Esse texto se propõe a indicar elementos para uma análise de conjuntura desses tempos obscuros que estamos vivendo. São chaves de leitura preliminares. Como tais, não serão desenvolvidas aqui.
1) O que se passa atualmente no Brasil não é um caso isolado. Coisas semelhantes ocorreram em outras partes do mundo. O que aconteceu nas eleições presidenciais de 2018 por aqui com o uso da tecnopolítica – disseminação de “fake news”, transmissão automática de mensagens – já havia ocorrido de forma semelhante no Reino Unido (Brexit), na Argentina (eleição de 2015 – vitória de Maurício Macri) e nos EUA (eleição de Donald Trump).
2) Da mesma forma, governos de viés autoritário, baseados na intolerância e no ódio à diferença/pluralidade cultural se estabeleceram em várias partes do mundo ao longo desta década. E em lugares muito diferentes entre si, tais como as Filipinas (Duterte), Índia (Modi), Turquia (Erdogan), Hungria (Orban), Polônia (Morawiecki) Reino Unido (Boris Johnson), EUA (Trump), Brasil (Bolsonaro). Além destes, estiveram até recentemente presentes no governo italiano (Salvini). São lideranças de extrema-direita, ultraconservadores e que chegaram ao poder ou se aliaram com governos democraticamente eleitos. A “implosão lenta” das instituições democráticas é, portanto, um fenômeno que não se restringe ao Brasil.
3) As descobertas relacionadas ao petróleo do Pré-Sal, os recursos naturais de que dispomos e a inserção brasileira na geopolítica internacional na década passada trouxeram o país para o centro de uma disputa entre os EUA (potência em declínio) e a China (potência emergente) coligada com a Rússia. Além de nossas contradições internas, a ascensão da extrema-direita no Brasil nos últimos anos também é efeito da chamada Guerra de 4ª Geração. Principalmente porque os governos de esquerda buscaram um alinhamento internacional com um grupo de nações que ficaram conhecidas como BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
4) Bolsonaro é um autoritário proto-fascista. Não é neoliberal nem anarcocapitalista como seu ministro Paulo Guedes. Seus atos presidenciais são marcados pela desonestidade intelectual, pelo grotesco e pela bizarrice. É notório seu despreparo para o cargo, mas sua estratégia política tem sido extremamente eficiente em anular as esquerdas e em manter um contingente não muito elevado (mas aguerrido) de apoiadores, sobretudo nas redes digitais.
5) A democracia para ele é uma questão de conveniência. Enquanto o sistema eleitoral servir aos seus interesses, ele se sujeitará a disputar as eleições. Se ele for derrotado sob qualquer circunstância, contra qualquer candidato, ele não entregará o poder pacificamente. Em 2018, ele já tinha um discurso pronto (a tese da fraude das urnas eletrônicas) para justificar uma eventual derrota e contestar um resultado que lhe fosse adverso. Agora que ocupa a cadeira presidencial, que argumentos terá ao seu dispor para se negar a deixar o poder?
6) Enquanto Bolsonaro for bem-sucedido em manipular as eleições através das “fake news”, de mensagens enviadas pelas redes digitais e por aplicativos de comunicação, as eleições continuarão a acontecer. Mas isso não significa que continuamos numa democracia. Na ditadura havia eleições…
7) O grupo que hoje está no poder formou um “consórcio do ódio” para vencer as eleições. A base de apoio bolsonarista, apesar das fissuras recentes, continua forte, embora sem coordenação. É formada por segmentos da grande propriedade agrária (agronegócio), por segmentos religiosos fundamentalistas seja no campo evangélico (setores intelectuais presbiterianos, evangelismo norteamericano e pastores neopentecostais), seja por extremistas católicos que fazem oposição ao próprio Papa (catolibãs). O Presidente ainda conta com apoio de frações do grande capital, sobretudo dentre os grandes rentistas. Ao mesmo tempo, o governo sublocou sua agenda econômica ao Congresso Nacional. O presidente da Câmara se comporta como um primeiro-ministro não declarado em temas de economia e nas finanças, como se estivéssemos em um “parlamentarismo branco”. O setor financeiro agradece e lucra como nunca.
8) A grande imprensa se divide entre o apoio quase incondicional e a oposição à agenda moral do governo. Se a mídia capitalista não o apoia totalmente, tem muita responsabilidade pelo atual estado de coisas. TV, rádio e jornais deram grande contribuição à polarização política, pois ajudaram a incendiar o país, criando um ambiente social que permitiu a ascensão do bolsonarismo ao poder, sepultando quaisquer vestígios da chamada Nova República.
9) O “Messias” busca constituir um aparato político-militar que o sustente indefinidamente no poder. Para tanto, está cada vez mais cercado de militares, terceirizando setores do governo aos quartéis para, caso descarte o processo eleitoral, ter um dispositivo militar para governar o país sem eleições, com poderes absolutos. Por isso, há tantos militares ocupando postos-chaves no Poder Executivo. Os oficiais-generais que estão no governo compartilham ou da mesma visão de mundo de Bolsonaro ou da aversão que ele tem às esquerdas e aos movimentos sociais. Mas esse é o eixo institucional do aparato de poder bolsonarista. Existe outro, oculto.
10) Diferente de outros governos conservadores, o consórcio que está hoje no Planalto tem conexões não explicadas com o pior do banditismo nacional e da criminalidade mais abjeta. No campo e na cidade, grupos paraestatais se veem autorizados para impor o terror e à violência a seus opositores (indígenas, negros, feministas, movimentos sociais, comunidade LGBT, moradores das periferias, intelectuais, servidores públicos, professores e jornalistas investigativos) e por exercer formas de dominação autônomas face aos poderes constituídos. Os autores das queimadas da Amazônia, as milícias no Rio e em outras partes (talvez na Bahia e no Ceará?), e grupos armados (jagunços), patrocinados pela grande propriedade agrária, estariam de alguma forma em simbiose com os atuais donos do poder central?
Será esse o eixo oculto do dispositivo ditatorial que está em curso no Brasil? Não há como afirmar. Queimas de arquivo recentes talvez tenham sido eficientes em encobrir a verdade dos fatos. E podem ocultar da sociedade brasileira ligações que tornariam evidentes o que hoje parecem ser apenas indícios.
OBS: Agradeço a Ivo Lesbaupin e a Névio Fiorin a leitura preliminar e as sugestões ao texto.
* Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor da Educação Básica. Católico, participa do Movimento Fé e Política.