Iser Assessoria

A ESTRATÉGIA CONSERVADORA PARA O CONCLAVE

Imagem gerada por Inteligência Artificial

Os extremistas católicos nunca foram maioria na Igreja. Décadas atrás, era um nicho de radicais que orbitavam em torno de si mesmos. Viúvas de um passado que nunca viveram, em seus delírios de revisionismo histórico, desejavam que o catolicismo retornasse a ser aquela típica instituição total da Idade Média.

Sonhavam com aquela Igreja que integrava a elite política, que dominava todos os aspectos da vida social, ditando o comportamento individual e vigiando moralmente todas as pessoas. Queriam voltar ao passado tridentino de um catolicismo que rezava em latim, com mentalidade religiosa triunfante, e uma liturgia que refletisse o caráter majestático de um cristianismo elitista e reacionário, descolado da vida concreta das pessoas.

Com a chegada da internet e das redes digitais, passaram a ter mais visibilidade. Com grande volume de recursos financeiros, sua mensagem fundamentalista ecoou e, desde o começo do século XXI, realizaram sua revolução cultural às avessas, usando os meios de comunicação.

Esse caldo de cultura conservador também serviu de cortina de fumaça, mascarando modos de vida e posturas em nada identificadas com a mensagem dos Evangelhos. Os abusos sexuais, a vida dupla de ministros ordenados, o clericalismo, o fausto da vida de membros do alto clero católico e a aproximação com segmentos políticos ligados ao extremismo e a discursos de ódio são alguns dos esqueletos no armário deste catolicismo intolerante.

Por quase 35 anos, este modo de ser católico e uma configuração eclesial se tornou hegemônico. Não em termos numéricos. Até porque um dos efeitos do clericalismo característico desse período foi a infantilização do laicato. Desse modo, o fundamentalismo avançou no interior do catolicismo, mas no campo das mentalidades e da vida cotidiana das comunidades católicas. São poucos, mas com muitos recursos financeiros e capacidade técnica, sua agenda ganhou presença pública e força.

Todavia, em 2013 a Igreja havia chegado a um impasse, emparedada por escândalos, constrangida pelos desvios de não poucos membros do clero, com as finanças em frangalhos. O inverno eclesial tinha exaurido o frescor do Concílio Vaticano II, dissolvido sua credibilidade pública  e diluído o protagonismo internacional da pessoa do papa. Havia sério risco do catolicismo perder relevância no cenário geopolítico global.

Foi nesse contexto que se deu a renúncia de Bento XVI. Em gesto de grande humildade, o pontífice alemão sai de cena e sua atitude significou a falência daquele modelo de Igreja. O inverno eclesial também havia se esgotado. Vindo do fim do mundo na perspectiva dos centros de poder global, Bergoglio assume a sé de Pedro. E não se omite diante da crise em que se encontrava o catolicismo e o papado.

Em uma pregação de final de ano, lista 15 doenças da Cúria Romana e propõe reformas na burocracia vaticana. Deseja uma Igreja pobre para os pobres, em saída, rumo às periferias existenciais. Muda protocolos para punir abusadores e predadores sexuais na Igreja.

Rompe com poderes encastelados intramuros, sofre com uma oposição agressiva, desrespeitosa a ponto de acusá-lo de heresia e de comunismo. Recuperando o espírito do Concílio, propõe uma Igreja Sinodal, participativa, com abertura às mulheres e aos jovens.

Com o Papa Bergoglio, a Igreja ampliou sua presença na África e na Ásia e devolveu a credibilidade da instituição católica. Universalizou o Colégio Cardinalício, aumentou o número de cardeais eleitores para o conclave que o sucederá e reduziu a influência europeia na sua sucessão.

Extramuros, Francisco escreveu uma encíclica sobre questões ambientais com muita repercussão, elogiada por estudiosos da área. Apoiou movimentos sociais, defendeu terra, teto e trabalho para o povo. Corajosamente, afirmou que o sistema econômico mata.

