Artigo

  • Por que as pessoas cristãs devem votar nos partidos de esquerda?

    Lusmarina Campos Garcia

    Por Lusmarina Campos Garcia – na pagina do Facebook

    As propostas dos partidos de esquerda são mais compatíveis com os ensinamentos de Jesus do que as propostas dos partidos de direita.

    Há diversos temas dos quais Jesus trata com insistência nos evangelhos. Ele insiste naqueles que são importantes. Eu vou mencionar apenas um: justiça social.
    Há textos, em todos os evangelhos, nos quais Jesus denuncia a riqueza, o acúmulo de bens. Um dos diálogos mais exemplares é aquele que Jesus tem com o jovem rico. Este diálogo aparece nos evangelhos de Marcos 10:17-22, Mateus 19:16-30 e Lucas 18:18-30. O rapaz era um jovem de fé, piedoso, que conhecia as sagradas escrituras e cumpria tudo o que nelas estava escrito. Ele pergunta para Jesus: “o que mais eu devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus responde: “vá, venda tudo o que você tem, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu, depois venha e me siga.” O jovem se entristeceu porque era muito rico. Então Jesus disse: “é mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.”
    O que isto quer dizer? De acordo com este texto, além da fé, o critério para se herdar a vida eterna é a distribuição de bens. Ou seja, o acúmulo de bens, o acúmulo de dinheiro, de casas, de terras, de carros, etc, não condiz com o discipulado. Por que? Porque Jesus quer sociedades justas. Uma sociedade na qual algumas pessoas são ricas e um monte de gente é pobre, não é justa. No Brasil, dez famílias possuem o mesmo que a metade da população do país. Dez famílias possuem o mesmo que 100 milhões de pessoas. É porque elas são mais trabalhadoras ou mais merecedoras? Não. De modo geral, é porque elas herdaram a riqueza. Tal herança pode incluir terras advindas de um sistema de distribuição injusta, roubadas dos indígenas, na época das capitanias hereditárias, ou pode advir dos engenhos e das fazendas que se tornaram produtoras de agricultura a partir do trabalho escravo na época colonial, pode também incluir indústrias que se desenvolveram a partir da exploração do trabalho das classes trabalhadoras mal pagas, no período industrial. Há um estudo importante do economista francês, Thomas Piketti, que analisa como as famílias ricas se mantêm ricas, por gerações, por meio das heranças. Contemporaneamente, o enriquecimento desmedido se dá através do sistema financeiro, que se sustenta por meio dos juros bancários e das bolsas de valores. Seja por meio das heranças ou dos incríveis juros bancários e bolsas de valores, a riqueza é um produto do sistema capitalista que é um sistema desenvolvido para gerar desigualdade.
    Como é que é possível mudar esta situação? Através de um Estado forte, que regule a distribuição de riqueza por meio de impostos (principalmente sobre grandes fortunas), de uma política monetária de valorização do salário mínimo, de educação gratuita, de saúde gratuita, de imposição de direitos – sociais, trabalhistas, educacionais, identitários, etc.
    Estas são pautas defendidas pelos partidos de esquerda. Os partidos de esquerda consideram que o Estado e o governo têm que trabalhar para acabar com a desigualdade social, e para fazer isto precisam criar políticas públicas para tal.
    Os partidos de direita defendem que é o mercado que tem que regular as relações sociais e de trabalho, sem intervenção do Estado (ou com intervenção mínima). Mas o que é o mercado? O mercado é o conjunto de empresas, bancos, indústrias, agricultura, ou seja, tudo aquilo que movimenta a economia. Quem controla o mercado? São os donos do capital. E quem são os donos do capital? São as pessoas ricas. E as pessoas ricas trabalham para que haja distribuição? Não. Não é interesse dos ricos que a desigualdade social diminua, pois a riqueza deles só se mantém à custa da pobreza de muitos.
    Os governos de esquerda são de esquerda porque trabalham para distribuir a riqueza, para proteger os direitos das classes trabalhadoras, das pessoas que não herdaram fortunas de suas famílias e que, portanto, estão em desvantagem na escala social.
    Os partidos de direita querem um Estado mínimo. Estado mínimo é um Estado que não regula (ou regula minimamente) as relações sociais, financeiras, comerciais e não impõe os direitos que protegem as classes trabalhadoras. É um Estado que permite a privatização das empresas públicas, das escolas, dos hospitais, das prisões, de modo que quem é rico e pode comprar estas coisas, será o dono de tudo e ficará cada vez mais rico, pois o restante da população precisará pagar por estes serviços. E assim, a desigualdade social se aprofunda.

    Por isso, se você é uma pessoa pobre ou de classe média e trabalhadora, que quer que os seus interesses tenham voz e vez, você deve votar nos partidos de esquerda.

    Lusmarina Campos Garcia,  é teóloga e pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Atualmente licenciada para estudos, pois é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • Marcia Oliveira: O apagão do Amapá e o apagamento da Amazônia

    Na foto, protesto de moradores de Macapá no sétimo dia às escuras – Foto: Amazônia Real/Fotos Públicas, por Hora do Povo.

    Artigo de Marcia Oliveira* publicado originalmente em Amazonas Atual, 11 de novembro de 2020, na coluna da autora.

    O ‘apagão’ que deixou 13 municípios do Amapá sem luz, água, alimentação e comunicação na semana passada é um sintoma grave das consequências da dependência energética a que a Amazônia vem se submetendo nas últimas décadas por causa da privatização de recursos básicos como luz e água.

    A demonstração de descaso e omissão dos governos em nível nacional, estadual e locais se reproduz em outras regiões da Amazônia em situações drásticas como no caso das queimadas, da contaminação das águas pelas grandes mineradoras ou dos garimpos clandestinos, do uso indiscriminado de veneno na produção agrícola, dos conflitos socioambientais e muitas outras formas de violação dos direitos humanos e dos direitos na natureza na Amazônia.

    Os diversos povos que vivem nas florestas e nas cidades da Amazônia, sofrem drasticamente com os contrastes sociais e econômicos de uma das regiões mais desiguais do mundo. Enquanto alguns grupos políticos e econômicos centralizam as riquezas produzidas na região e a propriedade privada de boa parte de seu território, a grande maioria dos povos vive na miséria nas periferias das cidades.

    A Amazônia já sofreu um desmatamento de mais de 700.000 km. A ciência vem alertando que existe um limite para este desmatamento que, uma vez ultrapassado, poderá ocasionar a maior tragédia ambiental do mundo, incalculável para o ciclo de carbono do planeta.

    As políticas governamentais de incentivo às hidrelétricas, mineração e agronegócio tendem a anular as iniciativas em prol de sua preservação priorizando a exploração e o saque das suas riquezas em detrimento da miséria de seus povos que vivem no meio urbano, com todos os problemas daí derivados, de ausência de saneamento básico, aglomeração nas periferias, insalubridade, desemprego e outras mazelas de uma concentração urbana e desregulada.

    O processo do chamado desenvolvimento da Amazônia é um exemplo mais que claro de como ele se deu como reprodução do sistema colonialista que presidiu a formação dos países da Pan-Amazônia a partir da sua colonização em 1500. O atual desenvolvimento econômico ainda se pauta na agenda do integracionismo iniciado no governo da ditadura militar, que ignora a presença histórica das populações locais formadas por povos indígenas, posseiros, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e toda uma infinidade de comunidades tradicionais, consideradas como entrave e empecilho ao desenvolvimento e progresso capitalista na região.

    Em todos os países da Pan-amazônia, as populações locais sofrem as mais diversas formas de pressão para abrir caminho para o ‘desenvolvimento e o progresso’ que chega de fora para ‘redimir’ a Amazônia do ‘atraso’ instaurado um novo processo colonial dando continuidade ao colonialismo de outrora.

    Há décadas os conflitos pelo território estão marcando toda a região amazônica. As populações tradicionais defendem seus direitos seculares e querem ter seus territórios reconhecidos e legalizados. São históricas as lutas indígenas para a demarcação de suas terras. Os ribeirinhos buscam e estão, aos poucos, conseguindo a concessão comunitária do uso de suas terras. As populações quilombolas querem que seu território étnico seja reconhecido e demarcado. Seringueiros e castanheiros buscam a criação das reservas extrativistas.

    Camponeses e posseiros exigem que seus lotes sejam devidamente titulados e lutam por uma reforma agrária que acabe com o latifúndio e para que os governos destinem as terras públicas e devolutas à criação de novos assentamentos, a partir da realidade amazônica, com políticas públicas eficazes para seu funcionamento. Os conflitos e a violência contra camponeses e indígenas se concentram de forma expressiva na Pan-Amazônia, para onde avança o capitalismo econômico com sua ganância e destruição.

    O neocolonialismo tem expulsado nações indígenas inteiras de seus territórios promovendo grandes aglomerados nas periferias das grandes cidades entregues à condições de moradia insalubres, pobreza, tráfico de pessoas e de drogas, exploração sexual, inclusive de crianças.

    Por causa de suas riquezas naturais, a Amazônia é cobiçada por corporações nacionais e internacionais especializadas na exploração de água, fármacos, essências, minérios, saberes ancestrais das populações, madeiras e terra para plantio de monocultivos.

    Grandes madeireiras e serrarias conseguem aprovar propostas de ‘Manejo Florestal’ junto às instituições públicas de Meio Ambiente locais e nacionais prometendo ‘manejo sustentável’ da floresta em seus contratos celebrados com propinas. Acobertadas pelo ‘manejo florestal’ empresas nacionais e estrangeiras se instalam na região sob aval das instituições nacionais e atuam sem fiscalização dos órgãos competentes. Aproveitam-se da fragilidade das legislações ambientais e utilizam-se até mesmo de uso de trabalho análogo ao escravo para acelerar o desmatamento de forma indiscriminada. Anos depois, devolvem grandes porções de terras totalmente desmatadas, desertificadas e improdutivas, que avançam rumo às de áreas de reservas ambientais e terras indígenas.

    Por causa da omissão proposital dos governos na fiscalização das empresas, alguns projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), da chamada ‘economia verde’, têm sido acusados de provocar perda de controle de territórios tradicionais, impactos na segurança alimentar (privando as comunidades do acesso à caça e pesca),  deslocamentos compulsórios, gerando conflitos socioambientais, insegurança, empobrecimento, contendas no interior das comunidades étnicas e de outros povos tradicionais.

    Um dos problemas fundamentais da Amazônia é o modelo de desenvolvimento adotado para a região ignorando a vocação da floresta, seu papel no clima, no ciclo do carbono, a fragilidade de seus solos descobertos pelas queimadas, a contribuição para os demais biomas da América Latina, sobretudo no ciclo das águas. O avanço desse modelo tem sido um desastre denunciado no mundo inteiro por instituições comprometidas com o meio ambiente e com a vida na terra.

