Artigo de Fabio Antunes do Nascimento para IHU 27 Janeiro 2021
O presente trabalho procura reunir elementos acentuados no Magistério do Papa Francisco, em suas intervenções em relação a economia, a política, ao trabalho e aos seres humanos. Consideramos relevante demonstrar como Papa Francisco tem se destacado como líder mundial na perspectiva propositiva, pois em várias áreas científicas temos expoentes que elaboram diagnósticos da realidade econômica mundial, assim como que caracterizam um quadro sempre mais agudo das desigualdades, da pobreza e da exclusão. Contudo, poucos sinalizam propostas alternativas para o modelo vigente, como, por exemplo, as propostas do Papa Francisco que superam o âmbito da Igreja e inspiram toda a humanidade.
Ao relacionar alguns elementos da economia mundial, a realidade do trabalho e a maneira como a política tem se orientado para o capital, caracterizamos a emergência de repensar a economia, trazendo o ser humano para o centro, como sugere Francisco: dar uma alma para a economia. De modo que esse movimento consistiria em novas relações, novas preocupações e novos valores, nos quais a vida das pessoas e a do planeta são prioridades.
O presente trabalho quer ajudar a difundir os impulsos inovadores de Francisco, que sonha com a fraternidade universal, com o protagonismo dos jovens, com uma Igreja pobre com e para os pobres e com uma economia a serviço da vida. Daí a iniciativa do encontro em Assis com os jovens do mundo todo:
É por isso que desejo encontrar-me convosco em Assis: para promover juntos, através de um “pacto” comum, um processo de mudança global que veja em comunhão de intenções não apenas quantos têm o dom da fé, mas todos os homens de boa vontade, para além das diferenças de credo e de nacionalidade, unidos por um ideal de fraternidade atento, acima de tudo, aos pobres e aos excluídos. Convido cada um de vós a ser protagonista deste pacto, assumindo um compromisso individual e coletivo para cultivarmos juntos o sinal de um novo humanismo que corresponda às expectativas do homem e ao desígnio de Deus (Francisco, 2020).
O lugar do ser humano na economia e no mundo do trabalho
As mazelas dos sistemas econômicos vigentes no mundo são temas de intermináveis reflexões, bem como, suas origens, seus desenvolvimentos e, de forma especial, suas consequências. Não é a intencionalidade do presente trabalho assomar-se a essa reflexão, já desenvolvida de forma aprofundada e científica por vários teóricos. A intenção é contribuir na difusão do sonho do Papa Francisco de uma nova economia mundial. Trata-se de um sonho, porque mais do que uma teoria, um projeto ou um conjunto de conceitos pré-concebidos, a “Economia de Francisco” [1]é um chamado a toda a humanidade.
A iniciativa do Papa Francisco não tem um ponto de chegada, mas tem um caminho escolhido: o caminho da inclusão de todos, dos valores da vida e do meio ambiente. Por isso, o convite do Papa para repensar a economia reflete diretamente nas relações de trabalho, ao passo que é, justamente, nesse contexto que devem ser tratadas, bem como assumidas as novidades que têm transformado positivamente o mundo do trabalho. Nesse intuito a abordagem é teológica pastoral do serviço da Igreja no mundo, como serva, luz dos povos.
Os números sobre o modelo econômico mundial mostram que o abismo entre ricos e pobres é cada vez maior. No Brasil, por exemplo, 06 famílias concentram mais riqueza que a metade da população do país, enquanto que, no mundo 26 famílias concentram mais riquezas que a metade da população mundial mais pobre. Estudiosos como Thomas Piketty [2], demonstram em suas publicações como as grandes fortunas se mantiveram nas mãos de algumas famílias nos últimos séculos e como os que detêm o capital ficam cada vez mais ricos, especialmente, nesse período da pandemia [3]. O desenvolvimento industrial, tecnológico e científico alardeados como motores da superação da desigualdade econômica não cumpriram suas promessas:
Há regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim “nascem novas pobrezas”. Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incômodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto (FRANCISCO 2020, 21).
