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Dom Evaristo: A Igreja nunca foi a favor da internacionalização da Amazônia. Quem está chamando estrangeiros para explorá-la não é a Igreja

Dom Evaristo Spengler, franciscano como dom Paulo Evaristo Arns, concedeu uma entrevista para a Revista Época, falando sobre o Sínodo, a partir dos referencias da dignidade da vida, da justiça social e da responsabilidade que cabe a todos na defesa da Casa Comum. A entrevista é uma boa conversa entre pessoas inteligentes, sobre os assuntos importantes da região amazônica que estarão em discussão no Sínodo. Vale conferir

Veja a matéria publicada POR RODRIGO CASTRO 03/10/19 – para Revista Época

‘Garimpo destrói floresta, polui água e causa doenças’, diz bispo confirmado em sínodo sobre a Amazônia

Dom Evaristo Spengler critica ‘desenvolvimento predatório’, em referência indireta à agenda ambiental do governo: ‘Temos de aprender com os povos indígenas’

POR RODRIGO CASTRO 03/10/19 – para Revista Época

Às vésperas do Sínodo para a Amazônia, o bispo dom Evaristo Spengler, da prelazia de Marajó, no Pará, afirmou que a Igreja não está preocupada com o governo. Para ele, ocorre o contrário: é o governo quem está apreensivo com o encontro que acontece no Vaticano, entre 6 e 27 de outubro, para debater formas de proteger o bioma e a evangelização. Spengler é um dos 58 bispos e padres brasileiros que estarão no evento, junto a outros 113 representantes da Região Pan-amazônica.

Leia a entrevista completa:

A comitiva brasileira chegou a um consenso do que vai passar ao papa?

O consenso até aqui foi o processo de escuta que aconteceu do início ao fim de 2018, nos nove países amazônicos. Foram ouvidas 82 mil pessoas pelas dioceses, pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil). Esse processo desencadeou num instrumento de trabalho que agora está na base do início do sínodo. Ali está o consenso da escuta. A partir dali, o que vai desencadear a gente não pode prever neste momento.

Mas qual o posicionamento acerca da política ambiental do governo brasileiro?

O sínodo não trata da política ambiental de um governo. A Igreja se posiciona a partir de uma visão de fé. Uma visão que o mundo é criado por Deus, que colocou o ser humano aqui para preservar esse planeta, que o papa chama de Casa Comum e não pertence só a nossa geração. Temos de deixar um projeto de vida para as vidas futuras, não só vida humana, mas também da fauna e da flora. Conservar é um dever de fé, não é um posicionamento a favor ou contra esse ou aquele governo.

Em audiência pública, o senhor cobrou a suspensão de megaprojetos que agridem a Amazônia. Quais seriam?

O papa colocou muito claro quando veio a Porto Maldonado, no Peru, que a Amazônia, hoje, é um território de disputa. Existem dois modelos de desenvolvimento da Amazônia. Um é o predador. Há cinco áreas em que esse modelo atua: extração da madeira, pecuária extensiva, mineração, monocultura e a energia, que são as hidrelétricas. Esses megaprojetos afetam demais o bioma amazônico. Outra forma de desenvolvimento é o socioambiental. As populações que vivem na Amazônia — indígenas, quilombolas ou ribeirinhos — convivem com a natureza sem destruí-la. Não é que a Amazônia não seja economicamente viável. Ela é. Produz açaí, castanha-do-pará, cacau, muitos óleos. Um hectare de açaí está produzindo US$ 6.712 por ano, enquanto um de soja está produzindo US$ 819. A floresta de pé é muito rentável. E a gente pode usá-la preservando o meio ambiente sem derrubar a mata, sem destruir, sem queimadas. É essa nossa proposta.

O presidente, por exemplo, tem se mostrado em acordo com os garimpeiros…

É uma das formas que se coloca nesse desenvolvimento predatório. O garimpo é algo que está destruindo a floresta e poluindo a água. Quem bebe depois essa água poluída são as crianças, as pessoas que moram no entorno do rio. E as doenças estão aumentando lá também em função da poluição que vem da mineração. Um exemplo é o Amapá. Mineradoras exploraram o minério por muitos anos, deixaram grandes crateras e foram embora. Para onde foi essa riqueza? Para fora do Brasil. O povo de lá continuou como estava antes, com o lixo que eles deixaram, com as grandes crateras, com esse dano ambiental que ficou para trás.

Bolsonaro também disse que o interesse estrangeiro na Amazônia não é no índio nem na árvore, mas no minério. Faz sentido?

Falo pela Igreja, não pelos estrangeiros. Não me compete analisar, mas a Igreja busca a preservação do bioma, como um cuidado da criação que Deus nos deixou e também o cuidado dos povos nativos. O papa Francisco também tem dito que, se esse povo conseguiu conviver com a Amazônia tanto tempo preservando-a, temos que aprender com eles. Não é viver como os indígenas, mas viver nessa harmonia com o meio ambiente como eles conservaram até hoje. Pelas imagens de satélites, você vê que a floresta está muito mais preservada onde existe terra indígena demarcada. No mundo inteiro, populações indígenas preservam 82% do bioma que temos na Terra. Se eles dão esse exemplo, é ali o caminho. Quem produziu o problema das queimadas, a destruição da Amazônia, quem tem esse modelo não vai ter a solução. A gente tem que buscar uma alternativa. E os povos indígenas têm essa alternativa para nos ensinar.

O senhor mencionou que o governo vê a Igreja como inimiga da Pátria. A Igreja é a favor da internacionalização?

Igreja nunca foi a favor da internacionalização. A soberania compete a cada país. A Igreja está defendendo as populações locais para que possam preservar o meio ambiente. Quem está chamando estrangeiros para ocupar a base de Alcântara, para desenvolver a Amazônia não é a Igreja. Tem que perguntar a quem está fazendo isso se eles querem internacionalizar.