    Neste cenário, o apagão do Amapá é somente mais um dos resultados da cobiça capitalista sobre a Amazônia. Apagões como este continuarão acontecendo em toda Amazônia enquanto os direitos das populações locais não forem assumidos como prioridade.

     

    *Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva – Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.

     

  • Roberto Malvezzi – Movimentos Populares Socioambientais: lugar teológico, outros lugares e perspectivas

    Movimentos Populares Socioambientais: lugar teológico, outros lugares e perspectivas.
    Roberto Malvezzi (Gogó)[1]

     

    1. Movimentos Populares Socioambientais, um lugar teológico

    Não é uma atitude forçada dizer que os Movimentos Populares Socioambientais são um lugar teológico, além de um lugar social, político, econômico, ambiental etc. Lugar teológico é o mesmo que dizer um lugar onde – e de onde – Deus fala para todos e todas. Em uma carta aos Movimentos Populares o Papa Francisco afirma claramente:

    Vocês são construtores indispensáveis dessa mudança urgente…. Mantenham vossa luta e cuidem-se como irmãos. Oro por vocês, oro com vocês e quero pedir ao nosso Deus Pai que os abençoe, encha vocês com o seu amor e os defenda ao longo do caminho, dando-lhes a força que nos mantém vivos e não desaponta: a esperança (FRANCISCO, 2020).’

    Essa teologicidade dos Movimentos Populares encontra amplo e fecundo respaldo bíblico, na Patrística e na chamada Doutrina Social da Igreja. Um dos textos bíblicos mais explícitos nesse sentido é o Juízo Final, capítulo 25 de Mateus. Enfim, cuidar dos presos, dos pobres, dos famintos, dos desnudos etc., é um gesto humano e divino, não há separação e nenhum antagonismo entre eles. Poderíamos acrescentar a lista tríplice de Francisco, isto é, “terra, teto e trabalho”. Mas, não só, como os que lutam organizadamente pelos territórios indígenas, quilombolas, de ribeirinhos e praieiros, o povo da rua organizado, menores, população LGBT, e todos esses rostos atuais dos despossuídos e marginalizados. A diferença, como diz Francisco, é que esses lutam de modo organizado, não como quem pede esmolas, mas como quem exige seus direitos:

    Agora, mais do que nunca, são as pessoas, as comunidades, os povos que devem estar no centro, unidos para curar, cuidar, compartilhar… Vocês são vistos com suspeita por superarem a mera filantropia por meio da organização comunitária ou por reivindicarem seus direitos, em vez de ficarem resignados à espera de ver se alguma migalha cai daqueles que detêm o poder econômico (FRANCISCO, 2020).

    Normalmente, para se justificar num trabalho social, os cristãos costumam afirmar que é preciso “ver Jesus na pessoa do pobre”. Pobre aqui como um conceito bíblico, que inclui os empobrecidos, os excluídos, os marginalizados, os explorados, os oprimidos e toda casta de pessoas que são consideradas um peso para a sociedade, como um fardo a ser carregado por aqueles que são saudáveis, íntegros e produtivos. Assim são tratados os idosos, os enfermos, os que tem deficiência, além dos sempre excluídos negros, índios e empobrecidos injustamente. Entretanto, mais que “ver Jesus na pessoa do outro”, como se o outro fosse apenas um fantasma no qual Jesus se esconde, como se o outro nada valesse a não ser por ser uma configuração de Jesus, o correto é que “vejamos o outro com os olhos de Jesus”. Simplesmente porque Jesus valoriza cada pessoa, seus sentimentos, suas dores, sua dignidade, seus desejos mais profundos de encontrar a vida e seu sentido. Então, olhar o outro com os olhos de Jesus é valorizar o outro enquanto pessoa, não como um fantasma que precisa de algum qualificativo para ser valorizado.

    Então, o capítulo 25 de Mateus deve ser entendido – quando Jesus diz que foi a Ele que fizemos algum bem dedicado aos empobrecidos – como a forma mais profunda de valorizar o outro, a tal ponto que o próprio Deus feito homem se identifica com essas pessoas, nessas condições mais adversas, ao ponto de assumir para si todas as suas dores e todas as injustiças por eles sofridas.

    1. Ir às Causas é Próprio dos Movimentos Populares Socio-ambientais

    Os Movimentos Populares Socioambientais buscam a superação do assistencialismo para irem à raiz das injustiças. Esse fato incomoda a sociedade estabelecida, que aceita alguma forma de “caridade”, mas não de justiça. É bom lembrar que esse é o sentido vulgar de caridade, esse ato de dar alguma coisa que sobra para satisfazer a consciência, mas que nega o ato da justiça. O Papa Bento XVI, em sua “Caritas in Veritate”, afirma claramente que a verdadeira caridade pressupõe a justiça, já que aquilo que é do outro nem deve entrar em debate. Portanto, a verdadeira caridade é, uma vez satisfeita a justiça, dar ao outro daquilo que nos é próprio, jamais como uma forma de subtrair do outro o que lhe é de direito e justiça (BENTO XVI, n0 06).

    Portanto, é inerente à luta dos Movimentos Populares Socioambientais a mudança das estruturas sociais, para que elas favoreçam à justiça em sociedade, escapando assim de um eterno assistencialismo que nunca vai à raiz das injustiças.

    Muitas vezes acusados de comunistas – e muitos desses movimentos ou de seus militantes o são verdadeiramente -, são peças fundamentais no mundo contemporâneo para questionar e combater as injustiças estruturais que produzem pobres cada vez mais pobres para favorecer ricos cada vez mais ricos.

    1. Uma distinção necessária: Movimento Popular não é Pastoral Social

    Há que se fazer uma clara distinção entre Movimentos Populares Socioambientais e Pastorais Sociais no campo teológico-pastoral.  Normalmente se cobra dos cristãos que “não somos uma ONG”, mas uma pastoral. O sentido dessa observação é nos dizer que nós, enquanto agentes dessas pastorais, temos uma motivação de fé no fundo de nossos atos, atitudes e pastorais. Enfim, que não é apenas um ato filantrópico. Essa razão vem do próprio Deus que nos coloca nesses caminhos e nos cobra uma resposta. Francisco diz isso muito claramente na Laudato Si’:

    Juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se de que isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, desse modo, amadurece e se santifica”. (LS 231)

    Essa presença socioambiental de pessoas da Igreja no meio do povo é antiga em toda a Igreja, a começar das Ações Católicas em meio aos operários, estudantes, povos do campo etc. A dimensão assistencial os cristãos já a tinham desde os primórdios do cristianismo. Portanto, em tempos mais recentes, a ênfase é transformadora, muito mais no social tempos atrás, já que a questão ambiental não estava posta. Entretanto, desde as bases que preparam o encontro do Episcopado Latino-americano em Medellin, há sempre que se considerar a metodologia pastoral de grande parte das Igrejas do continente. A partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e depois de tantas pastorais sociais surgidas no continente, a metodologia seguida sempre será à luz da pedagogia do oprimido, com inspiração em Paulo Freire, onde o povo é considerado sujeito de seu processo libertário, não apenas objeto. Assim, desde o Documento de Medellin até o Documento de Aparecida, a Igreja Latino-americana vai situar os “rostos” do nosso povo, no sentido de personalizar e retirar das afirmações abstrações que não faziam sentido. Esses rostos, conforme a época, vão se atualizando e re-contextualizando, para significar que são sujeitos do processo transformador e não objeto. Essa é uma contribuição específica da América Latina ao magistério universal da Igreja.

    Entretanto, como sujeitos e não objeto, a motivação teológica explícita dos Movimentos Populares Socioambientais pouco importa. Neles as motivações teológicas estão implícitas, não explícitas: “todas as vezes que destes de comer, de beber, vestistes os nus, visitastes os doentes etc., foi a mim que o fizestes” (Mateus 25). Então, o fato do amor estar embutido em outras motivações não lhes retira o fundamento que todo gesto concreto de amor vem do próprio Deus, tenham ou não tenham consciência os atores desse gesto.

    Então, porque nas Pastorais Sociais essa motivação teológica tem que ser explícita, não apenas implícita? Exatamente porque temos a consciência de nossa missão, sabemos de onde ela vem, portanto, temos a obrigação de explicitá-la, principalmente onde há uma comunidade de fé. Como as Pastorais Sociais atuam indistintamente com todos os grupos humanos, nem sempre também para elas é possível a explicitação última de nossas ações. Nossa tarefa, enquanto agentes de uma pastoral, é de ordem subsidiária fundamentalmente.

    Ainda mais, há muitas pessoas que “não tem fé” e atuam pelas pastorais sociais, colocando suas perícias e sua dedicação a serviço dessas populações e desses serviços organizados pela Igreja. Há advogados, engenheiros, sociólogos, filósofos etc. Se estão presentes, se fazem seu serviço com dedicação e respeito, nada lhes retira também a dignidade de serem agentes pastorais, mesmo que para eles, implicitamente, ali esteja a sua dedicação às pessoas postas em situações vulneráveis, não por razão de uma fé que eles mesmos alegam não ter. Mais uma vez vale o amor implícito diante daquele que perscruta os corações e tudo vê.

    1. Movimentos Populares Socioambientais e outras Organizações Sociais

    Primeiramente, o que são movimentos sociais?

    Os movimentos sociais são formados por grupos de indivíduos que defendem, demandam e/ou lutam por uma causa social e política. É uma forma da população se organizar, expressar os seus desejos e exigir os seus direitos. São fenômenos históricos, que resultam de lutas sociais, que vão transformando e introduzindo mudanças estruturais nas sociedades (PONCHIROLLI, 2019).

    Em qualquer definição de Movimento Social que se queira, o fator fundamental é que se trata de um ator coletivo, composto por pessoas que tem as mesmas necessidades e os mesmos objetivos: Sem Terra, Sem Teto, Feministas, LGBT etc. Por isso, os movimentos sociais mudam conforme a época, conforme as necessidades socioambientais existentes, ou mesmo na área dos direitos humanos e nos direitos da natureza.

    Daí a necessidade de ampliar o conceito de Movimento Social, ou Movimento Popular no dizer de Francisco, para Movimentos Populares Socioambientais, porque o conceito inclui os movimentos mais clássicos e os mais atuais, que vão além da luta e disputa de classes no campo econômico e político, incluindo a dimensão ambiental, de gênero, etnias, tantas outras conforme as necessidades do povo. Esse é um conceito que esse autor se viu na obrigação de forjar para abranger essa realidade vasta e complexa.

    Ainda mais, os Movimentos são mais duradouros e estruturados que as mobilizações sociais, que podem ser mais pontuais, menos estruturadas, mais espontâneas e de duração mais curta, como por exemplo, a mobilização social para o rebaixamento do preço das tarifas do transporte público no Brasil e no Chile.