A era digital tem criado formas de trabalho: umas sofisticadas e rentáveis, que lidam essencialmente com a informação, enquanto que outras são rudimentares e desprovidas de proteção estatal e institucional, por exemplo, os trabalhadores das plataformas de serviços, que conectam consumidores ávidos de produtos, quase que instantâneos, a milhares de trabalhadores que criam uma rede de logística complexa e exigente, desprovidos de proteção legal, com baixíssima remuneração, além de nem considerados trabalhadores formais.
Segundo Otávio Augusto Cunha, há ainda, um movimento apresentado como empreendedorismo, propagandeado como caminho de oportunidades, que é, na verdade, outro artifício fabricado pelo sistema para potencializar a equação – custo x produção –, diminuindo sempre da parcela de ganho do trabalhador e obtendo lucros maiores. Esse movimento tem colocado mais e mais trabalhadores na informalidade, com o utópico horizonte da riqueza. Porém, estruturalmente, essas ideias vão moldando um modelo de sociedade e de relações que exaltam a competitividade, e a produção, ao mesmo tempo em que alienam no tocante a realidade social e a outras dimensões da vida, como descreve Cunha:
A exaltação da lógica do empreendedorismo na sociedade atual busca afirmar que, ao exercer essa função, o sujeito está acima das relações das classes sociais. É um discurso perigoso, que se apoia no caráter funcional que esse tipo de exaltação tem para a manutenção da sociedade capitalista e de suas contradições estruturais e irreparáveis. Para os adeptos da solução através do “empreendedorismo”, não importa que se trate de um trabalhador assalariado ou de um capitalista, todos têm que ser educados para exercer a função empreendedora. Para isso, basta ter “força de vontade”, “determinação”, “flexibilidade”, “resiliência”, “proatividade”, “persistência”, “iniciativa” etc. Pois é o sujeito em sua singularidade o único responsável pelo seu sucesso ou o seu fracasso econômico (CUNHA, 2020).
A propaganda do sistema que gera esses elementos – subempregos e empreendedores– está colapsando, na perspectiva de trabalho e renda para todas as pessoas. A iniciativa da Economia de Francisco, mais do que propor modelos ou programas de renda, apresenta novos princípios. Com efeito, um princípio fundamental é de todos terem acesso a uma renda universal, não como a recompensa por uma tarefa executada, mas por se tratar de um direito básico. Assim, a perspectiva de uma nova economia daria ao trabalho uma nova razão de existir, deixando de ser uma simples engrenagem de manutenção do sistema, para assumir o caráter de direito que a sociedade possibilitaria a todas as pessoas, havendo ou não a remuneração como uma finalidade.
O trabalho é uma engrenagem do sistema econômico, um universo complexo que se move num sentido concêntrico, a semelhança de um buraco negro, que engole tudo ao seu redor. Esse movimento sustenta a pirâmide do capitalismo, no qual ricos tornam-se cada vez mais ricos, sustentados por uma grande base de trabalhadores. É verdade, que a modernidade e as tecnologias trouxeram a impressão de uma certa melhoria nas condições de trabalho, como também, alguns casos, apresentados como símbolos das possibilidades de prosperidade oferecidas no sistema, em que alguns poucos felizardos fazem fortunas, como esportistas, artistas e inventores de APPs.
Essa revolução anuncia efeitos devastadores sobre o mundo do trabalho, particularmente sobre a estrutura ocupacional. Por ora, percebem-se duas posições em debate: Aqueles que acreditam num final feliz (trabalhadores deslocados pela tecnologia encontrarão novos empregos desencadeados pelas novas tecnologias) e aqueles que veem um processo crescente de destruição de empregos (SANSON, 2020).