O primeiro papa do Sul Global se tornou a grande liderança mundial de nosso tempo. Restaurou a credibilidade da Igreja, devolvendo ao papado, ressignificado, sua autoridade moral e popularidade. Bergoglio entrou para a história como um pontífice humilde, próximo do povo, pastoral. Porém, ele também foi o grande estadista do planeta neste primeiro quarto de século.

Com a Páscoa de Francisco, a Igreja se vê na iminência de um novo conclave. A escolha de um novo Pontífice sempre é um momento histórico. Neste momento específico, a importância da escolha do Bispo de Roma impacta para além do catolicismo. Hoje, a escolha do sucessor de Pedro virou questão geopolítica.

Os debates entre os cardeais estão inseridos nesse contexto. Embora tenha criado a maioria dos eleitores no conclave de sua sucessão, não necessariamente escolheu homens alinhados com sua visão e suas reformas. Os conservadores são minoria, mas dispõem de apoio midiático, recursos financeiros e visibilidade na redes a ponto de fazer muito barulho. E formar opiniões.

Segmentos contrários as reformas de Francisco há tempos se articulam na expectativa de um novo conclave. Em Fevereiro, se reuniram em um complexo hoteleiro de luxo, em Sintra, Portugal. Ao menos um bispo brasileiro esteve nesse encontro. Organizado por entidades ligadas à extrema-direita planetária, o evento contou com a assessoria do mago das eleições do campo conservador, responsável pela eleição de Trump em 2016.

Na véspera se sua morte, Francisco não teve como se livrar da incômoda visita do vice-presidente americano, em pleno domingo de Páscoa. A diplomacia do Vaticano teve a presença de espírito de não permitir uma audiência privada com o pontífice convalescente, dando apenas 10 minutos de visita pública com a autoridade norte-americana.

Não foi apenas uma audiência de um católico devoto para desejar feliz Páscoa ao seu líder religioso. Fora da agenda pública de J. D Vance, com quais segmentos católicos da Itália e da Cúria Romana o preposto de Trump se reuniu? Com qual objetivo? Estava o vice-presidente estadunidense em Roma a fim de preparar o terreno para a sucessão de Bergoglio e a partida do Papa precipitou as coisas?

Ao longo do funeral de Francisco, dos novendiales (os nove dias de luto oficial pela morte do Pontífice Romano) e das Congregações Gerais, foi possível identificar a estratégia conservadora para um conclave tão decisivo para a Igreja e para o mundo. O que está em jogo é a continuidade da primavera na Igreja iniciada pelas reformas de Francisco ou a volta aos tempos do inverno que assolou a Barca de Pedro por tantos anos.

O resultado de um conclave pode ser imprevisível, mas a maioria dos analistas não creem que haja grandes retrocessos na condução dos destinos da Igreja. Todavia, os tradicionalistas têm usado todos os recursos disponíveis para frear ímpetos reformistas. Na impossibilidade de tornar viável um candidato conservador, ao menos garantir a reversão da reforma da Cúria Romana e da abertura da Igreja nas pautas da diversidade e da moral.

Para tanto, a facção anti-Francisco tem operado em três níveis diferentes. Primeiro, através de certa narrativa disseminada através da Grande Imprensa. Seja no Brasil, na Itália, na França ou na Espanha, os principais meios de comunicação têm insistido que o próximo pontífice deverá unir uma Igreja supostamente dividida.

Pela voz dos jornalistas, as “fontes” do campo conservador ventilam que o futuro Papa deverá ter um perfil conciliador. Ele deveria estender a mão para setores da Igreja contrariados pelo pontificado de Bergoglio. Trata-se do mesmo discurso dos meios de comunicação no Brasil sobre o perfil do sucessor de Francisco.

Acontece que exatamente esses setores foram, sob Bento XVI, parte diretamente envolvida nos problemas e na crise da Igreja. Agora se precisa negociar e dialogar justamente com quem causou tanto sofrimento em nome de interesses pouco evangélicos?