    Ainda mais, os Movimentos têm seus simpatizantes, parceiros, aliados, que comungam a causa e a luta daquele determinado grupo social que atua coletivamente. Assim, o MST tem seu grupo de amigos e aliados, oriundos de outras classes sociais, de dentro das universidades, das igrejas, de outros movimentos sociais. Podem, inclusive, se agrupar em uma articulação maior, como é o caso da Via Campesina, que agrupa movimentos sociais de várias matizes e vários lugares do mundo:

    Se fizermos um recorte de tempo, da metade do século XX para cá, podemos dizer que os anos 60 foram um momento marcante no debate sobre os movimentos sociais numa esfera mundial. Diferentemente dos movimentos clássicos, que se caracterizaram por lutas de classes, por exemplo a classe operária versus a burguesia que detinha os meios de produção, conforme indicaram as análises marxistas, a ênfase dos movimentos sociais a partir da 2ª metade do século XX se voltam aos aspectos coletivos e problemas interseccionais relacionados à esfera pública em seu conjunto: pobreza, discriminações, questões de gênero e sexualidades, raciais, contra as guerras etc. (HERNANDEZ, 2017).

    Porém, não há uma ruptura entre essas várias matizes dos Movimentos Populares Socioambientais. Com o passar do tempo e o surgimento de novas questões, muitos deles vão se tornando, ou se recriando, como Movimentos Populares Socioambientais, não somente enquanto Movimentos Sociais. Alguns deles, organizados sob a matiz marxista, conseguiram incorporar aos poucos a dimensão ambiental, o respeito pelas diferenças, a pluriculturalidade, as questões de gênero, assim por diante. Ao mesmo tempo, movimentos mais relacionados às políticas públicas específicas, conseguiram também dar passos para se colocarem num contexto mais amplo de sociedade, que tem que ir à raiz das injustiças estruturais, exigindo suas mudanças, sem as quais todo esforço pelas políticas públicas se torna um ato de enxugar gelo.

    1. Outras Organizações: Articulações, Redes, ONGs

    O mundo moderno, com seu arsenal de tecnologias de comunicação, particularmente as mídias sociais, permitiu a construção de vastas redes de comunicação. Web, literalmente, quer dizer “rede”, “teia”.

    Não estamos falando aqui das Redes apenas no sentido técnico, como usam as empresas para expandir seus negócios pelos meios virtuais, mas na ótica dos Movimentos Populares Socioambientais, com a perspectiva de interconectar parceiros que de alguma forma comungam os mesmos objetivos e viabilizam essa interconexão via internet. Essas redes são virtuais e reais, não raro simultaneamente.

    Então, uma rede, na ótica dos Movimentos Populares Socioambientais – as empresas têm suas VPNs (Virtual Private Networks) para seus negócios – significa a união por igual de muitos elos semelhantes e interconectados. Normalmente as iniciativas já existem, de forma múltipla, mas desconectadas umas das outras. As Redes e Articulações tem o papel fundamental de reunir essas iniciativas de forma coordenada com vistas a potencializar o alcance de um mesmo objetivo.

    Quem tem experiência de trabalhar com pescadores e pescadoras entende rapidamente essa linguagem. É admirável e belo o trabalho manual de tecer redes de pescar, normalmente confeccionadas por pescadoras, uma das tarefas da economia familiar da atividade pesqueira. Por exemplo, ao longo do rio São Francisco, Brasil, as comunidades pesqueiras muitas vezes estão às margens do rio. Então, muitas vezes sentadas na sombra de uma bela árvore, as mulheres passam várias horas do dia tecendo as redes de pesca. As redes, classificadas pelo tamanho da malha – 04 cm, 07 cm, 11 cm, 20 cm etc. -, são confeccionadas conforme o tipo de pescado que se quer pescar. Normalmente medida por uma régua, vai sendo trançada aquela peça que depois vai estar nos rios e mares em busca do pescado, sustento da família e gerador de renda para toda a comunidade.

    Pois bem, a rede de computadores mundiais, de alguma forma segue o mesmo princípio. São milhões e até bilhões de elos que permitem a construção de uma peça única, mesmo com todas as contradições que existam na web, inclusive a Deep Web, ou internet profunda, onde os porões macabros do crime, do tráfego de pessoas, de armas, de órgãos, de assassinatos aí podem navegar sem serem incomodados.

    Nesse sentido, de forma metafórica, mas também real, hoje há uma vasta construção de redes em torno de uma causa comum, onde pessoas, entidades, instituições, às vezes muito diferentes entre si, mas tendo algum objetivo comum, também se interconectam como em uma rede, como em uma teia de aranha, para alcançar determinados objetivos. Essa, por exemplo, é a proposta da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM, isto é, reunir todas as forças vivas da igreja, mas também das igrejas, mas também da sociedade, que lutam por objetivos comuns na Amazônia, como manter a floresta em pé, defender os territórios indígenas e comunidades tradicionais, desenvolver uma economia da floresta que não agrida o ambiente, assim por diante.

    Então, as redes surgem como uma nova forma de organização de forças vivas em vista de um objetivo. Elas se multiplicam de forma incontável conforme a situação, conforme o desafio que surge. Elas podem ser mais duradouras ou mais rápidas, como na luta concreta para baixar o preço de uma tarifa, ou manter a democracia num país que corre o risco de uma ditadura, ou de forma mais perene, em causas que exigem mais tempo, como é a questão do saneamento básico em território brasileiro.

    Um caso exemplar de sucesso é a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). Reunindo cerca de 3 mil entidades, essa Articulação propôs e operacionalizou dois programas básicos que congregavam todas as entidades em vista de um objetivo: proporcionar a captação da água de chuva para as comunidades rurais do Semiárido Brasileiro com a finalidade de beber e produzir.

    O primeiro programa “Projeto Um Milhão de Cisternas” (P1MC) tinha como finalidade construir com as comunidades 1 milhão de cisternas para 1 milhão de famílias para abastecer com água potável cada uma dessas famílias. Já o “Projeto Uma Terra e Duas Águas” (P1+2), tinha como objetivo lutar pela terra para cada família e uma segunda tecnologia de captação de água de chuva para a produção familiar (ASA, 2020).

    Assim, durante quase 20 anos, o projeto P1MC praticamente atingiu seu objetivo, enquanto o programa voltado para a produção conseguiu replicar cerca de 200 mil vezes tecnologias com essa finalidade. No processo, com vasto apoio pedagógico, cada família participava do processo educativo de uma nova cultura da água, com técnicos aprendendo a construir cisternas e outras tecnologias. O projeto inicial contou apenas com verbas oriundas das comunidades, numa espécie de cooperação, mas também de doações nacionais e internacionais. Depois os programas foram encampados financeiramente pelos governos brasileiros de Lula e Dilma. Com Michel Temer os projetos deixaram de receber verbas públicas.

    Então, os movimentos clássicos, de organizações mais formais, os chamados movimentos sociais, hoje convivem com outras formas de organizações, de articulações, de redes, todos atuando na sociedade em busca dos mais diversos objetivos.

    Vale a pena citar as ONGs (Organizações Não Governamentais), porque elas são referidas muitas vezes de forma negativa e pejorativa até mesmo dentro da Igreja. Muitas vezes se diz que nós cristãos não somos uma ONG piedosa. O que se quer dizer com isso? Na verdade, muitas vezes, são grupos pequenos ou médios de profissionais que colocam seus saberes e habilidades em favor de grupos vulneráveis e até mesmo de Movimentos Sociais Populares. São pessoas de origem nas ciências humanas (filósofos, teólogos, educadores, sociólogos etc.), como da área técnica (agrônomos, engenheiros etc.) que prestam relevantes serviços de sua especialidade ao povo em luta. Por exemplo, a tecnologia de captação de água de chuva no Semiárido Brasileiro, embora tenha sido criada por um pedreiro, portanto um prático, foi aperfeiçoada por técnicos do setor de hidrologia, tornando seguro o uso dessa água por milhões de pessoas. Então, mesmo que haja ONGs que mereçam desconfiança e até reprovação, não se pode negar o papel importante que muitas dessas organizações tem para com as lutas populares.

    1. As Mudanças Estruturais são próprias dos Movimentos Populares

    Francisco diz muito claramente aos Movimentos Sociais: “Este Encontro dos Movimentos Sociais Populares é um sinal, um grande sinal: viestes apresentar diante de Deus, da Igreja e dos povos uma realidade que muitas vezes passa em silêncio. Os pobres não só suportam a injustiça, mas também lutam contra ela” (FRANCISCO, 2014, pg. 5).

    Portanto, essa chave de leitura sintetiza a diferença radical entre os trabalhos assistenciais em favor dos mais empobrecidos, ainda que necessário tantas vezes, e o trabalho de superação das injustiças movidos pelos Movimentos Sociais. O texto seguinte é ainda mais ilustrativo do reconhecimento dessa realidade:

    Vós sentis que os pobres não esperam mais e querem ser protagonistas; organizam-se, estudam, trabalham, exigem e, sobretudo, praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer (IDEM, pg. 6).

    Portanto, há um esforço coletivo a partir de dentro, o esforço da auto organização, do estudo, do trabalho e, sobretudo, da solidariedade visceral que já vem de dentro das pessoas e da natureza própria dos Movimentos Populares. Cada um dos leitores pode memorizar algum Movimento Popular concreto que conhece e relembrar como esse é um fato indiscutível:

    Tendes os pés na lama e as mãos na carne. O cheiro é do bairro, do povo, de luta. Queremos que a vossa voz seja ouvida, a qual, normalmente, é pouco escutada. Talvez porque incomoda, talvez porque o vosso grito incomoda, talvez porque se tenha medo da mudança que vós pretendeis, mas sem a vossa presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e os projetos que muitas vezes ouvimos nas conferências internacionais permanecem no reino da ideia… (IBIDEM, pg. 7).

    Quando ele diz que “tem o cheiro da lama, do bairro”, nos diz claramente que as lutas populares estão no campo e nas cidades, particularmente nas periferias das grandes cidades. Ali onde moradias estão situadas em lugares insalubres, onde tantas vezes não há o saneamento básico – água encanada, coleta de esgoto, tratamento de esgoto, drenagem da água de chuva – é onde as lutas populares acontecem, exatamente por “terra, teto e trabalho”. Terra, aqui, como um espaço urbano digno para se morar, não locais insalubres ou perigosos como beiras de rios, encostas de morros, ou proximidade com lixões e outros espaços de descarte de materiais contaminados, como os próprios aterros sanitários.

    Ali, tantas vezes, mães, pais e filhos lutam para melhorar a qualidade vida de sua comunidade com políticas públicas de maior inclusão. Sofre de forma especial a população negra ou indígena das periferias, que uma vez relocadas do interior da selva, como é o caso de Manaus, acabam ocupando lugares insalubres nas periferias para poderem sobreviver.

    Então, há uma vasta rede de organizações nas favelas, em busca dos mais variados objetivos, todos eles visando uma vida mais digna. Um dos fatores mais graves para essas comunidades costuma ser a segurança, já que a negritude e a pobreza são criminalizadas, portanto, são tratados como bandidos, pela convivência forçada com a polícia, tráfico e as milícias.

