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E depois da pandemia? o que faremos?
Ivo Lesbaupin

Ivo Lesbaupin[1]

Quatro desafios

Segundo Ladislau Dowbor, estamos vivendo quatro desafios sérios, em nível global:

  1. A destruição ambiental, colocando em risco a vida na Terra
  2. A desigualdade social se acelerando
  3. A desordem financeira mundial
  4. A pandemia do novo coronavírus [2]

O que esta pandemia está nos revelando?

  1. Ou mudamos a forma de nos relacionarmos com a natureza, ou a humanidade se autodestruirá.

A estimativa feita pelos especialistas é que a perda acelerada de espécies que presenciamos hoje está, no mínimo, 1.000 vezes acima da taxa de extinção natural. O desmatamento e, mais amplamente, a perda da biodiversidade, estão na origem dos inúmeros vírus que se desenvolveram nas últimas décadas, inclusive do novo coronavírus. Se continuarmos a agir como estamos, será inevitável o surgimento de novos vírus pandêmicos, mais letais que o atual.

Precisamos de outra economia, harmoniosa com a natureza, que pare de “depredar os recursos naturais”, que tenha como objetivo servir à vida e não ao lucro. A concepção do “bem viver” dos povos andinos, também presente em outros povos indígenas, com nomes diferentes, se apoia nesta visão diferente, onde tudo está interconectado e o ser humano faz parte da natureza e não se opõe a ela.

Desde há muitos anos, existem estudos e propostas sobre outras formas de organizar a sociedade e continuam a surgir novos. Já dispomos, em quase todos os setores da vida, de práticas que realizam estas novas concepções, desde a agroecologia até as energias renováveis.

  1. É possível “mudar” a economia. As advertências da comunidade científica, dos movimentos ambientalistas, foram praticamente ignoradas pelos países: os governos, sob pretexto de não ser possível mexer no modelo dominante, pouco ou nada fizeram para limitar a emissão de gases de efeito estufa. De repente, como que por um milagre, todas as economias pararam. E o processo de aquecimento global foi reduzido. Ficou provado que, se há vontade política, é possível mudar a economia. Mais um dogma neoliberal que cai.
  2. Surgiu uma nova postura por parte de alguns governos e economistas, inclusive neoliberais, de que, para enfrentar a pandemia, o Estado precisa gastar. Isto supera um dogma arraigado nos últimos 40 anos de neoliberalismo, de que o Estado não tem mais recursos, tem de conter os gastos. Na verdade, tem recursos. E pode, inclusive, gerar mais, imprimindo moeda [3].
  3. A política pública de saúde – universal, gratuita – é absolutamente fundamental para um país. Isto foi reconhecido pela França, pela Inglaterra – antes defensores da privatização – e por autoridades de muitos países. É a saúde pública que está salvando as populações nesta pandemia. Onde o sistema público não existe, as vítimas são os pobres – que, em muitos países, são a maioria. “Esse é outro ensinamento: a vida é mais importante que a economia” (Boaventura de Sousa Santos) [4].
  4. É preciso investir também nas demais políticas públicas: educação, transporte, habitação etc. A revalorização destas políticas é o oposto do dogma “público é ruim, privado é bom” – sustentado nestas últimas décadas. Na hora da crise, foi o sistema público o pilar para o enfrentamento do vírus.

O Financial Times (principal jornal dos neoliberais) defendeu um redirecionamento da economia:
“Reformas radicais — reverter a direção política predominante das últimas quatro décadas — terão de ser postas sobre a mesa. Os governos terão de aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem ver os serviços públicos como investimentos, e não despesas, e buscar maneiras de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição estará novamente na agenda; os privilégios dos idosos e dos ricos serão questionados. Políticas até recentemente consideradas excêntricas, como a renda básica e o imposto sobre a riqueza, deverão entrar na mistura” (Financial Times, 07/04/2020).

As cadeias produtivas de longo alcance mostraram sua fragilidade: os países não podem ter o principal de suas atividades produtivas sediadas em outros países. Na hora da crise, a forte dependência do exterior causou muito prejuízo às sociedades[5].

