Por Jorge Alexandre Alves*
O surgimento de grupos ultraconservadores no catolicismo tem chamado a atenção mais pelo barulho que fazem do que pela quantidade de membros que possuem. Com considerável aporte financeiro, têm sido relativamente eficazes em disseminar sua ideologia religiosa, assumindo para a si a missão de “recristianizar a Igreja”, nas palavras de Thais Oliveira. Contudo, é no ambiente líquido das redes sociais onde seu alcance é maior.
Nas últimas eleições, o extremismo católico surfou na onda do conservadorismo de extrema-direita que colocou Jair Bolsonaro no Planalto e vários similares do gênero nos governos estaduais. Os catolibãs também elegeram representantes para o parlamento federal e nos legislativos estaduais também. Assim, seu discurso hoje está amplificado e potencializado pelo momento político vivido no país. Por isso, se por um lado são pouco numerosos, por outro não podemos desconsiderar o alcance de sua “catequese”.
No contexto do catolicismo, suas falas e proposições vão na contramão do magistério do Papa Francisco. Alguns de forma velada e outros abertamente criticam o Bispo de Roma. E assim, constituem a linha de frente da resistência às reformas que Bergoglio vem tentando promover na Igreja.
Com certa frequência, atacam a CNBB e sua direção, acusando-os dos mais variados disparates (comunistas, lenientes com a defesa da fé ou mesmo hereges). Não obstante o ataque à conferência episcopal, alguns prelados apoiam abertamente tais grupos. Os extremistas leigos acabam fazendo o “jogo sujo” contra o Papa que muitos eclesiásticos não têm coragem de fazer abertamente.
Dessa forma, em algumas (arqui) dioceses muito conservadoras esses grupos tem feito ecoar com mais força sua mensagem intolerante. Há uma certa cultura católica em implementação por esses grupos. Aqui reside o problema, porque tal modus operandi tem se caracterizado pelo fundamentalismo religioso, permeado por um discurso de ódio a tudo o que tais grupos consideram contrários a fé cristã católica.
O extremismo católico direciona seus ataques fundamentalmente sobre qualquer pessoa, grupo, movimento ou expressão que possa ter vinculação à Teologia da Libertação. Mesmo que isso esteja bem longe da verdade, como aconteceu em 20/11/2019, em celebração pelo Dia Nacional da Consciência Negra, numa paróquia a poucos metros da sede do arcebispado do Rio de Janeiro. Os catolibãs consideram essa teologia (e toda pastoral que se produziu a partir dela) a origem de todos os males do catolicismo contemporâneo brasileiro.
Esses grupos se entendem como verdadeiros “cruzados” do Novo Milênio, a caça de hereges em nome sã doutrina da Igreja. Travestidos de paladinos da tradição, destilam ameaças, difamações e perseguições a quem eles consideram responsáveis de, através da TdL, corromper a Igreja, infiltrando na esposa de Cristo o marxismo cultural, a ameaça a família e a subversão dos valores da cristandade. Agem com enorme violência simbólica, com doses cavalares de agressividade virtual através da internet, nas redes digitais.
É nesse contexto explosivo que a Campanha da Fraternidade nos interpela com a temática da compaixão, do cuidado e da solidariedade. E faz uma significativa reflexão sobre o papel da vida como dom e compromisso cristão, trazendo uma poderosa imagem: a do Bom Samaritano. Cabe perguntar como podem grupos que se dizem defensores da fé da mais genuína Tradição ignorarem a mensagem contida nessa narrativa do Evangelho?
Nove parágrafos do Texto-base (134-142) da CF-2020 desenvolvem a máxima “Cuidar é ter mais ternura na vida”. O parágrafo 135 afirma que “se Deus é ternura infinita, também o ser humano é capaz de ternura”. Sendo assim, onde está a ternura daqueles que, em nome da fé, espalham ódio e intolerância internet afora? Mais à frente, o parágrafo 137 começa afirmando que “não é possível falar de cuidado sem falar de ternura”. Que cuidado é esse dos catolibãs para com o próximo que se baseia na mentira, no ataque e na violência?
