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Manfredo Oliveira: A chance de recomeçar…

Em meio às incertezas trazidas pela pandemia de coronavírus, repensar sobre as formas de existir, viver e conviver é a chance de sairmos mais humanos disso tudo. É o que aponta o padre e filósofo Manfredo Oliveira.
Entrevista publicada por Entrevista Nota 10, Universidade de Fortaleza – www.unifor.br em 14.04.2020

Manfredo Araújo de Oliveira, docente titular do Curso de Filosofia, recebeu nesta quinta-feira (28) o título de Professor Emérito da UFC, entregue pelo Reitor Henry de Holanda Campos e pelo Diretor do Instituto de Cultura e Arte (ICA), Prof. Sandro Thomaz Gouveia.

Onde só se enxerga caos, há também a possibilidade de um recomeço. Para o filósofo e padre Manfredo Araújo de Oliveira, professor de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC), os momentos de incertezas trazidos à humanidade pela pandemia de Covid-19 oferecem a grande chance de refletirmos sobre as formas de configurarmos nossas vidas em nível individual e coletivo. “É uma ocasião que nos oferece a grande chance de reconhecer a dignidade de cada ser”, disse o professor.

Reconhecido como um dos principais filósofos do Brasil, Manfredo pontuou ainda que, antes mesmo da Covid-19, a humanidade já estava ameaçada em sua sobrevivência. Segundo ele, os modelos econômicos de acúmulo de riqueza e os padrões de consumo adotados estão levando ao colapso tanto social quanto ecológico. Por último, ele enfatizou a necessidade de se criar uma grande rede de solidariedade global para proteger os países mais frágeis do vírus globalizado. “Aqui a solidariedade se revela não simplesmente como um convite, mas como uma obrigação”. 

Confira a entrevista.

Quais os paradigmas que a pandemia de Covid-19 já quebrou e quais paradigmas novos começam a surgir?

Talvez seja ainda cedo para afirmar que paradigmas foram quebrados, mas podemos experimentar certos paradoxos que abrem perspectivas de transformação dos modelos de configuração de nossas vidas. O primeiro e fundamental é o da absolutização do mercado como mecanismo básico de regulação do sistema econômico. Suas regras são consideradas como um mecanismo semelhante às leis da natureza, algo objetivo que o ser humano não tem condições de modificar. Por isto se situam fora do campo das interrogações éticas. Cria-se, assim, uma dicotomia radical entre economia e ética. A única questão aqui é a da eficiência na acumulação de riqueza, o que tem produzido o espetáculo tremendo de milhões de pessoas em condições de fome e miséria ao mesmo tempo em que o desenvolvimento tecnológico se faz cada vez mais capaz de produzir em abundância os bens necessários à vida. Na atual crise são justamente os mais pobres os mais vulneráveis e esse fato é uma oportunidade para se compreender a natureza do sistema que nos marca e suas consequências desastrosas. Uma das consequências mais graves deste sistema é a crise ecológica. Por esta razão, a crise atual abre possibilidades para uma verdadeira “transição ecológica”. Por exemplo, a crise poderá ter efeitos benéficos sobre o aquecimento global e, consequentemente, sobre a saúde pública. Na China, as mortes associadas à poluição do ar são estimadas em um ou dois milhões de pessoas a cada ano e a poluição diminuiu em 20% a 30% durante a crise. Estas coisas nos levam a refletir seriamente sobre o mundo que construímos abrindo perspectivas de estruturação de uma economia sustentável que respeite e cuide da comunidade dos seres vivos e melhore a qualidade da vida humana.

O que a pandemia de Covid-19 pode trazer de positivo para a sociedade? Sairemos desta pandemia pessoas melhores? 

Não se pode ter certeza disto, pois, levando em consideração que somos seres livres, sabemos que não temos condições de saber de antemão como as pessoas vão orientar suas vidas no futuro, que elementos sociais, políticos, econômicos e culturais serão condicionantes das decisões humanas no futuro. Mas um acontecimento como o do Covid-19, enquanto ameaça à humanidade, pode conduzir a uma reflexão fundamental sobre aquilo que verdadeiramente importa na vida humana, sobre os verdadeiros valores que devem orientar nossas vidas. É uma oportunidade extraordinária para tomarmos consciência de nossa fragilidade fundamental, por um lado e, por outro, de nossa grandeza enquanto seres vocacionados à fraternidade, à justiça e ao amor. É uma ocasião que nos oferece a grande chance de reconhecer a dignidade de cada ser, de sua alteridade e, de forma muito especial, da dignidade de todo ser humano o que nos deve conduzir à busca de mecanismos para efetivar o reconhecimento universal do valor intrínseco de cada ser, superando toda forma de violência e discriminação, portanto, de refletir sobre a forma de configurar nossas vidas em nível individual e coletivo.

