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O SÍNODO PARA A AMAZÔNIA E A IGREJA DO BRASIL: ENTRE SILÊNCIOS E OPOSIÇÕES

Por Jorge Alexandre Alves*

Na medida em que o Sínodo para a Amazônia se aproxima, fazem cada vez mais barulho as vozes dissonantes ao Instrumentum laboris, e a todo processo de preparação deste momento da vida da Igreja. Tivemos dois sínodos onde possibilidades de mudanças concretas na vida da Igreja foram sorrateiramente silenciadas.Em não poucos lugares, poucas medidas práticas foram tomadas a partir das proposições sinodais e dos documentos papais nestas oportunidades.

Assim, nos vemos às vésperas de um terceiro sínodo em apenas 6 anos de pontificado de Francisco. Por si só, é muito significativo esse dado. Indica disposição para tornar a Igreja mais aberta a decisões tomadas de forma colegiada. Francisco atua como umPrimus Inter Pares, o primeiro entre iguais no episcopado. Ele não se enxerga como uma espécie de Pároco do Mundo, onde os bispos seriam seus meros vigários.Ao aprofundar os mecanismos de participação e consulta na vida eclesial, Bergoglio sinaliza que os resultados pastorais poderão ser muito diferentes em relação ao que se via anteriormente.

Mais do que apenas questões relativas a ação da Igreja em uma região tão significativa, o sínodo que se avizinha trata de questões urgentes.  Hoje vivemos um dramático causado por um modelo econômico que coloca em risco toda a obra da criação. A mensagem que o padres sinodais darão ao mundo em outubro próximo está diretamente relacionada não apenas ao futuro da Igreja e do cristianismo como grande tradição religiosa. Os ecos do Sínodo para a Amazônia estarão relacionados diretamente à sobrevivência da própria civilização humana e da vida da Terra enquanto organismo vivo.

Dessa forma, o provavelmente mais importante evento eclesial sob Francisco é estratégico para humanidade e decisivo na história contemporânea da Igreja. A preparação para o sínodo vem causando furor e reações destemperadas de seus detratores exatamente por causa da agenda que as comunidades amazônicas trouxeram durante o processo de consulta. Esses elementos estão expressos no instrumentum laboris, documento de consulta que pautará o debate dos padres sinodais, daqui a algumas semanas.

Este Sínodo do Bispos é resultado de um amplo percurso, meticulosamente concebido para ser o mais inclusivo, popular e democrático possível. Fruto de uma trajetória pré-sinodal de três anos. O documento de trabalho que servirá de base para os trabalhos sinodais é seu maior fruto até o presente momento. Por isso, aqueles que sempre afirmaram que A Igreja não é uma democracia torcem o nariz para a sua realização, desqualificando a participação de mais de 85 mil pessoas nesse caminho rumo a Outubro.

Evidente que, como todo texto preparatório, o instrumento de trabalho é sujeito a ajustes e sofre críticas. Mas estas deveriam ser muito mais sobre ausências no texto, temáticas pouco discutidas, conceitos ou sobre abordagens pastorais. Acusar o documento de herético como fazem os já conhecidos opositores do Bispo de Roma, e insistir que as sugestões apresentadas não estão em sintonia com a sã doutrina da fé e contrários à tradição, é pressupor que o Papa e o secretariado do sínodo não são católicos. Em outras palavras, trata-se de um verdadeiro absurdo.

Reduzir a condição de ideologia a inculturação da fé no ethos dos povos ameríndios, das populações ribeirinhas e das comunidades extrativistas é ignorar que o catolicismo europeu atual é uma forma inculturada da piedade popular medieval do Velho Continente. Porque nós, latino-americanos, devemos ser receptores passivos de uma suposta tradição vinda da alta Idade Média ou quiçá de tempos tridentinos? Essa tradição, colonialmente nos foi imposta por mais de três séculos e transmitida de forma muitas vezes autoritária e castradora, não pode ser posta em perspectiva, a partir do diálogo e da escuta?