A exploração do trabalho não é uma invenção do sistema capitalista. Na história de várias culturas existiram formas de exploração e, até mesmo, de escravidão do trabalho humano. O que acontece no sistema capitalista é que, justamente, a exploração do trabalho como gerador de riqueza é um princípio estruturante do sistema. Especialmente, em nosso tempo se tem percebido que:
Estão aqui também os autores nacionais como o próprio Ricardo Antunes, Marcio Pochmann, Márcia Paula Leite, Dari Krein, Giovanni Alves, José Ricardo Ramalho, Marco Aurélio Santana, Roberto Véras, entre outros. Todos eles acentuam a ofensiva do capital frente ao trabalho, manifesta no trinômio flexilibilização, terceirização e precarização chancelada pelo Estado subordinado aos interesses do capital (SANSON, 2017).
Do modo que se dão as relações de trabalho no mundo vemos uma política orientada para lógica econômica, na qual a geração do lucro para os que detêm o capital é a prioridade. Por sua vez, o Papa Francisco tem exortado a humanidade à superação do paradigma tecnocrático e capitalista:
Gostaria de insistir que “a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia”. Embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis e a ineficiência, “não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos da crise atual”. Pelo contrário, “precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise”. Penso numa “política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas”. Não se pode pedir isto à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do Estado (FRANCISCO, 2020, 177).
Nessa perspectiva, Papa Francisco convoca o mundo a um pacto por uma nova economia, isto é, uma economia orientada pela política da promoção e do cuidado da vida em todo o planeta. Na concepção do Papa “é necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também, e ao mesmo tempo, uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres” (FRANCISCO, 2020, 165). A nova economia é uma resposta de fé que encarna o Evangelho nas estruturas sociais do mundo e vê no rosto dos pobres o rosto de Cristo.
Destarte, no mundo do trabalho vive-se um desencanto porque as promessas da modernidade de que os desenvolvimentos tecnológicos e econômicos trariam o bem estar social para todas as pessoas não se comprovaram. A modernidade sinalizava trabalhos que fossem mais leves e melhores remunerados. Todavia, o que se vive e/ou se assiste na prática é um abismo crescente nas condições de trabalho no mundo. Por um lado, enquanto cresce a realidade do trabalho em tarefas cada vez mais especializadas e técnicas com remunerações exorbitantes, por outro aumenta a precarização dos trabalhos mais elementares, marginalizados e excluídos do sistema, da técnica e da informação, ou seja, elementos básicos da chamada quarta revolução industrial, como aponta a Organização Internacional do Trabalho (OIT):
No final do século XVIII a primeira revolução industrial marcou a transição da produção manual para a mecanizada com o uso da energia a vapor. A segunda, em meados do século XIX, trouxe a eletricidade e com ela, a manufatura em massa. A terceira ocorreu em meados do século XX com a chegada da eletrônica e da tecnologia da informação. Atualmente a chamada “quarta revolução industrial” é marcada pela automação, robotização e produção das fábricas com grande independência do trabalho humano combinadas com a utilização de serviços através de aplicativos, softwares, plataformas digitais e armazenamentos de dados em massa (OIT, ?, 19).
O avanço tecnológico e as riquezas produzidas na sociedade não significam necessariamente a superação das desigualdades, em especial ao que se refere a trabalho e renda. “O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os progressos tecnológicos, procurava reduzir os “custos humanos” (FRANCISCO,2020, 33). A superação do paradigma tecnocrático e do capital exige que a vida de todas as pessoas e de todo o planeta sejam a prioridade para qual se ordena a política e a economia. Construir uma nova ordem econômica é, antes de tudo, garantir a maior riqueza possível: que todos “tenham vida e, vida em abundância” (cf. Jo 10,10).
A mercantilização do trabalho gera o que o marxismo denomina alienação, que não deve ser compreendida na dimensão social e política, mas, em última instância, como alienação humana. Não obstante, no modelo econômico atual a renda é compreendida como uma recompensa pela produção que a pessoa é capaz de gerar, de modo que, o conceito conhecido como o “sonho americano” ilustra a ideia do sistema capitalista no qual todos têm a mesma oportunidade de prosperar, de construir patrimônio e de enriquecer. Mas, na realidade, a simples competição não garante a justiça e a igualdade, pois a competição pelas melhores recompensas nem sempre parte das mesmas condições para todas as pessoas. São muitas as condicionantes que determinam o sucesso econômico de uma seleta quantidade de pessoas e a grande maioria da população que luta pela simples subsistência.