    Assim também o povo da rua, os que não têm casa. Eles também são capazes de algum tipo de organização, embora tantas vezes pareça impossível. No Brasil, ainda na década de 70 do século passado, no âmbito pastoral se discutia se era possível alguma organização do povo de rua. A história mostrou que sim, que era possível, e hoje existe o movimento dos catadores em nível nacional (MNCR, 2020)

    Portanto, é preciso também evitar os fatalismos, como se em algumas situações humanas realmente só coubesse o assistencialismo e não também alguma forma de organização na qual se tornem sujeitos de seu próprio processo social transformador.

    Aliás, essa é uma característica fundamental dos movimentos sociais populares, isto é, não ser apenas objeto de caridade, mas serem sujeitos de seu processo de transformação. Essa perspectiva envolve também a dignidade subjetiva das pessoas, reconhecer sua capacidade de lutar para si, seus familiares e seu grupo social. É um processo pedagógico de libertação também da subjetividade, das potencialidades de cada ser humano, tantas vezes guardadas e reprimidas, mas que necessitam apenas de uma oportunidade para se revelar.

    Por essa razão, há sempre uma pedagogia libertadora, da linha da Paulo Freire, na maioria dessas organizações. Há um sempre um diálogo entre os saberes populares e o saber acadêmico, quando o educando é também sujeito e protagonista de seu processo educacional e libertário. É esse viés libertário e transformador, como sujeito e não como objeto, que tantas vezes inquieta e suscita a ira dos setores dominantes da sociedade.

    1. Os Movimentos Populares Socioambientais e a Casa Comum

    A insistência de Francisco no tripé “Terra, Teto e Trabalho” ao longo de todo discurso visa enfatizar esses elementos fundamentais para a vida digna do ser humano. É como se Francisco colocasse esses desafios para os Movimentos Populares Socioambientais, como se eles, e não outros, sentissem mais essas necessidades e por isso se dedicassem mais a essas tarefas. Sem eles a vida da pessoa, da família, de um povo, padece de carências fundamentais que vão afetar toda a estrutura da família e da sociedade. Por isso, Francisco vai insistir mais uma vez para que os Movimentos Populares Socioambientais tenham também um olhar especial sobre a “Casa Comum”, sem a qual também a vida não acontece na sua plenitude: Falastes neste encontro também de Paz e Ecologia. É lógico: não pode haver terra, não pode haver casa, não pode haver trabalho se não tivermos paz e se destruirmos o planeta (IBIDEM, pg. 14).

    Esse desafio remete a tantas iniciativas dos Movimentos no âmbito socioambiental: a preservação de florestas; a reflorestação, como a iniciativa do MST de plantar 100 milhões de árvores em dez anos; o cuidado com as nascentes; a recuperação de rios; de matas ciliares; a recuperação de áreas desertificadas; a construção do paradigma da agroecologia; o combate aos agrotóxicos e toda forma de poluição; a captação da água de chuva para beber e produzir como acontece no Semiárido Brasileiro; enfim, inúmeras iniciativas ao redor do mundo inteiro que passaram a ter essa visão integral e integrada da “Casa Comum”, onde tudo está interligado e a qual nos cabe “cultivar e guardar” (Gênesis 2,15).

    As lutas populares socioambientais têm também grande ênfase nas cidades, onde está concentrada grande parte da população, com suas necessidades básicas de habitação, trabalho, mas também de um local digno de moradia. Em geral, as populações que migram do campo para a cidade, terminam por morar em beiras de rios e riachos, encostas de morros e outros lugares insalubres e impróprios para um ser humano. Daí a grande necessidade das lutas socioambientais em meio urbano, como pelo terreno da moradia, uma casa digna, o saneamento básico (água potável, coleta e tratamento de esgoto, coleta e tratamento dos resíduos sólidos, drenagem da água de chuva), mas que pode estender-se ao saneamento ambiental completo (despoluição do ar, dos sons e despoluição visual). Há grupos organizados em periferias de grandes, médias e pequenas cidades fazendo essa luta pela vida digna dessas populações, a partir delas mesmas, dos mais necessitados que se organizam em movimentos para melhorar a qualidade de suas vidas.

    1. Os Movimentos Populares e a Democracia

    Ainda mais, em tempos obscuros e de ascensão de pessoas e ideologias autoritárias no mundo inteiro, Francisco atribui aos Movimentos Populares Socioambientais a tarefa de cooperar, de forma decisiva, na manutenção da democracia:

    Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes desviadas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação, como protagonistas, das grandes maiorias e este protagonismo transcendo os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo de paz e de justiça duradouras pede que superemos o assistencialismo paternalista, exige que criemos novas formas de participação que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum. E assim, com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor (IBIDEM, pg. 18).

    Então, um dos desafios fundamentais que se coloca para os Movimentos Populares Socioambientais, e que eles mesmos se colocam, é a sua relação com o Estado, partidos políticos, igrejas e outras organizações da sociedade civil. A autonomia em relação ao Estado e aos partidos políticos é clássica nos movimentos mais tradicionais como o MST. Por outro lado, não se trata de deixar o Estado apossado pelas elites sem nenhum incômodo, ou o dinheiro público apossado pelo capital sem que, pelo menos uma pequena parte, chegue até às populações mais carentes. Assim, os movimentos ligados aos trabalhadores rurais, particularmente no Brasil, disputam programas com verbas públicas para a reforma agrária, o plantio, a colheita, a comercialização de seus produtos etc. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além de outros, são políticas públicas de apoio à agricultura familiar com origem nas lutas desses Movimentos Populares. Essas lutas deveriam transcender todos os governos, porém, é claro, os governos mais à direita não alimentam essas políticas. Acontece que muitas vezes, até com partidos ditos mais progressistas no governo, os programas e políticas de governo estão muito mais voltados ao grande capital que aos pequenos agricultores.

    Essa relação também se dá nas lutas urbanas, como os movimentos de luta pela moradia, no caso do Brasil mais especificamente o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Eles lutam por moradia para todos, sabem que é impossível alcançar esse objetivo sem política de governo, melhor seria de Estado, com financiamento público, para alcançar escala. No Brasil, o “Programa Minha Casa, Minha Vida”, de habitação popular, foi fruto da conjunção entre a luta popular por moradia e a política pública do governo de Dilma Roussef. Porém, logo após o golpe de Estado de 2016, o programa foi praticamente desfeito.

    Então, embora a relação dos Movimentos Populares seja de autonomia em relação ao Estado, é preciso ficar claro que é uma autonomia relativa, sobretudo quando precisam dos investimentos públicos. Os Movimentos veem esse fato como um direito, não como uma concessão ou submissão, já que o recurso é público. Porém, não raro é por esse viés que muitos Movimentos perdem sua autonomia, se vendo cooptados pelos governos por verbas ou cargos públicos. Porém, regra geral, esses casos não anulam a luta autônoma para alcançar seus objetivos.

    1. A Relação dos Movimentos com os Partidos Políticos

    Algo semelhante se dá com relação aos partidos políticos. Há uma tendência também nos partidos de cooptar os Movimentos Populares Socioambientais. Claro que a maioria dos Movimentos tem proximidade com partidos mais à esquerda, já que é nesse viés ideológico que se encontram as lutas por essas causas sociais. Entretanto, essa é uma questão delicada e fonte de muita divisão nos Movimentos Sociais. Há muitos espectros de esquerdas em certos países, como é o caso do Brasil. Então, a proximidade muito intensa a certos partidos faz surgir muros na relação com outros movimentos, embora muitas vezes tão próximos em seus objetivos. Publicamente essas partições não são tão notadas, mas nos bastidores, sim. Entretanto, mesmo aqui os Movimentos fazem questão de afirmar sua soberania diante dos partidos. A ideia de que os Movimentos são correia de transmissão dos partidos, como antes se tinha do Movimento Sindical em relação a esses partidos, não é bem aceita nos Movimentos Populares Socioambientais atualmente. Por isso, em certos casos, mesmo quando certos partidos mais ao centro ou à direita acenam para as causas dos Movimentos, eles acabam por aceitar, já que se afinam com seus propósitos.

    1. A Relação dos Movimentos Populares com as Igrejas

    Em relação às igrejas essa autonomia fica ainda mais clara. Sobretudo nos tempos atuais, de imensa pluralidade religiosa, os Movimentos Sociais Populares não querem ser cooptados por nenhuma igreja. Vários deles tem origem e apoio em igrejas de várias denominações, mas não se colocam como subordinadas a elas. Um exemplo clássico no Brasil é a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que ajudou fundar o MST, o MPA, o MAB. Esses Movimentos reconhecem essa contribuição, mas são totalmente autônomos em relação à CPT. O mesmo acontece com Movimentos de Pescadores em relação ao Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e às organizações indígenas em relação ao Conselho Missionário Indigenista (CIMI).

    Mesmo em relação ao Papa Francisco esse sentimento continua. Os Movimentos Populares Socioambientais sabem que tem nele um aliado imenso em tempos tão difíceis para a humanidade. O que apreciam em Francisco é que ele valoriza os Movimentos Populares Socioambientais, os apoia em suas lutas, os escuta nas suas reivindicações, sem nenhum sinal de que pretenda cooptá-los. Francisco sabe que eles vêm de várias matizes ideológicas, que ali há outras religiões, outras ideologias, mesmo assim os apoia porque as causas que eles defendem são justas e beneficiam milhões de pessoas ao redor do mundo inteiro.

    1. A Globalização da Esperança

    “A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce ente os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença” (Papa Francisco, 2015, pg. 3)

    Aqui há uma perspectiva de que os empobrecidos sejam vetores de uma nova globalização, mas a da esperança, não essa da exclusão, baseada na circulação de mercadorias, mas não de pessoas, quando muros se levantam ao redor do mundo para impedir o avanço sobre o Norte rico da Terra. São muros exemplares e icônicos como o que separa a América do Latina dos Estados Unidos, ou a Europa da África. Entretanto, articulações globais dos excluídos do sistema, como a Via Campesina, tem seu peso na globalização da esperança, ao lado de movimentos sociais, articulações e redes de outras matizes.

    A esperança é uma das virtudes teologais fundamentais, alicerçada na própria alma humana. Paulo fala em “esperar contra toda a esperança” (Romanos 4,18). A matriz desse pensamento é também Abraão, que não é só pai da fé, mas também da esperança. A esperança de arrancar todo nada, do que parece impossível, tempos históricos melhores.