A pandemia tornou visível a extrema desigualdade social. Mais que isso: no Brasil, tornou visível a enorme precarização do trabalho produzida pelas reformas recentes na legislação trabalhista: a maioria dos trabalhadores opera sem garantias, sem direitos. A ideologia do “empreendedorismo” é uma falsidade criada para permitir a superexploração dos desempregados. O lucro está garantido, os grandes empresários se dão bem, os banqueiros e investidores financeiros aumentam seus ganhos, mesmo quando o país está em forte recessão. O contrário ocorre com os trabalhadores, que perderam a maior parte de seus direitos.

Resistência

A situação de pandemia revelou uma enorme capacidade de ação e reação da sociedade civil: inúmeras redes de solidariedade se formaram em todo o país para ajudar as populações mais vulneráveis (vide a pesquisa sobre a solidariedade nas periferias do Brasil[6]).

A principal forma de comunicação, em razão da quarentena, passou a ser a virtual: aulas virtuais, debates, entrevistas, conferências. Multiplicaram-se os “ao vivos” (tradução de “lives”) e pessoas antes inacessíveis estão disponíveis, bastando ligar a internet: lideranças populares, indígenas, professores, intelectuais, epidemiologistas, infectologistas, médicos e muitos/as outros/as. Nunca se debateu tanto, nunca o conhecimento foi tão difundido.

Apesar de o governo ter aprovado muitas medidas prejudiciais à grande maioria, os protestos, assim como a pressão de movimentos sociais, de organizações da sociedade civil (OSCs), de parlamentares democráticos, barrou várias medidas deletérias e conseguiu aprovar outras boas. Foi o caso da renda emergencial de 600 reais, aprovada no Congresso e, depois, renovada por mais dois meses.

A difusão diária massiva de desinformação (fake news) pelas redes digitais foi fator determinante, tanto na campanha eleitoral quanto no governo, para manter o apoio junto a uma parcela do eleitorado. As redes, elemento fundamental da estratégia dos Bolsonaro, estão começando a ser objeto de controle (e há pressão internacional também neste sentido, contra o discurso de ódio).

Pós-pandemia

Para enfrentar a crise sanitária e construir o pós-pandemia, a primeira conclusão é de que não podemos voltar à normalidade anterior.

Precisamos de outra economia: reorientar os recursos a serviço da humanidade e não a serviço de um pequeno grupo de privilegiados que estão destruindo o Planeta para satisfazer seus interesses.

Precisamos de uma economia ecológica, em que o meio ambiente seja elemento central e não apenas um ministério.

E esta mudança tem de começar desde já, no processo de transição para o pós-pandemia.

Bens comuns. Precisamos começar por uma lógica dos comuns (ou bens comuns). Há bens que são “comuns”, alguns naturais, como a atmosfera, o ar, as florestas e outros como o conhecimento, a cultura. São bens que não poderiam ser privatizados, pertencem à humanidade, não podem ser propriedade de um particular (indivíduo ou grupo). A água é um destes bens comuns: não pode ser tratada como mercadoria, ser usada como fonte de renda.

Como afirma o Papa Francisco, em sua encíclica Laudato Sí (2015):
“O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (n. 30).

O Brasil é um país privilegiado, temos 13,8% da água doce do mundo. Mas estamos atacando nossos rios implacavelmente: com o esgoto sendo lançado diretamente nos cursos d´água, assim como as substâncias tóxicas usadas na agricultura, na mineração. Além da construção de novas hidrelétricas. Estamos desmatando no Cerrado e na Amazônia, isto é, na fonte de nossas águas e de nossas chuvas. Todo ano, centenas de rios morrem ou deixam de chegar a seu destino.

Temos exemplos magníficos de superação, como o do semiárido. A construção de um milhão de cisternas no semiárido nas duas últimas décadas garantiu água para milhares de famílias desta região, acabando com a dependência de políticos exploradores. A “convivência com o semiárido” – apoiada pela ASA (Articulação do Semiárido) – desenvolve inúmeras tecnologias de conservação e utilização da água para que as famílias possam viver bem.

Mudar a matriz energética. Para interromper o processo de aquecimento global, a principal medida é mudar a matriz energética: substituir a energia baseada em combustíveis fósseis – causadoras dos gases de efeito estufa – e a nuclear por energias renováveis (solar, eólica, maremotriz, oceânica…).