Nesse sentido, esse modelo, além de valorar de forma muito seletiva o trabalho de uns poucos e depreciar o trabalho da grande maioria dos trabalhadores, é insuficiente para oferecer trabalho para todas as pessoas, já que um dos pressupostos do sistema é a competitividade pelos postos de trabalho e a massa sobrante de trabalhadores, que alimenta a competitividade, e que, sobretudo, assegura a oferta que barateia a mão de obra. Somada a chamada revolução 4.0 o horizonte do trabalho tende a agravar sensivelmente a precarização, e, por conseguinte, os trabalhadores conseguirão cada vez menos ingressar no modelo de trabalho formal. Logo, menos pessoas poderão contar com uma remuneração estável.
A proposta de Francisco
O Papa Francisco nesses sete anos de pontificado conquistou um posto de liderança mundial. Num contexto de nações que se aproximaram de regimes de extrema direita, nacionalismos, preconceitos, migrações, conflitos violentos e crises sanitárias e econômicas o Papa tem se destacado como o líder capaz de dar voz aos sensatos. Assim, bem mais que reformas eclesiais, Francisco tem protagonizado iniciativas de reformas culturais e políticas em âmbito global, ao passo que e é nesse contexto que se insere o evento “Economia de Francisco” cuja proposta é criar um pacto global, em vista de uma nova economia, como conclamou o Papa:
Escrevo-vos a fim de vos convidar para uma iniciativa que desejei muito: um evento que me permita encontrar-me com quantos estão a formar-se e começam a estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta. Um acontecimento que nos ajude a estar unidos, a conhecer-nos uns aos outros, e que nos leve a estabelecer um “pacto” para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã (FRANCISCO, 2020).
Dar uma alma para a economia é o desejo do Papa ao provocar os jovens do mundo todo a construir um pacto por uma nova economia. Segundo Francisco “é preciso corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito pelo meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, e equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das gerações vindouras” (FRANCISCO, 2020). A consciência planetária de Francisco reconhece que o modelo da economia mundial agride esses valores fundamentais. Em sua concepção a economia deve estar a serviço da política que promove a vida e o planeta.
A Igreja, ao longo da história, participou de momentos decisivos da humanidade, tais como, as grandes revoluções e o desenvolvimento cultural, intelectual e político, mesmo que, algumas vezes, essa participação tenha sido de oposição e contestação. Destarte, o fato é que o pensamento social da Igreja alcança repercussão na sociedade. E, é nesse sentido, que a proposta do Papa Francisco para construir um novo modelo econômico sugere uma alternativa ao sistema atual. Na perspectiva da sinodalidade, que Francisco busca para a Igreja, ele propõe o debate sobre a economia sem apresentar, ele mesmo, uma proposta pronta, ao contrário, expõe princípios sobre os quais tal economia deve ser construída, especialmente, pelos jovens.
Assim sendo, a convocação do Papa Francisco aos jovens do mundo inteiro, em Assis, Itália, começa a ganhar a atenção, não só da Igreja e nem só dos jovens, mas também de grandes líderes, países, empresas e religiões. Tal iniciativa do Papa trata-se de uma porta que se abre. Mais que apresentar respostas, a iniciativa do Papa parece ter a força de catalisar a insatisfação de muitos seguimentos da sociedade, que não acreditam que simples reparos ou reformas, no modelo econômico atual, sejam suficientes para superar a crescente desigualdade entre ricos e pobres. De Assis, o Papa Francisco sonha em impulsionar uma economia, baseada na sobriedade, na integração com o meio ambiente, que promova os pobres e que seja geradora de vida a todas as pessoas e ao planeta.