    Nesse sentido, essas organizações, articulações e redes do povo apontam para esses caminhos. Retomo o exemplo da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) que no prazo de 20 anos construiu um milhão de cisternas de captação de água de chuva no Semiárido Brasileiro para um milhão de famílias através do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Uma região que era tida como inviável pelas autoridades brasileiras, inclusive por grande parte da academia, teve seu potencial demonstrado e confirmado pelas organizações da sociedade civil. Hoje a região já está em níveis mundialmente mais aceitáveis de superação da fome, da sede e outros índices que compõem o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região. Foi lutando contra todos os desesperos, preconceitos e estigmas que a região se viabilizou pelo esforço de seu próprio povo, daqueles que mais precisavam, mesmo que apoiados por ONGs, parte da academia, parcela do mundo político, igrejas, assim por diante.

    Sempre haverá a dúvida sobre o que grupos extremamente fragilizados da sociedade podem fazer, se eles não serão eternamente dependentes de obras assistenciais. O exemplo vindo do Semiárido Brasileiro mostra que não, sempre é possível algum nível de articulação e de participação como sujeitos do processo, não como objetos. As organizações indígenas, quilombolas, de pescadores, de catadores, sempre nos confirmam essas possibilidades:

    Que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos problemas, se mal ganho o necessário para me alimentar? Que posso fazer eu, artesão, vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, senão tenho sequer direitos trabalhistas? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha cidade, da minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma solução para os meus problemas? Muito, podem fazer muito. Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e os excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (terra, teto e trabalho), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais (FRANCISCO, 2015, vol. 4, pg. 9).

    Porém, esses movimentos, articulações e redes muitas vezes já tem, mas podem e devem construir uma economia verdadeiramente comunitária, com prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos. Isto envolve os “3 T”, mas também acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e à recreação” (FRANCISCO, 2015, vol. 4, pg. 15).

    …o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos, na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança…Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma digna velhice (FRANCISCO, 2015, vol. 4, pg. 23).

    1. Os Poetas Sociais

    No nosso último encontro, na Bolívia, com a maioria de latino-americanos, pudemos falar da necessidade de uma mudança pra que a vida seja digna, uma transformação de estruturas; além disso, do modo como vós, movimentos populares, sois semeadores de mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grande ações interligadas de modo criativo, como em uma poesia; foi por isso que vos quis chamar ‘poetas sociais’”(FRANCISCO, 2016, vol. 8, pg. 6).

    A poesia é uma linguagem aberta, não conceitual, sujeita a vários ângulos de interpretação. O poeta tem licença poética para quebrar regras linguísticas e assim expressar melhor seus sentimentos. A poesia é da alma, do coração, não apenas da razão. Portanto, quando Francisco chama os Movimentos Populares Socioambientais de “poetas sociais”, ele nos chama para uma linguagem e prática abertas, inovadoras, criativas, sem necessariamente estarmos presos a paradigmas e regras já estabelecidas, mas que tantas vezes nos aprisionam num mundo que não deu certo, ou pelo menos, que pode ser melhor.

    Então, em outros documentos, como na sua exortação apostólica “Querida Amazônia”, Francisco não coloca receitas prontas ou conceituais para os povos amazônicos em sua luta hercúlea para defender a floresta, seus territórios, seus povos e suas culturas. Ao contrário, ele coloca “sonhos”, um sonho social, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial (FRANCISCO, 2020). Sonhos aqui, como utopias, situações a que se quer chegar, horizontes futuros, mas cujos caminhos têm que ser abertos, estradas tem que ser feitas, para que um dia se alcance esse lugar, ou essa situação utópica.

    Parece ser esse o caminho. Há que se ter um tanto de Dom Quixote, também com um pouco de Sancho Pança, de sonhos e pés no chão, sem ter medo ou vergonha. Estamos convictos que um mundo melhor passa muito mais pelas lutas dos Movimentos Populares Socioambientais que pelas elites dominantes da Terra.

    Há que se sonhar.

     

    REFERÊNCIAS

    ASA. P1MC: Programa Um Milhão de Cisternas. https://www.asabrasil.org.br/acoes/p1mc Acesso em 10/06/20

    BENTO XVI. Caritas in Veritate. http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html Roma, 2009. Acesso em 10/06/20.

    BENTO XVI. Deus Caritas Est. http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html Roma, 2005. Acesso em 10/06/20

    HERNANDEZ, Aline R. C. Como entender os movimentos sociais contemporâneos: para além da luta de classes, dos Fóruns Sociais Mundiais e do 2º “impeachment” brasileiro. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573932-como-entender-os-movimentos-sociais-contemporaneos-para-alem-da-luta-de-classes-dos-foruns-sociais-mundiais-e-do-2-impeachment-brasileiro Novembro de 2017. Acesso em 10/06/20.

    MNCR (Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis). O que é o Movimento? http://www.mncr.org.br/sobre-o-mncr/o-que-e-o-movimento Acesso em 10/06/20

    PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Pós-Sinodal

    QUERIDA AMAZONIA. Ao Povo De Deus e a Todas as Pessoas de Boa Vontade. http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20200202_querida-amazonia.html Fevereiro de 2020. Acesso em 12/06/20

    PAPA FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco aos Participantes do Encontro dos Movimentos Populares. Coleção Sendas. Volume 1. Edições CNBB. 2015

    PAPA FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco aos participantes do III Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Coleção Sendas. Volume 8. Brasília. Edições CNBB. 2016)

    PAPA FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Coleção Sendas. Volume 4. Edições CNBB. 2015.

    PAPA FRANCISCO.   CARTA DO PAPA FRANCISCO AOS MOVIMENTOS POPULARES.
    http://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2020/documents/papa-francesco_20200412_lettera-movimentipopolari.html Acesso em 08/06/20.

    PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da casa comum. Brasília, Edições CNBB, 2015.

    PONCHIROLLI, Rafaela. O que são movimentos sociais? https://www.politize.com.br/movimentos-sociais/ Publicado em 2019. Acesso em 10/06/20

    [1] MALVEZZI, Roberto. Graduado em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Membro da Equipe de Assessoria da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM). Membro da Comissão de Ecologia Integral e Mineração da CNBB. Escritor e compositor.

  • Voltamos à inquisição?

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    “Não cabe à Justiça civil determinar quem pode ou não se considerar católico. Esta é decisão de foro íntimo. Em tese, caberia à instituição eclesiástica, mas nem ela vai a tal limite. O Direito Canônico admite que um católico seja excluído da Igreja por professar, por exemplo, apostasia. Ainda assim nada impede que ele se considere católico”, escreve Frei Betto, frade dominicano, escritor, assessor da FAO e de movimentos sociais e autor de “Diário de Quarentena” (Rocco), entre outros livros.

    Eis o artigo.

    Tribunal de Justiça de São Paulo atendeu, a 20/10, pedido do Centro Dom Bosco e determinou que a ONG Católicas pelo Direito de Decidir não poderá mais adotar o termo “católicas” no nome. A ONG, que pode recorrer, tem 15 dias para modificar seu estatuto social e suprimir o adjetivo católicas sob pena de multa diária de R$ 1.000.

    Na opinião do relator, o desembargador José Carlos Ferreira Alves, não é “minimamente racional e lógico o uso da expressão ‘católicas’ por entidade que combate o catolicismo concretamente com ideias e pautas claramente antagônicas a ele”.

    Católicas pelo Direito de Decidir defende a lei brasileira, que admite o aborto em casos como estupro, risco de morte da gestante e anencefalia.

    A decisão judicial coleciona uma série de equívocos. Primeiro, não cabe à Justiça civil determinar quem pode ou não se considerar católico. Esta é decisão de foro íntimo. Em tese, caberia à instituição eclesiástica, mas nem ela vai a tal limite. O Direito Canônico admite que um católico seja excluído da Igreja por professar, por exemplo, apostasia. Ainda assim nada impede que ele se considere católico.

    Estamos de volta à Inquisição, quando direitos civil e religioso se confundiam? Ou o Tribunal de Justiça de São Paulo pretende imitar os tribunais nazistas por condenarem quem se assumia como judeu? Os desembargadores de São Paulo podem, sim, punir quem não cumpre a lei, mas exorbitam de suas funções ao prescrever quem é digno ou não de se considerar adepto de determinada confissão religiosa. Nesse andar da carruagem, daqui a pouco teremos juiz evangélico ordenando o fechamento de terreiros do candomblé pelo simples fato de considerá-los espaços do demônio.

    Na lógica adotada pelos acusadores, não é a ONG que deveria ser alvo do Tribunal e do Centro Dom Bosco, e sim aqueles que formularam e assinaram a legislação que, no Brasil, permite o aborto em determinadas circunstâncias. Todos os parlamentares e juízes católicos que propuseram e oficializaram esta lei deveriam ser excomungados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, tal como a Católicas pelo Direito de Decidir.

    No decorrer da história, a Igreja Católica nunca chegou a uma posição unânime e definitiva quanto ao aborto. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões situa-se a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado ser humano. Até hoje, nem a ciência, nem a teologia tem uma resposta exata. A questão permanece em aberto.

    Santo Agostinho dizia que só a partir de 40 dias após a fecundação, quando se pode falar em pessoa (unidade corpo-espírito). Assim mesmo para fetos masculinos, pois se considerava que a hominização do feto feminino exigia o dobro do tempo…

     Santo Tomás de Aquino reafirmou que não se pode reconhecer como humano o embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a “alma racional”. Esta posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (1563).

    Santo Afonso de Ligório (+1787) admitia o aborto terapêutico, caso a vida da mãe corresse risco imediato.

    No século XX, introduz-se novamente a discussão entre aborto direto e indiretoRoma passa a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de câncer no útero.

    O redentorista Bernhard Haering, um dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou quando o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez. Nem a Igreja tem o direito moral de exigir de seus fiéis atitudes heroicas. É o que a ética chama de conflito de valores e deveres. E o próprio papa reconhece que, inclusive na questão do aborto, a responsabilidade moral pertence, em última instância, ao inviolável reduto da consciência humana e só pode ser julgado por Deus.

    Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião a partir da fecundação, jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreveu rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados.

    decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo retrata essa conjuntura autoritária na qual se encontra o nosso país, cujo presidente, católico rebatizado evangélico, contraria todos os preceitos bíblicos e exalta torturadores; anuncia que designará, para o STF, não um jurista competente, e sim “terrivelmente evangélico”; deputados e senadores se unem para confessionalizar a política; ministros e ministras se empenham em fazer coincidir a legislação vigente com a lista de pecados de sua confissão religiosa.

    Só fica faltando a fogueira…

    Artigo publicado originalmente no site http://www.ihu.unisinos.br/604

     

  • Católicas, sim, pelo Direito de Decidir!

    Imagem de http://www.ihu.unisinos.br/604245-catolicas-sim-pelo-direito-de-decidir

    “Causam-nos perplexidade o fato de os juízes entrarem no campo teológico e religioso, como se nesta área tivessem alguma autoridade, esquecidos da laicidade do estado brasileiro que lhes impediria, constitucionalmente, de proferir tais juízos”.

    O artigo é de Leonardo BoffLúcia RibeiroLuiz Alberto Gómez de SouzaMárcia MirandaMaria Tereza Sartorio e Pedro A. Ribeiro de Oliveira.