Decerto que a ênfase da Campanha está relacionada ao cuidado com os pobres, os excluídos, aqueles sofrem nas periferias existenciais do mundo de hoje. Estes uma grave exigência à Igreja e aos seguidores de Jesus de Nazaré: que se coloque em saída, muito mais como hospital de campanha. Nesse contexto, a Eucaristia deve ser muito mais consolo e remédio do que prêmio para os bons, como nos ensina o Papa.
Logo, fazendo jus ao significado mais profundo do termo católico, a Igreja deveria ser uma campeã do diálogo e da escuta, da construção de pontes. Consequentemente, todo católico deveria também recusar os muros da intolerância e do fechamento em si mesmos. Como defender a fé, anunciar a Boa-Nova e seguir ao Cristo indo na contramão desses princípios?
As questões anteriormente suscitadas por uma breve reflexão sobre a CF-2020 já vêm sendo feitas há algum tempo. O extremismo dos catolibãs causa espanto e indignação em muitos grupos, dentro e fora da Igreja. Por vezes, ao manifestar publicamente seu escândalo com os fundamentalistas, pessoas e grupos também são criticados como incapazes de dialogar.
Evidentemente, é fato que precisamos ser assertivos e abertos o suficiente para compreender as razões de tanta gente ter adotado uma narrativa baseada no ódio, sobretudo no campo da política. Mas no contexto religioso cristão-católico, o que fazer quando se é alvo e sua forma de crer é acusada de forma desonesta e vil? Neste caso, não se trata mais de uma limitação nas tentativas de estabelecer uma espécie de diálogo “intraecumênico”.
Muitas vezes, debatendo sobre a questão do fundamentalismo, se interpela os adeptos da Teologia da Libertação com uma crítica bastante séria. Ao se escandalizarem publicamente com o tradicionalismo impregnado de ódio dos extremistas, estariam colaborando mais para o aprofundamento da divisão na Igreja do que para a pacificação dos espíritos. É uma crítica contundente, sem dúvida.
No entanto, o problema é de outra natureza. E muito mais grave atualmente, uma vez que o diálogo somente é possível quando existe predisposição para a conversa. A raiz do problema se encontra nessa questão.
Portanto, como estabelecer pontes com quem lhe vê como inimigo da Igreja e da fé? Com quem lhe nega a sua condição básica e fundamental de batizado? Com quem não reconhece que você tem o direito inalienável de escolher como ser cristão, e que podem haver outros modos legítimos de viver a fé?
A acusação feita aos que se identificam com a Teologia da Libertação resvala em certo discurso presente nos ambientes paroquiais da arquidiocese do Rio de Janeiro em meados dos anos 1990. Naquele tempo havia tensões no campo pastoral entre várias tendências católicas, como o modo pentecostal-carismático de ser Igreja, os “movimentos de encontro” e os defensores de uma pastoral libertadora. Dizia-se que os carismáticos tinham a espiritualidade e o pessoal da TdL tinha o engajamento social. Muita gente afirmava buscar a síntese dos dois. E talvez seja possível ainda hoje encontrar gente reproduzindo esse discurso e angariando aplausos. Ledo engano.
Só pode afirmar que não há espiritualidade na Teologia da Libertação quem desconhece o Ofício Divino das Comunidades ou a experiência fecunda de Penha Carpanedo e de tantas pessoas na Rede Celebra no campo da liturgia. Quem nunca ouviu com atenção as canções de Zé Vicente ou ignora a mística Hélder Câmara ou de Marcelo Barros. E desconhece a potência criativa que usa a arte como expressão de fé do Ateliê 15 ou do Movimento dos Artistas da caminhada – MARCA.
Precisa ser pouco informado ou desonesto para dizer que a TdL é vazia de Deus. Só pode ser coisa de quem nunca celebrou com a PJ ou nunca foi a um encontro de Ceb’s. Ou desmerece a experiência da leitura orante da Bíblia e nem nunca participou de um encontro ecumênico de formação pastoral, como foi o Curso do Rio ou é ainda o Curso de Verão em São Paulo.