Francisco não propõe um novo modelo econômico, mas propõe que um novo modelo econômico seja construído pelos jovens, com o objetivo de promover a vida e a casa comum, ao invés do lucro e do capital. Já existem várias iniciativas de grupos no mundo, associações, cooperativas e pessoas que apresentam novas formas de trabalho, voltadas à realização da vida, à produção orgânica, ao extrativismo, à produção sustentável e às novas formas de consumo, de produção e de remuneração. Compartilhar essas experiências, conectar ações, promover trocas, priorizar a partilha e a diversidade sinalizam, sem dúvidas, uma alternativa para o capitalismo globalizante, que padroniza, massifica e produz o círculo vicioso do consumo.
Já na encíclica “Laudato Si” o Papa aponta a necessidade de uma nova maneira de se relacionar com a criação que, consequentemente, também ser refere às relações de trabalho. A perspectiva do Papa é a do valor da vida e da criação sobre a do capital, “a realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade econômica, “se continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos” (Francisco, 2015, 127). O trabalho é concebido como participação humanas nos projetos de Deus da criação e de salvação.
O modelo econômico capitalista tem gerado inúmeras consequências destrutivas para a vida humana e a todas as formas de vida do planeta. A revolução 4.0 [4] diminui as possibilidades de empregos formais, os detentores do capital militam junto aos governos dos países pela flexibilização e extinção dos direitos dos trabalhadores a pretextos de gerar mais empregos, milhares de trabalhadores são empurrados para a informalidade e a propaganda oficial do sistema enaltece o empreendedorismo e a criatividade competitiva como caminhos para prosperidade, gerando precarização e novas formas de escravidão no trabalho.
Em diversas partes do mundo surgem iniciativas reivindicando uma nova orientação para o trabalho e para a economia como, por exemplo, a mobilização global que questiona o modelo das plataformas digitais dos aplicativos de serviços. Como a ação de “milhares de trabalhadores organizados nessas associações vão sair às ruas para realizar manifestações, reuniões e paralisações de trabalho exigindo o fim da exploração da economia de plataforma e que os direitos básicos dos trabalhadores sejam protegidos” (El SALTO, 2020).
O Papa aponta para um estilo de vida mais sóbrio, para superar a cultura do consumo e do descartável. Francisco, de quem se espera uma reforma da Cúria Romana e no interior da Igreja, tem se destacado com líder mundial capaz de apresentar pautas importantes para a humanidade, não apenas para a Igreja. Denunciando, dialogando e propondo caminhos o Papa tem tocado em temas sensíveis a todos os habitantes do planeta: sobre os refugiados, as vítimas dos conflitos, os pobres, a fome entre outros. Sempre indo ao encontro de todos. Além disso, tem dialogado com líderes políticos e religiosos. Ele tem proposto, especialmente, pelo exemplo, uma fraternidade mundial, um Pacto Global pela Educação, o Dia Mundial do Pobre, o Sínodo da Amazônia e a iniciativa da Economia de Francisco e Clara.
Ao propor o encontro de Assis, Francisco sugere a busca de uma alternativa, jovial e criativa, para superar o que ele tem qualificado de economia sem alma. O sistema econômico predominante no mundo tem fragilizado cada vez mais a condição dos trabalhadores, com empregos com remuneração cada vez menor, a extinção de postos de trabalho e o empobrecimento dos trabalhadores em detrimentos dos detentores do capital. O Papa defende que a humanidade precisa mudar a finalidade da economia, colocando o ser humano e o planeta no centro da economia. Francisco acredita que isso pode dar alma a economia.
O vida e o trabalho sempre estiveram no centro das preocupações da Igreja, daí a preocupação de Francisco com os rumos da economia mundial que instrumentaliza e exclui as pessoas em detrimento aos lucros e ao capital:
Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a ação do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho “tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do ‘capital social’, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência civil”. Em suma, “os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções econômicas acarretam sempre também custos humanos”. Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade (FRANCISCO, 2015, 128).