    Eis o artigo.

     O período eleitoral é pródigo em notícias que colocam em destaque a questão do aborto, raramente apresentando-a nos termos corretos. Foi o que aconteceu esta semana, quando se divulgou a decisão judicial que obriga a mudar de nome a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que existe desde 1993. Ao ler o acórdão do TJSP de 20/10/2020, não resistimos ao impulso de comentar os argumentos que embasam a decisão. É o que fazemos aqui, em solidariedade com essa organização de feministas católicas que defendem o direito responsável da mulher sobre seu corpo e o respeito às diferentes formas da sexualidade humana.

    O primeiro argumento é que, conforme o Código de Direito Canônico, uma entidade só pode denominar-se católica com o consentimento da autoridade eclesiástica. Tal argumento, porém, não pode aplicar-se a uma sociedade civil, sem responsabilidade eclesiástica nem finalidade religiosa ou pastoral. Seus membros, sim, são pessoas de religião católica, mas não a ONG enquanto tal. Isso ficou claro já em 03/03/2008, quando uma nota oficial da CNBB esclareceu não se tratar de uma entidade católica e que não falava em nome da Igreja Romano-Católica. Podemos acrescentar: não fala em nome da Igreja, mas incomoda quando fala… E isso nos leva ao outro argumento.

    O acórdão afirma haver “PÚBLICA, NOTÓRIA, TOTAL E ABSOLUTA incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal” (n. 16 sic ). Não é por acaso que o acórdão usa quatro adjetivos em maiúsculas para afirmar esse princípio moral da doutrina católica: é como se as Católicas pelo Direito de Decidir colocassem em questão aquele princípio, quando elas criticam é a opção política que criminaliza a mulher que busca procedimentos médicos para interromper sua gravidez.

    Causam-nos perplexidade o fato de os juízes entrarem no campo teológico e religioso, como se nesta área tivessem alguma autoridade, esquecidos da laicidade do estado brasileiro que lhes impediria, constitucionalmente, de proferir tais juízos.

    Os juízes, com frequência, citam legislações de outros países para fundamentar suas decisões. Eles bem que poderiam ter consultado fontes fidedignas que informam haver no mundo 63 países que descriminalizaram o aborto. Basta citar a catolicíssima Itália, a catolicíssima Espanha, o catolicíssimo Portugal, a “primeira filha da Igreja”, França, além de outros países como a Alemanha, a Suíça, a Bélgica, a Holanda entre outros.

    política de criminalização do aborto provavelmente conta com o apoio da maioria do clero católico, mas isso não a torna uma opção política obrigatória a todos os membros da Igreja Católica Romana. Em outras palavras, a redundância em defesa da criminalização da mulher que aborta quer esconder a fragilidade do argumento. Não só a legitimidade dessa posição é contestada por peritos e peritas em Teologia Moral, como a análise dos dados mostra que a política de descriminalização do aborto reduz até mesmo o número total de abortos. Isso sem mencionar a enorme redução de centenas e centenas de mortes maternas em consequência de procedimentos clandestinos. Observe-se que não está em questão a doutrina católica que condena o aborto, mas sim a posição dos católicos e católicas diante do Direito Penal em vigor no Brasil.

    Ademais já que argumentam com a doutrina católica, releva recordar-lhes a outra doutrina oficial do Concílio Vaticano II (1962-1965) que no seu documento maior a “Constituição Pastoral Gaudium et Spes” no capítulo I: ”A Dignidade da Pessoa Humana” n. 16 reafirmando a tradição assevera:

    A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho diante de Deus onde ressoa sua voz” (n.16).

    É vedado a qualquer ser humano e a qualquer autoridade religiosa ou civil por mais alta que seja, penetrar “nesse núcleo secretíssimo e nesse sacrário”. Com a consciência cada um está diretamente diante de Deus, sem nenhuma mediação, está só com o seu Criador.

    Face a esse “núcleo secretíssimo” deve-se tributar respeito à consciência da ONG “Católicas pelo Direito de Decidir”. Elas contribuem à conscientização das mulheres em sua capacidade de livremente decidir.

    Por esta razão, nos solidarizamos com a referida ONG e ao seu trabalho, feito com consciência. Enquanto católicas e leigas, procuram em suas vidas se deixar iluminar pela liberdade para a qual Cristo nos chamou (Gálatas, 5,1), seguindo o caminho de Jesus, de profunda humanidade.

    Artigo publicado originalmente no site http://www.ihu.unisinos.br/604245-catolicas-sim-pelo-direito-de-decidir

  • A Inovação das Candidaturas Coletivas – Roberto Malvezzi (Gogó)

    Imagem de https://blogdoedisonsilva.com.br/

    As candidaturas coletivas surgem como um novo mecanismo eleitoral, de origem popular, ainda não legalizado, mas que estarão muito presentes nessas eleições municipais e devem ganhar o território nacional daqui para frente. Não é um instrumento legal de candidaturas, mas os grupos conseguem driblar as exigências da lei com muita criatividade, sem ferir a legalidade ou cometer algum tipo de crime.

    O mecanismo reúne pessoas que defendem uma pauta comum, ou várias pautas comuns. Então, o CPF de um ou de uma das candidatas vai ao processo eleitoral, conforme as regras legais. Legalmente é o dono (a) do CPF que pode se eleger, mas é o coletivo que vai pensar os temas, a campanha e que vai posteriormente agir na Câmara de Vereadores. Ainda mais, as que conheci vão dividir o salário, o gabinete, o tempo de fala nas plenárias e ainda com seus assessores.

    Aqui na região as candidaturas coletivas têm pautado temas como saneamento ambiental, educação, saúde, direitos das populações LGBTs, inclusão dos direitos da natureza nas leis municipais, segurança etc. Há tempos as candidaturas burocráticas não debatem esses temas.

    A vantagens iniciais que se pode perceber são várias: retomam pautas de interesse popular; as ou os candidatos defendem essas pautas até por razões de interesse; formam um coletivo para pensar e agir; debatem com as comunidades; não fazem do cargo um cabide de emprego, até porque ninguém conseguirá viver com um salário tão dividido; por fim, pessoalmente consegui ver em algumas dessas candidaturas uma verdadeira retomada do trabalho de base.

    O grupo “Direitos da Natureza” fez um debate online nacional sobre a inclusão dessa questão nas Lei Orgânica dos municípios. O interessante foi que grande parte dos candidatos participantes tinham esse viés de candidatura coletiva.

    Talvez seja a reação a uma burocratização das eleições, dos candidatos e seus mandatos. Mas, pode ser muito mais, pode ser o novo horizonte da participação do povo nas eleições, não só com o voto, mas pautando suas demandas e necessidades através de grupos que se colocam no processo eleitoral para defender seus interesses. As eleições municipais desse ano podem ser um bom começo, mas quem sabe os mandatos coletivos possam se espalhar por todo país também nas eleições de deputados e senadores.

    Artigo publicado originalmente no site do autor https://robertomalvezzi.com.br/2020/10/29/a-inovacao-das-candidaturas-coletivas/ onde se pode acompanhar outras publicações.

  • NENHUM BISPO SERÁ IMPOSTO?
    Por Jorge Alexandre Alves

    Imagem publicada por Prensa Celam

    O Brasil é o país com o maior número de dioceses católicas no mundo. Geralmente as nomeações episcopais para as circunscrições eclesiásticas para o território nacional costumam sair às quartas-feiras. Nessa semana, por exemplo, o Vaticano acaba de anunciar nomeações para duas igrejas particulares do país.

    Uma delas muito importante porque é a capital da República. Nesse caso particular algo muito fora da curva ocorreu. Primeiro, o anúncio foi “vazado” por site jornalístico de teor conservador. O site informava que o prelado havia se envolvido em uma polêmica envolvendo racismo religioso.

    Segundo, um documento datado do começo do mês, com carimbo de segredo pontifício da Nunciatura Apostólica, onde se anunciava o nome do novo arcebispo circulou por vários grupos de aplicativo de mensagens na véspera do anúncio oficial. Aliás, documentos pontifícios têm vazado com frequência aqui no Brasil. Aconteceu com a encíclica Fratelli Tutti. O que estará por detrás desses vazamentos?

    Independente de polêmicas e vazamentos, cabe uma pergunta de maior valor para o Povo de Deus: Como se escolhem os bispos? Fato é que a maioria dos católicos desconhece que elementos são levados em conta nessa temática. É muito difícil saber de véspera quem será o novo titular (ou mesmo um auxiliar) de uma diocese.

    O processo de nomeação episcopal é algo secretíssimo, mesmo com todo o aparato midiático que dispomos hoje – o vazamento público da semana é um evento excepcionalíssimo. Apesar disso, as formalidades que envolvem a escolha de candidatos ao grau mais elevado do sacramento da Ordem estão previstas no Direito Canônico. Mas o “xis” da questão reside nas informalidades e subjetividades que determinam tais escolhas.

    O que sabemos é que a Nunciatura Apostólica sugere nomes para a Sagrada Congregação para os Bispos. Esse dicastério prepara relatórios e envia uma lista tríplice ao Papa feita pela diplomacia papal. Por sua vez, o Bispo de Roma escolhe o nome.

    Acontece que a Igreja é uma instituição universal, presente em todo o globo terrestre. Em 2015 existiam mais de duas mil dioceses em todo o mundo. Se Francisco fosse cuidar da escolha de cada bispo diocesano e dos prelados auxiliares das maiores (arqui) dioceses, talvez nem sobrasse tempo para conduzir a Igreja e exercer seu magistério.

    Na prática, deve ser a máquina vaticana quem se encarrega das nomeações no dia a dia. Todos os anos, pelo menos 15 bispos são nomeados na igreja do Brasil. O que nos dá uma ideia do que acontece em escala global. E da impossibilidade do Papa em pessoa acompanhar a escolha de todos os novos bispos.

    Isso significa que o Papa se omite nessa importante questão? Não, porque o Sumo Pontífice ratifica o trabalho feito pela Congregação dos Bispos e é quem traça um perfil de bispo a ser nomeado. Francisco já afirmou que o bispo deve ter o “cheiro das ovelhas”. Também se espera que os “candidatos” preencham requisitos que envolvem experiência pastoral, funções de liderança/coordenação e formação acadêmica no campo da Teologia.

    Evidentemente, em algumas escolhas episcopais se percebe a marca pessoal do Bispo de Roma.  Foi o que aconteceu em algumas nomeações nos Estados Unidos, na arquidiocese da Cidade do México e, sensivelmente, na arquidiocese de Bolonha (Itália). Mas também em Buenos Aires, por óbvias razões e, de forma espetacular, na arquidiocese de Lima, no Peru.

