ArtigoPublicação

Desafios políticos da realidade nacional

Por Ivo Lesbaupin - publicado por Iser Assessoria em 2005

O problema político mais sério que nós estamos vivendo hoje, no Brasil, sem dúvida, mas também na maioria dos países, é o esvaziamento da democracia. Fala-se muito da democracia, fala-se de que nunca o mundo foi tão democrático, nunca houve tantos países democráticos, mas o conteúdo da democracia se perdeu. Nós temos todos os elementos formais: eleições periódicas, controle das fraudes, voto individual e secreto, imprensa livre, 3 poderes formalmente autônomos – Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas o povo, a maioria dos cidadãos, não decide mais nada. Não há alternância de poder: há alternância de governante. A política econômica é imutável, é a mesma – e não estou me referindo somente ao Brasil. O Banco Central toma decisões independentemente da vontade da maioria do povo. Segundo Chico de Oliveira, “é como se o nosso voto, o voto popular, não valesse nada”. (E ainda querem dar autonomia legal ao BC!). A palavra de ordem das autoridades hoje, dos políticos de modo geral – há mais de uma década -, é: “não há alternativa”. Esta avaliação é de Zygmunt Bauman (Em busca da política, 1999).

Ora, política é escolha, é opção, é decisão entre várias possibilidades. Se não há alternativa, não há política. E o momento que estamos vivendo vem se caracterizando como o da despolitização da vida social: as decisões fundamentais para o país são consideradas matérias técnicas, não submetidas à cidadania, são tomadas acima do espaço nacional, fora dele: nas instituições financeiras internacionais, no bloco dos países mais ricos, pelas grandes multinacionais. O FMI decide a política econômica dos países, o Banco Mundial determina o formato das políticas específicas – particularmente as da previdência, da saúde e a da educação. A regra geral do Banco Mundial é simples: privatizar a maior parte, garantir aos pobres a parte pública (aposentadoria básica baixa para todos, fundos de pensão para aumentar a aposentadoria; planos e seguros de saúde de um lado, saúde pública do outro; universidades privadas em profusão, manutenção de alguns elementos da universidade pública).

Há eleições? Há. O povo vota? Vota. Mas o voto não tem resultado. Vota-se na mudança, mas o que devia ser mudado não pode ser mudado. Ordens superiores! Então, vota-se, na verdade, em um novo governante, que, no entanto, mantém a mesma política. Não há alternância de poder. E, sem a possibilidade de alternância, não há democracia.

Daí o descrédito na democracia, já detectado por inúmeros institutos de pesquisa, tanto a nível nacional como latino-americano. Se nós fossemos mais precisos, deveríamos explicitar: a maioria não descrê da democracia, a maioria descrê desta falsa “democracia”, que não exprime a vontade popular, não exprime a vontade da maioria. Ignacio Ramonet chamou estes regimes de “regimes globalitários” – uma nova forma de totalitarismo, dirigido de fora – por instâncias internacionais – e que impõe suas políticas aos vários países, aos vários Estados nacionais, desprezando as vontades de cada país, a vontade da maioria dos cidadãos. E que encontra, nestes países, governantes dóceis, dispostos a aplicar a receita. Porque, é preciso dizer a verdade, há fortes pressões de um lado, não há dúvida, mas há fortes aceitações, do outro. As pressões externas não são o principal determinante: é a subserviência interna.

Existe alternativa? Existe. Os exemplos são poucos, evidentemente, mas animadores: os que fazem diferente estão tendo resultados muito melhores que aqueles que se submetem. Poderíamos citar, para começar, a Índia, a China, a Malásia, a Venezuela, a Argentina. A única coisa é que eles não têm a mídia do lado deles: a mídia, como nós sabemos, é fundamentalmente submissa ao “pensamento único”, ela não pode permitir que os hereges dêem certo.