Causa estranheza e perplexidade que, exatamente quando o diálogo e a escuta se tornam a pedra angular da preparação de um sínodo dos bispos, apareçam supostos paladinos da fé cristã denunciando heresias. Por que exatamente neste momento? Possivelmente alguns o fazem com alguma sinceridade, preocupados com o futuro da Igreja. Mas considerar que a Amazônia será salva por meio do proselitismo católico, combatendo o neopentecostalismo evangélico e sem nenhuma crítica socioambiental soa ingênuo, no mínimo. E o que dizer da desonestidade intelectual e moraldaqueles que, saindo pela floresta afora coletando assinaturas e pedindo dinheiro às comunidades amazônicas, orquestram uma campanha de desmoralização contra um legítimo Sínodo dos Bispos à CNBB e ao Sumo Pontífice?

Outros importantes prelados criticam o Sínodo porque seu alvo verdadeiro é o Papa em pessoa. Não se trata de salvaguardar a fé, mas sim de atacar o sucessor de Pedro, continuando uma insidiosa campanha contra o magistério petrino exercido por Francisco que nenhum papa contemporâneo jamais experimentou. Em comum a todos esses descontentes, pode-se constatar certo desespero diante das inexoráveis mudanças em curso coordenadas por Francisco. Será o último esperneio diante da inevitável mudança que se vislumbra nesta nova primavera católica?

O documento de trabalho contém muitas sugestões questionadoras da atual ordem eclesial. Maior poder aos leigos, inculturação da fé, liturgia, o desafio das grandes distâncias, a formação de um clero autóctone e sobretudo a questão dos ministérios ordenados. Nesse campo, o instrumento de trabalho apontou possibilidades para o diaconato feminino e para a ordenação de homens mais velhos, coordenadores das comunidades e casados (os viriprobati). São temas que, sob Francisco, se debate de forma livre, sem que nenhuma temática seja retirada de discussão, diferentemente de outrora. E isso vem causando arrepios nas viúvas do inverno eclesial que congelou a Igreja por 35 anos.

Por mais que se explique que a centralidade do Sínodo é a Amazônia em si e os seus problemas, é a possibilidade da discussão acerca das questões já mencionadas – ainda que perifericamente – que realmente incomoda e assusta os detratores de Bergoglio. Ficaram inquietos por lerem no documento vários elementos que atacam o clericalismo e o caráter principesco dos ministérios ordenados, bem como as iniciativas que visam tornar a Igreja mais colegial por empoderar as comunidades e o laicato. Assim, o que está em jogo para os inimigos do Sínodo é o status e o prestígio religioso que lhes conferem alguma posição de poder.

Além da oposição intra-eclesial, o Sínodo para a Amazônia incomoda os poderes constituídos, sobretudo no Brasil. Da mesma forma que Francisco incomoda o “mercado” por denunciar os riscos de uma iminente catástrofe ambiental e por sua crítica contundente ao grande capital, à xenofobia e à desigualdade social. O governo brasileiro espiona a atividade de agentes pastorais e de clérigos envolvidos na preparação do evento eclesial. Tiveram a pachorra de solicitar que pudessem enviar delegados a um encontro de bispos (sic!).

Por conta de uma “não-política” ambiental, cujos efeitos perversos (assassinato de lideranças locais, queimadas, intimidação e morte dos povos indígenas, grilagem de terras, extração de madeiras) produzem morte e destruição. Parece que o governo, ao negar dados indiscutíveis, deu uma autorização tácita para que as frações mais selvagens do capital nacional atuante na Amazônia promovessem o ódio e a devastação. E nem cabe aqui mencionar as sandices ditas a respeito dos bispos e do Papa Francisco.

Enquanto isso, fora dos canais formais da CNBB, tem-se a impressão de que o Sínodo nem existe. Por todo o Brasil, os relatos reforçam essa percepção. Quase nada faz referência ao mais importante evento eclesial do ano. Fora da região amazônica, a repercussão é bem pequena.  Nas paróquias pouco se menciona o assunto. Relatos de quem acompanha de alguma forma as escolas católicas, em partes distintas do país (DF e RS) afirmam que não se tem feito nenhuma abordagem sobre o Sínodo para a Amazônia. Ao contrário, é uma temática que provoca divisão. Tem sido diferente em outras partes do Brasil? Possivelmente não, infelizmente.

