas: cada pessoa poderá ter até quatro armas. Especialistas em segurança afirmam que, quanto mais armas disponíveis para os cidadãos, maior o risco de violência.
– O campo da educação tem sido alvo constante: combate às universidades públicas, aos professores.
– Impulso às privatizações (Eletrobrás, setores da Petrobras, leilões, venda da EMBRAER para a Boeing, etc.).
– Reforço da subliminar “licença para matar”, “licença para agredir” (os membros de grupos vulneráveis).
– Temas sobre os quais os membros do governo têm se manifestado de forma crítica: mulheres, feminismo, direitos sexuais e reprodutivos, luta pela descriminalização do aborto.
– A relação com a grande mídia: ameaças, denúncias, etc. Em áudio de Bolsonaro, a Globo é alvo de discriminação.
– A revelação de investigação por parte da ABIN e do GSI a respeito do Sínodo sobre a Amazônia, convocado pelo Papa, a se realizar em Roma, em outubro deste ano. (Este tipo de monitoramento ocorreu durante todo o período da ditadura militar, mas é inteiramente fora de propósito numa democracia: mais incomum é o serviço secreto revelar quem está investigando).
As duas medidas mais importantes e as mais esperadas do governo:
- O pacote anticrime de Sergio Moro.
- O centro da proposta econômica do novo governo: a Reforma da Previdência (com apoio total do “mercado” e da grande mídia).
- O pacote anticrime tem uma marca evidentemente punitivista: reforça a ideia de que combater a criminalidade é prender mais. Ora, o Brasil já é o terceiro país do mundo em número de encarcerados: 700 mil, atrás apenas dos EUA e da China. A população carcerária dobrou nos últimos anos: nada indica que isto tenha promovido redução da violência.
O segundo aspecto grave deste pacote é a “licença para matar” concedida aos policiais: ao invés de reforçar o papel da inteligência e da articulação entre as polícias, facilita a abordagem letal por parte dos funcionários da polícia, num país onde o número de mortes causadas por policiais já é enorme. Especialistas têm chamado a atenção para o fato de que, quanto maior o número de mortes produzidas pela polícia, maior o número de policiais mortos.
- A Reforma da Previdência vem sendo apresentada pela mídia como a solução para todos os problemas da economia: se não aprovada, o país vai quebrar; se aprovada, vai gerar emprego, os salários vão aumentar, a economia vai deslanchar.
Ora, em primeiro lugar, é preciso lembrar o que foi provado pela CPI da Previdência (2018): não há “rombo” na Previdência, há superávit. A Constituição de 1988 previu recursos suficientes para a Seguridade Social (saúde, previdência e assistência). Tais recursos vêm do Estado, dos empregadores e dos empregados.
Em segundo lugar, a Previdência não é o maior gasto público do país: é a dívida pública. Em 2018, a Previdência representou 25% da despesa e a dívida representou 40%. Destes 40%, uma parte significativa foi para pagar os juros da dívida: cerca de 350 bilhões de reais. Quantia que é dirigida para os mais ricos do país, apenas 1% da população. Por que? Porque a taxa de juros, de 6,5%, continua a ser uma das mais altas taxas de juros reais (descontada a inflação): somente 6 países têm taxas reais acima da nossa. Boa parte dos países têm taxas reais de 0 (zero) ou abaixo de zero. Se nossa taxa fosse baixa, não pagaríamos bilhões aos mais ricos.
Além disso, só em isenções fiscais, o Brasil hoje abre mão de 350 a 400 bilhões de reais por ano (somente o governo federal).
Em sonegação fiscal, o Brasil perde 500 bilhões por ano (e, hoje, temos tecnologia que nos permite localizar os sonegadores).
Ao somarmos 350 bilhões (juros), 350 bilhões (isenções fiscais) e 500 bilhões (sonegação), temos 1 trilhão e 200 bilhões de reais – em um ano – que deixam de ser usados em políticas sociais (saúde, educação, transporte, etc.) e só servem a ricos e a empresários/banqueiros/rentistas. Ora, a Reforma da Previdência pretende arrecadar 1 trilhão em dez anos: não precisa, temos outras fontes certas e seguras.
Não há necessidade desta Reforma da Previdência, que pretende economizar dinheiro tirando dos mais pobres, dos trabalhadores rurais e dos idosos. Precisamos estender a Previdência àqueles trabalhadores que não têm acesso a ela, precisamos cobrar mais dos mais ricos e pagar mais aos mais pobres.
O principal objetivo da Reforma da Previdência de Bolsonaro é passar do regime de repartição – que é o atual, baseado na solidariedade social – para o regime de capitalização – que é individualizado. No regime de repartição todos contribuem, trabalhadores, empregadores e Estado. No regime de capitalização, só o trabalhador contribui (e, na maioria dos casos, só contribui quando está empregado). Assim, todos os períodos em que o trabalhador ficar desempregado, não contribuirá para a previdência e terá dificuldade de atingir o tempo mínimo de contribuição para obter a aposentadoria.
O país exemplo do regime de capitalização é o Chile de Pinochet. Hoje em dia, 80% dos aposentados neste país recebe menos que o salário-mínimo de aposentadoria. Os grandes beneficiários deste modelo de Previdência não são os trabalhadores, são os bancos e os fundos de pensão[1].
A verdadeira Reforma que permitiria reduzir as desigualdades e os privilégios seria a Reforma Tributária, de modo que os que ganham mais paguem mais impostos e os que ganham menos paguem menos (ou nada). Hoje, os mais ricos não pagam impostos sobre lucros e sobre dividendos: só um país no mundo, além do Brasil, tem esta regalia, a Estônia. Com uma Reforma Tributária progressiva, teríamos recursos mais que suficientes para as políticas públicas.
Frente a esta ofensiva contra direitos, inclusive o pacote anticrime e o projeto de Reforma da Previdência, temos de desmascarar o conteúdo prejudicial à maioria e divulgar os efeitos demolidores que tais projetos teriam.
[1] Sobre a proposta de Reforma da Previdência de Bolsonaro, ver as entrevistas do professor Eduardo Fagnani na Carta Capital, https://www.youtube.com/watch?v=e7j_izWR6fY e do ex-ministro da Previdência, Carlos Gabas, https://www.youtube.com/watch?v=CTzgfL_giTs .
Foto de capa: site sputniknews.com/brasil