Revogação da EC 95 (Lei do Teto dos Gastos). Esta lei, aprovada no governo Temer em 2016, estabeleceu limites progressivos para os gastos com saúde e com educação para os próximos vinte anos. Em 2019, teve como efeito a redução de 13 bilhões para a saúde[7]. Diante da gravidade da pandemia, a maioria dos países aumentou os gastos com a saúde. No Brasil, apesar de o governo ter decretado “estado de calamidade pública” e ter feito aprovar a emenda constitucional do “orçamento de guerra” – que lhe permitem, em razão da situação extraordinária, efetuar gastos maiores que os previstos -, em nenhum momento cogitou de revogar esta lei que impede aumentar gastos com saúde.

Auditoria da dívida pública. O Brasil gasta hoje quase metade do orçamento com a dívida pública (juros e rolagem da dívida). Os juros, que, nos últimos anos, variaram de 200 a 500 bilhões de reais, são pagos ao topo da nossa pirâmide social, o 1% mais rico do país. Nossa dívida é, em sua maior parte, irregular ou ilegal. A única auditoria que o Brasil fez, em 1931, constatou que 60% da dívida era irregular, legalmente inexistente. Embora seja uma das exigências da Constituição Federal de 1988, até hoje não foi realizada, privilegiando os interesses do capital financeiro. A auditoria permitiria ao país dispor de, no mínimo, 500 bilhões – muito mais do que o valor que o governo gasta anualmente com saúde, educação e assistência social.

Agricultura. Abandonar a agricultura dependente de fertilizantes químicos e agrotóxicos, investir na agroecologia – sem venenos, sem transgênicos – para podermos ter alimentos saudáveis. Em muitos lugares do Brasil, já existe agricultura agroecológica e as pessoas se alimentam bem. Mas os governos insistem no agronegócio para exportação e nos transgênicos. É preciso decretar o “desmatamento zero” na Amazônia e no Cerrado.

Renda Básica de Cidadania. A riqueza do Brasil em 2019 foi de 7,3 trilhões de reais. Se houvesse uma distribuição igualitária, isto daria para cada família de quatro pessoas receber o valor de 11 mil reais por mês, suficiente para a família ter uma vida digna. Nosso problema não é econômico (“falta de recursos”): é político[8].

É preciso assegurar uma Renda Básica, que garanta a cada família o mínimo essencial para viver, que garanta que ninguém passe necessidade. Além de ajudar a família, ela gera mais consumo, mais atividade, mais receita, dinamiza a economia. Neste momento, nosso esforço deve ser por estender a Renda Emergencial até o fim do ano, sem reduzir o valor, e estendê-lo a todos os vulneráveis, sem complicações burocráticas[9]. Mas não basta: a Renda Básica é uma renda permanente, para todos/as e seu valor tem de ser, no mínimo, um salário mínimo.

Jornada de Trabalho. É preciso reduzir a jornada de trabalho sem reduzir o salário: a produtividade hoje é tal que nos permite produzir na metade do tempo aquilo que antes exigia tempo integral. A lógica é “trabalhar menos para trabalharem todos”. Do mesmo modo que o desenvolvimento tecnológico nos permitiu reduzir, em 150 anos (entre 1830 e 1980), a jornada de 16 horas a 8 horas semanais, é possível continuar este processo de redução.

Políticas sociais. É preciso possibilitar o acesso a bens de consumo coletivo (o “salário indireto”) – as políticas sociais: saúde, educação, transporte, habitação, ciência e tecnologia, pesquisa.

Reforma Tributária. O nosso sistema de impostos reproduz a desigualdade: os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, os ricos pagam pouco e os muito ricos não pagam nada. O peso dos impostos no Brasil está mais no consumo e menos na renda: deste modo, mesmo os que não têm renda para pagar imposto de renda, pagam muito. Uma pessoa que recebe o bolsa-família gasta metade do que recebe em impostos. Na verdade, quem sustenta boa parte deste programa assistencial são os próprios beneficiários.

Precisamos de um sistema tributário progressivo, em que os que ganham mais paguem mais e cada qual contribua segundo sua riqueza e renda. O peso dos impostos tem de estar mais na riqueza e na renda e menos no consumo[10].

Está mais que na hora de estabelecermos a taxação das grandes fortunas. No início de 2017, os 6 maiores bilionários do País possuíam juntos riqueza equivalente à da metade mais pobre da população (105 milhões de pessoas)[11].