Precisamos parar de fingir que estamos numa verdadeira democracia: quem manda são as elites de sempre, são os seus interesses. O povo, a maioria, é desprezado e ignorado. Um exemplo? Nós derrubamos a ditadura – que durou 21 anos -, fizemos uma nova constituição, a “Constituição Cidadã”. E os principais direitos que introduzimos naquela constituição vêm sendo demolidos um a um nos últimos anos. Qualquer semelhança entre a Constituição de 1988 e a atual é mera coincidência. Direitos dos trabalhadores, cláusula pétrea: onde estão? Para defender os verdadeiros privilégios da elite, denunciam-se os direitos dos trabalhadores como “privilégios”.

Portanto, a meu ver, recuperar a democracia, recuperar a capacidade de determinação da vida do país pela maioria dos cidadãos é o problema político mais sério e mais urgente. Recuperar, sobretudo, o direito do povo de decidir sobre a política econômica.

Cabe aqui citar duas propostas que estão em curso e que pretendem contribuir para esta recuperação da democracia.

Uma é de Fábio Comparato, que elaborou um projeto de lei para regulamentar a utilização dos instrumentos de democracia direta que são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, de modo a permitir que o plebiscito, por exemplo, possa também ser convocado por iniciativa da sociedade civil (vale a pena ler seu artigo “Reflexões desabusadas sobre o abuso do poder”, de fevereiro de 2004). O outro é de Oded Grajew: para ele, os governos eleitos devem ser avaliados regularmente por um Conselho da sociedade civil, durante o mandato, para verificar o cumprimento de suas promessas de campanha. Isto permitiria comprometer o candidato (ou o eleito) com seu programa eleitoral. Hoje, o candidato eleito, quando começa a governar, muitas vezes ignora seu próprio programa – aquele pelo qual foi eleito – e segue apenas seu interesse de poder. Como se bastasse a realização de eleições para caracterizar uma democracia, independente da responsabilidade do candidato com aquilo que prometeu cumprir.

Um outro problema político sério, com forte ligação com o primeiro, é o problema da liberdade de informação. A imprensa é livre, não é censurada, não estamos mais na ditadura. Mas os cidadãos não têm direito à informação: a imprensa transmite a eles o que interessa à pequena oligarquia que domina os meios de comunicação, e que hoje é conhecido como “pensamento único”. Não temos acesso ao que ocorre no mundo nem no nosso país, temos acesso ao que eles querem que nós saibamos – e segundo a interpretação deles. Há temáticas sobre as quais o que aprendemos na mídia é uma única posição, não as diferentes posições: nós não temos acesso ao debate, simplesmente porque não há debate. Qual a diferença entre esta situação e aquela que ocorria no socialismo real – tão denunciada pelo Ocidente? A informação é um serviço público, é uma concessão, não é serviço privado. O direito à informação não está sendo respeitado. Ora, as decisões, o voto, são condicionados pelas informações de que dispomos: se não sabemos dos fatos, se não sabemos das diferentes interpretações, como podemos votar conscientemente? É fundamental, portanto, a democratização dos meios de comunicação – para que nós tenhamos acesso a toda a informação e a todos os debates.

Descendo um pouco mais, para examinar o nosso sistema político: desde Collor de Mello, há uma evidente hipertrofia do poder Executivo sobre os demais poderes. A independência do Legislativo só se manifesta em surtos, como ocorreu há pouco tempo, para logo em seguida voltar ao leito comum da subordinação. A oposição, em passado recente, denunciou incansavelmente o uso das emendas individuais de parlamentares ao Orçamento para a conquista do voto dos mesmos. No poder, ela tem a mesma prática. O Congresso não faz senão aprovar as leis preparadas pelo Executivo, seja através de projetos de lei, seja através de medidas provisórias. Quem legisla?

