À porta do presídio o bispo é impedido de entrar. Só o arcebispo, que ali nunca esteve, tem passe-livre. Pouco depois, o arcebispo – que viu torturados, mas jamais acreditou em torturas – é removido para Roma. O papa nomeia para o seu lugar o bispo proibido de visitar os presos políticos. Do alto de seu novo múnus arquiepiscopal, o futuro cardeal, todo paramentado, apresenta-se à porta do presídio que, agora, se abre ao sopro da força do Espírito.
O novo arcebispo sobe as escadas da galeria de celas, ouve atento as denúncias de maus-tratos, visita os frades dominicanos acusados de subversão, abençoa os que sofrem.
Semanas depois, um dos frades é levado de volta às sevícias e, durante três dias, submerge no batismo de sangue, em comunhão com os mártires. O cardeal deixa a sua casa – pois vendera o palácio episcopal para construir centros comunitários na periferia – e vai ao presídio consolar o frade, cuja boca havia sido aberta para “receber a hóstia” de descargas elétricas, enquanto a pele ardia à brasa de cigarros.
O cardeal ignora a advertência dos policiais e entra, sem pedir licença, numa delegacia de proteção da ordem política e social. Ninguém ousa barrá-lo, nem se atreve a acusá-lo de desacato à autoridade. O cardeal está de clergyman e caminha firme rumo ao subsolo, onde encontra um de seus padres sangrando em dores. Como quem teme mais a autoridade de Deus que a dos homens, o carcereiro mete a chave no cadeado e destranca os ferrolhos, permitindo que o cardeal toque as chagas do sacerdote descido há pouco do pau-de-arara.
O jornalista judeu foi suicidado no mesmo local em que o frade havia sido espancado. O cardeal reage indignado e convoca os fiéis para a missa solene na catedral. Rabinos e empresários, empenhados em demover o cardeal, dirigem-se à casa dele e tentam convencê-lo da insensatez de um culto católico para um judeu assassinado. O cardeal retruca enfático: “Jesus também era judeu”. E abre a catedral à cerimônia fúnebre.
O cardeal viaja quilômetros de carro para visitar prisioneiros afastados dos grandes centros urbanos, aceita mediar a greve de fome dos encarcerados, abre suas portas a familiares e advogados que vêm contar-lhe da mais recente vítima da ditadura. O cardeal telefona a generais e delegados, protesta junto ao presidente da República, informa ao papa o que se passa nos subterrâneos da história do Brasil.
A ditadura agoniza e o cardeal, convencido de que não se deve repetir nunca mais esta página da história, escreve o mais contundente relato dos crimes do regime militar, Brasil, Nunca Mais. O livro alcança repercussão mundial e torna-se fator de interdição, em funções públicas, de muitos que acreditavam que a liberdade se esculpe a pauladas.
O cardeal incomoda, com o seu profetismo, a própria Igreja. Sua arquidiocese é retalhada, restando-lhe o centro, enquanto seu coração permanece na periferia. Seu nome é suprimido das comissões vaticanas. O papa João Paulo II mostra-lhe o dossiê que a Cúria Romana preparara contra ele e atira-o no lixo. O cardeal dobra-se, apanha os papéis e pede ao papa que assine, para guardar de recordação.
O cardeal se chamava Dom Paulo Evaristo Arns.