O Papa Francisco sugere que a humanidade assuma o compromisso de uma renda universal. Não é uma ideia originalmente do papa, mas em muitos lugares do mundo alguns teóricos já propuseram projetos dessa conotação. No Brasil há décadas o líder político e social, Eduardo Suplicy, milita defendendo o projeto por ele intitulado renda mínima. Vários países já esboçaram projetos de transferência de renda como o bolsa família no Brasil, porém é a Finlândia o primeiro país a adotar um compromisso de uma renda universal para todos os seus cidadãos.
Nesse sentido, o Papa tem procurado sensibilizar os líderes políticos e econômicos mundiais da necessidade de um programa de renda universal, para que todas as pessoas tenham acesso aos serviços essenciais, não como uma recompensa, mas como um direito. Esse fundamento não se baseia na recompensa do trabalho de alguém para a geração de riquezas, mas de que todos dispomos das riquezas naturais, dom de Deus, e temos o mesmo direito de usufruir desse dom. É uma profunda inversão do conceito de remuneração reconhecendo que a intervenção do homem na natureza pelo trabalho gera riquezas, mas existe uma riqueza natural, suficiente e patrimônio universal, que todas as pessoas do planeta deveriam ter o direito de usufruir.
Considerações Finais
Como no sínodo da Amazônia, em que o Papa Francisco propõe sonhos para a Casa Comum, o movimento por uma nova economia é um sonho que vai se materializando à medida em que mais pessoas vão assumindo os valores da vida e do Evangelho. As mudanças começam por iniciativas e, sem dúvidas, o que faz Francisco é um passo que congrega várias iniciativas alternativas pelo mundo e impulsionadora de muitas outras.
Alguns temas são basilares para a alma da nova economia sonhada por Francisco, a saber: centralidade da vida e da casa comum; a inclusão de todos no mundo do trabalho; renda universal. Em todo caso, quando afirma que a economia está em função da política, Francisco aponta que a política é arte do cuidado da vida e do planeta. Portanto, uma autêntica economia é aquela que está a serviço dessas prioridades.
Ademais, a inclusão de todos é outra perspectiva elementar. Na lógica capitalista só há lugar para os melhores, aos mais produtivos e aos mais lucrativos. Entretanto, esse paradigma precisa ser superado por um modelo que inclua a todos, ou seja, no qual o trabalho não seja, exclusivamente, uma engrenagem do sistema, mas um direito de todas as pessoas. Somos chamados a compreender esse direito ao trabalho como algo construtivo do ser humano, assim como, também da espiritualidade cristã:
Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos (FRANCISCO, 2015, 125).
Outra ideia clara no pensamento do Papa Francisco é o direito de uma renda universal, no sentido oposto da lógica da economia mundial, em que o salário é uma recompensa pela produtividade. Por fim, uma economia com alma deve fazer com que todas as conquistas da economia e das ciências possam ser acessíveis a todas as pessoas: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos” (FRANCISCO, 2020).
Notas
[1] Economia de Francisco: O Papa Francisco lançou esse convite aos jovens empreendedores do mundo todo para pensarem modelos alternativos de economia. O encontro foi inicialmente marcado para março de 2020, mas no contexto da pandemia, foi adiado para novembro do mesmo ano. A carta convocatória pode ser acessada, em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190501_giovani-imprenditori.html >. Acesso em 01 de maio 2019.
[2] Thomas Piketty é um economista francês que se tornou figura de destaque internacional com seu livro “O Capital no século XXI” (2013). Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico. Segundo Piketty, tal tendência é uma ameaça à democracia e deve ser combatida através da taxação de fortunas. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Piketty>. Acesso em 13 de nov. 2020.
[3] Carta Capital: “A desigualdade já estava aumentando e a Covid acelerou um processo que já vinha acontecendo no mundo todo. Os bilionários ficaram mais ricos ainda e, do outro lado, temos uma parcela da população que estava relativamente sob controle – embora sempre estivesse sob o risco de exclusão social – e agora, efetivamente, caiu”, comenta. “São pessoas que entraram em uma situação de altíssima vulnerabilidade”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-ricos-ficaram-mais-ricos-e-pobreza-explodiu-na-pandemia/ . Acesso em 13 de nov. 2020.