E como avalia essa aproximação do Brasil com os EUA?

Temos que preservar a soberania. Onde os EUA chegaram e implantaram uma base, não saíram mais. Há algum exemplo de algum lugar onde eles chegaram e saíram?

Mas para o presidente o sínodo que é uma “ameaça à soberania”…

O Sínodo não é um encontro de Estados, é um encontro interno da Igreja. Já é histórico. O papa tem nos bispos um colegiado para aprofundar, rezar, refletir e buscar caminhos para aspectos da evangelização, assim como houve para a juventude, para a família, para a África, Europa e tantos outros Sínodos. Hoje o papa está preocupado em evangelizar melhor, como a Igreja pode ter mais presença na Amazônia, onde tem poucos padres, missionários, religiosos. O povo fica sozinho nas comunidades do interior, muitas vezes, mais de um ano. O segundo enfoque é esse do meio ambiente, da Casa Comum. E o Sínodo tem que ser entendido como uma continuação, uma consequência da Encíclica do papa, de 2015, chamada Laudato Si.

A Igreja não está se posicionando a favor ou contra o governo, mas tem toda uma caminhada. A Igreja está presente na Amazônia há mais de quatro séculos. O papa vem falando do cuidado com os povos indígenas desde sempre. O papa Paulo III, na Bula Veritas Ipsa, já defendia os indígenas. O papa Pio X, no início desse século, também tinha essa preocupação. Os bispos da Amazônia vêm se reunindo desde 1952, antes mesmo de existir a CNBB. Essa preocupação da evangelização, da presença da Igreja na Amazônia não é uma coisa de agora. Tem toda uma história. E o sínodo é uma consequência dela.

Qual tem sido a percepção internacional sobre as ações do governo dentro da Igreja?

A Igreja não tem se preocupado com posições do governo, mas com o caminho que ela está tomando a partir das orientações do papa, da Encíclica. Não somos nós que estamos nos preocupando com o governo; é o governo que está se preocupando com o Sínodo.

Apesar de interno, o encontro terá repercussões externas. Quais podem ser?

O Sínodo quer ser uma luz em dois caminhos. Um seria o da evangelização. Como a Igreja ser mais presente, que esteja junto ao povo durante todo o ano… A maior talvez, para fora, seja essa rede que surge de cuidado da Amazônia. Isso deveria ser uma preocupação de todos os habitantes do planeta.

Parece que o mundo vinha crescendo nessa preocupação e, de repente, voltamos à estaca zero. As pessoas não veem mais o meio ambiente como algo sério a ser preservado. Já é sabido que a temperatura do mundo está subindo. Isso é comprovado cientificamente. Teme-se que nas próximas décadas a temperatura possa se alterar em mais três graus, e isso provocaria danos seríssimos, como o degelo das calotas polares, elevando o nível do mar. A Igreja tem essa responsabilidade com aquilo que é criação de Deus. Eu sou franciscano, essa é minha herança. São Francisco tinha a preocupação de cuidar do meio ambiente e ver em tudo a presença de Deus. É essa visão que vamos aprofundar mais no sínodo.

O senhor falou na audiência em proteger defensores de direitos humanos, que sofrem ameaças de morte constantes…

O Pará talvez seja hoje o estado onde mais se mata pessoas que lutam pelo direito à terra, à vida. Existe uma perseguição muito grande. De cada 10 mortes no campo no Brasil, nove acontecem na Amazônia. De 1995 até 2018, foram libertados 55 mil trabalhadores escravizados no Brasil. Metade estava na Amazônia. Quando os missionários se colocam tentando dar dignidade aos nativos da Amazônia, perseguições estão ocorrendo. Em vez dos missionários e lideranças leigas serem vistos como defensores da vida humana, estão sendo criminalizados. É uma inversão total de valores.

Já escutou relatos dessas ameaças?

Convivo com pessoas que sofrem ameaças. À minha volta, existem muitas pessoas que são ameaçadas de morte, sim.

Em sua fala, afirmou que os missionários chegam onde o Estado não chega. Como atuam?

Muitos lugares aqui de Marajó são exemplos bem concretos. Os municípios não têm condições de dar segurança às populações ribeirinhas. Se a Polícia Civil ou Militar é avisada de um crime que acontece no interior, para o deslocamento de uma lancha, ela cobra em torno de R$1.500. Se alguém foi roubado ou ferido, prefere não fazer denúncia porque sabe que ele gastaria mais dinheiro ainda. Muitas escolas do interior de Marajó não têm transporte. Posto de saúde, às vezes, não tem enfermeiro, não tem medicação, não tem médico. Os missionários tentam ajudar e sofrem com os locais, pois o Estado não está lá presente, não atende as necessidades do povo.

O senhor propôs políticas de financiamento público. Como imagina isso?

Para onde vão os financiamentos hoje? Para fazendeiros, para quem extrai madeira, vão para mineradoras, para quem está praticando a monocultura. Esses sempre são predadores e estão recebendo financiamento público. Já o pequeno agricultor, que coloca 70% da alimentação no prato do brasileiro, sofre com a escassez de financiamento. Queremos que haja financiamento público para esses projetos que possam deixar a floresta de pé. O cultivo da castanha, de peixe, do açaí. A floresta pode permanecer de pé, as pessoas vão ter uma fonte de renda, mas, sozinhas, sem uma política pública que as incentive e as auxilie, fica difícil. Sofremos um grande problema de deslocamento do produto. Poderíamos formar, talvez, cooperativas, associações que pudessem enfrentar junto esse drama de produzir, de transportar, vender. Hoje cada um está se virando sozinho sem nenhuma política pública para auxiliá-lo.

 

 

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