Os partidos políticos são campo de atuação direta do Executivo, que aumenta ou diminui bancadas a seu bel-prazer – eu não precisaria citar os casos mais recentes do PTB e do PMDB. Num livro muito interessante que já está quase completando 20 anos (Partidos e utopias: o Brasil no limiar dos anos 90), do cientista político Bolívar Lamounier, analisando a história dos partidos políticos no Brasil, mostra que eles nunca foram definidos programaticamente, nunca foram fortes. E ele acrescenta: nunca foram fortes porque nunca interessou ao governo central que eles o fossem. Quanto mais fracos os partidos, quanto mais maleáveis, quanto mais fácil trocar de partido, melhor para o governo central, que interfere diretamente aí, para formar suas maiorias. Com partidos fortes, com bloqueio ao troca-troca, como o governo poderá montar os seus arranjos?

A cultura política brasileira como, aliás, a de inúmeros países, é baseada no clientelismo, na relação voto-favor. Eu faço por você (alguma coisa), você faz por mim (vota). (Ou, em outras palavras, a máxima “franciscana”: “é dando que se recebe”). A maioria dos parlamentares cultiva seus redutos eleitorais nesta base: favores em troca de votos. Isto é o que garante sua reeleição constante. Quanto mais eficiente este cultivo, mais chances de desenvolver uma bem sucedida carreira política. A mesma prática é repetida pelos governos, que cultivam seus redutos parlamentares com a mesma consigna: favor-voto. Eu te dou um cargo aqui (um ministério, uma presidência de comissão, uma direção de estatal, de instituição, etc., etc.), você vota por mim ali (você ou o seu grupo, o seu partido). Os interesses do país, as grandes decisões nacionais? O que quer dizer a expressão “o governo vai deixá-lo ‘a pão e água’”? Quer dizer que o parlamentar vai ganhar somente o seu salário (de doze mil reais), mais nada. Se quiser ganhar mais (do governo), vai ter de colaborar (com seu voto).

É por isto que a implantação do Orçamento Participativo provoca tantos conflitos com a Câmara de Vereadores. Porque tira do vereador o instrumento principal para praticar o clientelismo: as obras já não podem ser apresentadas como resultado da ação do vereador individual, mas do povo organizado. Esta é uma mudança política fundamental, isto é inovação democrática.

Se o governo não puder oferecer “emendas” aos parlamentares, como vai conquistar o seu voto? Seria preciso um outro tipo de política, outro tipo de relação entre Executivo e Legislativo, seria preciso inovar.

Falamos da quase total subordinação do Legislativo. E o Judiciário? O Judiciário parece um pouco mais independente. Mas em praticamente todas as questões em que o interesse do Executivo estava em jogo, o Supremo Tribunal Federal votou segundo este interesse. Os argumentos jurídicos pouco pesaram nestes julgamentos. Que autonomia é esta?

Aqui, a grande inovação, inovação que veio na Constituição de 1988, foi o Ministério Público. A independência do MP frente aos governos desde 1990 vem sendo um avanço formidável para a nossa democracia. Não sem razão, tanto no governo FHC como no atual, o Executivo toma uma série de iniciativas no sentido de coibir esta autonomia, felizmente, até agora, sem sucesso.

Voltando aos partidos políticos: a questão do financiamento das campanhas eleitorais. Hoje, segundo consta, boa parte da contribuição para candidatos vem de empresários (dizem que algo em torno de 80%). Empresário também contribui dentro desta lógica: “do ut des” (estou dando para receber). É a conhecida relação entre as empreiteiras e Maluf, por exemplo. Elas colaboram pesadamente na campanha e o prefeito devolve em dobro nas obras municipais. O financiamento público das campanhas eleitorais (presente na proposta de Reforma Política) tem o poder de desmontar este esquema: o dinheiro é obrigatoriamente público e conhecido, e distribuído mais equitativamente. Neste caso, não há privatização da autoridade pública, que deixa de ser obrigada a devolver em políticas a contribuição que recebeu na campanha. Esta prática já existe em vários países e certamente seria um avanço em

Tags

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Close
Close