Nas palavras de uma importante liderança leiga, que atua como agente de pastoral radicado no sul do país, mas que conhece bem a realidade nacional e possui vínculos com a Amazônia: “O Sínodo para a Amazônia no Brasil foi abraçado somente pelos bispos da Amazônia”… Ele também confirma a percepção de que, fora da Amazônia, pouca coisa a respeito do sínodo ecoa no restante do Brasil. Mesmo entre as pastorais sociais, nas Comunidades Eclesiais de Base, CPT, na Pastoral da Juventude pouco se fala a respeito do sínodo fora da região de interesse.

Não é a primeira vez. No Sínodo para a Juventude, apesar do conhecimento que a Igreja adquiriu sobre a evangelização da juventude, sobretudo por causa das experiências de mais de 40 anos da Pastoral da Juventude no Brasil, poucas foram as efetivas contribuições dadas na preparação daquele momento sinodal. E pouco foi o seu impacto de suas conclusões no país. Será que os opositores de Francisco também não estão adotando a mesma estratégia em relação ao Sínodo para a Amazônia?

Na home-page oficial de uma das maiores dioceses brasileiras nem se faz menção ao Sínodo para a Amazônia. Em outro sítio de uma importante diocese, até bem pouco tempo as informações sobre o sínodo estavam na seção de notícias, sem grande destaque. Hojeao menos estão destacando um link com o vídeo da campanha da CNBB de apoio ao Sínodo e ao Papa.  Este vídeo constitui uma resposta do episcopado aos ataques originados de setores ligados ao governo federal contra os bispos – sobretudo os da Amazônia.

Uma missa foi interrompida na catedral de Goiânia porque uma carta da conferência dos bispos brasileiros foi vista como comunista por uma mulher. Por qual motivo ela se sentiu autorizada a interromper o mais importante culto católico por causa de um texto que, entre outras coisas, defendia o episcopado, o sínodo e denunciava a crise ambiental na Amazônia? Quem são os novos cruzados que atiçam o Povo de Deus contra sua própria Igreja? Será que são realmente cristãos? Defendem a fé a partir do anúncio do Reino de Deus, tal qual Jesus de Nazaré? Ou são portadores de uma mensagem religiosa produzida a partir do ódio e da morte, difusores de uma necrorreligião?

Para completar o panorama dessa complexa conjuntura religiosa brasileira, dois fatos recentes nesta semana que podem dizer algo a Igreja do Brasil. Há poucos dias, o presidente esteve na Igreja Universal do Reino de Deus. O supremo mandatário da nação se colocou de joelhos diante do líder dessa confissão cristã, Edir Macedo. E foi abençoado com a imposição das mãos (gesto de forte simbolismo cristão), um fato inédito em nossa história republicana.

O discurso de Macedo, totalmente em sintonia com o bolsonarismo, é diametralmente oposto ao magistério de Francisco. Portanto, se o Sínodo dos bispos fizer críticas as políticas socioambientais dos países da Amazônia, o líder da IURD estará a postos, junto com outros representantes do fundamentalismo protestante para defender Bolsonaro. Com discurso religioso antagônico à teologia do Sínodo. Esse episódio é revelador do quanto Edir Macedo está se cacifando para ser uma espécie de antítese teológica de Bergoglio. Paradoxalmente, é possível constatar que leigos católicos de viés ultraconservador defenderam esse gesto do Chefe de Estado nas redes digitais.

Nas entrelinhas do que ocorreu na Igreja Universal, podemos supor que a aliança tácita entre o neopentecostalismo evangélicos e os chamados “catolibãs” pode estar com os dias contados. Os neotridentinos e pentecostais-católicos radicais ficarão contra o Pontífice Romano em nome de uma aliança de ocasião que se fortaleceu em torno do bolsonarismo? Esses segmentos católicos tomarão uma rasteira de seus pares do campo protestante? Não temos como prever.  Mas podemos indicar que, em breve, os evangélicos de extrema-direita não precisarão mais do conservadorismo católico para se locupletarem do Estado brasileiro.