[4] Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial é uma expressão que engloba algumas tecnologias para automação e troca de dados e utiliza conceitos de Sistemas ciber-físicos, Internet das Coisas e Computação em Nuvem. A Indústria 4.0 facilita a visão e execução de “Fábricas Inteligentes” com as suas estruturas modulares, os sistemas ciber-físicos monitoram os processos físicos, criam uma cópia virtual do mundo físico e tomam decisões descentralizadas. Com a internet das coisas, os sistemas ciber-físicos comunicam e cooperam entre si e com os humanos em tempo real, e através da computação em nuvem, ambos os serviços internos e intraorganizacionais são oferecidos e utilizados pelos participantes da cadeia de valor. Estas novas tecnologias trazem inúmeras oportunidades para a agregação de valor aos clientes e aumento de produtividade de processos, mas sem o enfoque adequado podem desperdiçar grandes investimentos, com poucos resultados. Em: Wikipédia enciclopédia livrept <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstria_4.0#:~:text=Ind%C3%BAstria%204.0%20ou%20Quarta%20Revolu%C3%A7%C3%A3o,Coisas%20e%20Computa%C3%A7%C3%A3o%20em%20Nuvem.> Acesso em 1 dez. 2020.
Referências
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CUNHA, Otávio Augusto. Sujeito empreendedor, alienado e servil. Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/603564-sujeito-empreendedor-alienado-e-servil>. Acesso 27 out. 2020.
FRANCISCO, Papa. CARTA DO PAPA FRANCISCO AOS MOVIMENTOS POPULARES. Disponível em:< http://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2020/documents/papa-francesco_20200412_lettera-movimentipopolari.html>. Acesso 19 nov. 2020.
FRANCISCO, Papa. CARTA DO PAPA FRANCISCO PARA O EVENTO “ECONOMY OF FRANCESCO”. Disponível em:< http://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190501_giovani-imprenditori.html>. Acesso 19 nov. 2020.
FRANCISCO, Papa. FRATELLI TUTTI: CARTA ENCÍCLICA SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html>. Acesso 26 out. 2020.
FRANCISCO, Papa. LAUDATO SI, SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html >. Acesso 19 nov. 2020.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Futuro do trabalho no Brasil. Perspectivas e diálogos tripartites. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/publicacoes/WCMS_626908/lang–pt/index.htm. Acesso 14 out. 2020.
RÊGO BARRETO, Helena Martins do. Uma política de renda justa é necessária para enfrentar os efeitos da reestruturação produtiva. Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/603301-uma-politica-de-renda-justa-e-necessaria-para-enfrentar-os-efeitos-da-reestruturacao-produtiva-entrevista-especial-com-helena-martins>. Acesso 26 out. 2020.
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Notas
[1] Arruda, Marcos, 2009, “Educação para uma Economia do Amor”, Editora Ideias e Letras, São Paulo: 164;
[2]
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589076-economia-de-francisco-assis-26-28-de-marco-de-2020-mensagem-do-papa-francisco-para-o-evento
[3] Arruda, Marcos, 2019, “Vivendo o Futuro no Presente: Notas de Viagem ao Butão, Laos e Vietnã”, http://pacs.org.br/?p=6842 (e-livro).
[4] Razeto, Luis M., 2018 – La Crisis de la Civilización Moderna y la Creación de una Nueva Civilización, monografia, Santiago, Chile.
[5] Fernando Huanacuni, 2015, “Vivir Bien/Buen Vivir – Filosofía, Políticas, Estrategias y Experiencias de los Pueblos Ancestrales”, CAOI, Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas. La Paz, Bolivia.
[6] Euclides Mance, 2017, “Buen Vivir y Economía Solidaria”, monografia, IFIL.
Fabio Antunes do Nascimento é professor da Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, graduado em Teologia pelo Instituto Teológico João Paulo II, possui Mestrado em Teologia Pastoral pelo CEBITEPAL – Bogotá, Colombia e é doutorando em Teologia pelo CEBITEPAL – Bogotá, Colombia.