Ao reproduzir essa lógica, de forma consciente ou não, a imprensa colabora com a estratégia conservadora de produzir um fato político. Dessa forma, se tenta convencer a opinião pública e o laicato católico acerca da necessidade, para o bem da Igreja, que o próximo Papa deve ter um perfil moderado. No caso brasileiro, esse discurso ainda é reforçados pela visibilidade dada a prelados locais de viés conservador, que são apresentados como moderados ou progressistas

A segundo eixo da estratégia conservadora reside nos chamados Kingmakers (fazedores de reis) ou Popemakers. São cardeais muito respeitados entre seus pares ideológicos. Geralmente ou não são eleitores ou sabem que dificilmente terão força política suficiente para alcançar os 2/3 dos votos necessários no conclave para eles próprios serem eleitos. Mas por sua influência, podem indicar nomes a serem seguidos pelos demais cardeais.

No campo conservador, dois desses nomes se mostraram bastante ativos na imprensa. Um deles é o Cardeal alemão Gerard Müller. Opositor dos mais ferrenhos ao papado de Bergoglio, deu duas declarações em momentos diferentes neste pré-Conclave. Disse que o conclave marcaria “o fim de uma era”, a de Francisco. Posteriormente, afirmara que o grande conflito neste conclave não seria entre conservadores e progressistas, mas sim entre ortodoxia e heresia.

O Outro é um veterano representante do inverno eclesial. Trata-se de Camilo Ruini, Cardeal Vigário Emérito da Diocese de Roma. Muito identificado com João Paulo II, Ruini foi os olhos em defesa da ortodoxia e do magistério do papa polonês na Cidade Eterna. Na semana passada declarou. que Francisco foi até às fronteiras, fez um papado para o público externo, mas era hora da Igreja voltar a pertencer aos católicos…

Ambos são representantes do Ancient Regime. Porta-vozes dos arautos do retrocesso. Dão um tom mais crítico e ácido às suas falas porque sabem que é bem difícil que saia um papa dentre os opositores públicos de Francisco. Mas em tempos de crise de identidade, sabem bem que o discurso de defesa da “Sã Doutrina da Fé” podem atrair cardeais moderados.

Ao apelarem para a Tradição (muito mais tridentina que evangélica, diga-se), esperam “furar a própria bolha”. Pretendem emplacar um nome que, mesmo não fazendo uma contrarrevolução anti-Francisco, ao menos congele as mudanças ocorridas até aqui. Atrairão moderados, mas será em número suficiente para fazer um novo Bispo de Roma?

É fácil identificar os cardeais desse campo tradicionalista porque a maioria deles se sentam em torno de Müller nas audiências das Congregações Gerais. Em imagem de alguns dias atrás, um prelado brasileiro até apontado como progressista por sites ultraconservadores estava nesse grupo. E talvez não seja à toa.

Nas listas de papabili publicadas pela imprensa italiana aparece um cardeal húngaro vinculado a esse campo conservador. Próximo ao governo autocrata de seu país, seria uma surpresa se eleito fosse. Mais nenhum cardeal desse campo tomou para si a condição de papabile.

Fora os popemakers, mais ninguém deste grupo dá declarações polêmicas ou se manifesta de forma veemente para a imprensa. A disciplina e o espírito de corpo fazem parte da tática dos ultracatólicos no conclave, como têm sido em processos eleitorais mundo afora. Mas não só.

Possivelmente, avaliaram que dificilmente emplacarão um pontífice que seja a antítese completa de Francisco. Tentarão de tudo até o final, mas se movimentam em torno de uma alternativa que, mesmo identificada com o pontífice argentino para fora dos muros católicos, seja teologicamente conservador.