Finalmente, o Papa anunciou dez novos cardeais. E vai configurando o Colégio Cardinalício com pessoas que estão em sintonia com seu pontificado. Os novos cardeais, que tomarão posse na véspera do começo do Sínodo para a Amazônia, estão alinhados com as grandes linhas de atuação de Bergoglio frente ao Sólio de Pedro. São nomes de primeira linha na promoção do diálogo com o Islã, com a questão da migração e com os povos indígenas.

Embora tenhamos alguns excelentes bispos, dotados de grande coragem pessoal e alinhados com Francisco, nenhum dos novos cardeais é brasileiro. Nem ao menos algum prelado da Amazônia brasileira, nas portas do sínodo. Essa ausência pode ser lida em suas entrelinhas, gerando algumas importantes questões:Que recado o papa manda ao conjunto dos bispos brasileiros? O silêncio em relação ao Sínodo e a resistência ao magistério deste papa na Igrejado Brasil não estaria tornando o episcopado brasileiro menos protagonista no Colégio dos Cardeais, diferente do que já foi um dia?

Pelo visto, Bergoglio crê que a arquitetura de sua sucessão não passa, pelo menos por hora, por “Pindorama”. Será que nos tornamos um catolicismo defasado em relação aos desafios impostos pela modernidade líquida, pela vida urbana, por uma economia do descarte e nas questões ambientais? Uma Igreja cujo modelo se estrutura na grande paróquia católica responde efetivamente a esses desafios urgentes? Oxalá o Sínodo para a Amazônia nos apresente importantes pistas pastorais para toda a Igreja do Brasil, e nos ajude a responder essas questões.

*Jorge Alexandre Alves é Sociólogo e Professor do IFRJ. Possui mestrado em Educação pela UFRJ. Foi catequista do Crisma e da Pastoral da Juventude e hoje atua no Movimento Fé e Política.

Referências:

BINGEMER, Maria Clara. A Igreja ante os desafios do presente. Disponível em: https://domtotal.com/direito/pagina/detalhe/31958/a-igreja-ante-os-desafios-do-presente.

CODINA, Victor. Os opositores da Igreja de Francisco. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591343-os-opositores-da-igreja-de-francisco-artigo-de-victor-codina

DALL’OSTO, Antonio. Amazônia: um Sínodo contestado. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591271-amazonia-um-sinodo-contestado

GUIMARÂES.Edward Neves Monteiro de Barros.Dois cardeais criticam o Sínodo para a Amazônia, mas o alvo é atacar o projeto de Igreja do papa Francisco. Disponível em: https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/2019/08/13/dois-cardeais-criticam-o-sinodo-para-a-amazonia-mas-o-alvo-e-atacar-o-projeto-de-igreja-do-papa-francisco/

GODOY, Manoel (Pe.). Notas sobre o pontificado de Francisco, com a palavra Pe. Manoel Godoy. Disponível em: https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/2019/08/19/notas-sobre-o-pontificado-de-francisco-com-a-palavra-pe-manoel-godoy/

MALVEZZI, Roberto (Gogó). As vozes isoladas contra o Sínodo. Disponível em: https://robertomalvezzi.com.br/2019/09/03/as-vozes-isoladas-contra-o-sinodo/

McDONAGH, Francis. Por que o Sínodo para a Amazônia “poderia mudar a Igreja para sempre”. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589069-porque-o-sinodo-da-amazonia-poderia-mudar-a-igreja-para-sempre

OBSERVATÓRIO DA EVANGELIZAÇÃO. Quem critica o Sínodo para a Amazônia tem ‘interesses ameaçados’, diz cardeal brasileiro. Disponível em: https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/2019/08/30/quem-critica-o-sinodo-da-amazonia-tem-interesses-ameacados-diz-cardeal-brasileiro/

De 28 a 30 de agosto, em Belém (PA) Encontro de Bispos da Amazônia Brasileira para estudo do Instrumento de Trabalho do Sínodo 

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