Este momento de estresse coletivo tem despertado inúmeras experiências altruístas, ações de amor ao próximo. São atitudes e sentimentos que tendem a se perpetuar mesmo após a pandemia ser controlada ou cairão no esquecimento quando tudo se acalmar?

É uma possibilidade, mas certamente é uma boa oportunidade para nos lembrarmos de que, antes do Covid-19, a humanidade já estava ameaçada em sua sobrevivência. O Covid-19 visualizou o que muitos não conseguem enxergar ou até tentam negar. Já se sabia que a universalização dos padrões de crescimento e de consumo do mundo rico conduziria a um apocalipse social e ecológico. A imposição pura e simples do ser humano sobre a natureza, em sua fúria de apropriação, conduz, em última instância, à destruição de toda vida no planeta. Somos convidados a pensar num mundo que seja capaz de superar todo tipo de humilhação do ser humano tanto da fome e da miséria quanto do que hoje se chama de “questões da identidade”, ou seja, por exemplo, o fato de ser negro, índio, mulher, drogado, homossexual etc. Por trás destas questões, há posturas que negam a dignidade inviolável do ser humano. A crise é uma grande oportunidade de sairmos dela mais humanos.

Vivemos em uma sociedade cada mais técnico-científica, mas estamos passando por um momento em que a ciência ainda não conseguiu dar respostas às inúmeras incertezas que permeiam a pandemia de Covid-19. Neste momento de incertezas e grandes perdas humanas, qual o papel da religião na vida das pessoas? Como o homem pode equilibrar-se entre razão e fé neste momento?

As respostas da religião não podem substituir as respostas das ciências como também o contrário, pois se põem em níveis diferentes, com objetivos diferentes. O ser humano é um ser extremamente complexo, constituído de inúmeras dimensões. Assim, também, são suas atividades que se realizam em diferentes óticas buscando todas a efetivação do ser humano em diferentes níveis. Um exemplo claro disto é a existência na vida humana de ciências, religiões, artes, filosofias, etc. As ciências buscam a compreensão dos diferentes campos da realidade tematizando suas estruturas específicas, sua maneira de ser e de se comportar, uma atividade de grande importância para o agir do ser humano no mundo, o que fica muito visível sobretudo neste momento de crise. Mas o ser humano tem outras questões que são também centrais em sua vida. Em última análise, ele se defronta com as assim chamadas “questões últimas” que dizem respeito à compreensão do todo da realidade, seu lugar neste todo, o sentido de seu existir e estas são as questões que são enfrentadas, cada vez de uma forma diferente, pela arte, pela religião e pela filosofia. Como diz V. Frankl, o ser humano, além de procurar sentido para coisas determinadas, deseja um sentido último, total, ponto de confluência de todos os sentidos particulares, capaz de dar unidade, nexo e desenvolvimento pleno à totalidade de sua vida e à existência do mundo como um todo. Este é constitui para ele o sentido por excelência. Na minha compreensão do fenômeno religioso na vida humana, seu objetivo é oferecer aos seres humanos respostas a esta questão fundamental que constitui o horizonte radical de orientação da vida.

A Covid-19 diferencia-se de inúmeras outras doenças tão graves e fatais quanto ela por não se restringir ou afetar especificamente determinadas classes sociais ou regiões, tal como acontece com a dengue, a cólera, etc. O senhor acredita que a fato de ser uma doença que afetou profundamente países desenvolvidos e, a exemplo do que aconteceu no Brasil, atingiu primeiro classes sociais mais privilegiadas, influenciou na mobilização mundial? Como o senhor avalia o comportamento ético das lideranças mundiais diante da pandemia?

Experimentamos na crise o espetáculo terrível de um retorno explícito a um nacionalismo extremado de defesa única dos próprios interesses nacionais a tal ponto de se querer, com dinheiro, garantir para o próprio país, com exclusão dos outros, os meios necessários para o cuidado dos doentes. Perde-se com isto uma oportunidade importante para se dar conta de que um mundo globalizado (e a crise também é globalizada) exige que as grandes questões que dizem respeito a todos sejam pensadas em perspectiva global. Há, contudo, alguns testemunhos que vão na direção oposta a este nacionalismo exacerbado. Primeiro uma carta assinada por 165 personalidades globais que pedem uma ação imediata e conjunta ao G20 e um apoio bilionário aos países mais frágeis. Afirma-se nesta carta que todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e bem financiados, estão fraquejando sob a pressão do vírus. Depois, o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, apontou em sua mensagem de Páscoa à nação a questão central da crise: a crise não é uma guerra, é antes um teste de nossa natureza humana. Aqui a solidariedade se revela não simplesmente como um convite, mas como uma obrigação, tese retomada nesse domingo pelo Papa Francisco em sua mensagem pascal ao mundo.

 

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