    Sabe-se hoje que, nos tempos de João Paulo II e de Bento XVI, por melhor que fosse sua formação teológica, padres vinculados à Teologia da Libertação eram preteridos para receber a mitra e o báculo. Também não eram bem vistos aqueles que defendessem a ordenação de homens casados. Quem questionasse publicamente a encíclica Humanae Vitae (Paulo VI) também veria suas chances serem reduzidas ao passar pelo crivo da Nunciatura Apostólica. Atualmente, dadas as declarações e as propostas de Francisco, pode-se dizer que o Papa tem outros critérios.

    A questão é saber se os protocolos de escolha de candidatos ao episcopado foram atualizados pelos curiais do Vaticano, estando em sintonia de fato com a orientação pastoral imprimida pelo Bispo de Romano. O fato de as escolhas dos bispos serem mantidas em segredo pontifício impede que se debata mais abertamente essa questão no seio da Igreja. Assim, fica-se muito nas “conversas de sacristia”, discute-se veladamente muito mais nomes do que perfis que seriam importantes para uma dada realidade diocesana.

    Entretanto, trata-se de complexa e delicada questão.  O segredo pontifício nos processos de nomeação episcopal é uma forma preventiva de a Igreja sustar ingerências do poder civil. No passado alguns Estados Nacionais, certos governantes ou nobres mantinham acordos (chamados de concordatas) com a Santa Sé, que lhe outorgavam o poder de indicar candidatos e de vetar nomes ao episcopado. Isso aconteceu no Brasil durante o Império.

    Imaginem se o atual governo brasileiro tivesse poder parecido nos dias atuais? Ou um governador de estado? Pensem no que poderia ocorrer nas dioceses da Amazônia ou em lugares estratégicos como São Paulo e Rio de Janeiro… Certamente a liberdade da Igreja estaria seriamente comprometida.

    Por outro lado, isso não impede necessariamente que se proteja a instituição eclesial e seus fiéis de ingerências políticas. Ao contrário, se elas ocorrerem discretamente, quase ninguém fica sabendo. Além disso, questões pastorais importantes ficam interditadas, situações escandalosas não são discutidas abertamente pelo Povo de Deus. Será uma maneira de infantilizar o laicato?

    Nas últimas décadas do século XX, muitas dioceses receberam novos bispos sem nenhuma identificação com a caminhada pastoral até então realizada naquela sede episcopal. A sucessão de Dom Helder Câmara na Arquidiocese de Olinda e Recife foi emblemática nesse sentido. Da mesma forma, situações controversas foram “varridas para debaixo do tapete” sem que as mudanças necessárias tenham ocorrido.

    Muitas vezes, não há nitidez na forma pela qual as nunciaturas chegam a uma relação de candidatos ao episcopado. O padre Jose Oscar Beozzo (1994) apontava que, naquele tempo, províncias eclesiásticas e “regionais da CNBB, como o do Ceará, desistiram inteiramente dessa tarefa, pois os nomes aprovados pelos bispos e apresentados à Nunciatura nunca foram levados em conta” (BEOZZO, 1994, p. 280). Estávamos no contexto da restauração conservadora imposta à Igreja do Brasil. Mas em tempos de Francisco, como isso funciona?

    No passado, a nomeação dos bispos foi um efetivo instrumento de enquadramento da CNBB, freando as opções teológico-pastorais feitas por significativa parcela do catolicismo brasileiro. Hoje, quando temos um Papa que propõe caminhos distintos de seus antecessores, a escolha de candidatos ao episcopado reflete os ventos da mudança que Francisco representa ou é um bastião de resistência dos opositores do Pontífice? Uma análise do perfil das recentes nomeações episcopais em alguns regionais pode ser muito elucidativa nesse sentido…

    O código de direito canônico prescreve algumas normativas para a escolha de candidatos ao episcopado: que as conferências episcopais ou bispos das províncias eclesiásticas elaborem uma lista de possíveis candidatos a cada três anos pelo menos, e a encaminhe a Santa Sé, e que cada bispo possa pessoalmente indicar os nomes daqueles que considerem aptos ao ministério episcopal (Cân. 377). Mas cabe ao Núncio Apostólico elaborar a chamada terna (lista tríplice), promovendo consultas.

    Segundo consta, podem ser consultados alguns membros do clero secular. Religiosos podem ser ouvidos, se o candidato pertencer a uma congregação. Leigos? Canonicamente apenas aqueles notáveis por sua sabedoria podem ser escutados. Tudo secretamente.

    Mas aqui pairam importantes questões: Quem define quem são os leigos “notavelmente sábios”? Por que as religiosas não são mencionadas no Direito Canônico? Tal processo não deveria ser mais pastoral e “menos canônico”? A ausência de respostas confirma o que escreveu padre Beozzo, quando afirmou que a Santa Sé atua no sentido “alienar totalmente as Igrejas particulares do direito de fazerem ouvir sua voz” (BEOZZO, 1994, p. 280).

    Em tempos de Vaticano II, com toda uma eclesiologia baseada na colegialidade e na coparticipação dos leigos, em que se reconhece que a Igreja não é somente a hierarquia, mas o Povo de Deus, ainda cabe tanto segredo? A escolha dos bispos não poderia ser mais transparente e mais inclusiva? O teólogo espanhol González Faus (1996) demonstra como era diferente o processo de seleção dos candidatos ao ministério episcopal nos primeiros séculos do cristianismo, com relativa participação do Povo de Deus, com candidatos locais.

    Ao longo da história da Igreja, tivemos cada vez maior concentração do poder eclesiástico e um ministério papal que assumiu para si a seleção de membros do episcopado. Faus (1996) argumenta que isso originalmente não fazia parte das prerrogativas do ministério petrino. Não por acaso o nome do livro em que o teólogo espanhol trata do tema é uma famosa frase de São Celestino, Papa do Século V: “Nenhum bispo será imposto”. Dessa forma, não faria parte de um projeto de “Igreja em saída” modificar a forma como são eleitos os bispos?

    Pouco tempo atrás, o Papa Francisco instaurou um procedimento experimental na escolha do Vigário da Diocese de Roma (trata-se do bispo que comanda a diocese romana em nome do Pontífice). Segundo o jornalista Andrea Tornielli (2017), Francisco promoveu uma consulta que envolveu as paróquias da Cidade Eterna e de Óstia. Como resposta, recebeu mais de 400 cartas com sugestões nomes e indicando as necessidades diocesanas.

    Bergoglio respeitou a consulta e fez o bispo-auxiliar Angelo de Donatis seu Cardeal-Vigário. Menos de dois anos antes, Donatis era um simples pároco. Essa forma de proceder não deveria ser um protocolo válido para toda a Igreja?

    *Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor. Atua no Movimento Fé e Política.

     

    REFERÊNCIAS:

    BEOZZO, José Oscar. Indícios de uma reação conservadora – Do Concílio Vaticano II à eleição de João Paulo II. Comunicações do ISER. Rio de Janeiro, ano 9, n. 39, p. 05-16. 1990.

    ________. A Igreja do Brasil: De João XXIII a João Paulo II – de Medellín a Santo Domingo. Petrópolis – RJ: Vozes, 1994.

    CÓDIGO de Direito Canônico. Promulgado por João Paulo II, Papa. Tradução Conferência Episcopal Portuguesa. Lisboa: Editorial Apostolado Da Oração, 1983. Disponível em http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf. Acesso em: 06 mai. 2020.

    GONZÁLEZ FAUS, José Ignácio. “Nenhum bispo imposto” (S. Celestino, Papa) – As eleições episcopais na história da Igreja. São Paulo: Paulus, 1996.

    MEDEIROS, Mirticeli. O pároco que pode virar papa. Dom Total, Belo Horizonte, 30 ago. 2019. Disponível em <https://domtotal.com/noticia/1384213/2019/08/o-paroco-que-pode-virar-papa/>. Acesso em: 06 mai. 2020.

    Papa lança consulta inédita para eleição do próximo vigário de Roma. O Globo, 13 mar. 2017. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/papa-lanca-consulta-inedita-para-eleicao-do-proximo-vigario-de-roma-21052973>. Acesso em: 06 mai. 2020.

    TORNIELLI, Andrea. Há um ano e meio, novo vigário-geral do papa era pároco. La Stampa, 27 mai. 2017. Disponível versão traduzida em http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/568160-ha-um-ano-e-meio-novo-vigario-geral-do-papa-era-paroco. Acesso em: 06 mai. 2020.

  • O problema do Brasil é o Fascismo, não o Comunismo – Roberto Malvezzi (Gogó)

    Imagem de diariopopularmg

    É só chegar o período eleitoral para que grupos religiosos – e os manipuladores eleitorais da religião -, levantem a bandeira do pavor comunista. É uma receita de bolo que garante votos, por aterrorizar pessoas inocentes que nem sabem o que é comunismo.  Então, o slogan fascista “Deus, Pátria e Família” volta aos santinhos eleitorais.

    Essa retórica anticomunista na Igreja Católica é anterior ao Vaticano II. Foi por não inserir nos textos do Vaticano II a condenação explícita do comunismo que se formaram muitos grupos integristas no mundo e no Brasil. Nosso caso exemplar é a TFP. É que o Vaticano II optou pelo diálogo com a humanidade, em vez de insistir em condenações. Esse é um dos motivos para que a Igreja Pós-Vaticano II seja considerada herética por eles.

    Mas, o mesmo Papa XI que fez uma condenação explícita do Comunismo em 1937 (Divini Redemptoris), já o fizera do Fascismo Italiano em 1931 (Non abiammo bisogno) e do Nazismo (Mit Brennender Sorge), também em 1937, poucos dias antes da condenação ao comunismo. Só que as cartas condenatórias do Fascismo e do Nazismo nunca são divulgadas, mas somente aquela contra o Comunismo. Ainda mais, um cânon no Direito Canônico de 1917, que codificava essa condenação ao Comunismo, foi suprimido pelo cânon 6 do Código do Direito Canônico de 1983. Até mesmo o “Decretum Contra Communismum”, de Pio XII, de 1949, perdeu significado diante da postura dialogal da Igreja a partir do Vaticano II.

    Essa adesão ao Fascismo é uma opção com muitas conveniências. A ala carreirista do Clero sempre se deu bem com os fascistas. Assim foi na Itália com Mussolini, na Espanha com Franco, em Portugal com Salazar e no Brasil em tantos períodos, como no Regime Militar e agora com o Bolsonarismo. Não é possível saber se representam a maioria, mas esses padres, bispos e leigos existem em quantidade. Entretanto, o próprio Pio XI, tão exaltado pela ala anticomunista, já declarava em 1937: Quem quer que exalte a raça, ou o povo, ou o Estado, ou uma forma particular de Estado, ou os depositários do poder, ou qualquer outro valor fundamental da comunidade humana – por mais necessária e honrosa que seja sua função nas coisas mundanas – quem levanta essas noções acima de seu valor padrão e diviniza-os a um nível idólatra, distorce e perverte uma ordem do mundo planejada e criada por Deus; ele está longe da verdadeira fé em Deus e do conceito de vida que essa fé defende” (Mit brennender Sorge n.8).