É um movimento que pode ser bem sucedido, desde que consigam plantar um Cavalo-de-Tróia. Um nome que, possa alcançar 2/3 dos votos, angariando apoios de parcela dos cardeais conservadores o suficiente para sua eleição. Alguém de discurso humanitário forte, com entrada no mundo oriental e respeitado pelos ortodoxos. Mas, ao mesmo tempo, alguém conservador no campo da moral, que não fosse mexer mais com a Cúria Romana. Um purpurado que, por exemplo, desfizesse as restrições da missa em Latim decretadas no pontificado que se encerrou..

Considerando a universalização do colégio de cardeais, agora presentes em lugares remotos como a Mongólia ou ilhas da Oceania, é difícil acreditar que eles se conheçam bem. A menos que boa parcelas destes prelados tivessem alguma comunicação por aplicativos de mensagens ou por chamadas de vídeo, articulados sob alguém muito identificado com Francisco. Não é o que parece até agora.

Isso torna mais plausível a possibilidade de um Cavalo-de-Tróia. Não seria novidade. Karol Wojtyla foi, de certa forma, uma virada em relação a João Paulo I. E os cardeais latinoamericanos caíram nessa mesma narrativa. Em 1978, diziam que o polonês apoiaria a Igreja Latinoamericana porque tinha conhecimento de causa (a versão antiga do hoje “lugar de fala”) sobre como lidar com regimes autoritários. Foi eleito, a primavera conciliar foi congelada e o resto virou história.

Finalmente, a estratégia conservadora também fala por finanças e comunicação nas rede e na internet. Um grupo católico ultraconservador criou um site com os perfis de cada cardeal. Aqueles considerados mais progressistas têm sempre algo que coloca em dúvida sua fidelidade a doutrina cristã. Os do campo conservador são mais bem detalhados, sendo retratados como campões da fé católica.

No último final de semana, a imprensa repercutiu a informação dada por um jornal italiano sobre um dossiê secreto sobre 20 cardeais que circulava entre os prelados nas Congregações Gerais. Um outro jornal de Roma, com perfil conservador noticiou que um forte candidato ligado a Francisco havia desmaiado na semana passada e se encontrava doente. Há desinformação se tornou arma dos conservadores para influenciar o Conclave.

Para além do colégio cardinalício, há uma mudança de algoritmo nas redes digitais. Leigos católicos começaram a ser mais bombardeados de informações sobre o conclave geradas perfis de grupos ultraconservadores. Isso tem acontecido mesmo com pessoas identificadas com a Teologia da Libertação.

Esse esquema de convencimento quer atingir o fiéis para que estes sejam mais dóceis caso tenhamos um papa comprometido com uma agenda menos progressista. Aqui vale também a tática de plantar um Cavalo-de-Tróia na opinião pública. Afinal, nem mesmo todos os cardeais conhecem o perfil teológico dos principais candidatos ao sólio pontifício.

Sob o disfarce da “Semana da América”, um grupo empresários muito ricos estiveram em Roma na semana anterior, para uma peregrinação religiosa anual, organizada por uma entidade católica norteamericana. Em meio aos dias de luto pela morte de Francisco, promoveram jantares em palacetes da cidade, com vinhos caros e comida sofisticada.

Além disso, houve reuniões secretas no melhor estilo lobby de corporações na capital do país. Um dos presentes afirmou que, de uma reunião como aquela, seria possível arrecadar mais de U$ 750 milhões “desde que tenhamos o papa certo”. Tentador, se considerarmos verdadeiras as notícias sobre o Vaticano estar com problemas financeiros.

A estratégia conservadora para a eleição do próximo sucessor de Pedro está lançada. Mesmo que haja mais barulho, desinformação e tentativa que possibilidades concretas, a imprevisibilidade de um conclave não nos podem fazer descartar nenhuma hipótese. Se sairão vitoriosos ou não, somente saberemos uma hora após a fumaça branca sair da chaminé…

*Jorge Alexandre Alves é Sociólogo, Professor do IFRJ e integra o Movimento Fé e Política no estado do Rio de Janeiro.

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