Mais do que tudo isso, negar a existência de uma íntima relação com o Deus de Jesus Cristo na Teologia da Libertação é solenemente ignorar a profunda fé do povo das comunidades. De gente que, contra toda adversidade desses tempos obscuros, continua a caminhar depositando suas esperanças no Senhor e no Reino de Deus. Quem afirma a ausência do sagrado na Teologia da Libertação despreza a fé simples do Povo de Deus.
Portanto, longe de ser uma atitude fechada, o que se aponta é o elevado grau de fundamentalismo de certos grupos, a pressuposição de que um determinado modo de ser e de viver a fé é o único possível. Ou seja, aqueles que não vivem dessa forma devem ser ou “convertidos” à força ou suprimidos, cortados ou mesmo eliminados da comunidade eclesial.
Mas também não podemos negar que se pensa a Igreja a partir de outras bases, de uma outra eclesiologia. Consequentemente, se constata um modelo de Igreja fracassou retumbantemente em sua missão de cristianizar o mundo contemporâneo. A renúncia de Bento XVI é a maior evidência disso. Por isso também existem objeções e questionamentos em relação a grupos que, para além de sua intolerância, desejam o resgate de um modo tridentino de viver o catolicismo, totalmente anacrônico.
Entretanto, diálogo pressupõe escuta mútua e predisposição para se colocar como igual, olhando nos olhos e acolhendo as diferenças. Certamente isso não seria problema para quem se vincula à Teologia da Libertação. Todavia, ninguém quer ser agredido, atacado e violentado em suas crenças.
Assim, o que parece é que certos grupos pentecostais católicos ou tradicionalistas estão tão convencidos de seu catolicismo embriagado de triunfalismo, são tão senhores da verdade que se recusam em reconhecer aqueles ligados à TdL como irmãos na fé. Para os catolibãs, estes são como a lepra, hereges perigosíssimos. Como dialogar nesse clima?
A única coisa que os fundamentalistas parecem desejar é a eliminação de qualquer um que se declare simpatizante da Teologia da Libertação como sujeitos eclesiais (alguns parecem até que, se pudessem, os queimariam numa fogueira tal qual se fazia nos autos de fé da Inquisição) ou a à capitulação diante do que se acredita ser o seguimento de Jesus. Com efeito, não parecem muito dispostos a quaisquer formas de diálogo. Tampouco querem debater teologia ou perspectivas eclesiológicas.
Esses cristãos se veem numa batalha messiânica. Por isso estão numa disputa permanente com quem não comunga de seus princípios. E aí entramos nós, que somos os alvos desse combate. Esse embate não foi por nós provocado e não ocorre em bases racionais.
Ao mesmo tempo, é necessário não se deixar intimidar pelo ódio e pelo extremismo do catolibãs. Precisamos reafirmar o direito á diferença no catolicismo. Aliás, o termo católico significa universal. Em 2000 mil anos de cristianismo, essa universalidade nunca foi sinônimo de uniformidade.
Não podemos ser ingênuos a ponto de crer que a pluralidade será facilmente aceita pelos intolerantes, como efeito de uma sensibilização dos espíritos ou por uma ação milagrosa de natureza divina. Esses grupos não estão abertos a esse caminho de conversão (metanoia). Tampouco serão convencidos através de argumentos racionais.
A disputa se dá no plano simbólico, na subjetividade e nas narrativas. Por isso, será muito difícil construir qualquer ponte com essa gente. Se eles nos reconhecem como interlocutores, eles deixam de ser quem são. Ora, só há existência para eles se eles tiverem um inimigo da fé, uma ameaça à cristandade a ser combatida.
Para os catolibãs, apenas faz sentido defender a fé nessas bases. Eles precisam de inimigos para manterem sua própria identidade. Por isso, a necessidade de alvos. Contra inimigos não há ternura, nem cuidado, nem humanidade. Só resta o ódio. Como lidar com isso?
* Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor da Educação Básica e participa do Movimento Fé e Política.
REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Thais Reis. Os católicos ultraconservadores que querem “recristianizar” o Brasil. Disponível em: https://vermelho.org.br/2020/01/20/os-catolicos-ultraconservadores-que-querem-recristianizar-o-brasil/ Acesso em: 29/01/2020