Brasil 2021: Precisa-se de exorcistas!
Por Magali Cunha, membro da Igreja Metodista, para Carta Capital – 10 fev 2021.
Dias atrás, participei de um curso com convidados para uma troca de experiências e aprendizados, sobre o livro de Marcos, da Bíblia cristã. Foi selecionado como texto motivador a narrativa em que Jesus chega à próspera cidade de Gérasa, sob dominação do Império Romano (Marcos 5). Lá, Jesus se encontra com um jovem “possesso de um espírito imundo”, que, por conta desta degradação, andava noite e dia entre túmulos de um cemitério e em montes, depois de ter sido, sem sucesso, acorrentado. O rapaz tinha o corpo muito ferido pois se automutilava com pedras.
A narrativa do episódio é incrível! Quando Jesus ordena que o “espírito imundo” saia do corpo do jovem, ele pergunta o nome dele e a resposta foi “Legião”, denominação de uma das estruturas militares do Império Romano.
Legião aceita a ordem de Jesus e pede que seja enviado aos porcos que pastavam ali perto. Porcos eram animais sagrados para os romanos e um dos símbolos do poder deste povo, tendo sido, precisamente, o símbolo da décima legião romana, a que controlava a região palestina a partir da Síria.
Ao receber o “espírito imundo” a manada se joga no mar. Na cultura judaica da época, o mar era símbolo do mal, lugar das forças ocultas, sinal de caos, justamente o espaço de onde chegavam os invasores romanos. O rapaz é libertado e moradores da cidade, ao invés de se alegrarem com ele e com o feito, não gostam do ocorrido e pedem que Jesus vá embora dali.
Quem lê este texto pode imaginar o quanto de reflexão rendeu à roda de conversa (quem quiser pode assistir à aula no Youtube https://www.youtube.com/playlist?list=PL60UuXuf5PlFdE_MTwfnsr1_wIFGkoPd8)!
Eu contribuí com minhas experiências e impressões. Expressei o incômodo sobre a cidade ter preferido a degradação do jovem, “um endemoniado útil”, bode expiatório. Vejo como isto ocorre hoje com o sistema político-econômico, sustentado por religiões, que, para se manter, produz e alimenta desgraça e sofrimento dos seus integrantes.
Também me instruí com a aula. Aprendi com o facilitador do curso, monge Marcelo Barros, que para as culturas antigas, o mal vem de uma entidade ou espírito. Várias religiões doutrinavam sobre um Deus do bem e um deus do mal. Profetas da Bíblia faziam uso da noção de espírito mau, uma energia negativa. No original grego do livro de Marcos, os textos falam de “pessoa com sopro mau” e não tanto de “espírito imundo”, como acabou sendo traduzido. Ao registrar o nome Legião e a opção pelos porcos e pelo mar, o texto dá o recado bem forte sobre quem soprava o mal. Por isso era importante perguntar o nome para se saber quem causava a degradação das pessoas, tirando delas sua consciência, sua dignidade e sua vida.
Saí do curso pensando no Brasil de hoje e como nosso país está possesso do mal. Muita gente soprando o mal na política, na economia, na cultura, no meio ambiente e, o que soa pior, na religião.
Assistimos, por exemplo, nestes dias, um vídeo produzido por um centro católico do Rio de Janeiro, com cenas maldosamente editadas de outros vídeos, com recortes fora do contexto original. Isto para que o advogado (!!) da organização acusasse a “Santa Igreja Católica” de se juntar a líderes da “demoníaca revolução protestante de 1517 que colocou o continente europeu a caminho do inferno”. Ele se refere à Campanha da Fraternidade, que será iniciada no próximo 17 de fevereiro, que terá a quarta edição em versão ecumênica (CFE 2021), uma parceria da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), com o tema “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor” e o lema “Cristo é a nossa paz, do que era dividido, fez uma unidade”. https://diocese-sjc.org.br/wp-content/uploads/2021/01/Livreto-CEBs-CF-2021.pdf
No vídeo, com uso indevido de imagens de outras organizações, o advogado sopra palavras de ódio contra a CFE 2021 e seus coordenadores (inclusive católicos), especialmente contra a pastora luterana Romi Bencke, secretária-geral do CONIC (que é enfatizada pelo advogado como “pastora entre aspas”), a quem ele alega estar, com a campanha, inserindo na “Santa Igreja Católica” pautas da “extrema esquerda revolucionária”. https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/solidariedade-a-pastora-romi-bencke-e-ao-conic/
O homem, que não se identifica no vídeo, lista os “termos revolucionários” que considera ameaçadores no texto-base da CFE 2021: o enfrentamento por todas as igrejas do feminicídio, do racismo, da homofobia, da intolerância religiosa, da violência, especialmente a policial, do etnocídio indígena; o cuidado com o meio ambiente e a superação do aquecimento global; as medidas restritivas de prevenção à covid-19; e (pasme-se!) práticas de humanização das relações humanas pelo amor.
O leigo católico chama a campanha de criminosa, de tragédia para a “Santa Igreja Católica” por conta de tratar estes temas listados acima (!!) e convoca a legião de seguidores do centro a que está ligado a boicotarem a campanha. De fato, há quem crie demônios para se alimentar deles, como na cidade de Gérasa.
O vídeo maldoso acabou suscitando uma rede de apoio à CFE 2021 e uma série de pronunciamentos oficiais e ações de suporte e solidariedade ao CONIC e à pastora Romi Bencke. De fato, seguindo os passos de Jesus, há quem esteja sempre pronto a atuar no exorcismo de quem promove um “sopro do mal”.
Lamentavelmente, este episódio, que envolve segmentos cristãos no Brasil, é um entre tantos. Há pessoas que conhecemos atacadas e ameaçadas por gente do próprio Estado por assumirem publicamente críticas ao sistema de degradação e de morte. O noticiário torna público o conluio entre juiz e procuradores que deveriam agir pela justiça, mas acabam promovendo linchamentos públicos de líderes políticos, seus bodes expiatórios, para tirarem vantagens e manterem o sistema injusto e indigno. Quem lê este texto deve estar lembrando de várias outras situações.
Sim, precisamos de exorcistas deste sopro do mal que nos circunda e atinge! Precisamos também das redes de apoio e solidariedade para criar ações humanizadoras que promovam pessoas libertas, ou seja, conscientes, abertas, críticas diante das ideologias da morte.