    O Brasil de hoje tende para uma ditadura teocrática de neopentecostais católicos e evangélicos, de um Deus desumano e distante, de supremacistas brancos, de exaltação do Estado e de mitos ridículos, de eliminação dos povos indígenas e seus territórios, assim como de quilombolas e outras comunidades tradicionais, também de nossos biomas. O atual governo uberizou o trabalho, precarizou a saúde e assina a contaminação de quase 5 milhões de pessoas pelo Covid19 e mais de 140 mil óbitos.  Portanto, votar nessas eleições é prioritariamente votar contra vereadores e prefeitos de linha fascista e escolher candidatos que pensem na inclusão e na justiça.

    O Papa Francisco acaba de lançar a carta “Fratelli Tutti”, afirmando que somos todos irmãos nessa Casa Comum. O problema atual do Brasil é o Fascismo carregado de ódio, não o Comunismo. O futuro do país é uma imensa escuridão no fim do túnel.   Só a resistência ao Fascismo Brasileiro sinaliza a esperança.

    Artigo publicado originalmente no site do autor http://robertomalvezzi.com.br/ onde se pode acompanhar outras publicações.

  • Pedro A. Ribeiro de Oliveira: Economia de Francisco e Clara para quê?

    Surpreendeu-me a entrevista de Luigino Bruni, publicada na edição de 15/09/20 do IHU. Diretor científico do congresso que, a pedido de Francisco, deve pensar uma economia capaz de “garantir a justiça social, a correta redistribuição dos recursos e a compatibilidade com o meio ambiente”, ele assume como ponto pacífico que essa economia é o capitalismo, devidamente aprimorado pelo cristianismo. Simplificando, ele diz que o capitalismo produz e concentra riqueza, mas o capitalista cristão a redistribui. Ao deparar-me com um pensamento tão simplista, devo dizer que estou muito preocupado com os resultados desse congresso com tema tão auspicioso como é “Economia de Francisco (e Clara)”.

    A entrevista revela um pensamento eurocêntrico, que vê dois modelos de capitalistas: o protestante, que passa a vida acumulando até que ao final da vida faz grandes doações, e o capitalista católico, que redistribui sua riqueza ao mesmo tempo que ela é produzida. O exemplo deste último é idílico: “a paróquia leva à cooperativa, o partido político dá origem à empresa, ao banco rural (que às vezes é fundado inclusive pelo pároco). E é acima de tudo o capitalismo familiar (e, de fato, as empresas italianas são 80-90 por cento familiares).” Ele deveria visitar o Brasil, maior país católico do mundo, e conhecer os bancos e empresas que aqui operam e ver o que fazem com seus lucros…

    É preciso levar a sério o desafio do Papa Francisco, que embora evite falar a palavra “capitalismo” e suas derivadas, deixa bem claro que ao criticar essa economia que mata não se refere à Máfia, mas ao capitalismo em sua fase globalizada. Ele pede aos e às jovens que participarão do congresso que busquem alternativas que realmente superem o modo de produção e consumo capitalista. E isso por várias razões. Aponto duas: a primeira é porque nele a Terra entra apenas como uma reserva de matérias-primas a serem exploradas e transformadas em mercadorias. A segunda é porque o mercado é o espaço institucional da vitória do mais forte e competitivo sobre o mais fraco, e se não for submetido a um poder mais forte será sempre concentrador de riqueza e desigualdade social.

    Pelo que sei, no Brasil o congresso a realizar-se em Assis está sendo preparado de maneira bem mais crítica ao capitalismo e a suas megaempresas transnacionais. Os grupos já constituídos trabalham seriamente para recuperar o sentido próprio de economia como ciência e arte de cuidar da Terra – Nossa Casa Comum. Por isso mesmo aqui preferimos falar da Economia de Francisco e Clara, valorizando a dimensão feminina indispensável ao cuidado.

    As experiências brasileiras de economia solidária e de cooperativas de produção do MST, que asseguram os três “Ts” de Francisco – Terra, Teto e Trabalho para todos e todas – certamente serão mais valiosas para a busca de uma Economia de Francisco e Clara do que a proposta de capitalismo católico que subjaz na entrevista do diretor científico do congresso.

    Artigo publicado originalmente em IHU, 19/09/2020.

  • O que é o Tempo da Criação?

    Close-up young plant growing in the soil concept save nature or agriculture on soft green tree background.

    A reportagem é de Brian Roewe, publicada por National Catholic Reporter, 28-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto para o IHU de 31 Agosto 2020.

    “Do que se trata?”, você pode estar se perguntando.

    Fique tranquilo, “a” pergunta desta semana encontra todas as suas respostas e antecedentes em um período eclesial que está se tornando mais proeminente para mais cristãos a cada ano e que cada vez mais inclui católicos.

    O que é o Tempo da Criação?
    O Tempo da Criação é uma observância orante de um mês que convoca os 2,2 bilhões de cristãos do planeta a rezarem e a cuidarem da criação de Deus. É um momento para refletir sobre a nossa relação com o ambiente – não apenas a natureza “distante”, mas, crucialmente, o lugar onde vivemos – e as formas pelas quais os nossos estilos de vida e decisões como sociedade podem colocar em perigo o mundo natural e aqueles que o habitam, tanto humanos quanto outras criaturas.

    O comitê ecumênico que planeja e promove esse período a cada ano o apresenta desta forma:

    “O Tempo da Criação é um período para renovar a nossa relação com o nosso Criador e com toda a criação por meio da celebração, da conversão e do compromisso juntos. Durante o Tempo da Criação, nos unimos às nossas irmãs e irmãos da família ecumênica em oração e ação pela nossa casa comum.”

    É um momento de oração, contemplação e, cada vez mais, um chamado à ação.

    O Tempo da Criação é apoiada por uma série de organizações cristãs importantes, incluindo o Conselho Mundial de Igrejas, a Christian Aid, a Federação Luterana Mundial, a Rede Ambiental da Comunhão Anglicana, o Movimento Católico Global pelo Clima e o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano. Todas elas fazem parte do comitê do Tempo da Criação.

    Quando é o Tempo da Criação?
    O Tempo da Criação abrange 34 dias.

    Ele começa no dia 1º de setembro, Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, e se conclui no dia 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis, padroeiro da ecologia.

    Esse período está alinhado com a estação da colheita do outono [no hemisfério Norte] – uma época em que o estado da Terra pode estar na mente de muitas pessoas.

    Há quanto tempo ocorre o Tempo da Criação?

    Os cristãos ortodoxos celebram o Tempo da Criação há décadas. Ele começou em 1989, quando o Patriarca Ecumênico Dimitrios I proclamou o dia 1º de setembro como um dia de oração pelo ambiente. Na realidade, esse dia marca o início do ano da Igreja Ortodoxa Oriental.

    Naquela época, o foco no ambiente estava aumentando em todo o mundo. Dois anos antes, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento divulgou o seu relatório “Nosso Futuro Comum”, a partir do qual foi desenvolvida a “Carta da Terra” – uma declaração que delineia os princípios éticos para o desenvolvimento sustentável em todo o mundo.

    A carta foi o foco central da Cúpula da Terra de 1992 no Rio de Janeiro, que formou a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Em 2015, as negociações decorrentes desse processo deram origem ao Acordo de Paris, que traça um plano global para limitar o aumento das temperaturas do planeta.

    Ao longo do tempo, o dia de oração se expandiu para um período inteiro, e o Conselho Mundial de Igrejas desempenhou um papel de liderança. Uma das primeiras celebrações organizadas do Tempo da Criação foi realizada no ano 2000 em uma igreja luterana em Adelaide, Austrália. Em 2003, a Igreja Católica das Filipinas começou a pedir aos católicos que observassem o Tempo da Criação.

    Mais recentemente, o Tempo da Criação tornou-se uma celebração mais ecumênica entre todos os cristãos. E os últimos anos viram-no ganhar força entre os católicos. Para isso, você pode apontar para o Papa Francisco.

    Poucos meses depois de publicar sua encíclica Laudato si’  sobre o cuidado da nossa casa comum, em 2015, o Papa Francisco acrescentou formalmente o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação no calendário católico como um dia anual de oração. E, no ano passado, ele convidou oficialmente os católicos a celebrarem o período completo.

    “É hora de redescobrir a nossa vocação de filhos de Deus, de irmãos entre nós, de guardiões da criação. É tempo de se arrepender e de se converter, de voltar às raízes”, escreveu ele. “Somos as criaturas prediletas de Deus, que, na sua bondade, nos chama a amar a vida e a vivê-la em comunhão, conectados com a criação. Por isso, convido veementemente os fiéis a se dedicarem à oração neste tempo que, a partir de uma iniciativa oportunamente nascida em âmbito ecumênico, se configurou como Tempo da Criação.”

    É apenas um tempo de oração?
    A oração certamente é uma parte central disso.
    Nos últimos anos, os organizadores ecumênicos sugeriram temas como uma forma de unificar as celebrações entre as comunidades e de chamar a atenção para os desafios ecológicos que o mundo enfrenta. No ano passado, por exemplo, o Tempo da Criação colocou os holofotes sobre a biodiversidade, em um momento em que os cientistas previam taxas de extinção “sem precedentes”, que poderiam exterminar até 1 milhão de espécies nas próximas décadas.

    Neste ano, os organizadores sugeriram o tema Jubileu pela Terra: Novos Ritmos, Nova Esperança. Jubileu, em termos bíblicos, refere-se a um período de restauração a cada 50 anos, quando a terra descansa, e a justiça é restaurada. O tema, em parte, é uma referência à 50ª celebração do Dia da Terra, ocorrida em abril.

    O fato de a pandemia global do coronavírus ter ocorrido à medida que o planeta se aproxima de pontos de inflexão climática mostra como as realidades sociais, econômicas e ecológicas estão interconectadas, disse o comitê do Tempo da Criação ao explicar o tema.

    “Durante o período deste ano, entramos em um tempo de restauração e esperança, um jubileu para a nossa Terra, que requer formas radicalmente novas de viver com a criação”, disse o comitê, incluindo “a necessidade de sistemas justos e sustentáveis” para cuidar melhor das pessoas e do planeta.

    O Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano destacou o tema no início deste ano, ao anunciar uma celebração especial de um ano pelo quinto aniversário da Laudato si’. Ele expressou esperança de que a próxima década possa se tornar um “tempo de ‘Jubileu’ para a Terra”, alinhando-se com o prazo que os cientistas dizem ser crucial para reduzir quase pela metade as emissões globais de gases do efeito estufa e colocar o planeta dentro do limite do aumento da temperatura média em 1,5ºC.

    Como as pessoas podem observar o Tempo da Criação?

    Os exemplos são incontáveis.
    Ritos especiais de oração e liturgias que refletem sobre a sacralidade da criação e gestos concretos de defesa ou de restauração do meio ambiente.

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