Repensar a cidade, de modo que a cidade exista para o bem-estar dos habitantes (e não para os carros ou para a especulação imobiliária). Pensar a construção das habitações de modo que os materiais utilizados sejam poupadores e geradores de energia. É preciso repensar os transportes urbanos, investindo num sistema de transporte público, misto, diversificado, – apoiado principalmente nos trilhos. Incentivar o uso da bicicleta – criando facilidades e oferecendo condições de segurança.

Durabilidade/ consertabilidade/ recuperabilidade. Os imóveis devem ser construídos de tal modo e com tais materiais que permitam que, no futuro, quando vierem a ser desfeitos, seus componentes possam ser reutilizados, reaproveitados. Os aparelhos devem ser produzidos de tal forma que possam ser desmontados, e todas as suas partes reaproveitadas. Quando apresentarem defeito, devem poder ser consertados em vez de descartados. Eles devem ser feitos para durar, não para serem trocados.

Redirecionar os subsídios públicos. Um dos argumentos usados contra o uso de energia solar ou eólica é que seu custo é caro. Ora, para o uso do petróleo, os subsídios anuais era de 1 trilhão e 700 bilhões de dólares (em 2012). O futuro do planeta depende do redirecionamento dos subsídios hoje destinados a combustíveis fósseis e energia nuclear para fontes renováveis [12].

Fim da propaganda de produtos. O principal fator que leva as pessoas a consumirem cada vez mais é a propaganda. Não precisamos de propaganda para nos convencer a comprar um novo produto, muitas vezes supérfluo. Para buscar aquilo de que precisamos, basta a informação sobre sua finalidade e as substâncias que contém. Os cidadãos, com essa informação, saberão decidir por si próprios qual dos produtos lhes convém.

É preciso superar o desenvolvimento predador, destruidor das condições de vida dos seres vivos. Precisamos construir uma outra economia, outra forma de nos sustentarmos e nos relacionarmos, que permita às pessoas viver bem, em harmonia com a natureza e em colaboração com os demais seres humanos. Isto nos permitirá reduzir o aquecimento global, as mudanças climáticas, o surgimento de novos vírus desastrosos para a humanidade.

[1] Ivo Lesbaupin é sociólogo, professor aposentado da UFRJ e coordenador da ONG Iser Assessoria.
[2] Dowbor, no webinário “Outra economia é possível?”, (https://www.youtube.com/watch?v=Y5UO4GjGWFA), 11/06/2020, promovido pelo Projeto Novos Paradigmas para um outro mundo possível, uma iniciativa da Abong junto com o Iser Assessoria (https://www.novosparadigmas.org.br/).
[3] Antonio Martins, “Enfim, o direito humano a imprimir dinheiro”, 03/08/2020 (https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/enfim-o-direito-humano-a-imprimir-dinheiro/).
[4] Boaventura de Sousa Santos, A cruel pedagogia do vírus, Almedina, Coimbra, 2020 (http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/article/view/csu.2020.56.1.10.).
[5] Id.
[6] Repositório de Iniciativas da Sociedade Civil contra a Pandemia – A Sociedade Civil das Periferias Urbanas Frente à Pandemia (março-julho 2020) – Rebecca Abers e Marisa von Bülow (https://resocie.org/relatorios-de-pesquisa-do-repositorio/).
[7] Juliane Furno, no webinário “Economias para o bem viver e outras economias possíveis”, dia 3 de julho, promovido pelo GT Economia e Democracia da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político (https://www.youtube.com/watch?v=SuQa0irxpA0&t=36s ).
[8] Dowbor, no webinário “Economias para o bem viver e outras economias possíveis”, dia 3 de julho, promovido pelo GT Economia e Democracia da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político (https://www.youtube.com/watch?v=SuQa0irxpA0&t=36s).
[9] Antonio Martins, Os 600 reais que podem mudar a face do Brasil (https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/os-r-600-que-podem-mudar-a-face-do-brasil/).
[10] Juliane Furno, no webinário Economias para o bem viver e outras economias possíveis”, 03/07/2020.
[11] OXFAM, “A distância que nos une – Um retrato das desigualdades brasileiras”, 2017, 94 págs. (https://oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pais-estagnado/), p. 18.
[12] Jeremy Rifkin, A Terceira Revolução Industrial. Como o poder lateral está transformando a energia, a economia e o mundo. São Paulo, M. Books, 2012.

Imagem: Brasil de Fato (https://www.brasildefatomg.com.br/2017/05/30/para-constitucionalista-eleicoes-diretas-requer-um-movimento-que-ocupe-as-ruas)

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